Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social (2011)

July 19, 2017 | Autor: Leticia Ferreira | Categoria: Desaparecidos, Etnografía, Antropología Social, Etnografia, Antropologia Social, Antropologia Do Estado
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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSÊNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social

Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira

Rio de Janeiro 2011

UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSÊNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social

Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna

Rio de Janeiro Setembro de 2011 ii

UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSÊNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Aprovada por:

_________________________________________ Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna, Presidente da Banca PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Luís Carrara Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)

_________________________________________ Profª. Dra. Claudia Lee Williams Fonseca Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS)

_________________________________________ Prof. Dr. John Cunha Comerford (Suplente) PPGAS/Museu Nacional/UFRJ

_________________________________________ Profª. Dra. María Gabriela Lugones (Suplente) Universidad Nacional de Córdoba Rio de Janeiro Setembro de 2011 iii

FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Uma Etnografia para Muitas Ausências: O Desaparecimento de Pessoas como Ocorrência Policial e Problema Social./Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2011. xvi, 308 p.; 31 cm. Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna. Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2011. Referências Bibliográficas: pp. 281-293. 1. Desaparecimento de Pessoas 2. Pessoas Desaparecidas 3. Ocorrência Policial 4. Problema Social 5. 6. I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de PósGraduação em Antropologia Social. III. Título.

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RESUMO

O desaparecimento de pessoas é um tipo de ocorrência registrado diariamente nas delegacias de polícia brasileiras. Ao mesmo tempo, é também tema de eventos públicos, dedicados a debater e promover iniciativas para seu combate e prevenção. A presente tese tem o propósito de compreender como solicitações, acontecimentos e ausências múltiplas e heterogêneas são tanto classificadas como mesmo tipo de ocorrência policial, quanto encaradas como manifestações particulares de um só problema social. O texto é resultado de trabalho de campo realizado inicialmente no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da antiga Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro (Centro/Capital), repartição policial dedicada a investigar exclusivamente casos de desaparecimento, e estendido para eventos da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), que reúne órgãos governamentais e organizações não-governamentais que lidam com desaparecimentos de pessoa. Ao longo de cinco capitulos, as rotinas burocráticas e os artefatos de gestão por meio dos quais casos de desaparecimento são registrados, investigados e arquivados por policiais são objeto de descrição. Ademais, os embates e jogos de força estabelecidos entre agentes sociais engajados em eventos públicos sobre o tema, ponto nodal da constituição do desaparecimento de pessoas como problema social, também são descritos. Narrativas de casos particulares hoje arquivados no SDP atravessam todos os capítulos. A partir dos casos narrados e dos embates, artefatos e rotinas descritos, constata-se que o registro, investigação e arquivamento de casos de desaparecimento em delegacias produzem cotidianamente a irrelevância desse tipo de ocorrência, ao passo que eventos sobre o tema esforçam-se por conferir-lhe visibilidade e inseri-lo na agenda pública. Não obstante, tanto em repartições policiais, quanto em eventos públicos são igualmente empreendidas classificações que implicam processos de (des)responsabilização. Para policiais, desaparecimentos são “problemas de família”; para outros agentes sociais engajados no tema, desaparecimentos são “problemas de segurança pública” ou “problemas de assistência social”. Por meio dessas classificações, policiais, mães de pessoas desaparecidas e gestores de políticas públicas posicionam-se uns em relação aos outros e constroem, juntos, denúncias públicas de múltiplas ausências. Enquanto a falta de uma pessoa em espaços geográficos e teias de relações sociais em que se esperava que ela pudesse ser localizada é objeto de comunicação em repartições policiais, em eventos públicos sobre o desaparecimento a falta de um Estado assistente, uma família protetora e uma polícia sensível e competente são objeto de denúncia.

Palavras-chave: Desaparecimento de Pessoas, Pessoas Desaparecidas, Ocorrência Policial, Problema social

Rio de Janeiro Setembro de 2011 v

ABSTRACT

The disappearance of people is a type of event recorded daily in Brazilian police stations. At the same time, it is also the subject of public events dedicated to debating and promoting initiatives to its combat and prevention. This thesis aims at understanding how requests, events, and many heterogeneous absences are both classified as the same type of police report, and seen as particular manifestations of a single social problem. The text is the result of fieldwork carried out initially in the Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP), a sector of the former Homicide Division of Rio de Janeiro devoted exclusively to investigating cases of disappearance, and extended to events of the Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), an assemblage of governmental and nongovernmental organizations dealing with missing persons. Over five chapters, the bureaucratic routines and management artifacts through which disappearance cases are recorded, archived and investigated by the police are subject of description. Moreover, the conflicts and power games between social actors engaged in public events on the theme, which are the nodal point constituting the disappearance of persons as a social problem, are also described. Narratives of individual cases archived in the SDP cut through all the chapter. Based on the cases recounted and the battles and routines described, it appears that the registration, investigation and filing of cases of disappearance by police officers routinely produce the irrelevance of such occurrence, while events on the subject strives to turn the issue visible and insert it into the public agenda. However, classifications entailing assignments (and retreats) of responsibility are undertaken both in police departments, and in public events. For police officers, disappearances are "family problems", whereas to other social actors engaged in the subject, disappearances are "issues of public safety" or "social service problems". Through these rankings, police officers, mothers of missing persons and government officials position themselves in relation to each other and build together public denunciations of multiple absences. While the lack of a person in geographic sites and webs of social relations in which he/she were expected to be located is the subject of communication in police offices, at public events about the disappearance the lack of a provider state, a protective family and a sensitive and competent police are the subject of denunciation.

Key-words: Disappearance of people, Missing Persons, Police Report, Social Problem

Rio de Janeiro Setembro de 2011 vi

AGRADECIMENTOS

Adriana de Resende Barreto Vianna, minha querida orientadora, costuma chamar os casos que encontrei nos arquivos da polícia de “contos da burocracia mágica”. Adriana é assim: volta sempre seu olhar certeiro para as fabulações e efeitos mágicos que todo objeto de estudo pode despertar, desde o mais árido até o mais facilmente envolvente. Aprender com ela os melhores sentidos da palavra autonomia, contar com sua orientação tão firme quanto carinhosa, e poder compartilhar os gostos e desgostos da pesquisa, da antropologia e da vida são luxos impossíveis de agradecer à altura. Ainda assim, registro aqui meus mais sinceros agradecimentos pelo privilégio inestimável que é contar com a leveza da sua confiança. A Antonio Carlos de Souza Lima, agradeço por cada curso, indagação e palavra de incentivo. Ao longo do mestrado e do doutorado, em diversas ocasiões e em especial nos Exames de Qualificação, sua presença franca e clarividente sempre me pareceu uma imensa sorte. A ele agradeço ainda por ter me ensinado, através de sua própria postura, que o trabalho intelectual não é algo que deva ficar encastelado e inacessível, nem se pretender excepcional. Ao lado de Antonio Carlos, o professor Moacir Palmeira levou poesia para os Exames de Qualificação que precederam a escrita desta tese. Agradeço enormemente suas leituras, idéias e indicações quando minha relação com o material de pesquisa era ainda bastante confusa e, no entanto, recebeu dele uma bela dose de Carlos Drummond de Andrade. A Cláudia Fonseca, Sergio Carrara, María Gabriela Lugones e John Comerford, que aceitaram compor a Banca de Defesa ao lado de Antonio Carlos de Souza Lima e Moacir Palmeira, registro aqui meu muito obrigada por concederem tempo e atenção ao meu trabalho. Sou igualmente grata a cada professor com que tive chance de fazer cursos e trocar idéias no PPGAS/Museu Nacional nos últimos seis anos e meio, em especial Lygia Sigaud (in memoriam), Federico Neiburg, Luiz Fernando Dias Duarte, Olívia Cunha, Antonádia Borges e Fernando Rabossi. Também aos funcionários da Secretaria, da Biblioteca e da Xerox, registro aqui meus agradecimentos pela presteza e dedicação. Agradeço a todos no nome da adorável e sempre gentil Carla de Freitas. Agradeço ainda o apoio do CNPq e da FAPERJ, que me concederam bolsas de estudo ao longo do doutorado. Durante a realização da pesquisa, pude contar também com recursos do projeto “Políticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos de Direitos: Estudos Antropológicos das Práticas, Genêros Textuais e Organizações de Governo – DIVERSO”, realizado no vii

Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), Museu Nacional/UFRJ, em convênio com a FINEP. Paulo Esteves, amigo querido, foi quem me apresentou o Museu Nacional e apontou o caminho que me trouxe até aqui. A ele, nem sei como agradecer pelas inúmeras oportunidades criadas e oferecidas desde minha graduação na PUC-Minas, quando fui sua aluna e orientanda, até minha acolhida (e retorno) no Instituto de Relações Internacionais da PUCRio, agora como professora. Adentrando o mundo que gostamos de encantar chamando de “campo”, registro meus agradecimentos aos policiais do Setor de Descoberta de Paradeiros da antiga Delegacia de Homicídios do Centro/Capital, em especial e com muito carinho ao inspetor Robson Fontenelle, por terem partilhado comigo a preciosidade que alimenta a pesquisa antropológica: seu cotidiano. Nessa cidade em que tanto se pensa e fala sobre “a polícia”, foi um privilégio ouvir o que pensam e falam os policiais do SDP. Aos membros do comitê gestor da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, sou grata pela chance de compartilhar uma causa. Luiz Henrique Oliveira, Ivanise Esperidião da Silva, Vânia Nogueira, Laura Argôllo, Elton Galindo e Adriano Severino Santos mobilizam o que podem e o que não podem para atender familiares de desaparecidos e procurar maneiras de lidar com casos impossíveis. Em nome deles, registro minha gratidão e admiração por todos os membros da ReDESAP. Na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, agradeço àqueles que articularam a ReDESAP nos últimos anos e me abriram espaços e fizeram convites. Benedito Santos, Walisson Araújo, Beatriz Brandão e Denille Melo, ao coordenar e promover eventos da rede, reúnem idéias que me motivaram (e motivam) a pensar sobre o tema desta tese. Também me motivaram e motivam, não só a pensar sobre o tema deste trabalho, mas a deixá-lo de lado em momentos essenciais, meus queridíssimos amigos e familiares. Julia O‟Donnell foi literalmente a primeira pessoa que conheci no Museu, e desde aquele começo dividimos bairros, apreensões e surpresas. Como se já não fosse tanto, Julia colocou no mundo, ao lado do querido Leonardo Pereira, nossa pequena Helena e tudo o que, com ela, ainda está por vir. E Fernanda Figurelli, com sua doce presença estrangeira, me ajudou a fazer do Rio minha/nossa casa. Estou e estarei sempre à espera de suas visitas. Zoy Anastassakis, minha grega do coração, é uma amiga dessas que só se faz uma vez na vida e se leva para a vida inteira. Só posso dizer que torço pelas conquistas dela exatamente como anseio pelas minhas. E André Dumans Guedes, mineiro mais carioca que viii

há, é sempre uma inspiração para antropologias, idéias e, sobretudo, para um mundo tão lido, quanto corrido. Pela gentileza de ter lido parte desta tese e escrito preciosas páginas sobre ela, a ele devo meu melhor obrigada. Paula Lacerda, Rita Santos, Sílvia Aguião, Juliana Farias, Martinho Silva, Laura Lowenkron, Cláudia Cunha e Liane Braga estão presentes neste trabalho por seus incentivos, leituras, comentários e, sobretudo, desejos de que tudo desse certo no final. Em nome deles, que acompanharam de perto resultados parciais da pesquisa, agradeço a todos com que compartilhei as salas de aula do Museu. À Liane agradeço ainda pela generosa oportunidade de trabalho no Claves/Fiocruz, que me deu tranqüilidade para escrever depois de encerrado o prazo regular do doutorado. Com Paula e Rita pude também compartilhar outras salas de aula e muitos quartos de hotel em viagens que fizemos para realizar cursos de capacitação de atores da ReDESAP. Admiro cada detalhe do modo honesto, decidido e ao mesmo tempo terno e colorido com que as duas levam a vida, e não consigo imaginar melhores companhias para aquela empreitada e para todas as outras que, tenho certeza, ainda enfrentaremos juntas. À minha companheira de desterro Camila Meireles, agradeço pelas infinitas gentilezas e delicadezas com que preenche nossa amizade. E aos meus saudosos amigos “de BH”, hoje espalhados pelo mundo, registro meu obrigada pelo carinho à distância, pela tolerância diante de minhas ausências e pelas deliciosas visitas feitas nos últimos anos. Com minha amada irmã Luciana compartilho uma família, uma história e muitas memórias, mas quero agradecer imensamente pela certeza do que ainda vamos dividir. Pelas viagens que faremos, os álbuns de fotografia que preencheremos, as conquistas que comemoraremos e as alegrias, surpresas e bobagens de que riremos juntas. Meu pai, Eduardo, acompanha minhas escolhas e rumos com muito carinho, respeito e entusiasmo. Saber que posso contar com seu apoio é um conforto que não cabe em palavras. A ele agradeço também pela revisão do texto e pelos comentários deixados nos cantos das páginas, que aplacaram muito da solidão que é escrever uma tese. Minha mãe, Wânia, construiu nos últimos anos uma casa que mais parece um pedaço de paraíso. Busquei a imagem dessa casa todas as vezes que parei por alguns instantes diante de dificuldades que passaram e de idéias que ficaram nesta tese. Isso sempre me serviu como uma injeção de ânimo, aconchego e alegria. Coisa de mãe! E ao meu amor, Sérgio Veloso, devo vários obrigadas pela companhia, pelo incentivo e por cada uma das vezes que o ouvi tocando violão pela casa enquanto escrevia estas ix

páginas. Não sei se ele sabe, mas no começo da pesquisa minha intenção (e inquietação) era entender não só como algumas pessoas desaparecem, mas também como tantas outras voltam diariamente para suas casas, tranqüilas e determinadas, sem sequer aventar a possibilidade de sair por aí e perder-se no mundo. A ele agradeço por ser um dos meus melhores motivos.

x

LISTA DE QUADROS E FIGURAS

Quadro 1

Classificações de Sindicâncias

48

Quadro 2

Mesas e Temas do II Encontro Nacional da ReDESAP

64

Quadro 3

Grupos de casos

124

Quadro 4

Alguns números da ReDESAP

192

Figura 1

Situando o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas

240

xi

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

BPM

Batalhão da Polícia Militar

Cedae

Companhia Estadual de Águas e Esgotos

CT

Conselho Tutelar

DAIRJ

Delegacia de Polícia do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro

DEAM

Delegacia Especial de Atendimento à Mulher

DESIPE

Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro

DETRAN-RJ

Departamento de Trânsito do Rio de Janeiro

DP

Delegacia Policial

DH

Delegacia de Homicídios

ECA

Estatuto da Criança e do Adolescente

MJ

Ministério da Justiça

MP

Ministério Público

FCNCT

Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares

Fenseg

Federação Nacional de Seguros Gerais

FIA-RJ

Fundação para a Infância e Adolescência do Rio de Janeiro

HSA

Hospital Municipal Souza Aguiar

HFM

Hospital Ferreira Machado

ICCE

Instituto de Criminalística Carlos Éboli

IFP

Instituto Félix Pacheco

IML

Instituto Médico-Legal

IMLAP ou IML-RJ

Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto ou Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro

INSS

Instituto Nacional do Seguro Social

IPERJ

Instituto de Previdência do Estado do Rio de Janeiro

ISP

Instituto de Segurança Pública

ONG

Organização Não-Governamental

PAF

Projétil de Arma de Fogo

PNCFC

Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária

POLINTER

Polícia Interestadual xii

PF

Polícia Federal

RG

Registro Geral

Rede INFOSEG

Rede de Integração Nacional de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização

ReDESAP

Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos

SAMU

Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

SDP

Setor de Descoberta de Paradeiros

SENASP

Secretaria Nacional de Segurança Pública

SEDH/PR

Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República

SICRIDE/PR

Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas do Paraná

SPC

Serviço de Proteção ao Crédito

SPDCA

Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

TJ

Tribunal de Justiça

xiii

SUMÁRIO

Prólogo Introdução Uma forma para muitas ausências Através da porta que fica aberta Organização da tese

1 2 10 19 25

1. Nada opor: um problema de pesquisa e seus trâmites 1.1 Por um paradeiro ou por um papel? 1.2 A entrada em campo e a abertura dos arquivos 1.3 A burocracia e seus becos: o SDP 1.4 A pesquisa e suas curvas: a ReDESAP

27 29 36 45 60

2. Salvo melhor juízo: uma ocorrência policial e suas rotinas 2.1 Uma rotina para um fato atípico 2.2 De que é feito um enigma 2.3 É problema do Estado 2.4 (Outros)

72 73 94 112 120

3. Esgotadas todas as possibilidades: uma ocorrência policial e seus artefatos 3.1 São essas coisas de todo instante 3.2 Aborrecimentos, conselhos e compromissos 3.3 Desvios, suspeitas e reputações 3.4 Perturbações, cuidados e dependência 3.5 Errância, corpos e territórios

129 131 140 149 160 171

4. É o que me cumpre informar: um problema social e seus embates 4.1 Outras portas que se abrem 4.2 Uma rede e seus enlaces 4.3 Uma rede e seus nós 4.3.1 Há famílias desestruturadas em todas as classes sociais 4.3.2 Minha família se desestruturou depois que minha filha desapareceu 4.3.3 Não temos a estrutura necessária 4.4 De quantas ausências é feito um problema

187 193 198 206 207 211 222 227

5. Isso é coisa do destino: algumas formas escorregadias de classificação 5.1 Sem destino certo 5.2 Mas com tudo arrumado 5.3 Algumas formas eficazes de exclusão 5.4 Uma nota sobre participação

234 238 246 255 265 xiv

Considerações finais: à procura de Luísa Porto

271

Referências Bibliográficas

281

Anexos I. Documentos II. Índice alfabético e resumos dos casos III. Membros da ReDESAP IV. Eventos da ReDESAP

295 298 305 307

xv

Mais do que comer, correr ou flechar a carne alheia, mais do que aquecer a prole sob a palha, nós nos sentamos e damos nomes, como pequenos imperadores do todo e de tudo. Uma mulher dirigiu seus passos ao poente e sumiu; sabem o que fez aquele que ela abandonou, enquanto fitava o poente com os olhos cavos? Ele grunhiu, e este grunhido virou o nome da desaparecida. Ele lhe deu um nome, ele ganhou seu nome, como um coágulo, uma retenção daquilo que passava, confuso, por ele, um poente paralelo ao poente diante dele. Nuno Ramos, Ó

xvi

Prólogo

O sétimo andar do edifício sede da Polícia Civil correspondia, naquela época, à Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro – Centro/Capital. Depois de devidamente identificado na portaria, quem a ele ascendia via, assim que saía de um dos quatro elevadores do prédio, alguns corredores e muitas portas. Todas as portas tinham placas indicando o que funcionava e/ou quem trabalhava nas respectivas salas. De um lado, a primeira porta que se avistava era a dos Delegados Adjuntos. Do outro, a porta da sala 709, cuja placa indicava Seção de Descoberta de Paradeiros. Era esta sala que eu procurava naquela manhã. O mês era março e o ano, 2008. Logo que saí do elevador encontrei, parados diante da porta da sala 709, Maria e Jeferson. Eles aguardavam um policial específico, de nome Fernando, que nas palavras dela já “sabia do que se tratava”. Perguntei então se eles queriam registrar o desaparecimento de algum parente, ao que Maria respondeu negativamente: estavam ali, ao contrário, para pedir a suspensão das investigações em torno do paradeiro de uma pessoa que eles mesmos haviam localizado. Pensando pouco e pressupondo muito, imediatamente eu disse que deveria ser um grande alívio reencontrar alguém dado como desaparecido. Para minha surpresa, Maria assim me contestou: “Pra mim não é alívio nenhum. Eu preferia que ele evaporasse”. Segundo relatos de Maria, Antônio, a pessoa que ela preferia que evaporasse, era seu ex-marido, de quem estava separada há cerca de vinte anos. Ainda que separados, viviam na mesma casa, habitada também por Jeferson, atual companheiro dela. Nas palavras de Maria, mais do que alguém com quem fora casada no passado, Antônio era alguém que lhe dava “muito trabalho” no presente. Desaparecer, fazendo com que ela e seu companheiro tivessem que procurar não só por ele, mas também pelos serviços da polícia, era um exemplo desse trabalho. Enquanto Maria enumerava outras tarefas em que consistia o trabalho que Antônio lhe dava, um policial saiu da sala, abrindo subitamente a porta diante da qual conversávamos. Era o inspetor Fernando, policial que, conforme havia dito Maria, “sabia do que se tratava”. Ao constatar que estávamos aguardando há algum tempo, o inspetor Fernando afirmou que não precisávamos ter esperado do lado de fora. Poderíamos ter entrado quando quiséssemos, já que, nas palavras dele, “a porta do Setor fica aberta”. 1

Introdução

Em dezembro de 2009, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), autarquia estadual dedicada à pesquisa e à capacitação de servidores na área de segurança pública, divulgou um estudo sobre casos de desaparecimento de pessoas ocorridos no estado. Intitulado “Pesquisa de Desaparecidos”, o estudo teve como objetivo

mapear as ocorrências de pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro, no ano de 2007. A base de dados utilizada é proveniente de ocorrências registradas pela Polícia Civil naquele período (...) na tentativa de traçar o perfil dessas pessoas (sexo, raça, idade, nacionalidade, naturalidade, renda, escolaridade, local de moradia e localização da ocorrência), além de identificar as circunstâncias das ocorrências e as possíveis causas. (ISP, 2009)

Na solenidade de divulgação dos achados da pesquisa, diante da presença de redes de televisão e emissoras de rádio, foram destacados os seguintes dados: em 2007, a incidência de casos concentrou-se na capital do estado e entre pessoas do sexo masculino que tinham entre 10 e 19 anos; outros grupos que teriam destaque numérico nos casos “eram idosos, pessoas com problemas mentais e usuários de drogas e álcool” (ISP, 2009); e, da amostra de ocorrências analisadas, 71,3% tiveram como desfecho o retorno dos desaparecidos às suas casas ou ao menos a descoberta de seus paradeiros. Esse último percentual serviu de mote para o momento central da apresentação da pesquisa, em que seus resultados foram comparados ao que seria o perfil das vítimas de homicídios dolosos no estado. Contrastando com casos de desaparecimento, homicídios dolosos ocorreriam a pessoas com idades entre 20 e 29 anos, o que indicaria que a porção da população envolvida em desaparecimentos é distinta da composta pelas vítimas de homicídio. Ademais, enquanto mais de 80% das vítimas de homicídios dolosos seriam homens, entre os desaparecidos essa cifra baixaria para 60%. Há algo de reconfortante na idéia de que é possível definir quem são as pessoas que desaparecem em determinado local, afirmando inclusive que essas pessoas não só são localizadas, como também não são vulneráveis a certo tipo de crime e no mais das vezes retornam para suas casas. Estive presente na solenidade de divulgação da pesquisa do ISP e o tom de otimismo que nela reinou não me deixou dúvidas a esse respeito. Por outro lado, esse mesmo tom de otimismo me legou um conjunto de indagações de outra natureza: a produção 2

daqueles dados buscava atenuar que desconfortos e preocupações? Se havia otimismo em sua divulgação, qual seria o cenário de pessimismo que ela confrontava? Um ano antes da solenidade do ISP, a organização não-governamental (ONG) Rio de Paz promoveu uma manifestação em Copacabana que ficou conhecida como “Protesto Forno de Microondas”. Pilhas de pneus foram distribuídas nas areias da praia, de modo a expor o que seria um método de assassinato e carbonização de corpos utilizado por criminosos, sobretudo atuantes no tráfico de drogas, nas chamadas comunidades do Rio de Janeiro. Dentro das pilhas de pneus, pessoas e bonecos representavam as vítimas desses crimes; na frente de cada pilha, um cartaz dizia: “9.000 pessoas desaparecidas nos últimos 2 anos. Suspeita-se que 6.300 pessoas desaparecidas foram assassinadas”. Se o ISP separou os dois tipos de ocorrência, afirmando que as parcelas da população atingidas por cada um são distintas, a manifestação da ONG expôs um possível número de homicídios dolosos que estariam encobertos no universo mais amplo dos desaparecimentos. Ao fazê-lo, explicitou com bastante eloqüência alguns dos desconfortos e preocupações a que os resultados da pesquisa do Instituto pareciam se contrapor. Contudo, como apresento ao longo da presente tese, um olhar detido sobre casos, sobre a rotina de pessoas que com eles lidam e sobre eventos públicos dedicados ao tema revela que há outras razões para certo pessimismo em torno do desaparecimento de pessoas além de sua possível vinculação a crimes como, por exemplo, homicídio e destruição de cadáveres. A própria classificação de um conjunto de fatos como desaparecimento carrega consigo mais incômodos que certezas. Mais do que isso, efetuada no decurso de uma cadeia de comunicações entre pessoas e instituições, a designação de fatos e experiências como desaparecimento é constituída por questionamentos e incertezas. Policiais, gestores de políticas públicas, famílias e grupos de pessoas que lidam com essa classificação, seja por força de suas atribuições profissionais, seja por circunstâncias pessoais, vêem-se envolvidos em complexas tramas de significados voláteis e imprecisos. Não saber o paradeiro de uma pessoa, comunicar esse não saber a órgãos públicos e/ou ter que registrá-lo, investigá-lo e administrá-lo como policial, assistente social ou funcionário de uma ONG implica lidar com inúmeras dúvidas e imprecisões. Tais imprecisões são obliteradas tanto em resultados de pesquisas estatísticas que buscam traçar perfis fechados, como o estudo do ISP, quanto por protestos como o da ONG Rio de Paz, que cola desaparecimentos a homicídios. O desaparecimento não implica uma cadeia unilinear de fatos, em que alguém some, é procurado e, caso tudo aconteça como esperado, é localizado e retorna à ordem de coisas e 3

relações em que estava inscrito anteriormente. Embora seja essa a visão recorrente no senso comum, e embora aqueles que lidam com casos particulares muitas vezes esforcem-se para construí-los narrativamente assim, ela não resiste a um olhar mais atento. Citado no Prólogo, meu encontro com Maria, cujo ex-marido desapareceu e foi encontrado, sugere o quão contraintuitivo pode ser um caso de desaparecimento. Enquanto eu imaginava que ela estaria aliviada por tê-lo localizado, Maria preferia que Antônio “evaporasse”. Por outro lado, como sugere o mesmo encontro, não necessariamente o desaparecimento relaciona-se aos fenômenos da criminalidade e da violência urbana. Antônio, afinal, foi dado por desaparecido enquanto “descansava da vida” longe do Rio de Janeiro. O que, então, é o desaparecimento de pessoas? A que referentes esse termo pode ou pretende ser conectado em seus diversos usos? Se os chamados desaparecimentos políticos, inscritos dentre as práticas de repressão constitutivas de alguns regimes ditatoriais, são alvo de debates, comissões e indenizações, que tratamento é dado ao que, por contraste, Oliveira (2007) chama de desaparecimentos civis? Casos de desaparecimento não qualificados como políticos são muitas vezes definidos por desconhecimento e exclusão. Freqüentemente, o termo é utilizado quando não se sabe onde uma pessoa está, não se pode assegurar se ela foi vítima de crime, se optou por deixar o local e o círculo social em que habitualmente se encontrava ou se sofreu algum acidente. A exceção mais visível a esse uso aparece no habitual emprego do termo desaparecimento em casos de intempéries, catástrofes e acidentes que deixam vítimas fatais cujos corpos não são encontrados, ou vítimas com vida, mas impossibilitadas de retornar aos locais de onde saíram. Mesmo nesses casos, no entanto, não se sabe onde a pessoa está e não se pode determinar com precisão o que lhe ocorreu. Perguntar-se sobre o que esse termo pode significar descortina o quão escorregadias são as idéias que compõem seu campo semântico. Além de se tratar de uma classificação por exclusão, o fato designado como desaparecimento de uma pessoa se faz sempre em relação à outra ou outras. Não há como desaparecer em absoluto: se a pessoa está fora do alcance de outra, possivelmente está ou esteve ao alcance de uma terceira, inscrita em um cenário ou conjunto de circunstâncias inacessíveis apenas para a segunda. Tampouco há como estabelecer de forma absoluta as coordenadas espaço-temporais que marcam onde e quando uma pessoa desapareceu. O máximo que se pode tentar afirmar, fazendo uso de idéias apenas aproximativas e da voz passiva, é a hora e o local em que alguém “foi visto pela última vez” por outra pessoa que o conhecia ou pôde reconhecê-lo. 4

Ademais, delegacias de polícia são procuradas por pessoas que comunicam como desaparecimentos fatos que, após investigações, passam a ser designados raptos, homicídios, seqüestros ou outros crimes que anulam sua definição inicial como desaparecimentos. Nessas ocasiões, desaparecimento designa o desconhecimento e a inacessibilidade que uma pessoa experimenta em relação ao paradeiro de outra e, ainda, o desejo de buscar ajuda e/ou delegar a terceiros a busca por ela. Caso essa busca permita conhecer o paradeiro do desaparecido, o termo passa a ser substituído por outro. Um bom exemplo é o caso das onze vítimas da chamada Chacina de Acari, ocorrida em 1992 no município fluminense de Magé. Inicialmente consideradas pessoas desaparecidas por alguns de seus parentes que procuraram a polícia, ao longo das investigações as vítimas passaram a figurar em livro (Nobre, 2005), trabalho acadêmico (Araújo, 2007) e inquéritos policiais como vítimas de seqüestro e homicídio. Por fim, a despeito do fato de seus corpos jamais terem sido encontrados, algumas foram registradas como mortas em certidões de óbito. Em suma, tanto quanto determinar o “local do fato” é algo mais complexo do que pode parecer, registros policiais que classificam um acontecimento como desaparecimento são freqüentemente passíveis de negação. Não obstante ser tão escorregadio, o desaparecimento de pessoas é encarado, alternadamente, como “problema social” decorrente da omissão ou da ineficiência de múltiplos agentes que disputam o poder de definí-lo. Familiares de pessoas desaparecidas, policiais civis e militares, gestores governamentais de políticas públicas e funcionários de ONGs

acusam-se

mutuamente

de

serem

responsáveis

ora

pela

ocorrência

de

desaparecimentos, ora pela não-solução de muitos casos, e ora pelo dever de preveni-los. Embora abordem o fenômeno de formas distintas e apresentem-se como pólos opostos em embates variados, porém, esses agentes partem de um ponto comum: a falta de precisão quanto a definições e diretrizes para enfrentá-lo. Dispersas por distintas searas da administração pública, as competências e responsabilidades de gerir e combater o desaparecimento são tão escorregadias e imprecisas quanto o próprio vocabulário disponível para falarmos dele. Tenho me deparado com tais imprecisões desde março de 2008, quando conheci Maria, Jeferson, o inspetor Fernando e o caso de desaparecimento de Antônio, citados no Prólogo. Naquela ocasião, iniciei formalmente minha pesquisa de doutorado. Através de trabalho de campo no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, acompanhei a rotina de agentes da Polícia Civil que trabalham

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exclusivamente com casos de desaparecimento. 1 Seguir essa rotina incluiu ler, transcrever e analisar os documentos por eles produzidos acerca dos casos que recebem, investigam e arquivam diariamente. Acompanhar o cotidiano de uma repartição pública, afinal, significa tomar contato com quadros administrativos burocráticos constituídos por funcionários públicos e arquivos de documentos e expedientes. No primeiro capítulo da tese, detenho-me sobre minha entrada em campo junto aos agentes do SDP e seus arquivos. O SDP é a seção da Delegacia de Homicídios responsável por investigar casos de desaparecimento de pessoas registrados nas delegacias distritais compreendidas entre a 1ª e a 44ª Delegacia Policial (DP) do Rio de Janeiro. Todo caso de desaparecimento registrado nessas delegacias que não seja solucionado no prazo de quinze dias é remetido ao SDP, onde deve ser investigado por um dos cinco policiais que integram o quadro ativo do Setor.2 Contudo, com considerável freqüência casos registrados em delegacias não compreendidas entre a 1ª e a 44ª DP também são remetidos ao SDP, e o prazo de quinze dias é usualmente estendido por períodos de tempo muito variados. Entre março de 2008 e dezembro de 2009, com dois intervalos, freqüentei o SDP regularmente. Nesse período, acompanhei, li e transcrevi um total de 172 casos de desaparecimento recebidos no SDP entre 2004 e 2009. Desse conjunto, uma seleção de 57 casos é objeto de reflexão no corpo da tese.3 Minha presença no Setor levou-me a estabelecer relações também com membros da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), coordenada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR)4. A rede articula 47 instituições, entre ONGs e órgãos de 1

Desde janeiro de 2010, a referida Delegacia de Homicídios (DH) passou a ter estatuto de Divisão, tendo tido seu quadro de pessoal aumentado e sua estrutura física e organizacional alterada. Contudo, como encerrei a pesquisa no SDP no mês anterior, em dezembro de 2009, faço referência em todo o texto da tese à Delegacia de Homicídios, e não à atual Divisão de Homicídios. 2 Procedimento regulado pela Resolução 513/1991 da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Essa resolução é objeto de reflexão mais adiante. 3 Os casos não foram selecionados a partir de critérios de representatividade e capacidade de generalização, nem tampouco aleatoriamente. Como adverte Small (2009), associar pesquisa de campo a esses critérios de seleção de casos implica anular o potencial heurístico próprio do conhecimento etnográfico. À luz dessa advertência, escolhi para tratar mais detidamente casos particulares que proporcionam oportunidades e espaços narrativos para a apresentação dos aspectos específicos do desaparecimento de pessoas que busco destacar. Em suma, a escolha dos casos é ela mesma uma estratégia narrativa de que faço uso tendo como finalidade algo que é característico do texto etnográfico: a persuasão do leitor. Evidentemente não se trata de buscar convencer o leitor às expensas de compromissos com as pessoas e informações enredadas no texto, mas sim o contrário disso. Afinal, “uma vez que se começa a olhar para os textos de etnografia, além de olhar através deles, e se percebe que eles são construídos, e construídos para persuadir, aqueles que os produzem passam a ter muito mais por que responder.” (Geertz, 1988, p.181). 4 Desde março de 2010, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) passou a ser designada apenas Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Esta alteração foi parte de um conjunto de modificações na organização de Presidência da República e dos Ministérios instituídas por Medida Provisória (432/2010) convertida em Lei (12.314/2010) em agosto de 2010. Como a maior parte da

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administração pública municipal, estadual e federal, como conselhos tutelares, órgãos de assistência social e delegacias de polícia. 5 No curso da pesquisa, passei a frequentar as reuniões do comitê gestor da ReDESAP, então composto por três delegados de Polícia Civil, a presidente de uma associação de mães de desaparecidos, uma conselheira tutelar, o diretor de um programa estadual de busca de crianças e adolescentes desaparecidos e um gestor da SEDH/PR. Ao longo do ano de 2010, participei de reuniões do grupo centradas na principal iniciativa em torno da qual a rede está mobilizada atualmente: o projeto ainda não implementado do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. Além disso, também em 2010 preparei material didático (cartilha), coordenei e ministrei curso sobre desaparecimento de pessoas intitulado “Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no Âmbito da ReDESAP”, idealizado pela SEDH/PR e executado em convênio com uma ONG e uma fundação de ensino e pesquisa. O público-alvo do Programa consistiu em conjunto de servidores públicos e membros de organizações da sociedade civil que lidam com casos de desaparecimento de pessoas, mais ou menos diretamente, em seis unidades da federação: Rio de Janeiro, São Paulo, Sergipe, Pará, Distrito Federal e Goiás. Os debates levados a cabo nos eventos da rede em que estive presente ao longo da pesquisa, entre eles o curso, são objeto de reflexão na tese.6 A trajetória que percorri do SDP para a ReDESAP é apresentada no primeiro capítulo. O cotidiano do SDP, na Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, e os eventos promovidos pela ReDESAP nas cidades do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo, Aracaju, Goiânia e Boa Vista apresentaram-me os dilemas e desafios que casos de desaparecimento colocam para todos que com eles se envolvem, tanto em diversos níveis e searas da administração pública, quanto em experiências classificadas como pessoais e/ou familiares. Mais do que isso, a rotina da delegacia e os encontros da rede sugeriram-me que dilemas e desafios são o que constitui o desaparecimento como fenômeno passível, por um lado, de enfrentamento e gestão pública, e, por outro, de investigação antropológica. A ausência de uma pessoa em lugares ou círculos em que se espera que ela seja encontrada não é a única falta que determina um caso de desaparecimento. Ao contrário, muitas vezes essa ausência é apenas um de seus vários elementos constitutivos. Tanto quanto ela, a ausência de definições precisas do que seja desaparecimento e sobre quem recaem as pesquisa foi realizada antes dessa modificação, contudo, refiro-me em todo o texto da tese à Secretaria Especial de Direitos Humanos. 5 No Anexo III encontra-se a listagem dos membros da ReDESAP. 6 No Anexo IV encontra-se um quadro que compila os eventos da ReDESAP em que estive presente, listando os locais onde ocorreram e dados sobre minha participação.

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responsabilidades de sua gestão e de seu combate determina o curso de cada caso particular. Por isso, essa ausência de definições é o eixo em torno do qual as questões analisadas na tese estão organizadas. Em outros termos, apresento casos com que tive contato no SDP e debates de que participei na ReDESAP colocando em relevo essa falta de definições. “O que é o desaparecimento de pessoas”, nesse sentido, não é apenas uma pergunta retórica ou narrativamente estratégica que se presta a introduzir este trabalho, como utilizei acima. Antes, trata-se também de uma indagação evocada pelos agentes que lidam com casos particulares, envolvem-se em debates públicos em torno do desaparecimento e, cotidianamente, definem, redefinem e questionam seus significados. Inspirada primordialmente na problemática antropológica do “gestar e gerir” (Souza Lima, 2002), a pergunta mais ampla que reúne as questões aqui tratadas é a seguinte: como é construído e gerido o desaparecimento de pessoas no Brasil contemporâneo? Ao compilar análises processuais sobre a instauração e utilização de espaços e categorias sociais que são “alvos e cauções de uma „burocracia‟ destinada a geri-las, em si fragmentada, comportando histórias de constituição muito diversa e articulando setores sociais heterogêneos” (Souza Lima, 2002, p.17), Souza Lima explora o universo prescritivo e pedagógico das práticas, técnicas e saberes constitutivos do que, em sentido lato, podemos chamar de administração pública. Conforme a abordagem do autor, em categorias jurídico-normativas, políticas públicas e “problemas sociais”, tanto quanto na crescente formação de especialistas e técnicos em áreas temáticas diversas, há mais que aplicação de regras, normas e procedimentos burocráticos a realidades supostamente dadas ao conhecimento. Importa, portanto, investigar os processos de mútua constituição através dos quais categorias, políticas e “problemas” conectam-se aos mundos sociais que buscam circunscrever. Tomada como pergunta, a dupla “gestar e gerir” proporciona reflexões sobre casos particulares e debates públicos em torno do desaparecimento de pessoas que não naturalizam categorias e mantêm no horizonte analítico a idéia de que todo fenômeno tomado como objeto de administração pública é, necessariamente, construído por técnicas, práticas e saberes que sobre ele incidem. Estabelecer a pergunta do “gestar e gerir” como pilar de um trabalho sobre o desaparecimento de pessoas, portanto, significa admitir por princípio que o objeto em foco não é o desaparecimento de pessoas, e sim aquilo que é construído como desaparecimento de pessoas, procurando compreender o processo por meio da qual se dá tal construção. A interrogação sobre a constituição e gestão do desaparecimento de pessoas desdobrase, aqui, em duas indagações principais: como casos particulares de desaparecimento são 8

construídos como ocorrências policiais, e como o desaparecimento de pessoas é construído, em outro plano, como “problema social”. Tais indagações desdobram-se, ainda, em uma terceira: a pergunta acerca das unidades e responsabilidades construídas e atribuídas em casos particulares de desaparecimento e em debates públicos em torno do fenômeno. “Família”, “polícia” e “Estado” são termos constantemente evocados nos referidos casos e debates, daí minha opção por me perguntar, também, como são construídas unidades e atribuídas responsabilidades diante de desaparecimentos de pessoas. As reflexões incitadas pelos casos e debates apresentados na tese são devedoras de um conjunto de etnografias que, ao tomar como objeto práticas classificadas como administrativas, burocráticas e/ou judiciárias, prestam-se a pensar sobre processos de formação de Estado e constituição de sujeitos. Em franco diálogo com a filosofia de Michel Foucault, tais trabalhos, que aparecem ao longo da tese não só em citações explícitas, mas também e principalmente como interlocutores com os quais gostaria de dialogar, promovem reflexões que revelam a faceta mais dinâmica e insidiosa do poder de Estado: a arte de governar seres humanos e suas relações (Inda, 2005). Alguns desses estudos são as etnografias realizadas em contextos estrangeiros e compiladas por Das & Poole (2004) e Inda (2005), além dos trabalhos de Lugones (2004, 2009) em tribunais da província argentina de Córdoba, e, com especial destaque, os estudos voltados para a realidade brasileira realizados por Souza Lima (1995), Vianna (1999, 2002) e Schuch (2009). Também compõem esse quadro as coletâneas organizadas por Souza Lima (2002) e Fonseca & Schuch (2009). Almejando dialogar com os trabalhos citados, busco discutir as questões centrais acima introduzidas ao longo de cinco capítulos, cujos conteúdos encontram-se resumidos no final dessa Introdução. Antes disso, faz-se necessário ressaltar que os casos de desaparecimento com que tive contato no SDP e que selecionei para apresentar na tese atravessam os cinco capítulos, fazendo-se presentes no corpo do trabalho como um todo. Casos são a matéria prima mais fundamental da tese, e sem referência a eles nenhuma das questões tratadas teria sido sequer levantada. Em suma, é através deles que busco compreender como o desaparecimento é gestado e gerido no Brasil contemporâneo.7

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Todos os casos com que tive contato nos arquivos do SDP tiveram lugar no estado do Rio de Janeiro, o que a princípio demandava que eu circunscrevesse meu objetivo de pesquisa ao Rio de Janeiro contemporâneo, e não ao Brasil. Porém, a pesquisa estendeu-se para eventos da ReDESAP ocorridos em outras unidades da federação, onde conheci e conversei sobre outros desaparecimentos além dos investigados no SDP e tomei contato com formas de abordá-los e geri-los empreendidas em outros locais, permitindo ampliar o escopo da tese.

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Uma forma para muitas ausências Cada caso de desaparecimento investigado no SDP equivale a uma pasta de documentos que reúne registros relativamente autônomos. Produzidos em diversas repartições e encaminhados para o Setor em datas variadas, Registros de Ocorrência (RO), Ofícios, Despachos, fotografias e bilhetes pessoais, entre outros suportes materiais de informação, são compilados ali sob o título de Sindicâncias. 8 As gavetas dos arquivos do SDP reúnem Sindicâncias que são numeradas e organizadas ora segundo datas de desaparecimentos, ora segundo datas de registros dos casos, e ora segundo suas datas de arquivamento. 9 Abrir qualquer gaveta do Setor significa encontrar maços de papéis reunidos em pastas cujos indexadores são os nomes das pessoas desparecidas. Cada pasta equivale a uma Sindicância. Diante da mistura de registros heterogêneos reunida nas Sindicâncias, a ordem de produção e as conexões entre os papéis por elas compilados só podem ser compreendidas se nos debruçarmos sobre cada pasta durante certo tempo, dedicando-nos a analisar as peças documentais ali depositadas e a construir enredos que as reúnam, impondo-lhes uma ordem. Formular enredos coerentes a partir das fragmentárias coleções de documentos guardadas nas pastas é, nesse sentido, ficcionar (Ortega, 2008). Não que traçar percursos narrativos a partir daqueles documentos implique construir farsas, falácias ou ilusões. Antes, “convertir en ficción – ficcionar – no significa dar rienda suelta a fantasias escapistas, sino inducir un efecto de realidad a través del uso de práticas discursivas cuyos referentes están en disputa.” (Ortega, 2008, p.61). O referente central em disputa nos registros de casos de desaparecimento, como demonstro ao longo da tese, é o próprio termo desaparecimento. Atos oficiais de nomeação, os documentos reunidos em cada Sindicância de desaparecimento arrogam para si o estatuto de verdade e assim produzem verdades autorizadas (Bourdieu, 2008), a despeito de sua heterogeneidade e aparente incoerência. Já os enredos que se pode construir a partir deles, ao contrário, carregam consigo tons de ficção, à medida que lhes impõem certa coerência, mas induzem um efeito de realidade crucial para seu entendimento e análise. Enquanto freqüentei o SDP dediquei-me sobretudo à compreensão daquelas peças documentais e a tentativas de construção de enredos que as ordenassem. Nessa 8

No Anexo I encontra-se um quadro listando os documentos que, em combinações variadas, podem compor uma Sindicância. No quadro são apresentadas características básicas de cada documento. 9 Três critérios de guarda de Sindicâncias podem ser encontrados nas gavetas dos arquivos do SDP. Há casos guardados em gavetas segundo o ano em que a pessoa que dá nome à Sindicância desapareceu; há casos guardados em gavetas segundo o ano em que o registro de ocorrência de desaparecimento foi firmado em uma DP, que muitas vezes não corresponde ao ano do desaparecimento; e, por fim, há casos em que o que conta é o ano em que o caso foi arquivado. A maioria dos casos obedece ao primeiro critério.

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empreitada, busquei tratar os documentos que toquei, li e transcrevi como artefatos etnográficos especialmente reveladores de técnicas e procedimentos burocráticos estatais (Riles, 2006) e, ao mesmo tempo, de representações e marcas sociais produzidas e perpetuadas por tais técnicas e procedimentos (Cunha, 2002). Como não deixam dúvidas os trabalhos de Souza Lima (1995), Carrara (1998), Vianna (1999, 2002), Cunha (2002) e Lombardo (2010), apenas para ficar no âmbito institucional mais próximo desta tese, etnografias em arquivos e sobre arquivos não são trabalhos destoantes ou raros no campo da Antropologia Social, embora muitas vezes sejam assim apresentadas. Na lida com os papéis produzidos e arquivados no SDP, sigo a trilha percorrida por esses autores e mantida aberta por trabalhos anualmente defendidos em programas de pós-graduação e/ou apresentados em eventos como, por exemplo, o seminário Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras memórias guardadas, realizado em novembro de 2004.10 Nesse sentido, encaro os documentos compilados nos arquivos que pesquisei como precipitações de encontros e relações. Não se tratam de encontros entre menores e policiais no começo do século passado (Vianna, 1999), entre vadios e policiais nos arredores da década de 1930 (Cunha, 2002) ou entre pleiteantes e administradoras de guardas judiciais em tribunais (Lugones, 2009), embora essas díades ocupem lugar crucial na construção da tese, como inspirações analíticas e metodológicas. A especificidade das relações que se precipitam nos documentos aqui estudados decorre do fato de que eles centram-se na falta de uma pessoa, ela mesma ausente do encontro que os produz: o desaparecido. Da perspectiva que orientou a pesquisa e a escrita desta tese, cada peça documental guardada nas gavetas do SDP é produto de encontros entre pessoas que se dirigiram a delegacias para comunicar desaparecimentos e policiais civis que os registraram, além de servidores públicos e funcionários de instituições diversas. Os encontros entre esses agentes e os documentos que deles resultam implicam o emprego de recursos narrativos variados e, determinando forma e conteúdo do que resta arquivado, implicam também a incidência de regras e padrões de registro. Nos termos de Bourdieu, poderíamos dizer que tais encontros implicam “um compromisso entre interesse expressivo e uma censura constituída pela própria estrutura do campo onde o discurso é produzido e também circula.” (Bourdieu, 2008, p. 131). Além disso, também incidem sobre forma e conteúdo do que resta arquivado atos e artefatos

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O seminário foi “realizado em 25 e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e pelo Laboratório de Antropologia e História do IFCS/UFRJ, com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia.” (Castro e Cunha, 2005, p.3). Uma seleção de trabalhos apresentados no seminário encontra-se publicada no número 36 da revista Estudos Históricos, do CPDOC/FGV, intitulado Antropologia e Arquivos.

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que se aproximam do que Lugones (2009) chama de “formas de aconselhamento” e “fórmulas de compromisso”, como busco deixar claro ao longo da tese.11 Como os documentos guardados no SDP compõem um arquivo policial, a censura que determina sua forma e conteúdo é em grande medida derivada das formalidades e padrões de registro resguardados pelos próprios formulários que dão corpo aos documentos, e pelas hierarquias e cadeias de autoridade ao longo das quais se distribuem os vários agentes que os assinam, autorizam, colocam em circulação e/ou arquivam. Tanto as cadeias de autoridade por que se estendem os procedimentos executados pelos policiais e demais agentes que lidam com desaparecimentos, quanto os documentos por eles produzidos são parte constitutiva do conjunto de práticas que fazem o Estado enquanto exercício de poder. (Foucault, 2004). A racionalidade governamental que orienta tais práticas, com suas formalidades, hierarquias e padrões de registro, não anula, contudo, a criatividade e habilidade narrativa dos envolvidos na produção dos documentos sobre os casos – sejam eles comunicantes de desaparecimentos, policiais que atendem a esses comunicantes ou funcionários de instituições não-policiais que são envolvidos nas tramas registradas. Em suma, por mais interessados e formalizados que sejam, registros documentais cuja autoria remete a encontros entre funcionários que zelam por sua forma e cidadãos que demandam respostas de determinadas autoridades revelam as habilidades narrativas de todos esses agentes. (Davis, 1987). Se pensarmos nos policiais que registram e arquivam casos de desaparecimento, podemos notar suas habilidades para criar e manter arquivos, emblema máximo da burocracia moderna (Riles, 2006), suas tentativas de oficializar formas de aconselhamento e fórmulas de compromisso (Lugones, 2009) e, ainda, sua destreza em exibir um suposto controle total sobre pessoas e territórios. Se pensarmos nos cidadãos que vão a delegacias de polícia solicitar investigações em torno de um desaparecimento, por outro lado, podemos notar suas tentativas de emprego de recursos narrativos que sejam eficazes para diversos fins – como, por exemplo, atribuir uma boa reputação à pessoa desaparecida ou revestir de suspeita pessoas enredadas nos casos. Portanto, os encontros entre agentes 11

Lugones (2009) denomina “formas de aconselhamento” e “fórmulas de compromisso” as técnicas de menorização que observou em ato nos tribunais prevencionais de menores onde realizou trabalho etnográfico. Tais formas e fórmulas reúnem, a um só tempo, “a força intrínseca da forma (o conselho) e a eficácia própria da formalização dos compromissos exercida por especialistas” (Lugones, 2009, p.203), além de operacionalizarem exercícios de poder “que reencaminham situações „desgovernadas‟ através de atuações pedagógicas” (idem, ibidem, p.203). Registradas em autos de processos judiciais, “formas de aconselhamento” e “fórmulas de compromisso” cristalizam maneiras de conduzir situações tidas como fora de controle ao deslizarem, de modo tão escorregadio quanto eficaz, entre conselhos e ordens, e entre atribuições e compromissos. É por meio dessas técnicas que as administradoras judiciais junto às quais Lugones fez sua pesquisa gestam e gerem os casos e os grupos de pessoas diante dos quais atuam. Nos capítulo 2 e 3, mostro que o trabalho da autora ilumina muitos dos registros firmados por policiais em sua lida rotineira com casos de desaparecimento.

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envolvidos em tramas de desaparecimento produzem registros documentais censurados por formalidades, mas que dão margem não só ao uso de formas e fórmulas padronizadas, mas também a habilidades e estratégias narrativas.12 Para a escrita desta tese, os registros documentais com que tive contato no SDP foram submetidos ao compromisso entre meu interesse expressivo e a censura determinada pelas normas da escrita acadêmica. Encontrados nos arquivos compilados em pastas, mas não ordenados e enredados em tramas apresentadas com começo, meio e fim, os registros documentais lidos, transcritos e analisados ao longo da pesquisa foram aqui ficcionados (Ortega, 2008, p.61) como casos de desaparecimento. Para fins de análise, os casos são tratados como se tivessem assim sido encontrados, sem que haja aí qualquer pressuposto de objetividade ou pretensão de narrar verdades. (Riles, 2006, 16-17). Ao contrário, fundamenta a construção dos casos a idéia de que, sejam quais forem os artefatos etnográficos utilizados, é inconcebível que o intento da etnografia seja coletar dados num suposto mundo real cuja verdade se queira descrever. Ser desprovida da pretensão de revelar a verdade, porém, não a exime de buscar a verossimilhança (Geertz, 2009, p.13-14), reconhecer seu potencial efeito de realidade e, sobretudo, honrar compromissos epistemológicos e éticos com os sujeitos e informações enredadas no texto: O que isso quer dizer é que agir desse modo não livra ninguém do ônus da autoria, mas o aprofunda. Transmitir com exatidão as idéias de Emawayish, tornar seus poemas acessíveis, tornar sua realidade perceptível e esclarecer o contexto cultural em que ela existe significa colocar todas essas coisas na página de maneira suficiente para que alguém possa adquirir alguma compreensão do que elas podem ser. E essa é não apensa uma tarefa difícil, mas uma tarefa que não deixa de ter conseqüências para o “nativo”, o “autor” e o “leitor” (e, na verdade, para aquela eterna vítima das atividades alheias, o “espectador inocente”). (Geertz, 2009, p.190)

A seguir, para colocar em cena uma das narrativas que construí a partir dos documentos arquivados no SDP, apresento um exemplo de caso de desaparecimento já no 12

Em sua análise de cartas de remissão escritas na França do Século XVI, Davis (1987) une as idéias de arquivo e ficção, ao atentar-se para os artifícios narrativos empregados pelos autores das cartas analisadas. Esses autores eram pessoas que cometeram crimes e pediam perdão ao rei por seus atos, mas na escrita das cartas contavam com o trabalho de escribas e notários que zelavam pelas formalidades que os pedidos necessariamente deveriam respeitar. Por mais distante que seja, no tempo e no espaço, da temática aqui focada, a obra é inspiradora para essa tese por partir do princípio de que as cartas resistem a ser analisadas a partir da dicotomia ficção X verdade. As narrativas nelas produzidas visam à persuasão e dizem muito das habilidades dos suplicantes como contadores de história, embora ao mesmo tempo digam muito sobre os limites formais que margeavam essas habilidades. Ademais, a obra é inspiradora porque, de modo semelhante ao que ocorre em alguns casos de desaparecimento, as cartas apresentam os suplicantes como figuras moralmente ilibadas, constroem os crimes como excepcionalidades em suas vidas e, ainda, revestem de suspeitas outros personagens das tramas que narram.

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formato em que eles aparecem na tese. O caso escolhido é o desaparecimento (e localização) de Antônio, protagonizado por ele, Maria, Jeferson e o inspetor Fernando, e encontra-se em uma caixa de texto destacada do corpo desta Introdução por quatro bordas. Esse formato é utilizado para alguns casos que escolhi destacar. Não obstante, há na tese menções a trechos, passagens e fragmentos de outros casos que optei por mencionar ao longo do texto, sem empregar o destaque formal. Utilizo esse modo de apresentação com o objetivo de compartilhar com o leitor algo que encontrei ao longo da pesquisa, trazendo formalmente para a tese características dos artefatos etnográficos pesquisados.13 Minha intenção é que a forma como construo os casos espelhe, em alguma medida, a forma como os desaparecimentos de pessoas aparecem nos documentos que li e transcrevi. 14 Dos pontos de vista dos agentes envolvidos em casos particulares e engajados em debates públicos, designar e tratar um acontecimento como desaparecimento implica desentranhá-lo do emaranhado de atos e fatos que dá corpo à vida social, conferindo-lhe o estatuto de “problema” e a forma de um evento narrável com começo, meio e fim – ainda que por “fim” entenda-se a perpetuação da ausência do desaparecido, sem razões conhecidas. Nesse exercício, recursos narrativos específicos são utilizados, concomitantemente, tanto por comunicantes de desaparecimentos, quanto por policiais que os registram em formulários e, ainda, por agentes que os denunciam em debates públicos. Para espelhar formalmente essa idéia, optei por apresentar os casos narrando-os também com começo, meio e fim, e enquadrando-os em caixas de texto que se destacam do corpo do trabalho. Os casos que assim aparecem na tese foram desentranhados do conjunto de papéis e falas com que tive contato ao longo da pesquisa e formulados como narrativas. Nessa formulação, utilizo como recurso certo vaivém entre o que está firmado nos documentos e a leitura que fiz deles, aqui convertida em escrita. Faço isso permeando a narrativa de cada caso com trechos de documentos, que aparecem em forma de citação (entre aspas ou destacado por recuo). Os arquivos do SDP e os encontros da ReDESAP sugerem que a classificação de um acontecimento como desaparecimento desdobra-se na produção de fronteiras entre o que seria da ordem do ordinário e o que seria algo excepcional a ponto de se tornar ocorrência policial ou manifestação de um “problema social”. Não obstante, os arquivos e encontros explicitam também que a produção dessas fronteiras é um exercício constante e sempre incompleto: 13

Sigo a sugestão de Riles (2006), que sustenta que uma forma possível de respondermos às práticas com que os etnógrafos tomamos contato é “borrowing responses from the ethnographic artifact itself (here, documents and documentary practices) onto the ethnographer’s own terrain.” (Riles, 2006, p.25) 14 No Anexo II encontra-se um quadro que compila os casos narrados ao longo da tese nesse formato destacado. A função do quadro é facilitar que o leitor rememore e encontre casos a partir do nome da pessoa desaparecida.

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acontecimentos construídos como casos de desaparecimento são distinguidos da vida cotidiana ao serem narrados e registrados, mas, ao mesmo tempo, dela não são totalmente apartados. À luz das propriedades da magia, pode-se dizer que temos, também aí, mundos que momentaneamente se sobrepõem sem que se destaquem. (Mauss, 2003, p. 150). As caixas de texto colocadas ao longo do corpo da tese, mas destacadas pelas bordas que as delimitam, são tentativas de dar forma a essas características dos casos. Como o caso de Antônio bem ilustra, mesmo que construídos como eventos extraordinários, casos de desaparecimento são constituídos por elementos do cotidiano e são constitutivos do cotidiano daqueles que com eles se envolvem. Ademais, são cotidianamente geridos por meio de rotinas burocráticas.

ANTÔNIO Maria e Antônio, policial civil aposentado, viveram juntos por muitos anos e estão separados há quase duas décadas. Logo após a separação, Antônio voltou a viver com sua mãe. Falecida a mãe, seguiu residindo no mesmo endereço, em companhia da irmã. Em setembro de 2007, porém, o imóvel foi a leilão por inadimplência. A irmã de Antônio partiu para o Mato Grosso e ele, desde então, voltou a residir com Maria, agora na casa que ela divide com Jeferson, seu atual companheiro. Questões financeiras, repletas de ambigüidades, são parte constitutiva das relações entre Maria, Antônio e Jeferson. Segundo Maria, Antônio vive em sua residência por não ter meios para manter casa própria desde o leilão do imóvel em que vivia com a irmã. Entretanto, contribui considerável e regularmente para o orçamento da casa onde mora com ela e Jeferson. Certa manhã de março de 2008, contados quase seis meses que vinham morando sob mesmo teto, Maria, Antônio e Jeferson foram até uma agência bancária em Cascadura. Lá, Antônio sacou setecentos reais de sua conta corrente e entregou a quantia, integralmente, a Jeferson. Do banco, os três partiram no mesmo ônibus. Maria e Jeferson desembarcaram primeiro, diante de um supermercado, e Antônio seguiu viagem. Ele estava a caminho de outra agência bancária, no Centro, onde depositaria certa soma de dinheiro que havia colocado na meia antes de sair de casa. No começo da tarde, Maria começou a estranhar que Antônio não retornasse para casa e decidiu procurar por ele nas ruas do bairro onde moram. Como não obteve sucesso, telefonou em seguida para o irmão de Antônio, Walter Lúcio, que surpreso informou-lhe que Antônio sequer sabe seu endereço. Em companhia de Jeferson, Maria foi então à agência bancária em que Antônio depositaria o dinheiro que portava dentro da meia, “onde foram informados que não consta o comparecimento de Antônio naquele estabelecimento”. Frustradas essas três 15

buscas, no bairro, na parentela e no banco, Maria decidiu procurar a polícia para registrar o desaparecimento do ex-marido, decisão que a conduziu a três repartições policiais: a 29ª Delegacia Policial (DP), a 6ª DP e o Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicídios (DH). Na 29ª DP, Maria foi informada que o registro só poderia ser feito depois de passadas 48 horas do desaparecimento.15 Como Antônio havia desaparecido naquele mesmo dia, nenhuma providência seria tomada naquela repartição. Da 29ª, Maria seguiu para a 6ª DP, onde tentou mais uma vez notificar o desaparecimento. Relatou então que seu ex-marido é policial civil aposentado e, sob a justificativa de que se tratava de “questão envolvendo policial”, foi encaminhada para a Delegacia de Homicídios e instruída a procurar o SDP. Embora não seja da competência do SDP receber solicitações de registro diretamente de familiares ou conhecidos de pessoas desaparecidas, e embora não haja qualquer respaldo legal para a justificativa do encaminhamento de Maria diretamente à DH, o inspetor do SDP que a recebeu achou por bem efetuar o registro. Tomou então as declarações de Maria e, a partir delas, instaurou Sindicância em nome de Antônio. Dentre os registros que compõem a Sindicância, o inspetor grafou uma justificativa para a exceção concedida: Independentemente da peregrinação sofrida por muitos familiares de pessoas desaparecidas, fica cada vez mais notória a falta de informação dentro do próprio organismo da Polícia Civil, seja no que diz respeito ao registro do desaparecimento, seja a área de sua atribuição. No ensejo de amenizar o périplo da comunicante e melhor definir uma solução para que se dê início às buscas do paradeiro do cidadão desaparecido, foram tomadas a termo as declarações ora apresentadas para conhecimento e providências cabíveis.

Passados onze dias da instauração da Sindicância, Maria retornou ao SDP para solicitar a suspensão das investigações e registrar que ela mesma havia encontrado Antônio. Ele estava hospedado “num hotel caro” da cidade mineira de Juiz de Fora, onde disse estar “descansando da vida”. Ao relatar esse fato, Maria pediu ao inspetor do SDP que registrasse que ela não se preocuparia em localizar Antônio caso ele voltasse a desaparecer. Aquela era a segunda vez que seu ex-marido desaparecia e ela desejava ser desencarregada de procurá-lo se o fato tornasse a se repetir. Negando o pedido, o policial alertou Maria de que, se era esse seu desejo, ela deveria se divorciar de Antônio, com quem era oficialmente casada até então. Segundo o policial, caso continuasse casada “no papel”, Maria teria obrigações em relação a ele. “Se numa dessas ele 15

Ronda os casos de desaparecimento de pessoas no Brasil o chamado “mito das 48 horas”. Embora não haja qualquer norma que afirme que registros de desaparecimento devam ser efetuados apenas 48 horas depois do fato, é prática comum nas delegacias do país que policiais passem essa informação aos solicitantes. A Lei Federal 11.259/2005, conhecida como “Lei da Busca Imediata”, foi instituída para combater este mito. Contudo, ela determina a busca imediata apenas para casos de desaparecimento de crianças e adolescentes. O “mito das 48 horas” e a “Lei da Busca Imediata” são objeto de reflexão no capítulo 4.

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for atropelado ou qualquer outra coisa” e ela nada fizesse, poderia ser responsabilizada por negligência. Diante dessa advertência, Maria descreveu “o trabalho” que Antônio representa em sua vida. O policial insistiu que a solução para esse inconveniente seria o divórcio, única medida que os desvincularia definitivamente. Em resposta, Maria deixou claro que estar casada com Antônio lhe permitia acesso a alguns benefícios dos quais ela não poderia abrir mão. O policial então afirmou que ela deveria ter ciência de estar agindo “por interesse” e de possuir responsabilidades em relação a Antônio - como, por exemplo, reportar à polícia um eventual novo desaparecimento dele. Encerrando o diálogo, Jeferson, companheiro de Maria que até então permanecera calado, disse ao policial: “É. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.” Ao se levantar para deixar o Setor, Maria por fim perguntou ao inspetor se ele não queria checar o documento de identidade de Antônio, que ela levou consigo para comprovar que o encontrara. Despedindo-se dela e de Jeferson, o inspetor afirmou que não havia qualquer necessidade de checagem de documento para comprovação. 16

Enquanto foi registrado como desaparecido em documentos policiais hoje arquivados no SDP, Antônio estava “descansando da vida” em um hotel. Embora para Maria ele estivesse misteriosamente ausente, o que a levou a solicitar investigações policiais em torno de seu paradeiro, ele havia se retirado, voluntariamente, do círculo social, das obrigações financeiras e do ponto no espaço a que estava costumeiramente vinculado. Sendo Antônio maior de idade, aposentado e dotado de meios materiais para tanto, é no mínimo intrigante que sua decisão de se retirar tenha sido registrada, sob o nome de desaparecimento, em uma DP. Se não pelo simples fato de que todos nós somos eventualmente acometidos pelo desejo de “descansar da vida”, ao menos a indicação de que a própria Maria “preferia que ele evaporasse” impõe que nos perguntemos, afinal, por que o que se passou com Antônio recebeu o nome de desaparecimento.17 O que significa designar um acontecimento ou cadeia de fatos como desaparecimento? E o que registrá-la em uma repartição policial implica? Elementos do caso de Antônio oferecem pistas para refletirmos a partir destas perguntas. Podemos notar, por exemplo, que as posses do ex-policial, importantes para a 16

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 061/08 do SDP/DH. O detetive particular norte-americano Frank Ahearn fez da possibilidade de qualquer um de nós nutrir o desejo de “descansar da vida” mote para um manual, atualmente traduzido e publicado em dez países, intitulado “How to disappear: Erase Your Digital Footprint, Leave False Trails, and Vanish without a Trace” (Ahearn, 2010). Em livrarias norte-americanas, encontra-se o manual de Ahearn lado a lado com seu avesso: manuais sobre como encontrar desaparecidos e como solucionar casos de desaparecimento, como “Missing Men: the story of the Missing Persons Bureau of the New York Police Department” (Ayers & Bird, 1932) e “Tracking - Signs of Man, Signs of Hope: A Systematic Approach to the Art and Science of Tracking Humans” (Diaz, 2005). 17

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manutenção da casa de Maria, bem como as responsabilidades acarretadas pelo vínculo civil entre os dois figuram nos registros como razões para que a polícia fosse comunicada do desaparecimento. Do ponto de vista de Maria, as razões operantes seriam as primeiras; do ponto de vista do policial que a atendeu, seria crucial que ela agisse em função das últimas. O diálogo entre Maria e o inspetor do SDP sugere, ainda, que a comunicação do desaparecimento à polícia seria uma forma de garantir que, caso um acidente ou crime acontecesse a Antônio e a polícia tomasse conhecimento, Maria fosse avisada, mas não culpabilizada. Oficializar, comunicar e documentar a ausência de Antônio em sua casa e em seu cotidiano, enfim, seria uma forma de Maria desincumbir-se de possíveis conseqüências da retirada voluntária dele. Tanto quanto o casamento “no papel” acarreta responsabilidades, o desaparecimento registrado nos papéis de um órgão policial pode eximir um sujeito de algumas responsabilidades. Ao mesmo tempo, o desaparecimento registrado nesses papéis pode impor à polícia tarefas, encargos e, por que não, bastante trabalho. Atentando para especificidades do desaparecimento de Antônio, podemos notar que questões financeiras, obrigações morais e responsabilidades civis constituem as relações entre o policial aposentado, sua ex-mulher e o atual companheiro dela. Ademais, podemos notar que essas mesmas questões, obrigações e responsabilidades constituem a própria ausência do primeiro, ainda que temporária, na vida dos últimos. Ainda que tenha ganhado ares de mistério, tons de fato extraordinário e estatuto de caso polícia, aparentemente destoando da vida cotidiana de Antônio, Jeferson e Maria, o desaparecimento do primeiro pode ser visto como parte constitutiva das relações e eventos mais ordinários entre os três. Como indicam os trabalhos de Das (2007) e Kleinman (2006), para fins de análise é possível e necessário encarar o cotidiano como constituído por fatos e acontecimentos que colocam em questão certezas e preceitos morais que orientam os sujeitos. Alguns desses eventos são classificados e vivenciados como excepcionais e desestabilizadores, ao passo que a outros é cotidianamente negada tal classificação. Cabem então algumas perguntas, sobre as quais reflito a partir da minha presença no SDP e na ReDESAP: o que faz das ausências narradas em casos de desaparecimento eventos extraordinários? Que certezas e preceitos morais são colocados em xeque nos casos? Como essas ausências são produzidas como ocorrências policiais? E como ganham o estatuto de manifestações particulares de um “problema social”?

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Através da porta que fica aberta Foi na data do reencontro entre Maria, Jeferson e o inspetor Fernando, narrado no caso de Antônio, que nós quatro nos conhecemos. Mais do que isso, foi naquela data que conheci o próprio SDP e soube que ali são investigados e arquivados exclusivamente casos de desaparecimento de pessoa. O inspetor Fernando é um dos cinco agentes da Polícia Civil do Rio de Janeiro que compõem o quadro regular do Setor. Diferente da usual circulação entre delegacias e setores que caracteriza a carreira da maioria dos policiais civis, Fernando está lotado na Delegacia de Homicídios e trabalha no SDP há cerca de quinze anos. Junto a seus colegas de Setor, sua atribuição central é investigar casos de desaparecimento registrados e não solucionados em quarenta e quatro delegacias comuns do Rio de Janeiro.18 Tais investigações originam registros documentais que são arquivados, organizados e contabilizados no próprio SDP com o estatuto de Sindicâncias. Até o mês de setembro de 2008, encontravam-se arquivados no SDP Sindicâncias em nome de 9.293 pessoas que desapareceram, algumas delas mais de uma vez, desde o ano de 1993. Antônio é uma delas. Diariamente, segundo a escala de alternância e horas de trabalho seguida pelos agentes do SDP, há sempre pelo menos dois policiais presentes no Setor. Os desaparecimentos investigados são distribuídos entre os cinco, que diante dos casos exercem o papel de “sindicantes”. Os únicos instrumentos legais que regulam diretamente a forma através da qual a Polícia Civil e, em particular, o SDP deve lidar com casos de desaparecimento no Brasil e no Rio de Janeiro são a Lei Federal 11.529, de dezembro de 2005, e a Resolução 513 da Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro (hoje integrada à Secretaria de Segurança Pública), de dezembro de 1991. O curtíssimo texto daquela Lei determina apenas que casos de desaparecimento de crianças e adolescentes devem gerar investigações imediatas.19 Relativamente mais detalhada, a Resolução, por sua vez, normatiza prazos e diretrizes para a 18

Grafo “delegacia comum” de modo a diferenciar as delegacias distritais, conhecidas como DPs, das delegacias especializadas. Durante a execução da pesquisa que resultou nessa tese, havia 168 DPs no Rio de Janeiro, e cerca de 55 delegacias especializadas. No desaparecimento de Antonio, as delegacias comuns envolvidas são a 29ª DP e a 6ª DP; a especializada, por sua vez, é a Delegacia de Homicídios, em cuja estrutura está inscrito o SDP. São exemplos de delegacias especializadas que compõem a estrutura da Polícia Civil do Rio de Janeiro: a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), a Delegacia Especial de Atendimento à Pessoa de Terceira Idade (DEAPTI), a Delegacia de Combate às Drogas (DCOD), a Delegacia Especial de Apoio ao Turista (DEAT) a Delegacia de Repressão do Crime Organizado (DRACO). Para uma reflexão sobre a atuação de delegacias especializadas, bem como sobre o conhecimento (pouco) específico que nelas circula e é produzido, ver Nascimento (2008). 19 A Lei 11.529/2005 foi incorporada como um parágrafo do Artigo 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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investigação policial de desaparecimentos no Rio de Janeiro, e é também utilizada como base legal em outros estados da federação. Embora a Resolução defina padrões administrativos para investigação policial, a averiguação dos arquivos do SDP ou mesmo um único dia de observação dos trabalhos levados a cabo no Setor permite notar que, na prática cotidiana, a heterogeneidade é o que caracteriza o trabalho dos policiais e o conjunto de casos ali investigados. Não há padrão único

de acontecimentos,

definições

e desdobramentos que permitam

falar

de

desaparecimento, sem contradições, como fenômeno unidimensional. Ao contrário, há desaparecimentos múltiplos e definições múltiplas de desaparecimento, e é com essa multiplicidade que os policiais do Setor trabalham. A pesquisa indicou-me, não obstante, que tal multiplicidade não se confina no interior das paredes de repartições policiais. Uma ampla gama de significados é atribuída ao fenômeno, cotidianamente, não só por policiais, mas também pelas pessoas que procuram a polícia para comunicar desaparecimentos e, ainda, por funcionários de instituições nãopoliciais que também lidam com o fenômeno, como conselhos tutelares, órgãos de assistência social e ONGs. A abordagem de funcionários e servidores de todas essas instituições para o tratamento de casos de desaparecimento varia de forma considerável. Basta lembrarmos a pesquisa do ISP e o protesto da ONG carioca com que abri essa Introdução. Enquanto para o Instituto desaparecimentos são protagonizados por jovens que deixam seus lares apenas temporariamente, para a ONG essas ocorrências encobrem crimes hediondos. Para além das abordagens de agentes que lidam institucionalmente com o desaparecimento, também se distinguem bastante as abordagens dos (poucos) estudiosos dedicados ao fenômeno. De modo excludente, há interpretações que classificam o desaparecimento como uma das faces da “violência urbana” (Espinheira, 1999), enquanto outras o encaram como conseqüência direta da “violência intrafamiliar” (Oliveira e Geraldes, 1999) e de valores patriarcais e seus impactos sobre relações de gênero e geração no interior de famílias brasileiras (Oliveira, 2007). Vistas em conjunto, essas interpretações constróem duas abordagens excludentes: em alguns trabalhos, as “famílias de desaparecidos” são encaradas como “instâncias produtoras de desaparecimentos” (Oliveira, 2007), ao passo que em outros são vistas como agentes passivos que precisam ser protegidos pelos poderes públicos dos impactos da violência urbana (Soares et al, 2006), apresentada como causa primordial dos desaparecimentos.

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Pesquisar o cotidiano e os arquivos do SDP e integrar reuniões da ReDESAP permitiume confirmar a inexistência de abordagens únicas do fenômeno tanto entre aqueles que o tomam como objeto de gestão e intervenção, quanto entre os que o tomam como objeto de estudo. A variedade de casos particulares abarcada pelo polivalente termo desaparecimento resiste a ser compreendida por qualquer perspectiva unívoca. O desaparecimento de uma pessoa pode inscrever-se, a um só tempo, tanto na seara da segurança pública, quanto em tramas familiares, e pode não consistir em acontecimento decorrente de qualquer tipo de violência facilmente classificável como “intrafamiliar” ou “urbana”, como sugerem, respectivamente, Oliveira e Geraldes (1999) e Espinheira (1999). De fato, há casos passíveis de interpretação a partir da idéia de “violência intrafamiliar”. Ao longo da pesquisa me foi relatado, dentre outros exemplos, que os inspetores do SDP certa vez apuraram que um homem que comunicara o desaparecimento de sua esposa e filho recém-nascido havia agredido fisicamente aqueles que afirmou terem desaparecido. Nesse caso, a esposa deixara sua residência, levando consigo o bebê, para proteger-se (e à sua prole) de novos episódios de violência conjugal. Ao longo de eventos promovidos pela ReDESAP, de modo semelhante, ouvi inúmeros relatos de casos tratados como desaparecimentos que poderiam, ao mesmo tempo, ser classificados como episódios de subtração de incapazes, segundo o Código Penal. 20 Tais relatos enredavam pais ou mães de crianças e/ou adolescentes que subtraíram seu(s) filho(s) do “poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial”, conforme prevê a lei, como forma de recrudescer conflitos conjugais. Contudo, junto a ocorrências desse tipo, delegacias de polícia lidam também com desaparecimentos que, no decorrer de investigações, passam a ser designados seqüestro, homicídio e/ou ocultação de cadáver, crimes encarados como manifestações da “violência urbana” na contemporaneidade. Exemplo notório ocorrido no Rio de Janeiro é a chamada Chacina de Acari, já mencionada nesta Introdução. Outro exemplo, sem dúvida menos visível, mas não menos representativo, é o caso investigado pelo SDP de um homem que, segundo 20

Subtração de incapazes é um crime tipificado pelo Código Penal brasileiro no Artigo 249. Embora sua definição não o estabeleça, em repartições policiais utiliza-se este tipo penal para tratar de casos de seqüestro em que o seqüestrador é o pai, a mãe ou o guardador de uma criança ou adolescente. Nos termos da lei, a subtração de incapazes consiste em “Subtrair menor de 18 anos ou interdito ao poder de quem o tem sob guarda em virtude de lei ou de ordem judicial: Pena – detenção, de 2 meses a 2 anos, se o fato não constitui elemento de outro crime. §1º. O fato de ser o agente pai ou tutor do menor ou curador do interdito não o exime de pena, se destituído ou temporariamente privado do pátrio poder, tutela, curatela ou guarda. §2º. No caso de restituição do menor ou do interdito, se este não sofreu maus-tratos ou privações, o juiz pode deixar de aplicar a pena.” Definido pelo Artigo 148, o seqüestro, por sua vez, consiste em “Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”.

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sua esposa, “já esteve preso no Artigo 12 [Tráfico Ilícito] da antiga Lei de Entorpecentes, ficando encarcerado cerca de 3 anos; que também é usuário de drogas e, atualmente, estava desempregado”. Policiais do SDP apuraram que o homem, dias após ter sido visto por sua mulher pela última vez, fora assassinado.21 Ainda que haja exemplos como esses, uma coleção heterogênea de acontecimentos registrados como desaparecimento em delegacias brasileiras ou tratados como tal por servidores de órgãos de administração pública, funcionários e/ou militantes de outras instituições escapa à dicotomia classificatória que separa casos decorrentes de “violência intrafamiliar” daqueles vistos como parte da “violência urbana”. Os arquivos do SDP não deixam dúvidas quanto a isso, e o caso de Antônio pode ser visto como exemplo. Outros exemplos, que aparecem ao longo da tese, são o desaparecimento de um homem que, enquanto era atendido em um hospital, sumiu do campo de visão de todos os profissionais que o atendiam e de sua mãe, que o acompanhava; dias depois, foi encontrado “caído pela rua na Praia de Ipanema”, recolhido e internado em uma clínica psiquiátrica.22 Ou o desaparecimento de uma jovem que, segundo sua irmã, fugiu de casa por estar “aborrecida com a vida, cansada e extremada”. 23 Ou ainda o caso comunicado por uma mulher que afirmara a policiais que seu sobrinho “vivia vagando pelas ruas como pedinte”.24 Embora tão distintos entre si, tais exemplos convivem na mesma gaveta dos arquivos do SDP – a propósito, a mesma em que hoje se encontra o caso de Antônio. O que chama atenção nessa coleção é que, de modo geral, as ocorrências não possuem componentes especificamente criminais, constituindo, nos termos de Mota (1995), “casos sociais”. A especificidade dos “casos sociais” abarcados pelo nome de desaparecimento, entretanto, é que componentes criminais eventualmente se fazem presentes, não podendo ser excluídos a priori. A presença eventual e por vezes apenas virtual de componentes criminais faz com que policiais não reconheçam casos de desaparecimento como parte constitutiva de suas atribuições profissionais (Oliveira, 2007), ao menos não sem submetê-los a severos questionamentos. Assim como nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAMs) estudadas por Muniz (1996) e Soares (1999), setores e delegacias que, como o SDP, dedicamse a desaparecimentos, são vistos como “delegacias de papel” e têm sua importância posta em

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 008/08 do SDP/DH. Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 004/08 do SDP/DH. 23 Esse desaparecimento é narrado no capítulo 3. Os documentos a ele relativos compõem a Sindicância 020/08 do SDP/DH. 24 Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 009/08 do SDP/DH. 22

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dúvida por seus próprios funcionários, entre outros policiais. 25 Essa questão é, inclusive, um dos mais recorrentes objetos de reflexão no interior do SDP. Perguntados sobre o trabalho diário executado ali, inspetores do Setor afirmam repetidamente que fazem “atendimento psicológico” e “serviço de assistente social”, embora não tenham nem formação, nem responsabilidade para isso. Em linhas gerais, para eles desaparecimentos são experiências de pessoas que deixam suas casas, vizinhanças e comunidades em decorrência de fatos de natureza familiar e privada, desprovidos de componentes criminais, nos quais a polícia não deve intervir. Em suma, segundo policiais desaparecimentos são “problemas de família”. Em um esforço constante para definir a natureza do fenômeno e determinar de quem é a responsabilidade por cada caso, relatos e reflexões de policiais do SDP promovem uma divisão entre “problemas de polícia” e ocorrências que não contam com componentes criminais. Essa divisão contrapõe o que, nos termos dos policiais, seriam “problemas de família”, “problemas de assistência social” e “problemas do Estado” do que lhes parece ser efetivamente atribuição da polícia. No emprego desses termos, procuram depurar o que é de sua competência e situar no pólo oposto o que julgam ser de responsabilidade ora de unidades domésticas, parentelas, casas e outros conjuntos de pessoas que denominam, genericamente, como “famílias”, ora de outros órgãos governamentais e repartições públicas que denominam, genericamente, como “Estado” e “assistência social”. Os resultados desse jogo de classificações, muito semelhante ao que produzem os estudiosos do tema, são visões dicotômicas e excludentes do desaparecimento de pessoas e das responsabilidades que o circunscrevem, além de uma concepção restrita do que seja o trabalho policial. Ao buscar desincumbir-se do que não é crime, policiais parecem apontar (e tentar se opor) para a amplitude do papel da polícia, historicamente constituída como agente de controle e manutenção da ordem social que deve atuar frente às “coisas de todo instante” (Foucault, 2006, p.176) que constituem a vida em sociedade. Ao atravessar a porta do SDP e me deter sobre os casos ali investigados e a rotina dos policiais que ali atuam, tomei contato com esse jogo de classificações e com essas concepções. Contudo, como indiquei acima, a pesquisa de campo não se restringiu às paredes do Setor. A partir da minha presença naquela sala da Delegacia de Homicídios, como deixo mais claro no primeiro capítulo, passei a participar de eventos da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), que reúne não só policiais, mas também associações de mães de desaparecidos e gestores 25

“Delegacia de papel” ou “delegacia seca” é aquela que “não prende, não promove batidas, não desempenha ações espetaculares.” (Soares, 1999, p.53)

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governamentais que se envolvem com casos de desaparecimento. Deixar para trás a porta do SDP para participar desses eventos, porém, não me distanciou do jogo de classificações com que tomei contato no Setor. Ao contrário, as reuniões da rede revelaram-me que aquele jogo é ainda mais complexo e conta com outros jogadores além de agentes de Polícia Civil que investigam e arquivam casos de desaparecimento. Situando-se em debates públicos como respectivos e legítimos representantes do “Estado” e das “famílias”, gestores governamentais e associações de mães de desaparecidos que

são

membros

da

ReDESAP

questionam

suas

responsabilidades

diante

do

desaparecimento e colocam-se, alternadamente, ora em posição de aliança, ora em oposição. Assim como os policiais do SDP, esses agentes lidam diariamente com casos de desaparecimento, mas questionam também diariamente se deveriam de fato fazê-lo, e como. Enquanto para gestores governamentais encontram-se nas “famílias” as causas e as possibilidades de combate e prevenção de casos de desaparecimento, para associações de mães “a polícia” e “o Estado”, ausentes e ineficientes, são os grandes responsáveis pelo fenômeno em geral e pelo curso de cada caso particular. Em suma, tentativas de definir se desaparecimentos são “problemas de polícia”, “problemas de família”, “problemas de assistência social” e/ou “problemas do Estado” multiplicam-se e ganham novos tons e significados nos eventos da rede. Como sustento no quarto capítulo da tese, os embates entre essas múltiplas tentativas de definição do fenômeno são mais que jogos classificatórios e tomadas de posição propiciadas pelos eventos da ReDESAP. Tais embates são o ponto nodal da constituição do desaparecimento de pessoas como “problema social”, e é em torno deles que se organiza sua gestão como fenômeno passível de combate e prevenção. Policiais, gestores e associações de familiares são agentes que se reúnem em torno do desaparecimento, mas não partilham da mesma definição nem desse fenômeno, nem das responsabilidades por ele acarretadas. Ao contrário, partilham (e perpetuam) certa falta de definições em torno do desaparecimento de pessoas. Eventos da ReDESAP, nesse sentido, são contextos privilegiados para se compreender essa falta de definições. A partir de minha participação neles, é isso o que busco explicitar. Ademais, a partir da participação em eventos da ReDESAP busco também refletir sobre os significados atribuídos à minha presença nos debates propiciados pela rede. Em meio à falta de definições que ronda o desaparecimento de pessoas, a concessão de espaço e apresentação de demandas a uma pesquisadora dedicada ao tema merece especial atenção. 24

Como explicito no quinto capítulo, esse espaço expõe idiossincrasias da forma como o desaparecimento de pessoas é gerido no Brasil. Não obstante e indo além do fenômeno do desaparecimento, esse espaço expõe também algumas formas através das quais, atualmente, “o pesquisador é instado a abandonar qualquer simulação de neutralidade” (Pacheco de Oliveira, 2009, p. 13) e se posicionar diante das questões que toma como objeto de estudo.

Organização da tese A tese está organizada em cinco capítulos e algumas considerações finais. No primeiro, apresento minha entrada em campo no SDP e na ReDESAP e a trajetória comum percorrida pelos casos de desaparecimento com que tive contato ao longo da pesquisa. Ao fazê-lo, discuto características e efeitos de técnicas burocráticas de gestão de populações e indivíduos como, por exemplo, práticas de registro e documentação. Com a apresentação dos momentos iniciais do trabalho de campo e do percurso burocrático comum aos casos pesquisados busco introduzir, em linhas gerais, como desaparecimentos tornam-se ocorrências policiais e objeto de debates públicos. No segundo capítulo, reflito sobre as rotinas que fazem dos desaparecimentos ocorrências policiais. A indagação central é como fatos, acontecimentos ou falta de notícias sobre uma pessoa são registrados, investigados e arquivados como casos de desaparecimento. Para respondê-la, detenho-me sobre características formais dos registros e seus efeitos sobre os enredos dos casos. Entre esses efeitos, destaco a construção dos casos como enigmas, produzida tanto pelo modo como os desaparecimentos são comunicados, quanto pela própria rotina burocrática que lhes dá forma. Comento, por fim, os sentidos das frustrações e desapontamentos experimentados pelos policiais no decurso dessa rotina. No terceiro capítulo, tento compreender o que chamo de artefatos da gestão dos casos de desaparecimento como ocorrências policiais. Pergunto-me o que o trabalho policial em torno de casos de desaparecimento produz, partindo da idéia de que esse trabalho é constituído, a um só tempo, pelas demandas apresentadas à polícia por comunicantes de desaparecimentos e pelos serviços prestados por policiais em resposta a essas demandas. Os artefatos mais fundamentais gerados pelo trabalho policial em torno de casos de desaparecimento são conselhos e compromissos, reputações, relações de dependência e exibição de certo controle sobre corpos e territórios. Ao apresentá-los, reflito sobre preceitos morais que grassam através dos procedimentos administrativos de que os casos são alvo. 25

No quarto capítulo, busco apresentar os embates e conflitos por meio dos quais o desaparecimento de pessoas é construído como “problema social”. Faço isso analisando o que observei nos eventos promovidos pela ReDESAP. Neles, casos de desaparecimento são apresentados como manifestações particulares de um problema passível de combate e prevenção. Apresentando as posições e oposições em que os membros da rede se organizam, busco mostrar que o desaparecimento é construído como problema social à medida que à ausência do desaparecido são somadas (e denunciadas) outras ausências: a falta de uma “família” protetora, de um “Estado” assistente e de uma “polícia” sensível. No quinto capítulo, por fim, trato da iniciativa em torno da qual a ReDESAP se reuniu ao longo do ano de 2010: o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. Eventos promovidos em torno do Cadastro Nacional são objeto de descrição no capítulo, e a partir deles busco discutir, por um lado, a (im)possibilidade de se classificar casos de desaparecimento, e, por outro, meu papel na ReDESAP e na construção do desaparecimento de pessoas como “problema social”. Como anunciado anteriormente, fazem-se presentes nos cinco capítulos casos de desaparecimento apresentados no mesmo formato utilizado, nessa Introdução, para expor o caso de Antônio. Também atravessam todo o trabalho as seguintes formalidades e marcas gráficas: Todos os termos redigidos entre aspas são citações literais de documentos arquivados no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) ou de falas proferidas no SDP da Delegacia de Homicídios e em encontros e reuniões da ReDESAP. Todos os nomes próprios a que me refiro foram modificados para preservar as identidades das pessoas enredadas na tese; foram mantidos nomes próprios sem modificações apenas em eventuais referências a casos de desaparecimento amplamente divulgados por meios de comunicação de massa. Datas, referências a cargos e vinculações institucionais, ao contrário dos nomes pessoais, foram mantidas exatamente como me foram apresentadas tanto em documentos arquivados e falas proferidas por policiais do SDP, quanto em falas proferidas em eventos da ReDESAP e/ou registradas em atas e relatórios produzidos a partir deles. Apenas erros ortográficos presentes em trechos de documentos sofreram alteração. O uso de grifos e letras maiúsculas nas citações aparece exatamente como estão no material pesquisado. O negrito é utilizado apenas para destacar os nomes de documentos citados no segundo capítulo. Emprego o itálico, por fim, para dar ênfase a alguns termos e para destacar palavras redigidas em língua estrangeira.

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Capítulo 1 Nada opor: Um problema de pesquisa e seus trâmites

Nos meses em que a freqüentei, a sala do SDP possuía seis mesas de trabalho, quatro computadores, três aparelhos de telefone, alguns armários e muitos gaveteiros dispostos ao longo de três de suas quatro paredes. Só não havia gaveteiros na parede tomada, de um lado a outro, por janelas de vidro. Esses gaveteiros compunham os arquivos do SDP. Cada gaveta dos arquivos guardava os formulários, ofícios, registros, fotografias e bilhetes pessoais que constituem os casos de desaparecimento que narro ao longo da tese. Reunidos em pastas, os conjuntos de documentos relativos a cada caso são chamados de Sindicâncias. Sobre as mesas do SDP, pilhas de Sindicâncias estiveram sempre à vista de qualquer um que adentrasse a sala. Dentro dos armários, outras pilhas podiam ser entrevistas também com certa freqüência, na medida do abrir e fechar de portas característico da rotina do Setor. As Sindicâncias empilhadas sobre as mesas e dentro dos armários eram consideradas ainda sob investigação e chamadas de Sindicâncias “em andamento”. Assim se diferenciavam das Sindicâncias depositadas nas gavetas, consideradas já arquivadas. Nas paredes da sala, cartazes com fotografias de crianças e adolescentes desaparecidos ficavam afixados e, algumas vezes, eram olhados em detalhe por algum policial do Setor. Em distintas ocasiões a inspetora que chefiava o SDP enquanto realizei a pesquisa apontou-me fotografias de crianças e adolescentes que têm seus rostos estampados nesses cartazes e cujos casos de desaparecimento passaram por ali. Mediante o patrocínio de um banco, o Programa SOS Crianças Desaparecidas, da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do estado do Rio de Janeiro, periodicamente produz e distribui esses cartazes para diversas instituições, entre elas o SDP. Os gaveteiros, as lixeiras, o bebedouro, os grampeadores e outros itens menores e menos vistosos do mobiliário e do material de escritório sempre presente na sala continham a inscrição “SDP”, marcando sua pertença ao Setor. Durante a noite, guardando a sala e o patrimônio do SDP, a porta ficava trancada com cadeado até que o primeiro policial chegasse para trabalhar, o que ocorria sempre por volta das dez horas da manhã. Dos cinco policiais que compunham seu efetivo, todos os dias ao menos um agente ficava no Setor ao longo da manhã e da tarde, saindo apenas no horário de almoço e para tomar eventuais cafezinhos ou 27

providências pessoais. Sua escala de trabalho, contudo, previa que houvesse sempre dois policiais na sala. Os primeiros passos de minha trajetória de pesquisa foram dados no exíguo espaço físico do SDP, que descrevo no passado não apenas por ter encerrado meu trabalho de campo, mas também porque atualmente o Setor funciona em outras dependências, bastante distintas do espaço que freqüentei. Meu cotidiano na extinta sala 709 consistia basicamente em abrir as gavetas do Setor, ler e transcrever documentos, e conversar com os policiais. Desde a terceira semana de pesquisa, passei também a atender ao telefone quando os agentes precisavam se ausentar. Os telefonemas que atendia eram, em sua maioria, de pessoas que desejavam saber como proceder depois de constatar um desaparecimento, ou de pessoas que queriam notícias sobre casos de desaparecimento que julgavam estar sob os cuidados do SDP. Às primeiras, respondia sugerindo que fossem a uma DP e narrando a trajetória padrão de todo caso, que começa na DP e depois é encaminhado ao Setor; às últimas, solicitava que telefonassem novamente tempos depois e falassem com algum dos policiais. Para todos os interlocutores com que falei, informei que não era policial, e sim uma pesquisadora. Isso não os impedia, contudo, de expor suas dúvidas e tentar saná-las comigo. No presente capítulo, narro algumas das cenas, processos e conversas que permearam minha entrada em campo e me conduziram, tempos depois, do SDP para outro espaço de debates e relações: a ReDESAP. Casos de desaparecimento são parte constitutiva do texto, ao lado de referências a falas, idéias e expressões de policiais, gestores de políticas públicas, membros de ONGs e outros agentes sociais com que tive contato no decorrer da pesquisa. Encaro tanto os casos narrados, quanto as falas, idéias e expressões a que me refiro como elementos constitutivos da gestão do desaparecimento de pessoas no Brasil hoje. Portanto, se opto por citar falas, vale destacar, é porque as encaro não como simples comentários, mas como ditos que são feitos (Peirano, 2001) – isto é, como enunciados que não apenas referenciam significados, mas também têm efeitos pragmáticos em determinados contextos de situação (Malinowski, 1935) (Austin, 1962). Agentes sociais, afinal, atuam através de palavras, na mesma medida em que se comunicam através de atos.

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1.1 Por um paradeiro ou por um papel? Em março de 2008, depois de conhecer Maria e Jeferson na porta do Setor, adentrei a sala e conversei por um par de horas com o inspetor Fernando, que estava sozinho naquela manhã. Expus minha intenção de tomar o desaparecimento de pessoas como tema de pesquisa, e disse que uma boa porta de entrada para compreendê-lo seria o SDP. Mostrandose bastante receptivo, o inspetor me instruiu a solicitar formalmente autorização para fazer a pesquisa. A solicitação deveria partir da instituição em que eu cursava doutorado e ser endereçada à Chefia de Polícia Civil do Rio de Janeiro. Por fim, Fernando encorajou-me dizendo que “já estava mais do que na hora” da universidade se dedicar ao desaparecimento de pessoas, tema negligenciado e invisível, apesar de grave. Depois de prospectar outras possíveis portas de entrada para o trabalho, optei por seguir a sugestão de Fernando, solicitar a autorização e, em caso de resposta positiva, começar a pesquisa pelo SDP. Em junho de 2008, depois de algumas idas ao edifício sede da Polícia Civil tentando compreender como fazer meu pedido chegar à Chefia, fui ao setor de Protocolo Geral, no térreo do edifício, onde enfrentei longa fila e finalmente entreguei a solicitação. Assinada pela Coordenação do PPGAS/Museu Nacional, a solicitação foi recebida, carimbada e reunida a uma assustadora pilha de papéis. Em troca, me foi dado um “Cartão de Andamento de Processo” com um número de protocolo, outro de telefone e a seguinte instrução: para acompanhar minha solicitação, eu deveria telefonar periodicamente para me informar “onde ela estava” e se já havia sido respondida. O cartão dispunha de linhas que eu deveria preencher com as datas e os nomes dos órgãos por onde meu pedido passasse, construindo um mapa de sua trajetória dentro da Polícia Civil. No começo de setembro de 2008, depois de alguns telefonemas e muitas linhas preenchidas no cartão, soube pela Secretaria do PPGAS/Museu Nacional que minha solicitação havia sido recebida ali, já com uma resposta. Entre onze carimbos de diferentes setores e órgãos da Polícia Civil pelos quais o documento passou, no verso da solicitação encontrava-se a curta frase que, pela negativa, me permitiu entrar regularmente no SDP: “Nada opor a pretensão acadêmica no que refere-se a pesquisa.” Passados alguns dias, comecei a freqüentar o Setor durante três manhãs por semana, levando sempre comigo o documento autorizado. Tempos depois, o inspetor Fernando fez cópia do documento e deixou em uma das gavetas da sala do plantão da DH, para que eu não precisasse portá-lo todos os dias que ia à delegacia. Entre outubro de 2008 e dezembro de 29

2009, quando encerrei a pesquisa no SDP, a cópia do documento foi retirada da gaveta uma única vez. Isso aconteceu quando o inspetor Fernando me apresentou para um dos delegados da DH, cerca de seis meses depois que eu começara a freqüentar o Setor. Tratava-se do delegado que redigira e assinara o breve “nada opor” no verso da minha solicitação, e o inspetor mostrou-lhe o documento não porque foi requisitado, mas por vontade própria. A brevidade e a construção negativa da frase que me deu acesso ao SDP, bem como a necessidade de autorização expressa para que eu realizasse a pesquisa, ainda que nunca checada, são especialmente reveladoras da cadeia de atos oficiais, autoridades e autorizações que estruturam o campo burocrático (Bourdieu, 1996). Não obstante, esses momentos e atos que marcaram o início da pesquisa são reveladores do próprio objeto de estudo em foco: a forma como o desaparecimento de pessoas é rotineiramente gerido no Brasil. Narrado a seguir, o desaparecimento de Álvaro, servidor público, explicita isso com bastante nitidez. Relações estabelecidas a partir de negativas e ausências oficializadas em registros escritos são aspectos centrais da gestão cotidiana de casos de desaparecimento. Se a necessidade de papéis e atestados é experimentada, por um lado, como a face mais opressora da burocracia (Reis, 1996; DaMatta, 2002), por outro é cumprida como condição inescapável para que a vida cotidiana se desenrole e para que bens sociais sejam distribuídos. Documentos, afinal, funcionam como critérios de respeitabilidade, elegibilidade e acesso a benefícios e direitos (Santos, 1979; Peirano, 1986, 2006a, 2006b). O que tanto a autorização para minha pesquisa, quanto o caso de Álvaro descortinam, contudo, é que a exigência de documentos e carimbos não é simplesmente uma perversidade derivada “do anonimato e da impessoalidade que são, no fundo, a tradução burocrática de dramas essencialmente humanos.” (Reis, 1998, p. 249) Dramas e relações humanas são muitas vezes constituídos por procedimentos burocráticos sem os quais sequer seriam experimentados, o que exige que qualquer pesquisador, autorizado ou não por um papel repleto de carimbos, encare o mundo da burocracia oficial como seara povoada (Herzfeld, 1992, p. 59), constituída por e constituinte de relações sociais. Objetividade e formalismo são finalidades a serem perseguidas por funcionários e arquivos de repartições burocráticas (Weber, 1963). Isso não significa, porém, que essas instituições não hierarquizem, individualizem e pessoalizem “relações que formalmente deveriam ocorrer de outra forma” (Bevilaqua e Leirner, 2000, p. 125). Vejamos o desaparecimento de Álvaro, servidor público municipal cuja ausência deu início, a um só tempo, à produção de papéis, carimbos e frases negativas, e à criação de laços e relações. A 30

partir de alguns aspectos centrais desse caso, discuto minha opção por estudar o desaparecimento de pessoas e, em seguida, minha entrada em campo no SDP.

ÁLVARO Em abril de 2005, Francinete foi à delegacia comunicar o desaparecimento de Álvaro, seu irmão mais velho. No final de março, Álvaro saiu de casa “para beber e dar uma volta” e desde então não retornou. Ao comunicar o fato na DP, Francinete relatou apenas que Álvaro era servidor da prefeitura do Rio de Janeiro e informou que havia procurado por ele, sem sucesso, em hospitais e necrotérios da cidade. Em dezembro de 2005, depois de meses transcorridos sem que fosse solucionado ou mesmo melhor esclarecido, o caso de Álvaro foi encaminhado da DP para o SDP. De lá foram remetidos ofícios a algumas instituições que poderiam ter acolhido, internado, tratado ou mesmo enterrado Álvaro desde a data de seu desaparecimento, como hospitais, fundações e órgãos policiais, além do Instituto de Identificação Félix Pacheco (IFP), que poderia ter registrado dados úteis à sua localização. Com exceção do ofício remetido ao IFP, todos os outros foram respondidos com “nada consta” e outras negativas sobre eventuais passagens de Álvaro pelas respectivas instituições depois de seu desaparecimento. Nem a Santa Casa, nem o hospital Souza Aguiar, nem a Fundação Leão XIII, a Polinter ou o DESIPE tinham em seus arquivos registros acerca de Álvaro. Apenas o IFP respondeu informando que, em seus arquivos, consta que Álvaro possui uma anotação criminal. A resposta do Instituto, porém, não forneceu qualquer dado que esclarecesse essa informação, manuscrita sumariamente. Em agosto de 2006, mais de um ano após o desaparecimento de Álvaro, compareceu ao SDP uma funcionária da Comissão de Inquéritos da Prefeitura do Rio de Janeiro de nome Suzana. Ela desejava “tomar ciência do andamento das investigações para a localização do cidadão acima [Álvaro], funcionário daquele órgão público.” Na ocasião, Suzana solicitou que “algum familiar de Álvaro fosse localizado e pudesse responder nos autos que tramitam na Comissão por força do desaparecimento.” A ausência de Álvaro no órgão público em que é servidor teve como desdobramento a abertura de procedimento administrativo em seu nome. Para que o procedimento fosse encerrado era necessária a presença de “algum familiar” que confirmasse que a ausência de Álvaro não se restringia ao ambiente de trabalho, mas também se espraiava para outros espaços por ele freqüentados. Em setembro de 2008, então, compareceu ao SDP uma filha de Álvaro de nome Valéria. Conforme registrou um inspetor do Setor, “para nossa surpresa” Valéria, que quando prestou declarações no SDP contava 42 anos de idade, não via Álvaro desde os 8. Após a separação de seus pais, Valéria passou a conviver apenas com a mãe, “a qual constituiu nova 31

família”, e só teve notícias sobre o pai novamente ao “receber um telefonema da Dra. Suzana, da Comissão de Inquéritos da Prefeitura do Rio de Janeiro”. Depois do referido telefonema, Valéria esteve na prefeitura e lá “foi orientada a comparecer neste SDP para prestar esclarecimentos”. Tais esclarecimentos pouco elucidaram o desaparecimento de Álvaro, mas muito acrescentaram sobre a vida de sua filha. Segundo Valéria, “sua mãe nunca fez qualquer comentário sobre a vida pessoal de seu pai, inclusive sobre seus parentes, os quais a declarante sequer sabe quem são ou onde vivem”. Dos fatos e frutos do casamento desfeito entre seus pais, Valéria afirmou saber apenas que tem três irmãos, um dos quais já falecido, “restando além da declarante sua irmã ELAINE DA CUNHA e o irmão CLÁUDIO DA CUNHA, ambos casados”. Disse ainda não saber se seu pai teve outros filhos e outros casamentos, e que “somente nesta oportunidade visualizou uma fotografia 3X4 de seu pai, acostada nos autos, a qual solicita para sua guarda pessoal”. Em outubro de 2008, o caso de Álvaro foi suspenso e arquivado no SDP, sob a justificativa de “que até a presente data não há qualquer indício que leve ao paradeiro do cidadão desaparecido”. No relatório final redigido sobre o caso, o inspetor do SDP que dele cuidou registrou que Valéria seguia aguardando os resultados das investigações e “acompanhando os trâmites trabalhistas do pai”, e que a ela foi fornecida uma “certidão sobre o andamento das investigações”. 26

Decorrido longo período de tempo e emissão de ofícios e outros registros, o desaparecimento de Álvaro culminou na produção de uma certidão. Esse documento, que assegurava que Álvaro havia desaparecido e que seu desaparecimento estava sob investigação, foi produzido para que sua filha Valéria acompanhasse os “trâmites trabalhistas” desencadeados por sua ausência no serviço público. A emissão da certidão deixa patente que registros e investigações em torno de um desaparecimento não necessariamente servem ao propósito de encontrar a pessoa desaparecida. Se, ao solicitar o registro do desaparecimento de seu irmão, Francinete tinha interesse em que o paradeiro de Álvaro fosse descoberto, ao longo do tempo outro interesse foi posto em jogo, personificado pela servidora da Comissão de Inquéritos da Prefeitura, que desejava ser informada sobre o andamento das investigações. O registro de desaparecimento de Álvaro era necessário para que o procedimento administrativo gerado por suas seguidas faltas ao trabalho fosse desembaraçado. As investigações em torno do paradeiro do servidor restringiram-se à procura por ele em instituições a que Francinete compareceu e, com algumas coincidências, com as quais agentes do SDP se comunicaram por meio de ofícios. Nenhuma dessas procuras redundou no 26

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 099/06 do SDP/DH.

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encontro de registros em nome de Álvaro, nem dele em pessoa. Paralelamente ao acúmulo de respostas negativas a essas buscas, dois fatos aconteceram: Francinete saiu de cena e não reapareceu mais no caso de seu irmão, e a necessidade de desembaraço dos tais “trâmites trabalhistas” desencadeou, a pedido da servidora da Comissão de Inquéritos da Prefeitura, a procura não propriamente por Álvaro, mas por “algum familiar” dele. Diferente das investigações em torno do paradeiro do servidor, essa procura não só foi bem sucedida, como também causou “surpresa” nos agentes do SDP, que localizaram Valéria, com quem Álvaro não teve qualquer contato nos trinta e seis anos que antecederam seu desaparecimento. O nome de Álvaro encontra-se registrado na carteira de identidade de Valéria, o que fez com que os agentes do SDP vinculassem-na ao caso de desaparecimento que investigavam e encontrassem nela o “familiar” que a servidora da prefeitura solicitava. Documentos, afinal, são atos de instituição e regulação estatal que, sob a aparência de descrever e registrar supostas unidades naturais reais, estáveis, padronizáveis e objetivamente apreensíveis, impõem a idéia de “família” (Bourdieu, 1996) a arranjos e relacionalidades diversos, vivenciados transitória e subjetivamente. (Yanagisako, 1979). Revelando o caráter prescritivo desses atos de instituição, o laço inscrito no RG de Valéria não correspondia a qualquer vínculo extra-documental entre pai e filha desde que Valéria tinha oito anos de idade. A relação entre os dois foi restabelecida somente após o desaparecimento de Álvaro e, principalmente,

apenas

em

função

de

“trâmites”

burocráticos

provocados

pelo

desaparecimento. Nesse sentido, o desfecho do caso se deu não com a descoberta do paradeiro do desaparecido, mas com a entrega de dois suportes materiais de informação para Valéria: além da certidão produzida no SDP, que serviria aos “trâmites trabalhistas do pai”, uma fotografia de Álvaro, “para sua guarda pessoal”. A relação de filiação entre Álvaro e Valéria, portanto, reconstituiu-se em função de procedimentos burocráticos. Não há como falar dela supondo qualquer tipo de separação entre um mundo familiar e doméstico e outro universo, constituído pelas formalidades e oficialidades do mundo burocrático e estatal. Nesse e em outros casos narrados ao longo da tese, é mais profícuo pensar em formas de coextensividade e complementaridade entre essas searas, como revela Vianna (2002) ao tratar de processos judiciais de guarda de crianças e adolescentes. No terceiro capítulo, atento mais a essa questão. Por ora, retomemos um dos documentos recebidos por Valéria ao final do caso: a certidão que registra e certifica o desaparecimento do servidor público e afirma que a Polícia Civil o está investigando. A necessidade da certidão para os “trâmites trabalhistas” de Álvaro 33

decorre da possibilidade do processo em seu nome acarretar, diante de sua ausência, responsabilidades para terceiros. Como servidor, Álvaro possui atribuições e obrigações que, diante de seu desaparecimento, restaram não cumpridas. Ao mesmo tempo, certamente goza de benefícios que restaram não recebidos e poderiam ser destinados a outros fins ou outras pessoas. A certidão formalizando seu desaparecimento provavelmente seria condição para que as questões deixadas em aberto por Álvaro, responsabilidades ou benefícios, fossem reconduzidas. Como indica o caso tratado por Reis (1998), a presença física do cidadão diante de órgãos públicos não é garantia de recebimento de direitos e outros bens sociais. Confirmando pelo avesso a situação analisada pela autora, o caso de Álvaro indica que a ausência física de uma pessoa não implica que sejam cessados procedimentos, responsabilidades e distribuição de benefícios em seu nome. É necessário certificar determinados órgãos dessa ausência, através de papéis carimbados, assinados e autorizados. Em outra ocasião (Ferreira, 2009), pesquisei um fenômeno que expõe, no limite, a importância de documentos e registros burocráticos para a vida social: a gestão da morte anônima. Analisei laudos, guias e outros papéis produzidos no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro acerca de cadáveres que foram classificados como não-identificados e enterrados como indigentes no Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950. Ao longo daquela pesquisa, tornou-se claro algo que o desaparecimento de Álvaro também indica: a necessidade de possuir e portar documentos “tem seu lado inverso: o de remover, despossuir, negar e esvaziar o reconhecimento social do indivíduo que não possui o documento exigido em determinados contextos”. (Peirano, 2006a, p.27). Mesmo em casos em que o indivíduo não está presente, ou talvez sobretudo neles, possuir o documento certo, na hora certa, é condição não só para que procedimentos como os “trâmites trabalhistas” de Álvaro sejam desembaraçados, mas também para que bens, direitos e responsabilidades sejam redistribuídos. Para efeitos de curadoria e sucessão de bens, pessoas desaparecidas podem ser juridicamente consideradas ausentes se assim determinar um juiz de Direito.27 Casos arquivados no SDP, alguns narrados ao longo desta tese, revelam que muitos registros de ocorrência de desaparecimento são solicitados por pessoas interessadas em obter judicialmente declarações de ausência e, a partir delas, gozar de bens, direitos e patrimônio dos desaparecidos. Os registros de ocorrência, nesses casos, são apresentados como prova 27

Segundo o Código Civil, “Desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência e nomear-lhe-á curador”. (Art. 22 do Código Civil)

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documental do desaparecimento e reunidos aos autos dos processos judiciais. Em linhas gerais, depois do desaparecimento, “em se passando três anos poderão os interessados requerer que se declare a ausência e se abra provisoriamente a sucessão” (Art. 26 do Código Civil); “dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas.” (Art. 37 do Código Civil). A ausência não se confunde com a figura da morte presumida, embora possa haver coincidência entre as duas. “Presume-se esta [a morte], quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva” (Art. 6º do Código Civil). Não obstante, em dois casos pode ser declarada a morte presumida sem decretação de ausência: “se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra” (Art. 7º do Código Civil, §I e §II). Outra possibilidade de presunção de morte no Brasil refere-se aos casos de desaparecimento político ou desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar, aos quais me refiro mais adiante. 28 Ausência e morte presumida são formalizadas em registro público tanto quando nascimentos, casamentos, emancipações, interdições e óbitos. (Art. 9º do Código Civil) Diante desse arcabouço jurídico, fica claro que a certidão entregue à Valéria pode ter utilidade não só para o desembaraço dos “trâmites trabalhistas” de Álvaro, mas também para que seus bens sejam transmitidos a despeito de seu desaparecimento. Portanto, se corpos enterrados como indigentes indicam a possibilidade do não-reconhecimento social de determinados indivíduos em função, entre outras razões, de não possuírem ou portarem o documento certo, na hora certa (Ferreira, 2009), casos como o de Álvaro indicam o que me parece um corolário disso: a possibilidade de determinados sujeitos existirem ao largo do mundo dos documentos e do reconhecimento, inacessíveis e desgarrados de certas relações, ainda que sob pena de não gozarem de direitos e perderem a titularidade sobre seu patrimônio. Pesquisar a classificação de cadáveres não-identificados demandou que eu me perguntasse pela utilidade e finalidade da produção de documentos sobre aqueles corpos. Embora abundantes em número, os documentos referentes aos não-identificados eram ao mesmo tempo enxutos, repetitivos e pouco informativos: referindo-se uns aos outros e exigindo a produção em cadeia de novos papéis que validassem papéis anteriores, prestavamse a registrar o fato de que nada havia a registrar nem sobre a morte daquelas pessoas, nem 28

A presunção de morte em casos de desaparecimento político no Brasil foi regulamentada pela lei 9.140 de 15 de dezembro de 1995

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sobre suas identidades. Daquela massa singular de papéis resultava, a um só tempo, a inscrição hierarquizada e anônima de cada cadáver no corpo mais amplo e contabilizável da população brasileira, e a afirmação carimbada e repetitiva do poder exercido via técnicas, práticas e saberes mobilizados em sua classificação. A gestão da morte anônima, nesse sentido, é parte do processo mais amplo de governo de vidas e espaços territoriais e sociais que constitui os Estados-nacionais modernos e, como tal, revela um aspecto crucial desse exercício de poder: sua perene incompletude, que exige a repetitiva afirmação e exibição de autoridade, mesmo diante (ou principalmente nesses casos) de sujeitos que, na vida ou na morte, parecem escapar de suas teias reguladoras. Partir daí para a pesquisa sobre a gestão do desaparecimento de pessoas parece-me uma forma de seguir perscrutando o que se passa com aqueles que, ao menos de certos pontos de vista, não são localizáveis. No nosso mundo de territórios recortados, de um canto a outro, por Estados-nacionais que se fazem constantemente no sempre ativo exercício de sedentarização de povos (Souza Lima, 1995; Scott, 1998) e identificação de sujeitos (Caplan & Torpey, 2001), a possibilidade de alguém desaparecer é não só intrigante e misteriosa, como também desafia certezas fundamentais que carregamos conosco. Parece-me improvável que casos como o de Álvaro não causem espécie nem suscitem perguntas, ainda que silenciosas e irrespondíveis. O que teria se passado com o servidor público, que não só não foi mais visto depois de sair “para beber e dar uma volta”, como também deixou de ser procurado depois que uma certidão foi expedida e entregue a alguém que não o via há mais de trinta e cinco anos? Estimulada pelo complexo anonimato incorporado pelos cadáveres nãoidentificados sobre os quais escrevi anteriormente, focar o desaparecimento de pessoas é uma oportunidade não de responder diretamente a interrogações impossíveis como essa, mas de refletir sobre formas de conceber e gerir tais impossibilidades chamando-as, narrando-as e investigando-as como casos de desaparecimento de pessoas.

1.2 A entrada em campo e a abertura dos arquivos Dia 6 de outubro de 2008, portando a autorização remetida à Secretaria do PPGAS/Museu Nacional, fui ao SDP pela primeira vez na condição de pesquisadora. Embora a porta do Setor ficasse aberta, como meses antes eu ouvira, e ainda que o papel que portava comigo afirmasse que nada se opunha à minha pretensão acadêmica, naquele primeiro dia ficou claro que negociações e relações extra-documentais demandariam outra ordem de 36

aberturas e autorizações. Assim que encontrei o inspetor Fernando, entreguei a ele o papel e disse que gostaria de combinar uma sistemática de pesquisa que lhe parecesse razoável e de acertar datas para que eu pudesse ficar no SDP e observar os trabalhos rotineiros dos policiais. Devolvendo-me rapidamente a autorização, o inspetor disse: “Essa palavra observar vai te causar problemas. Ninguém gosta de ser observado em seu trabalho”. Com sua franqueza e objetividade características, Fernando me advertiu que ficar ali, observando a rotina e conversando com os policiais, me conduziria necessariamente a um de dois tipos de trabalho: ou os policiais narrariam o que fazem e o que devem fazer de forma idealizada e eu escreveria um trabalho “bonito, mas irreal”, ou eu escreveria o que de fato acontece na delegacia e no Setor, produzindo um trabalho “real”, e atrairia toda a animosidade dos policiais. Argumentei que meu interesse não era fazer uma pesquisa sobre a polícia, e sim sobre o desaparecimento de pessoas. A polícia seria, no meu entender, a porta de entrada para compreender o tema, e não o alvo da investigação. Com sua também característica rapidez de resposta, o inspetor então me apresentou o que acreditava ser a melhor alternativa que atenderia aos meus interesses: focar os arquivos do Setor e entender o desaparecimento a partir do que ele chamou de “delegacia de papel”. Para ele, averiguar os registros sobre os casos “seria fácil”, acarretaria menos riscos que observar a rotina dos policiais (que, vale dizer, consiste também na produção daqueles documentos) e atenuaria possíveis desconfortos entre mim e os agentes do SDP. A apresentação da pesquisa de arquivo como alternativa fácil e pouco problemática surpreendeu-me. Tratava-se de acessar arquivos que colecionam memórias pessoais e investigações policiais resguardadas pelo direito ao sigilo, elemento crucial das administrações burocráticas (Weber, 1963), o que contraria o fato de que as práticas formais de investigação policial no Brasil são, por força da lei, efetuadas em regime sigiloso, como uma garantia do sucesso do inquérito. Em nenhum caso os cidadãos comuns tomam conhecimento dos detalhes das atividades policiais. (Kant de Lima, 1995, p.19)

Não é sem razão, afinal, que o acesso a documentos e registros oficiais seja uma das bandeiras de muitos movimentos sociais e que esforços para limitar o poder do Estado ganhem freqüentemente a forma de demandas pela abertura de arquivos (Riles, 2006). Por que, então, “seria fácil” abrir os arquivos do SDP e analisar registros sobre desaparecimento de pessoas?29 29

Vale citar o inciso XXXIII do Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, que normatiza a questão do sigilo na administração pública nos seguintes termos: “todos têm direitos a receber dos órgãos

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No Brasil, assim como em outros países latino-americanos, a principal demanda pela abertura de arquivos volta-se especialmente para os chamados arquivos da repressão, encarados como “territórios de memória política” (Catela, 2002, p.15) do período em que vivemos sob ditadura militar. “Uma considerável parte do poder da polícia política resulta da eficácia dessa operação de produção, acumulação e organização de documentos” (Lombardo, 2010, p. 40) empreendida durante o regime militar, e uma parte também considerável dos movimentos pelos direitos humanos e pela redemocratização no Brasil centrou suas reivindicações no acesso a esses documentos, fundamentando-se no chamado direito à memória e à verdade. Entre recuos e controvérsias, algumas vitórias têm sido alcançadas nesse campo desde o começo dos anos 1990, ainda que tímidas “diante do imenso volume de informações produzidas pelos órgãos repressivos às quais o acesso é ainda hoje objeto de disputa” (Lombardo, 2010, p. 16). Dentre os acervos hoje acessíveis a consultas, destacam-se os fundos de polícias políticas estaduais, como a do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/RJ) e do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS/SP), além do acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e das mais de dez mil peças reunidas pela equipe de pesquisadores do projeto Brasil: Nunca Mais.30 Remetendo não só aos acervos brasileiros, Catela (2002) define o que seriam arquivos da repressão e se pergunta sobre as especificidades desses conjuntos documentais, levantando uma indagação especialmente útil para pensarmos sobre a abertura dos arquivos do SDP para minha pesquisa: llamamos archivos de la represión al conjunto de objetos secuestrados a las víctimas o producidos por las fuerzas de seguridad (polícias, servicios de inteligência, fuerzas armadas) en acciones represivas (allanamientos, persecución, secuestros, tortura, desaparición, asesinatos, etc.) perpetradas durante las últimas dictaduras militares en los países del Cono Sur. Muchas veces se incluye dentro de esta categoría a los acervos producidos por instituciones de derechos humanos como producto de las acciones de denuncia y de búsqueda de información relativa a hechos de la represión. ¿En qué se diferencian los acervos de la represión de otros acervos documentales? (Catela, 2002, pp.209-210)

públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. 30 O Projeto Brasil: Nunca Mais dedicou-se a estudar “a repressão exercida pelo Regime Militar a partir de documentos produzidos pelas próprias autoridades encarregadas dessa tão controvertida tarefa. De que modo? Cuidando de reunir as cópias dos processos políticos que transitaram pela Justiça militar brasileira entre abril de 1964 e março de 1979, especialmente aqueles que atingiram a esfera do Superior Tribunal Militar.” (Arquidiocese de São Paulo, 1985, p.22)

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Arquivos da repressão aportam fundos documentais que podem funcionar, ao mesmo tempo, como chaves para a memória de e sobre vítimas de crimes cometidos pelos Estados em períodos ditatoriais; como provas judiciais desses crimes; como fontes para investigação histórica; e, por fim, como instrumentos para ações pedagógicas sobre o totalitarismo político e seus efeitos mais terríveis. (Catela, 2002, pp. 212-214). Arquivos da repressão, nesse sentido, seguem sendo produzidos e expandidos continuamente, tanto em nome da reconstrução do passado e da memória, quanto como instrumento de salvaguarda dos valores democráticos do presente. Entre outras, uma evidência disso, no Brasil, é o livro Retrato da Repressão Política no Campo - Brasil 1962-1985: Camponeses Torturados, Mortos e Desaparecidos, publicado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em dezembro de 2010. A obra nomeia e reúne depoimentos de trabalhadores e líderes sindicais rurais que foram vítimas da repressão política ao longo da ditadura militar brasileira. Compõe, portanto, relevante acervo documental sobre a singularidade da repressão no campo. Dos crimes às custas dos quais a repressão política foi levada a cabo nas ditaduras latino-americanas, destaca-se o usualmente chamado desaparecimento político, hoje internacionalmente intitulado desaparecimento forçado de pessoas.31 Definido no âmbito do Tribunal Penal Internacional em abril de 1998, e regulado pelo chamado Estatuto de Roma, por desaparecimento forçado de pessoas entende-se a prisão, detenção ou seqüestro de pessoas por um estado ou por organização política, ou com a autorização, apoio ou aquiescência destes, seguidos da negativa de informar sobre a privação de liberdade ou dar informação sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas, com a intenção de deixá-las fora do amparo da lei por um período prolongado. Esse conceito foi mantido no Estatuto definitivo, enquanto crime contra a humanidade. (Jardim, 2011, p.14)

O desaparecimento forçado de pessoas, por suas próprias características, expõe algumas das razões pelas quais a abertura dos arquivos da repressão coagula lutas, interesses e bandeiras de movimentos sociais sob o signo do direito à memória e à verdade. Os desaparecidos forçados, ou desaparecidos políticos, não deixaram corpos que pudessem ser 31

A Corte Interamericana de Direitos Humanos “no Caso Gomes, Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), em sentença de 24 de novembro de 2010, responsabilizou o Brasil a tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas, entre outras medidas. O caso diz respeito à responsabilidade do Estado Brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses, em decorrência de operações do Exército entre 1972 e 1975 para erradicar a Guerrilha do Araguaia. Mais precisamente, o §109 da mencionada sentença determina que o Brasil deva regulamentar o desaparecimento forçado como delito autônomo, a fim de permitir a persecução penal de um crime que se caracteriza justamente pelo objetivo de impedir o exercício dos recursos legais pelas vítimas e familiares, e eliminar todos os obstáculos jurídicos para julgar os responsáveis.” (Jardim, 2011, p.5)

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velados ou rastros que pudessem ser perseguidos porque o crime de que foram vítimas consiste exatamente nesse apagamento, garantidor da inimputabilidade de seus autores. 32 No Brasil, desde dezembro de 1995, do ponto de vista legal são reconhecidas “como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.” (Brasil, 1995). Do ponto de vista de seus familiares, contudo, os desaparecimentos dessas pessoas são vividos como mortes inconclusas (Catela, 2001), reproduzidas no tempo pela ausência tanto de corpos, quanto de memórias sobre os crimes de que foram vítimas. A luta pela abertura dos arquivos, nesse sentido, é uma batalha contra a perpetuação desse apagamento - daí a relevância a ela atribuída e a ameaça por ela representada. Mas e outros acervos documentais, referentes a desaparecimentos que não recebem o nome de desaparecimento forçado de pessoas? E os registros produzidos diariamente em todo o país sobre as pessoas que Oliveira (2007) chama de “desaparecidos civis”? Por que, ao contrário dos arquivos da repressão, revestidos de importância e objeto de disputas, acessá-los é “fácil”, como me foi revelado nas primeiras horas de pesquisa de campo no SDP? Diferente do tipo penal internacional desaparecimento forçado de pessoas, o desaparecimento de pessoas registrado diariamente em delegacias de polícia brasileiras não é crime. Ao contrário, trata-se de ocorrência que não possui o traço determinante da definição de crime: a materialidade. Em seu sentido jurídico, materialidade é o nome que se dá ao “conjunto de elementos e circunstâncias que evidenciam a criminalidade de um ato” (Houaiss, 2001, p. 1868), e para Fernando, a ausência de materialidade de casos de desaparecimento decorre do fato de que a pessoa desaparecida é por definição alguém cujo corpo não se encontra acessível àqueles que a procuram. E, nos termos utilizados (também) pelo policial,

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Araújo (2007a, 2007b, 2008, 2009) vem desenvolvendo pesquisas sobre a incidência do crime de desaparecimento forçado de pessoas no Brasil hoje, a partir inicialmente de etnografia junto a um movimento que reúne familiares de vítimas de violência policial no Rio de Janeiro: as Mães de Acari (Araújo, 2007). O objeto central que reúne os trabalhos do autor são as “relações dos familiares de vítimas de desaparecimento forçado com as instâncias burocráticas do Estado” (Araújo, 2009, p.1) e o que ele chama de “práticas de luto reivindicativas de justiça” (Araújo, 2008). No quarto capítulo, detenho-me sobre as contribuições das pesquisas do autor para o entendimento da construção do desaparecimento de pessoas como problema social, sobretudo a partir de sua idéia da passagem de um “tempo do choque para um tempo da política” (2007b, p.5). Por ora, fazse necessário ressaltar que é parte central da definição do crime de desaparecimento forçado, conforme o Estatuto de Roma, a agência atribuída ao estado “ou organização política” na efetiva prisão, detenção ou seqüestro dos desaparecidos, bem como na não prestação de informação sobre seus paradeiros. Nos trabalhos de Araújo (2007a, 2007b, 2008), essa agência é encarnada por policiais militares, em sua maioria inscritos nas organizações criminosas que se convencionou chamar “milícias”. Embora os trabalhos do autor indiquem que parte dos desaparecimentos investigados no SDP pode traduzir-se em casos de desaparecimento forçado de pessoas, para as finalidades da presente tese e pelo que acredito revelarem os próprios casos que atravessam os capítulos, é impossível designar o desaparecimento de pessoas aqui focado a partir exclusivamente do tipo penal internacional desaparecimento forçado de pessoas.

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“se não há corpo, não há crime”. Conseqüência de seu caráter não-criminal é a impossibilidade de casos de desaparecimento gerarem inquérito policial; outra é a necessidade de todo caso ser tratado, em qualquer repartição e documento policial, como “fato atípico” – isto é, como ocorrência que não corresponde a nenhum tipo previsto pelo Código Penal brasileiro. Desaparecimentos, por esses motivos, são geridos por meio de procedimentos administrativos que levam o nome de Sindicâncias e não têm o mesmo estatuto que inquéritos policiais. Para Fernando, daí decorrem as maiores dificuldades enfrentadas por policiais que lidam cotidianamente com casos de desaparecimento. Não constituir crime faz do desaparecimento um tipo de ocorrência delicado, que demanda habilidades específicas dos agentes que venham a investigá-lo. Familiares de desaparecidos que demandam escuta e atenção, sensibilidade para compreender casos em que os desaparecidos são encontrados, mas não desejam retornar para os locais de onde saíram, e paciência para lidar com “parentes inconformados” são, da perspectiva do inspetor, parte do cotidiano do SDP e índices da idiossincrasia das tarefas executadas ali. Esses elementos do cotidiano do Setor aproximariam os trabalhos de seus agentes do que, para Fernando, merece mais o nome de “atendimento psicológico” e “serviço de assistente social” do que “trabalho policial”. Para o inspetor, “o problema é que aqui ninguém tem formação pra isso”. Ademais, tanto o caráter atípico da ocorrência, quanto os trabalhos executados pelos agentes que lidam com casos particulares, fazem com que, em geral, policiais considerem o desaparecimento menos importante que outros fatos que registram, apuram e investigam diariamente. Mais do que isso, fazem com que policiais questionem se ele é ou deveria ser, de fato, ocorrência policial. Ao longo da pesquisa, algumas das idéias contidas nessa perspectiva do inspetor Fernando foram ganhando sentido e sendo reforçadas por outros policiais e agentes sociais. Os três outros agentes do SDP com que mantive (longas) conversas nos dias de pesquisa expressaram, em diferentes momentos e de formas diversas, seus questionamentos quanto às atribuições do SDP e da polícia em geral diante de casos de desaparecimento. Tanto quanto as falas a mim dirigidas por esses policiais, o atendimento a um telefonema que presenciei no Setor e o caso de Daniela, narrado a seguir, são bastante esclarecedores do nó central contido nas reflexões de Fernando e de seus colegas. Atendido pelo inspetor Paulo, o telefonema aconteceu no final de outubro, quando eu já vinha pesquisando no Setor há três semanas. Depois de desligar o telefone, o policial me relatou que a pessoa do outro lado da linha pretendia solicitar o registro de desaparecimento 41

de sua filha. Contudo, o que para a mãe configurava desaparecimento era o fato de sua filha ter saído de casa e decidido não lhe fornecer o telefone e o endereço de sua nova residência. Para Paulo, porém, isso não poderia ser visto como desaparecimento. Por isso, antes que ele desligasse e comentasse comigo o conteúdo da ligação, o ouvi dizendo: “Minha Senhora, mas isso não é problema da polícia, isso é um problema da senhora com a sua filha. Ela não quis dar o telefone e o endereço? A gente não pode fazer nada pela senhora! A senhora tente resolver isso aí com algum parente ou amigo, por que isso não é desaparecimento.”

DANIELA Daniela, auxiliar de serviços gerais, tem 22 anos de idade e duas filhas: Fabiane e Flaviane. Fabiane tem 8 anos e Flaviane, 3. Dia 26 de abril de 2007, Daniela deixou a primogênita na casa de Fábio, pai da criança, e a caçula na casa de sua mãe, Magda. Saiu da casa de Magda “por volta das 16:30hs e nunca mais foi vista e nem deu notícias à família”. Em outubro daquele ano, Magda foi a uma delegacia reportar o desaparecimento de Daniela. Na ocasião, disse que nos últimos meses procurara pela filha “em endereços e telefones de amigos e parentes, sem sucesso”. Relatou ainda que, ao partir de sua casa, Daniela havia deixado com ela o endereço de onde estaria. Ao procurar pelo endereço, no entanto, Magda constatou que o mesmo não existia e assim voltou à estaca zero na tentativa de localizar a referida DESAPARECIDA, e mesmo assim ainda procurou por hospitais e demais órgãos públicos e sem mais locais a procurar e esperando notícias da mesma, que não tem até a presente data, comparece a esta delegacia de polícia.

Já em 2008, o caso de Daniela foi encaminhado para o SDP. A primeira providência do inspetor que lá ficou encarregado do caso foi telefonar para Magda, mãe de Daniela e comunicante do desaparecimento. A partir do telefonema, o policial decidiu solicitar o arquivamento do caso como Sindicância Solucionada, sob a justificativa de que o que se passara a Daniela não era efetivamente caso de desaparecimento: Ficou apurado que o fato em questão não trata de desaparecimento, uma vez que deve ter ocorrido algum problema familiar que fez com que DANIELA saísse de casa, já que segundo a comunicante a sua filha ligou no carnaval deste ano dizendo que iria aparecer, mas que infelizmente até a presente data não foi visitar a mãe.

O arquivamento do caso foi feito em julho de 2008, 1 ano e 3 meses depois que Daniela foi vista pela última vez por suas filhas. 33

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 030/07 do SDP/DH.

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As falas do inspetor Paulo ao telefone e os registros do caso de Daniela indicam que, do ponto de vista de agentes do SDP, “algum problema familiar” ou a decisão de romper vínculos familiares não deveriam ser classificados como desaparecimento. Na nossa conversa depois do telefonema por ele atendido, Paulo me disse um tanto indignado que “se é questão de relacionamento ou briga de família, não tem que colocar a polícia no meio!”. Com isso, permitiu-me compreender os inúmeros telefonemas e atendimentos nos quais policiais procuram distinguir “questão de relacionamento ou briga de família” do que seriam desaparecimentos, através de interrogações como as que ouvi certa vez de Carlos Ernesto, diante de um pai de adolescente desaparecido: “Mas me diz, ele desapareceu mesmo? Vocês não brigaram e o senhor não está querendo me dizer?”. Segundo outros registros de casos e falas de policiais que ouvi ao longo da pesquisa, os desaparecimentos que chegam ao SDP para investigação contêm, em sua maioria, “problemas de família” que não deveriam ocupar delegacias. Para os policiais, os casos com que lidam diariamente, em sua maioria, não deveriam ser incumbência de nenhum deles, nem do Setor em que estão lotados, nem, em última instância, da Polícia Civil. Nas palavras da inspetora Telma, policial que chefiou o SDP na maior parte do tempo em que o freqüentei, os casos de desaparecimento investigados no Setor “não são serviço nosso [da polícia], mas a gente acaba fazendo”. Para a policial, tratam-se de dramas e questões “de família” que têm que ser geridas “pelo Estado, e não pela polícia”. A partir desse posicionamento da inspetora, nota-se que a fala do inspetor Paulo ao telefone, bem como os registros finais sobre o caso de Daniela, respondem não só à senhora do outro lado da linha ou ao desaparecimento da mãe de Fabiane e Flaviane. Antes, respondem ao conjunto mais amplo de casos com o qual os agentes do SDP têm que lidar diariamente e que encaram não como “problema da polícia”, e sim “problema de família” ou “problema do Estado”. A meu ver, a abertura fácil dos arquivos do Setor para minha pesquisa também responde a esse conjunto mais amplo de casos e ao caráter não-policial a eles atribuído pelos policiais que os investigam e arquivam. Mais do que aplacar desconfortos acarretados pela idéia de observação, como me advertira Fernando, pesquisar os arquivos do SDP implicaria consultar dramas, “problemas de família” e “questões de relacionamento” vistas como ocorrências menores se comparadas ao que seriam propriamente “problemas de polícia”. Diferente do desaparecimento forçado de pessoas e dos arquivos da repressão, os desaparecimentos cotidianos documentados e guardados nas gavetas do SDP não são crimes, não são “problemas de polícia” e não são vistos como relevantes no interior de instituições 43

policiais. Apesar de minha surpresa inicial, portanto, é bastante compreensível que sua abertura me tenha sido apresentada como alternativa “fácil” para realizar a pesquisa. Mas além de revelarem as razões da abertura dos arquivos à pesquisa, as reflexões e posições dos policiais sobre o caráter atípico e a natureza não-policial do desaparecimento de pessoas dão sentido, também, a um dos traços dos documentos arquivados que me chamou atenção desde os primeiros dias de trabalho de campo: eram raros os usos das palavras “vítima” e “denúncia”, e a escassez desses termos lembrava-me a todo tempo a primeira vez que pisei no SDP, quando, diante de uma pergunta minha sobre “quem são as pessoas que denunciam desaparecimentos?”, Fernando me corrigiu dizendo “as pessoas não denunciam desaparecimentos; elas comunicam ou notificam desaparecimentos”. Essa correção me advertia para o que só pude compreender depois: o fato dos desaparecimentos serem ocorrências policiais não-criminais, sujeitadas a questionamentos por parte dos profissionais que os registram, faz com que o vocabulário mobilizado para tratar dos casos seja objeto de hesitação e vigilância. O desaparecimento de Rodrigo, narrado a seguir, explicita a impossibilidade formal de se classificar a pessoa desaparecida como “vítima” de ocorrência policial, em função do caráter atípico do desaparecimento. Rodrigo desapareceu no mesmo Carnaval em que Daniela fez contato com sua mãe, em 2008.

RODRIGO Trata-se de desaparecimento de adolescente, fato comunicado pelo pai da vítima do desaparecido na 30ª DP no dia 11.02.08, com RO no. 061/08; segundo o comunicante Jaime, seu filho Rodrigo estava acompanhado de colegas num domingo de carnaval, onde seguia rumo a sua residência, seguiu sozinho e nunca mais foi visto, não se sabendo seu paradeiro.

Esse breve texto está registrado no primeiro documento com que se depara quem abre a Sindicância em nome de Rodrigo Diniz, hoje arquivada no SDP. A rasura sobre a palavra “vítima”, substituída a lápis pelo termo “desaparecido”, foi transcrita exatamente como aparece no registro. No domingo de Carnaval de 2008, Rodrigo, filho de Jaime, separou-se do grupo com que voltava para casa e, desde então, não foi mais visto. Isso aconteceu dia 3 de fevereiro daquele ano. “Com a ajuda de parentes, o pai [do desaparecido] realizou buscas por seu filho em vários hospitais públicos e por último no IML-RJ, não logrando êxito quanto ao paradeiro dele.” Dia 11 de fevereiro, então, Jaime foi à 30ª DP comunicar o fato à polícia. Levou consigo uma fotografia de Rodrigo. Algumas das falas de Jaime proferidas na delegacia foram assim registradas:

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DESAPARECIMENTO: relata o comunicante que no domingo de carnaval, dia 03/02/2008, por volta das 01:00h, seu filho de 15 anos de idade saiu da praça do Valqueire acompanhado de quatro colegas, com destino a residência, em Osvaldo Cruz. E ao chegarem a Estrada Henrique Melo, altura da numérica 790, em Bento Ribeiro, Rodrigo, segundo os colegas, se separou do grupo, seguindo sozinho, pela estrada supracitada. Sucedeu que a partir daquele momento, seu filho, não mais foi visto, não mais retornou para casa e nem fez qualquer contato com os familiares ou amigos.

Na mesma data em que o pai de Rodrigo esteve na DP e o registro de desaparecimento foi firmado, o caso foi encaminhado ao SDP. No Setor, sem que quaisquer registros tenham sido produzidos além do relatório final, o caso foi arquivado como Sindicância Solucionada em julho de 2008. As razões do arquivamento foram assim registradas: Inicialmente informado pela madrasta, Rosilene, e posteriormente confirmado pela avó, Augusta, o menor saiu voluntariamente de casa, morando no Morro da Serrinha, vivendo com a namorada, e com conhecimento de todos os familiares; foi informado ainda que o menor costuma visitar os parentes e mantém contato permanentemente com a tia Jaqueline, via Orkut [rede de relacionamentos via Internet]. Face o informado, solicito encerramento das investigações haja vista que a Sindicância está solucionada.34

1.3 A burocracia e seus becos: o SDP Em sua análise de formulários utilizados por uma agência estadunidense de financiamento de pesquisas acadêmicas, Brenneis (2006) sugere que para compreendermos um documento e seus efeitos é preciso situá-lo nos processos administrativos de que é parte, seguindo sua carreira. A carreira do documento, para o autor, é a cadeia de atos nos quais ele é rotineiramente envolvido, da qual participam múltiplos atores e audiências, que colocam em cena diferentes interesses e preocupações. (Brenneis, 2006, p.65) Se pensarmos nos casos de Daniela e Rodrigo, narrados acima, podemos entrever as (curtas) carreiras traçadas por seus registros de desaparecimento: a mãe de Daniela e o pai de Rodrigo, depois de procurarem por seus filhos em hospitais públicos, no IML-RJ e entre “amigos e parentes”, dirigiram-se a delegacias de polícia e solicitaram registros de ocorrência (RO) de desaparecimento. Depois de produzidos, ambos registros foram remetidos, pelas delegacias em que foram redigidos, para o SDP. No Setor, ambos conduziram os policiais que se encarregaram respectivamente de cada caso a fazer telefonemas para os números fornecidos pelos comunicantes dos desaparecimentos e inscritos nos registros. No caso de Rodrigo, tentaram contato com seu pai, Jaime, mas efetivamente quem atendeu ao telefonema foi a madrasta do adolescente e, 34

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 073/08 do SDP/DH.

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posteriormente, sua avó. Já no caso de Daniela, tentaram e conseguiram fazer contato com Magda, mãe da desaparecida. Depois desses telefonemas, e em função do que neles foi dito, ambos casos foram arquivados. A carreira comum traçada pelos registros de ocorrência em nome de Rodrigo e Daniela se repete em grande parte dos casos de desaparecimento com que tive contato nos arquivos do SDP. Depois de procurarem em casas de amigos e parentes e percorrerem hospitais públicos e IML, mães, pais, irmãos, tios, filhos ou amigos dos desaparecidos vão a delegacias de polícia e comunicam o desaparecimento daquele que procuram. As delegacias produzem um RO de desaparecimento e, a partir das informações nele documentadas, conduzem investigações em torno do caso. Essas investigações consistem nas chamadas oitivas do comunicante do desaparecimento, que fala sobre o fato, é ouvido por um policial e tem suas declarações registradas em Termos de Declarações. Em alguns casos, são feitas também oitivas de outras pessoas que poderiam elucidar o caso. Por vezes, também são efetuadas consultas aos mesmos hospitais e outros órgãos públicos onde muitos comunicantes procuraram seus desaparecidos antes de se dirigirem às delegacias. A diferença é que as delegacias efetuam essas consultas através de Ofícios e Comunicação Interna, ao passo que os comunicantes o fazem pessoalmente. Nas delegacias, todos os atos investigativos desencadeados pelo RO são chamados, indiferenciadamente, de diligências. Caso as diligências não conduzam à localização do desaparecido, depois do prazo mínimo de 15 dias contado desde a data do RO, a delegacia deve encaminhar o caso ao SDP (Rio de Janeiro, 1991). Essa norma, contudo, não é seguida à risca. Muitos casos são encaminhados para o SDP logo após serem registrados ou, ao contrário, meses e meses depois. O conjunto de documentos produzido na delegacia sobre cada caso, que necessariamente inclui o RO, recebe o nome de Verificação Preliminar de Informação (VPI). Ao ser recebida no SDP, cada VPI dá origem à sua respectiva Sindicância. Como nos casos de Rodrigo e Daniela, a primeira providência tomada diante de cada Sindicância instaurada no Setor costuma ser um telefonema. Caso, do ponto de vista dos policiais do SDP, as informações obtidas nesse telefonema não apresentem o desenlace do caso, outras diligências são levadas a cabo. Na grande maioria dos casos, Ofícios e documentos de Comunicação Interna são remetidos do Setor para instituições e órgãos públicos diversos, policiais e não-policiais, solicitando informações e registros que possam elucidar o caso. Paralelamente, sistemas de informação como a Rede INFOSEG (Rede de Integração Nacional

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de Informações de Segurança Pública, Justiça e Fiscalização) 35 e a base de dados do DETRAN-RJ, órgão que emite documentos de identificação civil no estado, são consultadas pelos computadores do SDP. O rol de instituições consultadas via ofícios e sistemas de dados varia a cada caso, de acordo com o endereço anotado no RO como “local do fato” e, como discuto no próximo capítulo, segundo as hipóteses levantadas pelos policiais quanto ao paradeiro de cada desaparecido. Em linhas gerais, as instituições mais comumente consultadas pelo SDP são hospitais públicos municipais e estaduais, o Instituto Médico-Legal, o Instituto de Identificação Félix Pacheco, a Santa Casa de Misericórdia (exclusivamente os arquivos que registram os nomes das pessoas enterradas nos 13 cemitérios por ela administrados), a Fundação Leão XIII, que coordena abrigos e projetos assistenciais da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, e, por fim, a Polinter, que administra as carceragens da Polícia Civil no estado, e a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, antigo Desipe. Além dessas consultas, algumas oitivas de comunicantes de desaparecimento e pessoas envolvidas em casos também são feitas no SDP. Caso as diligências conduzam à localização da pessoa desaparecida, ou caso o Setor seja notificado de que a pessoa foi encontrada, por outros meios, por seus parentes, amigos ou conhecidos, a Sindicância é encerrada como Solucionada e arquivada. Sindicâncias podem ser encerradas também como Suspensas, e não como Solucionadas, caso as investigações não conduzam a quaisquer conclusões sobre o paradeiro do desaparecido. Em média, os policiais do SDP suspendem Sindicâncias depois de três anos de investigações inconclusas. Esse prazo, contudo, não é regulamentado. Sindicâncias Suspensas podem ser reabertas a qualquer momento, desde que novas informações sobre o caso cheguem ao conhecimento do SDP. Por fim, Sindicâncias podem ser Encaminhadas a outras repartições policiais que estejam levando a cabo investigações correlatas ao caso, ou, ainda, Juntadas a outras Sindicâncias já abertas em nome da mesma pessoa desaparecida. Ficam nos arquivos do Setor as Sindicâncias Solucionadas, Suspensas e Juntadas. A seguir, o Quadro 1 organiza esses dados. Ao final de cada mês, os agentes contabilizam quantas Sindicâncias se encaixaram em cada uma dessas classificações naquele período, e somam os números obtidos aos totais que

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Administrada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), a Rede INFOSEG “integra informações dos órgãos de Segurança Pública, Justiça e de Fiscalização em todo o País, provendo dados de pessoas com inquéritos, processos, mandados de prisão, além de dados de veículos, condutores e armas. A Rede INFOSEG disponibiliza informações dos seguintes órgãos: Polícias Civis; Polícias Militares; Departamento Nacional de Trânsito; Exército Brasileiro; Superior Tribunal de Justiça e Justiça Federal; Departamento de Polícia Rodoviária Federal; Departamento de Polícia Federal; Secretaria da Receita Federal; Tribunais de Justiça Estaduais”. (SENASP, s/d, p.3) Só acessam a rede servidores de órgãos públicos autorizados pela SENASP para esse fim, mediante uso de senha pessoal. Todos os policiais do SDP têm senhas para utilizar a Rede INFOSEG.

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vêm se acumulando desde 1993. O inspetor Fernando chama essa contabilização de “nossas estatísticas”.36 Apontando as limitações dos números que produzem, “caseiros”, como me disse algumas vezes, Fernando fez um curso de “Técnicas Quantitativas aplicadas à Segurança Pública” com o firme propósito de melhorar as “nossas estatísticas” e aprender a “retirar dali alguma coisa útil”. O curso é oferecido periodicamente pelo ISP para servidores da área de segurança pública, e policiais recebem uma gratificação para participar dele e de outros processos de formação e atualização semelhantes.

Sindicâncias Solucionadas

Definição A pessoa desaparecida é localizada.

Observações A localização pode se decorrer de investigações policiais ou se dar por outros meios. Independente de ter decorrido de investigação policial ou outros acontecimentos e tipos de busca, a Sindicância é Solucionada assim que a localização chega ao conhecimento do SDP. A pessoa desaparecida não é Podem ser reabertas a qualquer Suspensas localizada e não há pistas a momento, desde que novas investigar. informações sobre o caso cheguem ao conhecimento do SDP. Não há regulamentos definindo em quanto tempo uma Sindicância pode ou deve ser classificada como Suspensa. O caso de desaparecimento Os documentos relativos ao caso são Encaminhadas relaciona-se a investigações em todos remetidos à unidade policial curso em outra unidade policial. interessada. Nos casos em que fica determinado que a pessoa desaparecida está envolvida em crime ou suspeita de crime, a Sindicância Encaminhada passa a integrar um Inquérito Policial. Há outras Sindicâncias arquivadas As Sindicâncias são reunidas. Juntadas em nome da mesma pessoa desaparecida. Quadro 1: Classificações de Sindicâncias

As Sindicâncias instauradas no SDP são distribuídas entre os policiais que compõem o quadro fixo do Setor. Essa distribuição não obedece a critérios específicos, e os casos são distribuídos à medida que chegam. A única exceção são os casos que envolvem crianças e

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Tive acesso a essas estatísticas em setembro de 2008, mês em que haviam sido instauradas 35 Sindicâncias no SDP. Entre 1993 e aquele mês, um total de 9.293 Sindicâncias foram instauradas no Setor. Desse total, 994 estavam em andamento, 5.167 haviam sido Suspensas, 2.551 Solucionadas, 477 Encaminhadas, 46 juntadas e 58 deixaram o SDP para integrar VPIs ou inquéritos conduzidos por outras repartições policiais.

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adolescentes. Todos eles, chamados no Setor de “casos de menores”, ficam a cargo do inspetor Fernando. Ao longo da pesquisa, trabalhavam no SDP os seguintes inspetores de polícia: Telma, que chefiava o Setor, Carlos Ernesto, Paulo, Rocha e Fernando. Em função dos dias da semana em que eu freqüentava o SDP, de acordo com a agenda acordada com Fernando, e do fato de que por alguns meses ele esteve licenciado do trabalho, meus contatos com o inspetor Rocha foram esparsos. Meu convívio mais rotineiro se deu de fato com Fernando, Telma, Carlos Ernesto e Paulo. Acompanhei algumas mudanças no efetivo do Setor durante a pesquisa. A inspetora Telma saiu do SDP duas vezes (uma temporária e, meses depois, outra definitiva); o inspetor Menezes, que já havia trabalhado no Setor, teve nova e curta passagem por lá, mas rapidamente saiu de licença médica; e o inspetor Jorge, professor da Academia de Polícia que também já havia trabalhado no Setor, voltou trazendo consigo duas investigadoras que haviam sido suas alunas: Luísa e Maria. Luísa e Maria passaram a integrar o SDP no processo de renovação do quadro que começou quando eu finalizava a pesquisa. Por isso, tive pouco contato com elas e com Jorge. O inspetor Fernando é quem lá trabalha há mais tempo. Como seus colegas me disseram em diferentes ocasiões, Fernando é “o cara”, “o ás da descoberta de paradeiro”, “quem melhor conhece a questão dos desaparecidos”, “quem é chamado pra resolver os casos quentes, de gente importante”; enfim, é o “bam-bam-bam do desaparecimento”. Fernando trabalha há cerca de quinze anos no SDP, e sua situação na polícia é uma exceção, já que agentes costumam ser lotados em diversas repartições policiais ao longo do tempo de serviço. Embora esteja há muito mais tempo no SDP do que seus colegas e seja também o mais velho entre eles, certamente com mais tempo de polícia, Fernando nunca havia chefiado o Setor e dizia não ter essa intenção. Prefere “fazer o trabalho de todo dia”, e diz não querer saber de “ser chefe de nada”. Seu engajamento nos serviços do SDP, não obstante, destaca-se. Fernando é o policial mais solicitado pelos próprios colegas para sanar dúvidas, possuindo evidente autoridade. A aceitação da minha presença no SDP foi facilitada pelo fato de ter sido ele quem primeiro me recebeu. Todos os agentes da Delegacia de Homicídios que conheci me foram apresentados por Fernando. Mais do que isso, a pessoa crucial para que a pesquisa de fato tenha acontecido, a servente Ana, me foi cuidadosamente apresentada por ele já em meu primeiro dia de pesquisa. Dona Ana, como é chamada por todos, possui as chaves de todas as salas da DH. Foi ela quem efetivamente me possibilitou entrar no SDP e acessar os arquivos nas inúmeras vezes que cheguei à delegacia antes dos policiais. 49

Fernando é também o agente com que me encontrei mais freqüentemente. Embora a escala de trabalho dos policiais seja a mesma em número de horas, ele costuma dar plantões na DH e é visto por seus próprios colegas como alguém que não só trabalha há mais tempo com desaparecimentos, mas também trabalha mais. Em três ocasiões diferentes, o inspetor Carlos Ernesto e o próprio Fernando me disseram que seu engajamento é diferenciado porque ele tem mais tempo disponível para o trabalho, já que “não tem família”. Por “não ter família”, entenda-se o fato de o inspetor, diferente dos outros agentes, não ser casado e não ter filhos. Por “família”, portanto, entenda-se a concepção usual, centrada na reprodução, presente não só no senso comum, como também em muitos estudos antropológicos. 37 Essa falas, vale ressaltar, aproximam-se do que Lugones (2009) encontrou nos tribunais prevencionais em que pesquisou, onde funcionárias afirmavam que seu compromisso com o trabalho só competiria com seu compromisso com suas famílias, e que apenas “uma obrigação moral com os próprios filhos justificaria delimitar o compromisso” (Lugones, 2009, p. 101) para com os menores em causa nos processos que administram. O inspetor Carlos Ernesto, que me chamou atenção para o engajamento diferenciado de Fernando, é policial e taxista. Mora na Tijuca, é casado, tem duas filhas e seu hobbie é a pescaria. Falante e piadista, Carlos Ernesto é o inspetor com que mais mantive conversas sobre outros assuntos que não o desaparecimento de pessoas. Ao mesmo tempo, é quem me pareceu ter uma visão mais precisa sobre o fenômeno. Para ele, “em mais ou menos sessenta por cento dos casos são viciados e criminosos, que já estão mortos mas já foi dado cabo dos corpos; o resto se divide entre maridos que abandonam famílias, normalmente por conta de outra mulher, acidentes tipo atropelamento e afogamento, e casos de loucura e perda de memória, principalmente de velhos.” Todos os policiais do Setor tratam o inspetor apenas por seu primeiro nome. Carlos relacionou inúmeras vezes, em nossas conversas, as figuras da pessoa desaparecida à do cadáver não-identificado. De seu ponto de vista, o primeiro grande problema da polícia hoje é a vaidade. “Policiais querem ser heróis e por isso não 37

Como mostram Yanagisako (1979), Creed (2000), Peletz (1995) e Yanagisako & Collier (1987), surveys de estudos antropológicos focados em diferentes décadas da segunda metade do século XX revelam que de fato a família é encarada como forma social dotada de um único e sempre presente núcleo definidor: na maioria dos trabalhos, ela aparece como fenômeno de parentesco centrado na reprodução. Pressupondo que a função prioritária singular exercida por toda a pluralidade de famílias observáveis é a procriação, ou a produção e socialização de pessoas, a despeito do referido acúmulo de conhecimento metodológico, epistemológico e etnográfico, parte dos estudos antropológicos publicados até o presente deixa de lado o fato de que famílias “are as much about production, exchange, power, inequality and status” (Yanagisako, 1979, p.199). Tais estudos fundamentam-se na convicção, muitas vezes implícita e irrefletida, de que o elemento irredutível e comum a todas as possíveis manifestações do fenômeno “família” são os laços estabelecidos a partir e em função dos fatos biológicos da procriação, vistos como sempre presentes e inexoráveis.

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compartilham informação”, impedindo o bom andamento de investigações. Não obstante, o segundo grande problema, também relativo a fluxos de informação, é a falta de ligação entre sistemas de informação de diferentes estados do país e órgãos da polícia. “Por exemplo”, me disse ele já no meu segundo dia de pesquisa: “um turista de São Paulo vem pra cá e se afoga em Copacabana. Dias depois, o corpo vai aparecer lá em Niterói, porque a corrente [marítima] leva. Nem tem jeito de conferir as digitais, o corpo já está em decomposição, e mesmo que tivesse, os dados estão lá em São Paulo, e os IMLs daqui não têm acesso. Ele vai ser enterrado como indigente e a família nunca vai saber! Vão ficar procurando como se ele fosse desaparecido!”.38 A escala cumprida por Carlos no tempo em que freqüentei o SDP era em larga medida coincidente com a do inspetor Paulo. Os dois são muito próximos, tratam-se por apelidos e dividiram com freqüência a sala 709 nas minhas manhãs de pesquisa. Em um dos chistes mais recorrentes entre eles, Carlos costuma dizer, em tom jocoso, que Paulo “é um cara sensível, um verdadeiro assistente social, quase uma moça”, ao que Paulo responde colocando em dúvida a confiabilidade de Carlos e afirmando que tudo o que ele diz é “conto de pescador”. Na freqüente brincadeira entre os dois, Carlos explicita a estigmatização de profissionais envolvidos em funções ditas “sociais” (Fonseca e Schuch, 2009, p.15) e atribui caráter feminino às tarefas de atendimento a familiares de desaparecidos e à sensibilidade com que Paulo as executa. Ao fazê-lo, dá voz a uma das dicotomias analisadas por Brown (1995), para quem discursos burocráticos são masculinistas à medida que sustentam divisões entre valores socialmente construídos como masculinos, como racionalidade abstrata e formalismo, e outros construídos como femininos, como racionalidade substantiva, responsabilidade e zelo pelas relações. Paulo, no chiste de Carlos, é “um verdadeiro assistente social, quase uma moça” por prezar pelas relações que estabelece com as pessoas que atende. Coincidentemente, meu primeiro dia no SDP foi também o primeiro dia de trabalho do inspetor Paulo depois de encerrada sua licença-paternidade. Seu primeiro filho, de quem me mostrou muitas fotos e sobre quem conversamos bastante, nasceu dias antes da minha entrada em campo. O bebê era objeto recorrente de conversas entre Paulo e a inspetora Telma, mãe de um garoto de cerca de 3 anos. Em função das trocas de informações entre Telma e Paulo sobre filhos pequenos, mas certamente não só delas, grande parte dos assuntos levantados no Setor evocava a palavra “família”. 38

Esse exemplo hipotético criado pelo inspetor remete a um caso real, ocorrido no verão de 1951, que encontrei nos arquivos do IML-RJ e narrei sob o título “O afogado” (Ferreira, 2009, pp. 155-158). O caso envolve um banhista, de cerca de 35 anos, que se afogou na praia de Copacabana, foi necropsiado no IML-RJ e enterrado como indigente alguns dias depois.

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Telma, dentre os inspetores do SDP, foi quem mais me falou sobre “as famílias dos desaparecidos”. A chefe do Setor tem uma visão bastante cética acerca das pessoas que procuram a polícia para registrar casos de desaparecimento. Para ela, “as famílias atrapalham muito nosso trabalho” e costumam “mentir e ocultar fatos”, muitas vezes por medo do que a polícia possa fazer a seus parentes desaparecidos, que freqüentemente “são bandidos, estão envolvidos com tráfico e criminalidade”. Além disso, as famílias costumam “negar a realidade dos fatos”, o que dificulta tanto as investigações policiais, quanto as relações entre os agentes e os familiares de desaparecidos. Para justificar e ilustrar sua visão, Telma me relatou inúmeros e complexos casos de desaparecimento que chegaram ao SDP. Em um deles, um homem teria registrado o desaparecimento de sua filha, bebê recém-nascido, alegando que sua ex-mulher sumira com a criança. Depois de alguns telefonemas, Telma soube que o homem havia espancado sua exmulher, e que por essa razão ela viajara para São Paulo levando o bebê, onde se encontrava em companhia de um irmão. Para a inspetora, esse caso exemplifica como pessoas tentam “fazer uso da máquina da polícia” para ameaçar umas às outras e para recrudescer conflitos familiares. Outro exemplo seria um conjunto de casos envolvendo cinco meninas, todas com características físicas semelhantes e cerca de seis anos de idade. Segundo Telma, para quem as garotas foram mortas “por um mesmo maníaco, já que os casos têm o mesmo modus operandi”, as mães das meninas, auxiliadas por uma ONG, “criaram muitos problemas” para o SDP. Telma marcou um encontro com as mães quando policiais encontraram ossadas que poderiam ser das garotas. A inspetora solicitou que elas fizessem exames para cotejar seu DNA com o material genético que seria coletado das ossadas, e apresentou sua hipótese de que as meninas teriam sido mortas pela mesma pessoa. As mães, no entanto, recusaram-se a fazer os exames e a aceitar aquela hipótese, dirigiram-se a delegados da DH e pediram que os casos de suas filhas não fossem mais investigados pelo SDP. Com o auxílio da ONG, organização da qual Telma diz ter “pavor”, as mães conseguiram que os casos fossem transferidos para a Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV). Para a inspetora, familiares de desaparecidos geram “ainda mais problemas” para o SDP quando são assessorados por ONGs. Além do caso das cinco garotas, ela me relatou brevemente outra história, que havia ficado a cargo do inspetor Paulo, em que a mesma ONG, juntamente com a família de um adolescente desaparecido, atravancou os trabalhos do SDP. Segundo as investigações do inspetor Paulo, o adolescente fugira de casa, já havia sido localizado e estava “vivendo a vida numa boa, feliz, trabalhando e ganhando dinheiro”, mas 52

de acordo com seus familiares e com a ONG, teria sido vítima de aliciamento por traficantes. Os relatos de Telma quanto a esse caso deixam claro que, enquanto ela e o inspetor Paulo viam o garoto como alguém que saíra de casa por conta própria e que já havia sido localizado, seus familiares e a ONG alegavam que ele era vítima de crime e deveria continuar sendo procurado, sobretudo para ser protegido. Em suma, enquanto para os agentes do SDP o garoto não havia retornado ao convívio familiar porque não queria, para a família ele estaria sendo impedido de voltar. A conclusão de Telma acerca desse e de outros casos é que tanto com as “famílias”, quanto com ONGs interessa à polícia estabelecer parcerias somente se não houver omissão e contestação de informação, nem interferência nas investigações. Segundo a inspetora, o SDP realiza com muita freqüência atividades de “assistência social”, que são “problema do Estado, e não da polícia”. Evidência disso seria o caso de um senhor de avançada idade que foi registrado por seus vizinhos como desaparecido. As investigações do SDP concluíram que os vizinhos fizeram a comunicação não porque o senhor estivesse de fato desaparecido, e sim para que a polícia tomasse conhecimento de que ele vinha sendo explorado por uma jovem, que passara a morar em sua residência e ter acesso a seus bens. Segundo Telma, os vizinhos esperavam da polícia alguma atitude em relação à jovem. Contudo, ficou constatado que, embora a mulher estivesse de fato usufruindo dos bens do senhor, por outro lado estava cuidando dele diariamente. Executando o que ela chama de serviço de “assistência social”, a inspetora foi, em companhia do inspetor Fernando, até a casa onde o casal estaria vivendo, e checou a situação com seus “próprios olhos”, no intuito de averiguar se haveria entre eles uma relação de exploração. A situação que, do ponto de vista dos vizinhos, seria de submissão do senhor pela jovem, para Telma tratava-se de uma espécie de troca justa de favores, já que o homem não possuía familiares e/ou outras pessoas que dele cuidassem tão de perto quanto a jovem vinha fazendo. Essa checagem do caso com seus “próprios olhos” é uma diligência excepcional dentre as tarefas executadas pelos agentes do SDP. Presenciei policiais do Setor deixando a DH para fazer o que chamam de “operação de rua” poucas vezes, das quais duas se destacam em minhas notas de campo. A primeira foi uma manhã de agosto de 2009 que passei sozinha no Setor. O inspetor Fernando, que segundo sua escala estaria lá naquele dia, havia se juntado à equipe da Delegacia de Homicídios no que recebeu o nome de “Operação Anjo”: a invasão, o flagrante e o posterior fechamento de duas clínicas de aborto na Zona Sul carioca. A segunda, uma ida dos inspetores Fernando e Paulo a um hotel no bairro de Santa Teresa, com a finalidade de “pegar a ficha” de um ex-funcionário que fora citado como “melhor amigo” da 53

protagonista de uma Sindicância em andamento. Tratava-se do desaparecimento de uma adolescente, e Fernando estava cuidando das investigações. Os policiais convidaram-me para ir com eles ao hotel, na viatura da Delegacia de Homicídios, e essa foi uma das poucas vezes que tive contato com eles fora das dependências do SDP. Diferente do que afirmam sobre a lida diária com desaparecimentos, ambas ocasiões deram espaço para que os inspetores executassem atividades apresentadas como propriamente constitutivas do trabalho policial. Na manhã da “Operação Anjo”, por exemplo, diferentes agentes da DH me informaram que o inspetor Fernando demoraria a retornar ao SDP por ter ido a um hospital público acompanhando as mulheres presas nas clínicas enquanto passavam por procedimentos cirúrgicos. “Ele foi com elas porque, você sabe como é nosso trabalho, tem que garantir o flagrante”, me disse uma policial. À parte situações (raras) como essas, as diligências levadas a cabo pelos agentes do SDP consistem basicamente em atividades executadas nos computadores, telefones e arquivos do Setor. Como detalho no próximo capítulo, uma VPI recebida de uma delegacia comum implica a instauração de Sindicância no SDP. A Sindicância gera, em combinações variadas, emissão de Ofícios, consultas a órgãos e oitiva de pessoas que possam esclarecer o caso. Os Ofícios emitidos, por sua vez, geram respostas que são anexadas à Sindicância, assim como os Termos de Declarações a que as oitivas dão origem. Os telefonemas, muitos dos quais encerram casos, geram anotações que são igualmente incluídas nas Sindicâncias. Nesse processo, o caso se desenrola e é arquivado, seja como Sindicância Solucionada, seja como Sindicância Suspensa, nas várias gavetas que compõem o mobiliário do Setor. Embora essa carreira dos documentos relativos a casos de desaparecimento seja, a meu ver, bastante padronizada e encontrada nos arquivos do SDP com poucos desvios e exceções, Fernando costuma dizer, entre cético e resignado: “não temos [no SDP] uma metodologia, só preenchemos papel”. Para o inspetor, a investigação policial de casos de desaparecimento de pessoas “é uma ilusão”, e o simples correr dos dias entre o registro do caso na delegacia comum e seu encaminhamento para o SDP é suficiente para encerrá-los, restando aos policiais do Setor “dar um telefonema e ouvir que a pessoa já voltou pra casa”. Além disso, grande quantidade de casos consiste em “questão patrimonial e se resolve simplesmente com um documento”, como bem exemplificam os casos de Geraldo e Sílvio, abaixo narrados. Fernando atentou-se para casos desse tipo especialmente depois de passar pelo que chamou de “desilusão”: depois de investigar um caso, promoveu o reencontro entre um pai tido como desaparecido e sua filha. O reencontro se deu no próprio SDP, sob os olhos 54

de Fernando. Meses depois, o pai antes desaparecido retornou ao Setor “para tomar satisfações”. Sua filha estaria brigando na Justiça pelo direito de usufruir de seu patrimônio, e para ele o gatilho da briga teria sido disparado no reencontro promovido no SDP. O considerável número de casos encerrados ou com um telefonema, ou com um documento, segundo Fernando, dá a falsa impressão de que a investigação policial em torno de casos de desaparecimento “é um sucesso”, como se a polícia descobrisse freqüentemente o paradeiro de pessoas. Na solenidade de apresentação da “Pesquisa de Desaparecidos” realizada pelo ISP e citada na Introdução desta tese, encontrei-me com Fernando e ouvi dele comentários nesse sentido. Para o inspetor, a pesquisa do Instituto só confirmara o que rotineiramente ele percebe no SDP: embora seja “uma ilusão”, a investigação policial em torno de casos de desaparecimento é muitas vezes vista como “um sucesso”.

GERALDO Adalgisa e Antônio, hoje falecidos, tiveram três filhos juntos: Geraldo, Maria Lúcia e Vera Helena. O primogênito dos três é Geraldo, “homem de cor branca, magro, altura de cerca de 1,65 metro, cabelos castanhos claros aparados, que sofreu uma amputação na perna esquerda, pouco acima do joelho”. Desde a morte de Adalgisa e Antônio, os três irmãos gozam de direito à pensão junto ao Instituto de Previdência do Estado do Rio de Janeiro (IPERJ). Munida de um ofício expedido pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e de uma declaração do IPERJ, Maria Lúcia compareceu à 17ª DP, em São Cristóvão, para solicitar Registro de Ocorrência que oficializasse o desaparecimento de Geraldo. Segundo Maria Lúcia, a última vez que ela e Vera Helena tiveram “notícias de Geraldo, ele estaria residindo em um barraco no Morro da Mangueira há muitos anos, sendo certo que a família não possui qualquer informação de seu paradeiro nem fotografia de Geraldo”. Contudo, não era essa falta de notícias e informações que Maria Lúcia queria solucionar ao procurar a polícia. A declaração do IPERJ que Maria Lúcia portava ao comparecer à DP atestava que Geraldo, “filho inválido, está com sua pensão retida desde junho de 1988” – isto é, desde aquela data, não viria recebendo a pensão a que tinha direito. A declaração foi apresentada por Maria Lúcia como evidência do desaparecimento de seu irmão e, também, como explicação para sua solicitação de que o mesmo fosse registrado pela polícia. Maria Lúcia desejava que a pensão de Geraldo fosse redistribuída e passasse a compor pensão em seu nome e no de sua irmã, Vera Helena. Para tanto, procurara a Defensoria Pública que, por sua vez, orientou-a a procurar a delegacia. O RO em nome de Geraldo instruiria uma ação de Declaração de Ausência a ser movida pela Defensoria. Somente a partir dessa ação, finalmente, Maria Lúcia poderia pleitear a recomposição das pensões. 55

No dia 23 de março de 2005, data em que compareceu à 17ª DP, Maria Lúcia obteve o que procurava: o RO de desaparecimento em nome de Geraldo, que teria uso em procedimentos administrativos e judiciais fora da polícia. Não obstante, investigações policiais em torno do desaparecimento de Geraldo foram conduzidas. Por meio de comunicações internas, agentes da 17ª DP consultaram o IML e o IFP, solicitando “averiguar a existência de registro do cadáver de Geraldo, desaparecido desde 25/06/88”. A data firmada como dia do desaparecimento correspondia ao vencimento da primeira pensão que Geraldo não recebera. Ambos os institutos consultados pelos agentes da DP empregaram a expressão “nada consta” ao responderem a averiguação solicitada. Diante dessas negativas, o caso de Geraldo foi encaminhado para o SDP, que deveria prosseguir com investigações. O Setor enviou ofícios ao Desipe, à POLINTER, à Santa Casa de Misericórdia e, repetindo o que havia sido feito na DP, novamente ao IML e ao IFP. Ecoando o “nada consta” tanto do IML, quanto do IFP, as respostas obtidas pelo SDP afirmam que Geraldo “não faz parte do efetivo carcerário” do estado, não se encontra enterrado em nenhum dos “13 (treze) cemitérios administrados por esta Santa Casa” e não tem em seu nome registro ou mandado de prisão. O caso de Geraldo permaneceu em andamento no SDP até 6 de janeiro de 2009, mais de quatro anos depois que sua irmã obteve, na 17ª DP, o registro que desejava. Naquela data, o caso foi arquivado como Sindicância Suspensa.39

SÍLVIO Nascido em 1949, Sílvio “morava sozinho, não trabalhava e costumava andar numa bicicleta velha” pelas ruas da cidade. Em dezembro de 2004, a pedido de Mercedes, mãe de Sílvio, sua prima Lourdes comunicou o desaparecimento dele em uma DP. Segundo Lourdes, Sílvio “foi visto pela última vez” no apartamento em que morava, em setembro de 2004. Depois disso, sua mãe procurou por ele no apartamento, mas “ao abrir o referido endereço, encontrou vários entulhos no seu interior” e nenhum sinal de Sílvio. Ao comunicar o desaparecimento do primo, Lourdes esclareceu seu interesse em efetuar o registro e justificou o fato de tê-lo solicitado apenas em dezembro: somente veio no dia de hoje comunicar o fato, visto que ficou na expectativa de que Sílvio aparecesse, o que não ocorreu; (...) que também tomou providências em fazer a referida comunicação visto que existe um espólio do pai do desaparecido, ficando do advogado comunicar ao juízo do inventário sobre a situação do aludido imóvel.

Lourdes foi à DP portando uma procuração, da qual Mercedes é outorgante e ela, outorgada. Entre dezenas de atos, a procuração garante que Lourdes tenha poderes para, em

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 275/07 do SDP/DH.

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nome de Mercedes, (...) requerer e receber pensões, aposentadorias, seguros, benefícios, salários família, pecúlios, auxílio funeral, proventos, carteirinhas, cheques saúde, seguro desemprego, PIS, PASEP, FGTS, diferença de planos, quantias referentes ao Plano Collor, Bresser, passar recibos e dar quitação, quantias vencidas ou vincendas, abrir, movimentar e encerrar contas correntes e cadernetas de poupança, abrir conta conjunta com ele outorgante, fazer depósitos e retiradas, emitir e endossar cheques, requisitar e receber talonários de cheques, saldos, extratos, cartões magnéticos e suas senhas, inclusive, alterá-las, cartões de crédito e suas senhas, desbloquear cartões de crédito, assinar livros, fichas, termos, ofícios, requerimentos, fazer declarações, receber e dar quitação, autorizar débitos, interpor recursos as instâncias superiores (...)

Em março de 2005, passados seis meses desde que Sílvio “foi visto pela última vez”, Lourdes votou à DP. Portava, na ocasião, não uma procuração, mas uma certidão de óbito. Mercedes, mãe de Silvio, falecera em janeiro. Lourdes reportou o fato a policiais, disse que Sílvio seguia desaparecido e acrescentou apenas que “não sabe dizer o que aconteceu com Sílvio; que o imóvel onde Sílvio reside continua fechado; que a bicicleta que Sílvio costumava andar nunca mais foi encontrada; que nada sabe dizer quanto às amizades de Sílvio”. Logo após o registro dessas falas de Lourdes, o caso de Sílvio foi encaminhado ao SDP. No Setor, foram efetuadas pesquisas na Rede INFOSEG e na base de dados do DETRAN-RJ. De tais pesquisas, foi concluído que Sílvio não tem anotações criminais, nem registro de passagem pelo sistema prisional. Foram também remetidos ofícios solicitando informações sobre Sílvio para o IML, a Polinter, a Santa Casa de Misericórdia, a Fundação Leão XIII, o Instituto Phillipe Pinel, a Delegacia de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteira e os hospitais Souza Aguiar e Cardoso Fontes. Todas as respostas recebidas no SDP foram negativas: não há qualquer registro que possa esclarecer o desaparecimento de Sílvio nessas instituições. Por fim, em junho de 2005, Lourdes telefonou para o SDP. Conforme manuscrito entre os vários papéis que compõem a Sindicância de Sílvio, no telefonema Lourdes confirmou que seu primo seguia desaparecido e “só relatou que o apartamento continua fechado, a mãe do desaparecido faleceu e o mesmo morava sozinho e que vagava pelas ruas; que desconfia que o mesmo tem problemas mentais”. 40

Maria Lúcia, irmã de Geraldo, solicitou o RO de desaparecimento em nome dele não por esperar que o documento desencadeasse a descoberta de seu paradeiro. Seu interesse voltava-se para o próprio documento e, por isso, sua interação com a polícia esgotou-se minutos depois que começou, imediatamente após a conclusão do registro. A carreira do RO 40

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 174/05 do SDP/DH.

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em nome de Geraldo, afinal, continuaria fora de delegacias, já que o documento integraria ação judicial por meio da qual Maria Lúcia buscava obter outro documento: uma declaração de ausência. Com essa declaração, ela pleitearia o direito de receber parte da pensão a que seu irmão tinha direito, mas que não recebia desde junho de 1988. Os “nada consta” gerados pelas solicitações de informação sobre Geraldo feitas pelo SDP garantiram que o caso transcorresse como Maria Lúcia esperava. A eventual descoberta do paradeiro de seu irmão impediria que ela alcançasse o que queria, anulando a possibilidade de obtenção judicial da declaração de ausência. Portanto, do ponto de vista dela, a medida do “sucesso” do caso estava justamente na não-localização de seu irmão. Em outros termos, para Maria Lúcia nada seria mais eficaz do que pouca ou nenhuma investigação em torno do paradeiro de Geraldo. Se, fazendo uso dos termos do inspetor Fernando, a investigação policial em torno de casos de desaparecimento “é uma ilusão”, essa ilusão garantiria à Maria Lúcia a consecução de seus objetivos. Já no desaparecimento de Sílvio, um duplo interesse foi expresso por Lourdes, prima do desaparecido, no momento de confecção do registro de ocorrência: em nome da mãe de Sílvio, Lourdes disse que tanto esperava que ele aparecesse, quanto precisava tomar providências relacionadas ao imóvel em que ele morava. No decorrer do caso, Lourdes esboçou uma imagem de Sílvio como alguém desgarrado. Afirmou que o apartamento em que ele vivia estava entulhado, além de ter dito, logo na notificação do desaparecimento, que ele “não trabalhava e costumava andar numa bicicleta velha”. No último contato que teve com policiais que lidaram com o caso, Lourdes fez uma colocação que aparentemente visava a explicar o modo de vida de seu primo: disse desconfiar que ele tivesse “problemas mentais”. Lourdes procurava por Sílvio, que desaparecera levando consigo a tal bicicleta velha com que transitava pela cidade. Mas além disso, ela procurava também por meios de desembaraçar o inventário do pai dele, do qual constava o imóvel em que seu primo residia. Esses interesses, contudo, não eram imediatamente seus. Lourdes era procuradora de Mercedes, mãe de Sílvio, e por isso poderia tomar providências em seu nome. Os casos de Sílvio e Geraldo não destoam do conjunto de Sindicâncias com que tive contato ao longo da pesquisa. Não são poucos os casos arquivados no SDP em que comunicantes de desaparecimento associam “problemas mentais” ao modo de vida e ao comportamento dos desaparecidos, como destaco no terceiro capítulo. Tampouco são raros os casos em que o sucesso, do ponto de vista de seus comunicantes, reside justamente em muitos “nada consta” e na não descoberta do paradeiro dos desaparecidos, assim como não são 58

poucos os desaparecimentos que envolvem “questão patrimonial”, como me disse Fernando. Não obstante, os casos de Sílvio e Geraldo são nitidamente distintos entre si, e guardam poucas semelhanças com os casos de Rodrigo, Daniela e Álvaro, narrados anteriormente. Esses cinco casos, se comparados entre si, recebem tratamento semelhante no interior das repartições policiais por que passam. Contudo, suas tramas distinguem-se, fazendo deles uma coleção heterogênea de casos de desaparecimento: o servidor público municipal Álvaro saiu para beber e dar uma volta e nunca mais foi visto, nem deu notícias; Daniela, mãe de duas meninas, passou por “algum problema familiar”, saiu de casa, fez contato telefônico com sua mãe, mas não foi mais visitá-la; Rodrigo sumiu no domingo de Carnaval, mas depois foi viver com sua namorada e “costuma visitar os parentes”. Isso sem citarmos Geraldo, Sílvio e outros casos que serão narrados nos próximos capítulos. Diante da heterogeneidade desses desaparecimentos, é no mínimo intrigante sua reunião nas gavetas do SDP, sua designação a partir de um mesmo termo e a carreira comum percorrida pelos documentos a eles referentes. Afinal, é possível pensar nos casos como manifestações particulares do mesmo fenômeno? Se relembrarmos os primeiros parágrafos da Introdução, encontramos maneiras de falar sobre desaparecimentos que encaram casos particulares como manifestações não simplesmente do mesmo fenômeno, mas do mesmo “problema social”. Os desaparecimentos transformados em números e perfis estatísticos pelo ISP, afinal, foram apresentados pelo Instituto como questão não tão problemática quanto pode parecer a princípio, passível até mesmo de ser, de certo modo, comemorado. O veemente protesto da Rio de Paz, ao contrário, falou esteticamente sobre os desaparecimentos tratando-os como questão ainda mais problemática e grave do que pode parecer a princípio. De todo modo, ainda que por prismas opostos e buscando provocar sentimentos antagônicos, tanto o Instituto quanto a ONG falaram sobre o desaparecimento de pessoas no Rio de Janeiro como “problema”. Por heterogêneas que sejam as tramas com que os arquivos do SDP me colocaram em contato, portanto, da perspectiva de alguns agentes sociais seria possível falar, no singular, sobre o “problema social” do qual elas seriam manifestações particulares. Mas como? Sayad (1998), ao abordar a imigração e seus paradoxos constitutivos, chama atenção para as diferenças e possíveis correlações entre dois constructos relativamente independentes entre si: os problemas sociais e os problemas sociológicos. Sobre os problemas sociológicos, destaca a importância de não mitigarmos, e sim transmitirmos, a opacidade dos fenômenos que os cientistas sociais construímos como objetos de pesquisa. Nos termos do autor,

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o discurso do sociólogo não existe para atenuar, com observações lingüísticas e com comentários “esclarecedores”, logo reconfortantes, a opacidade do discurso autêntico, que mobiliza todos os recursos de uma cultura e uma língua originais para expressar experiências que essa língua e essa cultura desconhecem, ou recusam. Essa opacidade da linguagem que não se entrega à primeira vista é, sem dúvida, a informação mais importante, a mais rara em todo caso num momento em que tantos porta-vozes da boa vontade emprestam aos emigrantes sua própria língua. (Sayad, 1998, p.25)

Já sobre os problemas sociais, adverte-nos de que têm relativa independência diante da realidade fenomênica a que se referem e, necessariamente, “têm suas condições sociais de possibilidade” (Sayad, 1998, p.55). Essas formulações do autor clareiam ao menos dois aspectos centrais sobre o desaparecimento de pessoas, tomado aqui como problema sociológico e evocado, em múltiplos espaços, como “problema social”. Primeiro, é preciso transmitir, e não obliterar, a opacidade desse fenômeno, exposta na heterogeneidade de casos que recebem a mesma designação e o mesmo tratamento no interior de repartições policiais. Ao mesmo tempo, é preciso também perscrutar as condições sociais que possibilitam que o desaparecimento seja construído como um só “problema social”, independentemente da heterogeneidade de casos que lhe caracteriza.

1.4 A pesquisa e suas curvas: a ReDESAP No começo de meu terceiro mês de pesquisa no SDP, a inspetora Telma apresentoume o que posteriormente tornou-se um meio privilegiado para que eu refletisse acerca dessas questões: a Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP). Entre os dias 2 e 5 de dezembro de 2008, aconteceria no Rio de Janeiro o II Encontro Nacional da ReDESAP, em cuja organização alguns policiais da Delegacia de Homicídios estavam envolvidos, e Telma não só sugeriu que eu fosse, como também se ofereceu para fazer minha inscrição “pela delegacia”, caso fosse necessário. Segundo ela, o evento poderia ser “bom para a pesquisa”, como de fato foi. Ali estabeleci relações que se desdobraram em convites para reuniões e outros eventos da rede, nos quais ouvi falas, acompanhei debates e entrevi embates que iluminam como o desaparecimento de pessoas é construído como problema social no Brasil. Ao sugerir que eu participasse, Telma me deu o telefone da FIA, principal organizadora local do evento, que estava concentrando as inscrições. Fui inscrita como doutoranda da UFRJ, sem que fosse necessária qualquer menção ao SDP ou à Delegacia de 60

Homicídios. Durante três dias, identificada por crachá que trazia meu nome, fui ao centro de convenções em que o evento aconteceu. Mesas e debates tomavam a manhã e a tarde e, entre os dois blocos de trabalhos, o almoço era servido no próprio local. Passei grande parte do tempo do evento ao lado do inspetor Fernando, que participou representando o SDP, mas abri três outras frentes de diálogo: travei conversas e troquei contatos com o grupo de servidores da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) e da FIA que organizou o evento; conheci três mães de desaparecidos que fundaram ONGs que reúnem e assistem familiares de pessoas desaparecidas; e conversei com pesquisadores que também estavam desenvolvendo pesquisas de pós-graduação. O evento era a segunda reunião nacional da ReDESAP, rede criada em 2002 que articula 47 organizações (entre órgãos públicos, policiais e assistenciais, e iniciativas nãogovernamentais) que lidam com o desaparecimento de pessoas no Brasil. 41 Algumas delas lidam exclusivamente com desaparecimentos de crianças e adolescentes, entre outras atribuições, como o já mencionado SOS Criança Desaparecida, da FIA, e delegacias de Polícia Civil especializadas na proteção de crianças e adolescentes e na investigação de crimes que as tenham como vítimas. 42 Não obstante, a rede também conta com membros cuja atuação não se restringe a casos de crianças e adolescentes, como a Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo, as ONGs Mães em Luta e Mães da Sé, e a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro. A reunião entre organizações inscritas na já consolidada seara da defesa e promoção de direitos da criança e do adolescente e instituições cujas atribuições não se relacionam a esse domínio específico de intervenção não é nem casual, nem sem efeitos para a construção do desaparecimento como problema social. Como mostram estudiosas desse campo como Vianna (1999, 2002), Lugones (2004, 2009), Schuch (2009) e Fonseca e Schuch (2009), a área da infância e adolescência consolida-se cotidianamente como domínio específico de 41

Embora a ReDESAP tenha sido criada em 2002 e promovido, entre aquele ano e o ano de 2011, três encontros nacionais, mais de uma dezena de reuniões de seu grupo gestor e outros tantos eventos locais, ela foi formalmente instituída, por meio da Portaria n. 1.520, somente dia 5 de agosto de 2011. Assinada pela então ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Portaria determina fundamentalmente dois atos: “Art. 1º Instituir no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República a Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos - ReDESAP, tendo por finalidade acompanhar a implementação de políticas públicas para a prevenção, localização e atendimento de crianças e adolescentes desaparecidos no país. Art. 2º Fica instituído o Comitê Gestor da ReDESAP, com a finalidade de coordenar e estabelecer diretrizes para o funcionamento, disseminação e gestão da referida rede.” (SDH, 2011) Os eventos de que participei no decurso da pesquisa, sobre os quais teço considerações na tese, ocorreram durante o (longo) período em que a rede não estava amparada em instrumentos jurídicos específicos, mas não deixava, por isso, de funcionar ativamente. 42 Sobre as especificidades da atuação profissional de policiais civis lotados nessas delegacias especializadas depois da promulgação do Estatuto da Criança do Adolescente, ver Schuch (2009, pp.157-160).

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intervenção moldado por regimes discursivos e suas respectivas práticas e tecnologias de poder. No Brasil contemporâneo, “a mais nova legislação especial para crianças e adolescentes – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), implementado em 1990 – redimensiona autoridades e sentidos à infância e juventude” (Schuch, 2009, p. 105), instituindo a linguagem dos “sujeitos de direitos” e buscando materializar em texto legal uma concepção de infância que se pretende “universal” (Vianna, 2002). Aliando as idéias de democratização e modernização, a gestão da criança e do adolescente como “sujeito de direitos” prescrita pelo ECA e a concepção de uma infância tão soberana que pudesse fazer com que a entidade mítica Estado fosse cobrada em suas responsabilidades tem nesse momento um poder de sedução que não pode ser menosprezado. (Vianna, 2002, p.74)

Pensada a partir da ReDESAP, a construção do desaparecimento de pessoas como problema social é devedora do poder de sedução da área da infância e adolescência e mobiliza em certas ocasiões o que Lugones chama de “vulgata dos direitos da criança” (Lugones, 2009, p.47). No entanto, não só a composição da rede, que não se restringe a instituições da área da infância, mas também e sobretudo as falas e debates levados a cabo em seus eventos e reuniões indicam que o desaparecimento de pessoas não se fixa nesse domínio de intervenção. Ao invés disso, sua inserção na área da infância é instável, circunstancial e escorregadia. Referências ao fenômeno são feitas por representantes das instituições reunidas na rede, indiferenciadamente, a partir dos termos desaparecimento, desaparecimento de crianças, desaparecimento de crianças e adolescentes e desaparecimento de pessoas. Além disso, alguns desses representantes, com destaque para mães de desaparecidos que fundaram ONGs de apoio a familiares, sublinham freqüentemente o fato de seus filhos terem desaparecido quando crianças e, atualmente, já serem adultos. “Minha filha hoje tem 28 anos e por isso não merece mais ser procurada?” Com essas palavras, uma das mães respondeu à minha indagação sobre a indistinção com que na rede são usados os termos acima citados. Para ela e para outros membros da rede, é imprescindível que as iniciativas de combate e prevenção do desaparecimento foquem as crianças e adolescentes, vistos como mais vulneráveis a esse e outros problemas, mas estendam seus efeitos para toda a população, independente de faixas etárias. 43 Nesse sentido, se a soberana concepção de infância de que 43

“Menores”, “Crianças e adolescentes”, “Infância” e “Adolescência”, como deixam claros os trabalhos já citados (Vianna, 1999, 2002), Lugones (2004, 2009), Schuch (2009) e Fonseca e Schuch (2009), entre tantos outros, são categorias que não designam simplesmente grupos e faixas de idade. Se chamo atenção para

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fala Vianna (2002) permite a múltiplos agentes sociais cobrar responsabilidades do Estado, na ReDESAP busca-se fazer tal cobrança sem necessariamente vinculá-la à questão da infância. A ReDESAP é coordenada pela SEDH/PR, mais especificamente pela equipe gestora do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) da Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDCA).44 Conforme folhetos que circularam no II Encontro Nacional, em texto que encontrei replicado em diversos folders e websites que mencionam a rede, ela “tem como objetivos constituir um cadastro nacional de casos, criar e articular serviços especializados de atendimento ao público e coordenar um esforço coletivo e de âmbito nacional para busca e localização dos desaparecidos”. Desde a criação da rede, foi construído um website que tem funcionado como embrião do referido Cadastro. As organizações que integram a rede alimentam o website, embora de forma precária e pouco sistemática. Ao longo dos anos de 2009 e 2010, participei de reuniões e eventos dedicados à formulação e consolidação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas que substituiria o website. No capítulo cinco detenho-me sobre tais reuniões e sobre o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. As questões gerais debatidas ao longo do II Encontro Nacional da ReDESAP, objeto de opiniões e disputas diversas, ecoavam muitas das reflexões presentes no cotidiano do SDP e registradas ou suscitadas por seus arquivos. Em linhas gerais, nas oito mesas programadas para o evento, as falas e debates entre membros da rede orbitaram as seguintes interrogações: O que é o desaparecimento de pessoas? Trata-se de questão policial ou de assistência social? Quais são as atribuições específicas de delegacias de polícia, conselhos tutelares e órgãos de assistência social diante de casos de desaparecimento? Qual dessas instituições devem atender “as famílias” de desaparecidos? Quais as razões principais do desaparecimento de crianças e adolescentes no Brasil? Que políticas públicas têm potencial para combatê-las? O Quadro 2 sistematiza os temas debatidos em cada mesa na forma de tópicos. Ficaram fora do quadro assuntos, certamente relevantes, que foram objeto de conversas paralelas às mesas e levadas a cabo nas refeições e intervalos entre elas. Apesar disso, o quadro é útil à medida que delineia uma espécie de mapa dos temas evocados como relevantes para se compreender, combater e administrar o desaparecimento de pessoas no Brasil.

diferenças etárias e para a necessidade se combates de casos de desaparecimento independentemente delas, é para apresentar umas das reivindicações centrais de muitos dos membros da ReDESAP. 44 Desde a mudança legislativa que transformou a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) em Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), em março de 2010, a SNPDCA deixou de ser uma Subsecretaria e passou a ser designada Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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Nome da Mesa Abertura

Crianças e Adolescentes desaparecidos: uma realidade invisível

Causas e fatores que levam ao desaparecimento de crianças e adolescentes no Brasil

Marcos Legais do Desaparecimento de Crianças e Adolescentes, Proteção Jurídica e Acesso à Justiça

Balanço dos Serviços e Políticas de Notificação, Identificação e Localização de Crianças Desaparecidas

Temas apresentados e discutidos Importância do engajamento do poder público, da iniciativa privada e do terceiro setor na questão; angústia das famílias; necessidade de maior divulgação do fenômeno e dos casos; necessidade de melhor articulação entre membros da ReDESAP. Escassez de estudos sobre o tema e registros não policiais dos casos; necessidade de combater mitos em torno do desaparecimento; como enfrentar a subnotificação de casos; necessidade de proteger “a família” para prevenir novos casos; como atender e acompanhar as famílias de desaparecidos. Seqüestros intrafamiliares; violência doméstica e castigos físicos; famílias recombinadas e novos modelos de família; fugas de casa; precariedade e despreparo da polícia para lidar com dramas familiares. A imprecisão conceitual do desaparecimento; vazio legal em torno do tema; possibilidade de não se falar em desaparecimento, e sim “busca” e “localização”; relação entre “busca” e “invasão de privacidade”; possibilidade da polícia atuar apenas em casos de suspeita de crime; os limites e possibilidades oferecidos pelo ECA. Os trabalhos da Polícia Civil do Rio de Janeiro, do Disque-Denúncia 100, da SEDH/PR, do SOS Crianças Desaparecidas e dos Conselhos Tutelares em casos de desaparecimento.

Possibilidades de prevenção e combate de desaparecimentos oferecidas pela Política Nacional de Assistência Social, pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária e pela Política Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas; balanço dos avanços e recuos vividos pela rede desde o I Encontro Nacional, ocorrido em 2005. Objetivos e resultados de projetos voltados para Projetos meninos de rua e crianças e adolescentes necessitados de proteção e defesa judicial. Objetivos e resultados de programas de prevenção de violência doméstica, enfrentamento do tráfico de pessoas, atendimento psicológico de famílias de desaparecidos e criação de bancos de DNA. A importância da mídia para a divulgação de casos Informação, Prevenção e Divulgação: e do tema dos desaparecimentos em geral. mídia e campanhas Quadro 2: Mesas e temas do II Encontro Nacional da ReDESAP Políticas de atenção e projetos de intervenção

O gestor do serviço público federal que à época do Encontro ocupava o papel central na articulação da rede é um antropólogo que realiza pesquisas na área da infância e 64

adolescência, exerceu funções de coordenação na SNPDCA e dedica-se tanto a atividades de ensino em universidade, quanto a consultorias para organizações internacionais. Pode ser classificado como um autor-ator atuante na constituição e gestão da infância como domínio de intervenção, se replicarmos o uso que Lugones (2009, p.47) faz da expressão cunhada por Castro Faria. O gestor não só coordenou o evento, como também proferiu palestras em duas mesas e presidiu o encerramento. Uma de suas falas, fundamentada em sua pesquisa de doutorado junto a meninos e meninas em situação de rua, apontou o fenômeno da fuga do lar como causa central do desaparecimento de crianças e adolescentes e, construindo uma cadeia causal, determinou como razões primordiais da fuga do lar “conflitos familiares” e “novos formatos de família”. Meninos e meninas fugiriam de suas casas porque nelas sofrem castigos físicos e psicológicos, e nem eles, nem suas “famílias” têm encontrado instituições preparadas para lhes ajudar a enfrentar essa situação. No quarto capítulo, inscrevo a posição desse gestor no marco mais amplo do posicionamento de gestores diante do desaparecimento de pessoas, refletindo sobre as reações e os embates por ela provocados no evento e em outras reuniões da ReDESAP. Por ora, contudo, a referência à sua fala é útil por indicar o alvo central dos debates levados a cabo no II Encontro Nacional da ReDESAP, para o qual convergiram os temas sistematizados no quadro acima: o que é o desaparecimento de pessoas, quais são suas causas e que posição as “famílias” ocupam na ocorrência dos casos e podem ocupar em sua prevenção. De modo análogo ao que o protesto da ONG Rio de Paz promoveu ao estabelecer relação direta entre desaparecimentos e homicídios, a fala do gestor vinculou desaparecimentos a fugas do lar. Nas palavras dele, o tema de sua apresentação era “conflito familiar como motivo de desaparecimento”, e os fundamentos a partir dos quais ela havia sido preparada eram os resultados de pesquisa junto a crianças e adolescentes que fugiram de casa. Utilizando o termo desaparecimento como sinônimo de fuga do lar, o antropólogo afirmou que o foco de iniciativas de combate e prevenção de casos devem ser as “famílias”, causadoras últimas dos episódios de fuga/desaparecimento. Com isso, posicionou-se com precisão diante do fenômeno do desaparecimento, determinando-lhe uma causa e sugerindo que casos de desaparecimento de crianças e adolescentes são casos de fuga do lar. Se o antropólogo apontou uma definição e uma causa para o fenômeno, já na mesa seguinte um juiz de Direito pautou sua fala na “imprecisão conceitual do termo e os problemas que ela gera”. O juiz propôs que o termo desaparecimento não fosse utilizado como é, afirmando que melhor seria que as instituições que se envolvem com casos 65

particulares empregassem as palavras “busca” e “localização”. Com essa proposta, tornou bastante objetiva e clara a vigilância e hesitação em torno do vocabulário usado para registrar e falar de casos de desaparecimento que eu vinha notando no SDP. Além de defender essa mudança vocabular, o juiz afirmou que “é preciso nos perguntarmos se se trata de competência e responsabilidade da polícia ou se o desaparecimento é uma questão de assistência social”, já que de sua perspectiva a maior parte dos casos dizem respeito a situações de duvidosa configuração de crimes sujeitos a investigação policial. Relembrando as falas do inspetor Fernando e de seus colegas de Setor que até aquele momento eu ouvia no SDP, o evento da ReDESAP pareceu-me funcionar como instância de amplificação de questionamentos como o dos policiais civis que lidam com o desaparecimento, multiplicando agentes, reflexões e posições diante do fenômeno. Na rede, como no SDP, em meio a posições definidas como a do gestor acima citado ou dos inspetores Carlos Ernesto e Telma, o desaparecimento é objeto do mesmo conjunto de interrogações. Vale registrar, porém, que embora suas interrogações ecoassem em alto e bom som no centro de convenções, agentes do SDP não tiveram espaço no evento, nem mesmo na mesa que contou com a apresentação sobre a atuação da Polícia Civil do Rio de Janeiro diante do desaparecimento. Quem proferiu essa fala foi um policial do Departamento de Polícia Especializada (DPE) a quem o inspetor Fernando havia passado as “estatísticas” produzidas no SDP desde 1993. O policial se apresentou como “representante da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente (DPCA), da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), da Divisão Anti-Seqüestro (DAS) e da Delegacia de Homicídios (DH)”. Dessas quatro instituições, duas dedicam-se a ocorrências que necessariamente envolvem crianças e adolescentes, e duas não. Tanto quanto a composição mais geral da ReDESAP, a reunião dessas quatro repartições policiais na fala proferida no evento indica que a inserção escorregadia do desaparecimento de pessoas na área da infância se faz presente também na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Se não é de interesse de membros da ReDESAP inscrever o desaparecimento exclusivamente nesse domínio de intervenção, como indiquei a partir da fala da mãe de desaparecido que preside ONG integrante da rede, ao mesmo tempo esses agentes não apartam totalmente aquele problema dessa seara. Narrado a seguir, o caso de Graziele coloca em cena essa escorregadia inserção do desaparecimento na área da infância e adolescência, permitindo notar como ela aparece na gestão cotidiana de casos em repartições policias. O caso cita a questão, mas não confere a ela importância, nem a trata com acuidade. Graziele fugiu de casa aos 15 anos e seu caso foi 66

arquivado quando ela já havia completado 16. Cerca de um ano e meio depois de fugir de casa, Graziele requereu e obteve uma carteira de identidade. A emissão do documento, que chegou ao conhecimento do policial que cuidou do caso no SDP, engendrou o arquivamento da Sindicância, sobrepondo-se em importância a quaisquer especificidades legais e/ou morais que seus 16 anos de idade pudessem exigir, dadas as “estruturas jurídico-estatais brasileiras [que] vêm sendo modificadas como conseqüência nas novas orientações legais, especialmente introduzidas no país com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)” (Schuch, 2009, p.253). Em seus registros, o policial que cuidou do caso no SDP firmou que Graziele havia atingido a maioridade. O caso de Graziele, dentre muitos episódios qualificados como fuga do lar que encontrei no SDP, é também um dos vários casos depositados nas gavetas do Setor que expõem a relevância atribuída aos documentos no Brasil, mencionada no começo desse capítulo. Além disso, assim como muitos desaparecimentos o caso deve seu desfecho ao fato de que “documentos têm vida simbólica dentro de um determinado Estado” (Peirano, 2006a, p.35), e não só identificam indivíduos e permitem sua contagem como membros de populações, mas também mantêm com eles vínculos que vão além da referencialidade: Reconhecidos e regulados, os papéis estabelecem o indivíduo como único e particular e produzem, no mundo moderno, um máximo de singularização e uma individualização idealmente absoluta. O documento, assim, legaliza e oficializa o cidadão e o torna visível, passível de controle e legítimo para o Estado; o documento faz o cidadão em termos performativos e obrigatórios. (Idem, Ibidem, p.27)

A carteira de identidade de Graziele, fazendo a localização da adolescente, encerrou seu caso de desaparecimento – caso este que, permitindo o uso do termo da mesma forma como o empregara o gestor que coordenava a ReDESAP quando do II Encontro Nacional, traduzia-se também em mais um caso de fuga do lar.

GRAZIELE Dia 7 de fevereiro de 2007, a dona de casa Maria das Graças foi ao Conselho Tutelar de Madureira comunicar que sua filha Graziele, de 15 anos, havia fugido de casa. A conselheira que a atendeu orientou Maria das Graças a procurar uma delegacia e, lá, solicitar o registro do desaparecimento da adolescente. Para auxiliá-la, a conselheira preencheu um formulário de requisição de serviço que Maria da Graça levou consigo à delegacia, solicitando por escrito a feitura do Registro de Ocorrência. 67

Maria das Graças seguiu então para a delegacia, onde a requisição da conselheira foi atendida, depois de apreciada pelo delegado titular. Além de dados pessoais da menina e de sua mãe, apenas o texto abaixo transcrito foi redigido: Relata a comunicante que procurou o Conselho Tutelar 6 - Madureira, para comunicar o desaparecimento de sua filha Graziele Rodrigues, sendo atendida mediante a RS 476 [Requisição de Serviço], que a encaminhou a esta UPAJ [Unidade de Polícia Administrativa e Judiciária], com o referido documento, onde o Dr. Delegado exarou o seguinte despacho: ao plantão para proceder o registro, caso se converta em competência de nossa área. Em 7/2/07.

Cerca de um mês depois, o inspetor que efetuou o registro remeteu Mandado para a casa de Maria das Graças, intimando-a a comparecer à DP “para prestar esclarecimentos sobre o fato em apuração: desaparecimento de Graziele Rodrigues. Trazer retrato da desaparecida.” O mandado estabeleceu data e horário para que Maria das Graças fosse à delegacia, mas ela não compareceu. Alguns dias depois, ficou decidido que uma equipe de policiais iria ao endereço residencial fornecido por Maria das Graças “a fim de que a intimação fosse feita pessoalmente, tendo a equipe concluído que não existe tal rua no bairro, podendo ser esta no alto do Morro da Pedreira, dificultando a entrega da intimação.” Sem que Maria das Graças tivesse sido ouvida, como queria o inspetor que cuidava do caso de sua filha, os documentos relativos ao desaparecimento de Graziele foram encaminhados para o SDP. Poucos dias depois de recebidos no Setor, porém, os papéis foram devolvidos à DP, sob a justificativa de que ninguém havia sido ouvido, e “sem que a foto da desaparecida fosse anexada”. O caso, com isso, voltou à DP onde fora registrado e lá permaneceu até novembro de 2007. No final do mês, foi reencaminhado ao SDP. Em julho de 2008, cerca de um ano e meio depois de iniciado, o caso foi arquivado como Sindicância Solucionada. Por meio de pesquisas em sistemas de informação, o agente do Setor encarregado do caso constatou que um documento de identidade em nome de Graziele foi emitido em junho de 2008. Acompanhada de registro sobre a idade da adolescente, essa informação foi encarada como justificativa para encerrar o caso, assim concluído: Segundo pesquisa realizada no sistema ICA/DETRAN, consta RG (...), de 21/06/08, em nome da menor em referência, residente na Estrada do Camboatá, 4040, Costa Barros, posterior a data do registro de desaparecimento, após atingir maioridade. Face o informado, solicito encerramento das investigações, haja vista que a Sindicância está 45 solucionada.

A mãe de Graziele, diante da fuga da filha, procurou pelo Conselho Tutelar e por uma delegacia de polícia. Ambas repartições produziram documentos sobre a fuga da adolescente, 45

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 015/08 do SDP/DH.

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nomeando-a como desaparecimento. Cerca de trinta dias depois, foi uma equipe da delegacia que procurou por Maria da Graça, mas diante de endereço que poderia “estar no Alto do Morro da Pedreira” ou inexistir, não a localizou. A intenção da equipe de policiais era entregar à mãe de Graziele um terceiro documento, que oficializava o convite para que ela voltasse à delegacia para falar sobre o caso e levasse uma fotografia da menina. Passado mais de um ano da fuga de Graziele e da não localização de sua mãe, uma diligência levada a cabo por um agente do SDP engendrou o arquivamento do caso como Sindicância solucionada. Não que Graziele tivesse sido encontrada pessoalmente por policiais, como os agentes da DP desejavam que tivesse ocorrido à sua mãe para que a ela fosse entregue a intimação. O que justificou o encerramento de seu caso como “solucionado” foi a emissão da carteira de identidade de Graziele, detectada pelo policial que cuidou do caso no SDP por meio de buscas em sistemas de informações e dados disponíveis à Polícia Civil como a Rede INFOSEG. No Brasil, a carteira de identidade, ou RG (abreviatura para Registro Geral), traz em si a impressão digital de seu titular. Conforme analisam os trabalhos de Corrêa (1982), Carrara (1984), Cunha (2002) e Pechman (2002), a consolidação da datiloscopia - tomada de impressões digitais - como método de identificação civil é parte constitutiva do denso e longo percurso histórico que diz respeito, a um só tempo, ao processo de formação do Estado brasileiro e à consolidação de campos do saber entre os quais tem papel preponderante a Antropologia.46 Práticas de identificação como a datiloscopia e aparatos para documentação de identidades individuais são meios através dos quais os Estados nacionais modernos definem quem são (e quem não são) seus cidadãos, conferindo-lhes legibilidade (Caplan & Torpey, 2001; Trouillot, 2001). Condição de possibilidade para o exercício de tarefas constituintes dos Estados, como por exemplo a cobrança de impostos e a composição de exércitos (Scott, 1998; Scott, Theranian & Mathias, 2002), a legibilidade dos indivíduos garantida por técnicas como a datiloscopia engendra efeitos que podem ser encontrados tanto no trecho do trabalho de Carrara (1984) citado a seguir, quanto no caso de Graziele: Se a identificação aparece no contexto histórico de uma sociedade que se complexifica e se industrializa, ao mesmo tempo em que se organiza politicamente reforçando a centralização do poder, por outro lado, enquanto prática, ela proporcionará a continuidade do mesmo processo, pois „garante‟ 46

O sistema datiloscópico Vucetich foi concebido em 1891 na Argentina, tendo a princípio se difundido na América Latina e posteriormente na Europa. No Brasil, primeiro país a adotá-la oficialmente, foi difundido não simplesmente como uma técnica, mas defendido por uma doutrina (Carrara, 1984) e tomou proporções amplas na década de 1930, integrando um projeto de identificação civil obrigatória (Corrêa, 1982). Sobre o método Vucetich, ver também Ruggiero (2001).

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o florescimento do indivíduo em toda a sua impossibilidade, solitário e ausente de qualquer grupo social concreto, liberto de qualquer outro para se determinar enquanto eu, mas nem por isso menos controlado, vigiado e conhecido pelo olhar policial do Estado que se institui. Se ela, enquanto técnica de controle, responde a uma certa acumulação um tanto caótica de homens, ao mesmo tempo é o meio para que essa acumulação continue a passos largos. (Carrara, 1984, p.24)

Para fins de identificação e controle de indivíduos e populações por parte de órgãos e instituições de administração pública estatal, tanto a datiloscopia, quanto a carteira de identidade como a que encerrou o caso de Graziele possibilitam que a existência social de um cidadão independa de sua inserção e presença em grupos e relações sociais determinados. Afinal, o desaparecimento da menina foi solucionado assim que o número do RG, emitido tempos depois que ela fugira de casa, foi detectado no SDP a despeito do fato de nem Graziele, nem sua mãe terem sido fisicamente encontradas. Se retomarmos os casos de Álvaro e Sílvio, narrados em distintos pontos deste capítulo, encontramos indicações da possibilidade de um sujeito existir ao largo do mundo dos documentos, ainda que sob pena de perder a titularidade sobre seus bens e direitos. A partir do caso de Graziele, por sua vez, deparamo-nos com outra face dessa moeda: a possibilidade do mundo dos documentos existir e ser revestido de importância ao largo (ou acima) do mundo dos sujeitos. O arquivamento do caso da menina foi efetuado sem que nenhuma diligência fosse levada a cabo depois da constatação da emissão do RG em seu nome. Com isso, seu desaparecimento foi dado por solucionado sem que qualquer informação sobre onde e com quem ela está ou esteve tenha sido produzida e registrada. Não obstante, é preciso ressalvar que o mundo dos documentos pode incidir de maneiras surpreendentes sobre o mundo dos sujeitos. Se a separação entre eles é uma possibilidade em determinadas situações, por outro lado é bastante improvável que ela resista por muito tempo às exigências burocráticas constitutivas da vida cotidiana no mundo contemporâneo, que, como afirmei anteriormente, é recortado de um lado a outro por fronteiras de Estados-nacionais. Basta relembrarmos a reconstituição do vínculo de filiação entre Álvaro e sua filha Valéria, que ocorreu não apesar, mas em função do desaparecimento do servidor público e dos trâmites burocráticos por ele engendrados. Mas, afinal, o que encerra um caso de desaparecimento, se tomarmos a palavra encerrar nos dois sentidos que ela comporta? O que lhe dá fim, desfecho, término? E o que ele abrange, inclui, compreende? O desaparecimento de Graziele, por exemplo, encerra um episódio de fuga do lar e tem como desfecho a emissão de um documento de identidade. Não 70

obstante, os casos de Álvaro, Daniela, Rodrigo, Sílvio e Geraldo abrangem outros acontecimentos

e

desfechos,

explicitando

a

heterogeneidade

que

caracteriza

o

desaparecimento de pessoas. Essa heterogeneidade, como clareiam reflexões dos policiais do SDP e posições enunciadas no II Encontro Nacional da ReDESAP que busquei recuperar no presente capítulo, leva os agentes sociais que lidam com o desaparecimento a interpelarem uns aos outros (e a si mesmos) acerca do que é esse fenômeno e sobre quem recai a responsabilidade pela gestão, prevenção e combate dos múltiplos casos que acontecem diariamente no Brasil. Nos dois próximos capítulos, detenho-me sobre rotinas (capítulo 2) e artefatos (capítulo 3) engendrados pelo registro, investigação e arquivamento dos casos de desaparecimento que li, transcrevi e analisei a partir dos arquivos do SDP. Meu objetivo é apresentar dimensões e elementos dos casos que atravessam a heterogeneidade do fenômeno e aparecem em muitos dos registros com que tive contato ao longo da pesquisa. Feito isso, retomo o evento da ReDESAP acima referido, entre outros, para refletir sobre a construção do desaparecimento de pessoas, a despeito da heterogeneidade de casos que comporta, com um só “problema social” (capítulo 4).

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Capítulo 2 Salvo melhor juízo: Uma ocorrência policial e suas rotinas

“O desaparecimento é a quebra da rotina. É quando as coisas fogem do hábito, do comum, do cotidiano.” Com essa curta e expressiva frase, Cecília, fundadora de uma associação de familiares de desaparecidos que conheci no II Encontro Nacional da ReDESAP, respondeu a uma pergunta minha, menos dirigida e mais compartilhada com ela no evento. A entrada em campo no SDP e na ReDESAP colocou-me em contato com pessoas inscritas em diversas instituições e com seus questionamentos e perspectivas diante do desaparecimento de pessoas. Em conjunto, esses questionamentos e perspectivas colocam em relevo que o desaparecimento não só não é crime, como também não possui definição que sirva de diretriz a todos aqueles que lidam com casos particulares e debatem sobre o fenômeno em geral. No vácuo de uma conceituação delimitada, múltiplas formas de abordá-lo constituem-se cotidianamente, casos heterogêneos são reunidos e indagações sobre quem deveria ser responsável pelo fenômeno são levantadas. A imprecisão conceitual e ausência de definição legal do que seja desaparecimento foram objeto não só dos debates e embates do II Encontro Nacional da ReDESAP, mas também de outros eventos da rede de que participei. Também no SDP, como venho indicando desde a Introdução, essas questões suscitam conversas e reflexões. Mais do que isso, aliás, no Setor elas propiciam espaços comunicativos relativamente amplos para que policiais definam constantemente, diante de casos particulares, o que é e o que não é desaparecimento. Ao fazêlo, buscam delimitar também o que é e o que não é atribuição da polícia, não por arrolarem tarefas que seriam responsabilidade de policiais, mas por oporem a idéia de “problema da polícia” ao que chamam de “problemas de família” e “problemas de assistência social”. Foi diante desse quadro que, no último dia do II Encontro Nacional da ReDESAP, compartilhei com algumas das pessoas de que me aproximei uma pergunta sobre como, afinal, poderíamos definir o desaparecimento de pessoas. E foi dizendo que o desaparecimento “é quando as coisas fogem do hábito” que Cecília respondeu à minha indagação, apontando algo sugerido também na (parca) literatura disponível sobre o fenômeno. Para Hogben (2006), o desaparecimento, tomado como problema sociológico, propicia reflexões sobre o tempo e a repetição rotineira de atividades como dispositivos que ordenam 72

relações. Analisando apelos e relatos em torno de desaparecimentos divulgados em meios de comunicação britânicos, a autora sustenta que, do ponto de vista daqueles que reportam casos, o desaparecimento é um evento intersticial, saturado de incertezas, que se traduz em espera e inaugura uma temporalidade: o presente estendido. O desaparecimento implica a suspensão do que a autora chama de “calendários privados”, esvaziando de sentido marcos temporais que pautam vidas pessoais e familiares. Ademais, as incertezas que o constituem colonizam com perguntas irrespondíveis o passado e o futuro daqueles que esperam pelo desaparecido. Cecília costuma contar quantos anos, meses e dias se passaram desde que sua filha desapareceu, aos 13 anos, quando voltava de uma festa de aniversário. Na última vez que estive com Cecília, por ocasião não do II, mas do III Encontro Nacional da ReDESAP, na cidade de Boa Vista, fazia 14 anos, 10 meses e 13 dias que sua filha desaparecera. Um dos dias do encontro da rede coincidiu com a data de aniversário de Cecília. Reunidos em torno de um bolo, demos a ela um presente e cantamos “Parabéns pra você”. Cecília é muito querida pelos membros da ReDESAP e desempenha papel central nos debates em torno do desaparecimento que o constroem como problema social, como discuto no capítulo 4. Ainda que lisonjeada e visivelmente contente com a homenagem, depois do “Parabéns pra você” Cecília afirmou, com lágrimas nos olhos, que desde que sua filha desapareceu eventos como seu aniversário nunca mais foram os mesmos. Ela tinha o hábito de comemorá-los, mas depois do desaparecimento da menina não fez mais festas.

2.1 Uma rotina para um fato atípico Muito embora relações sociais demandem atenção continuada aos objetos e eventos mais ordinários da vida cotidiana, segundo Das (2007) certo impulso teórico de cientistas sociais nos conduz freqüentemente a escapar do rotineiro e buscar acontecimentos grandiloqüentes que seriam extraordinários e destoantes da vida cotidiana. Como mostram pesquisas da autora junto a vítimas de episódios de violência coletiva, contudo, eventos críticos estão sempre enraizados no ordinário, ainda que não possam ser capturados em toda sua força pelo repertório de ação e pensamento disponível no cotidiano ou, nos termos dela, pela “gramática do ordinário”. (Das, 2007, p.7) A experiência de um evento crítico e de seus efeitos disruptivos é, ela mesma, rotineira: aquele que passa pelo acontecimento que escapa do ordinário e não cabe em seus marcos de inteligibilidade vive essa experiência

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cotidianamente. Compreender tais eventos e seus desdobramentos, portanto, demanda o que a autora chama de descida (descent) ao ordinário. Desaparecimentos, como indicam as falas de Cecília, são concebidos e vividos como rupturas do cotidiano, muitas vezes dramáticas e sofridas. Falas e posicionamentos de outras mães de desaparecidos que integram associações e ONGs tornam isso patente, como também discuto no capítulo 4, assim como as entrevistas com mães de crianças desaparecidas feitas por Oliveira (2008). Por outro lado, tais quebras de rotina são parte da rotina mesma dessas pessoas, que vivem suas vidas integrando a elas a ausência do desaparecido. O trecho do depoimento de uma mãe atendida por uma das ONGs que fazem parte da ReDESAP, abaixo citado, deixa isso palpável. O desaparecido citado, Quitério, foi encontrado anos depois de ter seu desaparecimento reportado à polícia. O depoimento de sua mãe é parte de um vídeo institucional exibido no II Encontro Nacional da ReDESAP. (...) Ele sumiu e minha vida era chorar e procurar. Eu arrumava o quarto dele todos os dias, eu checava as crianças debaixo das marquises pra ver se ele não estava entre elas. Tudo o que eu fazia era ele que estava me fazendo falta. Uma comida que eu ia pegar, era o Quitério que estava faltando; uma coisa que eu ia comprar, era o Quitério que estava faltando. (...)

Ainda que seja tarefa crucial para uma abordagem mais ampla do fenômeno, não é meu objetivo refletir nesta tese sobre a experiência do desaparecimento e sobre como, enquanto evento crítico, ele tanto implica ruptura do cotidiano, quanto se torna parte da rotina das pessoas envolvidas. Não obstante, o propósito que me guia de certo modo tangencia essa tarefa. Afinal, para compreender o “gestar e gerir” do desaparecimento é imprescindível pensar no cotidiano e, tomando de empréstimo a expressão de Das (2007), descer ao ordinário. O ordinário a que é preciso descer, porém, diz respeito não à rotina das mães, famílias e casas dos desaparecidos, e sim de repartições burocráticas como delegacias e o SDP, às quais pessoas envolvidas em desaparecimentos comparecem para reportá-los. A comunicação dos desaparecimentos nessas repartições, como fica especialmente claro a seguir, no caso de Francisco, de fato os constrói como quebras de rotina. Contudo, a forma como casos são registrados, investigados e arquivados constitui, ela mesma, uma rotina. Procedimentos de documentação, oitivas de comunicantes, remessas de documentos a diferentes instituições e o próprio arquivamento dos casos compõem uma rotina burocrática

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passível de escrutínio e reflexão.47 No presente capítulo, procuro apresentar alguns passos dessa rotina, destacando os procedimentos levados a cabo em delegacias e no SDP chamados pelos policiais do Setor de “trâmites legais”. Com isso, busco tanto refletir sobre as imprecisões oficializadas no decurso dessa rotina, discutindo seus efeitos sobre os casos de desaparecimento, quanto expor os documentos, registros e fragmentos a partir dos quais construí as narrativas que atravessam toda a tese. Ainda que repleta de formalidades, jargões policiais, procedimentos e formas narrativas padronizadas, essa rotina é feita de relações e constrói relações, como vimos no caso de Álvaro. Ademais, essa rotina engendra alguns produtos, a que chamo de artefatos da gestão dos casos. Tais artefatos são os seguintes: conselhos, compromissos, reputações, relações de dependência e controle sobre corpos e territórios. No presente capítulo, debruçome sobre a rotina percorrida por ocorrências de desaparecimento, destacando as formalidades, padrões de registro e formas narrativas presentes nos casos; no próximo, foco os artefatos por ela engendrados. Tanto aquela rotina, quanto estes artefatos consistem nos meios e resultados da concepção e gestão dos desaparecimentos de pessoas guardados nos arquivos do SDP. Comecemos então pelo caso de Francisco. Ao contrariar a rotina que compartilha com sua tia Graça, Francisco teve seu nome registrado em um RO de desaparecimento.

FRANCISCO Francisco, servente de pedreiro de 29 anos, mora na casa de sua tia Graça, em Niterói. Todos os dias, ao final do expediente, Francisco volta para casa a tempo de jantar com Graça. Se por algum contratempo ou mudança de planos não o faz, telefona avisando que não chegará para o jantar. Dia 17 de março de 2007, contrariando o hábito, Francisco não retornou à residência, nem telefonou para sua tia. Graça esperou que ele aparecesse durante os dois dias que se seguiram, mas diante da falta de notícias, decidiu ir à delegacia. Na repartição, Graça afirmou que Francisco “não está acostumado a fazer isso e que ele tem problema psiquiátrico e faz tratamento de saúde.” Disse que no dia seguinte ao desaparecimento procurou por seu sobrinho em alguns hospitais, mas constatou que ele não 47

Termo empregado em todo canto com os mais diversos sentidos, muitos deles pejorativos, burocrático, aqui, não diz respeito senão a uma forma de administração. Segundo a conceituação de Max Weber (1963; 2000), a burocracia é uma das formas que o tipo de dominação racional-legal, característico dos Estados-nacionais modernos, pode tomar. Um quadro administrativo burocrático é constituído por funcionários que ocupam ativamente cargos públicos e seus arquivos de documentos e expedientes - elementos que, vale dizer, servem perfeitamente a uma descrição do SDP ou de qualquer DP que tenha produzido registros sobre os casos de desaparecimentos narrados ao longo deste trabalho. Nos escritórios ou repartições burocráticas, “aplica-se o princípio da documentação dos processos administrativos, mesmo nos casos em que a discussão oral é, na prática, a regra ou até consta no regulamento”. (Weber, 2000, p.143)

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estava, nem esteve em nenhum deles. As falas de Graça deram origem a um Registro de Ocorrência em nome de Francisco, que foi encaminhado ao SDP quinze dias depois. Apenas três dias depois da remessa do documento para o SDP, Graça foi novamente à delegacia, agora pelo motivo inverso do que a levara à repartição da primeira vez: notificar que teve notícias de seu sobrinho e sabia onde ele estava. Como revelam os registros abaixo, Francisco estava trabalhando em outro município durante todo o tempo em que sua tia o considerou desaparecido. (...) Graça Teixeira afirmou que o mesmo encontrava-se trabalhando como biscateiro em obras (servente de pedreiro) no Município de Mangaratiba/RJ, não avisando, alegando que ligava para casa, mas o telefone não funcionou (é da VESPER e é com cartão de crédito), não conseguindo avisá-la; que Francisco continua trabalhando em Mangaratiba; que [Graça] compareceu hoje somente para avisar a esta unidade policial. E mais não disse.

As declarações de Graça foram assim registradas e seguiram, em cópia, para o SDP. Dois meses depois, o caso de Francisco foi arquivado no Setor como Sindicância Solucionada.48

Movida pela preocupação com seu sobrinho, que por mais de dois dias não voltara para casa nem fizera contato, Graça procurou a polícia. Sua ida à delegacia teve como resultado a produção de Registro de Ocorrência e Termo de Declarações e, em seguida, a remessa desses documentos ao SDP, no prazo estipulado pela regulamentação pertinente. Três dias depois da remessa, Graça voltou à DP e comunicou que já sabia onde estava seu sobrinho, o que resultou em outro Termo de Declarações, remetido dias depois para o SDP. No Setor, o RO e os dois Termos foram reunidos, compondo uma Sindicância, e arquivados como caso solucionado. Nem na DP em que o RO foi produzido, nem no SDP diligências além do próprio registro e arquivamento de documentos em nome de Francisco foram levadas a cabo. O caso do servente de pedreiro teve início e fim com o preenchimento de documentos a partir das falas de Graça, apontando para a lógica cartorial vigente em repartições policiais de que falam Paes (2008) e Miranda et al (2010). A partir de pesquisas de campo em delegacias e análises de Registros de Ocorrência, as autoras sustentam que em repartições policiais providências são tomadas mais para que prazos legais e atribuições funcionais sejam cumpridos, e menos para que investigações sejam alimentadas. Isto é, o preenchimento de papéis em DPs ou

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 090/07 do SDP/DH.

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setores como o SDP tem como finalidade primeira o cumprimento da própria obrigação de documentação.49 Não se trata, contudo, de um preenchimento de papéis tautológico, com fim em si mesmo e desprovido de efeitos e especificidades. A lógica cartorial vigente em repartições policiais responde também à necessidade de estabelecer a veracidade do que fica depositado nos documentos. Não que policiais que efetuam registros atribuam confiabilidade às falas de cidadãos que, como Graça, vão a delegacias expressar suas preocupações e solicitar serviços. Antes, a veracidade do que é registrado fundamenta-se na fé pública encarnada pelo policial, que tem a prerrogativa e a obrigação de registrar as solicitações e preocupações dos cidadãos. Em suma, cada policial atesta a veracidade dos registros que faz e assina, mas não do conteúdo das falas dos cidadãos que procuram por seus serviços: Quem tem fé pública nesse sistema cartorial é quem atesta, não quem simplesmente relata. Assim, entendo que a lógica do documento que tem de ser registrado e protocolado precede a lógica do registro como um insumo para a investigação.” (Paes, 2008, p. 175)

Enquanto a fé pública é encarnada pelo policial, o cidadão que vai à repartição também assume seu quinhão de responsabilidade pela veracidade do que resta documentado. O Termo de Declarações produzido a partir das falas de Graça sobre as notícias mais recentes que teve de seu sobrinho é bastante revelador disso, já que, como todo Termo de Declarações produzido em repartições policiais, é encerrado pelo jargão “E mais não disse”, que tem como equivalentes “Nada mais disse” e “Nada mais disse nem lhe foi perguntado”. Essas formas narrativas são utilizadas por policiais para concluir todo Termo de Declarações que registram, dando por finalizadas as falas que ficam depositadas. Indicam, portanto, a prerrogativa dos policiais de interromper os registros e dar-lhes ponto final. Após o “E mais não disse” que o policial emprega para encerrar o conteúdo do Termo, porém, o próprio formulário que dá corpo ao documento traz em si outra forma narrativa, que responsabiliza o cidadão que prestou “declarações” pelo conteúdo dos registros. Impressa no formulário logo acima de espaços destinados a assinaturas, a frase certifica que aquele cidadão, “Nada mais havendo, mandou a Autoridade Policial encerrar o presente 49

Lançado em 1999 e ainda em processo de implementação, o Programa Delegacia Legal, que hoje dá forma a muitas DPs do Rio de Janeiro, vem reestruturando e informatizando os procedimentos e modelos de atuação da Polícia Civil fluminense. O Programa padronizou a documentação de ocorrências e investigações e tornou obrigatório o preenchimento de todos os campos dos documentos cujos formulários encontram-se disponíveis nos computadores das delegacias. Sem que todos os campos dos documentos sejam preenchidos, é impossível que o policial encerre o procedimento. Sobre o Programa Delegacia Legal, ver o relatório de pesquisa de Misse e Paes (2004) e os trabalhos de Miranda et al (2010) e Kant de Lima et al (2008).

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Termo que, lido e achado conforme, assina com o(a) Testemunha.” Com essa frase, o formulário determina que todo cidadão que presta “declarações”, ao encerrar suas falas ou têlas encerradas pelo “Nada mais disse” firmado pelo policial, leia o Termo e, depois de “lido e achado conforme”, o assine juntamente com uma testemunha que também possa assegurar que suas falas foram propriamente registradas. Ler, achar conforme e assinar, inclusive com a presença de testemunha, é responsabilizar-se pelo conteúdo do documento. A partir dos casos de Francisco e, a seguir, de Lúcio, e levando em conta a lógica cartorial vigente nas repartições policiais e a partilha de responsabilidade pela veracidade dos registros entre policiais e cidadãos, descrevo doravante os passos fundamentais da rotina burocrática constitutiva de casos de desaparecimento. Embora essa rotina apresente-se dilatada e acrescida de procedimentos diversos em alguns casos, um conjunto mínimo de medidas dá forma a todo desaparecimento. É esse conjunto que busco descrever, tanto para sobre ele refletir, quanto para expor a matéria prima a partir da qual construí as narrativas do desaparecimento de Francisco e de todos desaparecidos citados ao longo deste trabalho. A rotina fundamental percorrida por todos os casos tem início com a ida de alguém a uma repartição policial. Movidos por sentimentos e preocupações, como Graça, por interesses patrimoniais ou burocráticos diversos, como nos desaparecimentos narrados no capítulo anterior, ou pela decisão de solicitar investigações policiais em torno de um paradeiro, entre tantas outras razões imponderáveis, aqueles que se dirigem a DPs são chamados comunicantes. A ida do comunicante à delegacia pode responder a razões imponderáveis porque, como mostra o caso de Lúcio, é difícil determinar o que distingue uma saída de casa e/ou a falta de notícias sobre alguém que não é reportada à polícia de acontecimentos semelhantes que se tornam casos de desaparecimento. A rotina rompida pelo desaparecimento de uma pessoa pode ser constituída de saídas de casa e/ou intervalos de tempo que se passam sem que a pessoa dê notícias de seu paradeiro para familiares, amigos e conhecidos. Enquanto são consideradas rotineiras, essas saídas e faltas de notícias não são reportadas nem registradas como casos de desaparecimento. Em determinado episódio aparentemente habitual, por motivos que só aparecem nos documentos de forma vaga, a ausência rotineira da pessoa ou de notícias a seu respeito pode ser vista como fora de ordem e levar alguém à delegacia. No caso de Lúcio, conforme ficou registrado, a duração de uma de suas saídas de casa, que se distinguiu das costumeiras por não ter sido “curta”, teria levado seu pai à delegacia e dado início a seu caso.

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LÚCIO Filho de Manoel e Walderez, Lúcio nasceu em 1962, é solteiro e vive com os pais. “Tem problemas mentais” e costuma sair de casa sem aviso e retornar depois de curtos intervalos de tempo. Uma dessas saídas aconteceu em novembro de 2006, mas contrariando o costume, até fevereiro do ano seguinte Lúcio não havia voltado. Foi então que Manoel, depois de procurar pelo filho em diversos hospitais, decidiu ir à delegacia. Isso aconteceu dia 7 de fevereiro de 2007. Na DP próxima a sua residência, Manoel relatou o desaparecimento de Lúcio, que foi registrado como tendo ocorrido entre “01/11/2006 e 07/02/2007”. Manoel descreveu seu filho fisicamente, informou que ele era portador de “problemas mentais” e afirmou não possuir retratos dele, “nem mesmo de criança”. Exatos 30 dias depois do registro de desaparecimento de Lúcio, afirmando que “apesar dos esforços não foi possível localizar o paradeiro do referido nacional até o presente momento” e que o prazo normativo para investigação na DP estava esgotado, o inspetor que tomara as declarações de Manoel solicitou que o caso fosse encaminhado para o SDP. Em dezembro de 2007, passados já nove meses que o registro do caso se encontrava no SDP, Manoel foi pessoalmente ao Setor informar que Lúcio já estava em casa. Do encontro de Manoel com um inspetor, restou registrado um pequeno manuscrito, assinado pelo pai de Lúcio. No manuscrito, lê-se que Lúcio “retornou para casa quatro meses depois de desaparecer” e, mais uma vez, que ele “tem problemas mentais”.50

Diferente do que se passou no caso de Lúcio, é comum que aquele que decide ir à delegacia reportar algo que resta registrado como desaparecimento leve consigo uma fotografia do desaparecido. Caso as falas desse cidadão, como ocorreu a Graça e Manoel, sejam encaradas por um policial como comunicação de desaparecimento, configura-se o marco inicial da rotina de todo caso: a produção de Registro de Ocorrência ao qual é anexada, quando há, fotografia do desaparecido. Assim como muitas ausências e faltas de notícias não conduzem pessoas a delegacias, certamente a ida de muitas outras a repartições policiais não redunda em Registros de Ocorrência e não dá início a casos de desaparecimento. O desaparecimento de Antônio, por exemplo, não foi registrado em duas DPs a que sua ex-mulher Maria se dirigiu antes de chegar ao SDP, onde finalmente foi produzido RO. Embora os arquivos do SDP documentem apenas as solicitações que foram ouvidas e registradas como casos de desaparecimento, portanto, dentro de suas gavetas há anúncios de solicitações que, como quase ocorreu ao desaparecimento de Antônio, não se 50

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 117/07 do SDP/DH.

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tornaram casos. Esses anúncios indicam o que considero o primeiro juízo fundamental emitido por policiais diante de desaparecimentos: a decisão de registrar (ou não) as falas daquele que vai à DP reportar o caso, triando os relatos que ouve na repartição. Feitos os ROs referentes a relatos que não foram descartados nessa triagem, enquanto permanecem na DP os casos têm estatuto de Verificação Preliminar de Informação (VPI). O próprio caso de Antônio traz em si a razão mais freqüentemente evocada por policiais para não registrarem algumas solicitações como casos de desaparecimento: o tempo. Na primeira repartição policial a que Maria se dirigiu para comunicar o desaparecimento do ex-marido, foi informada de que sua comunicação só seria registrada depois de passadas 48hs da última vez que ela esteve com Antônio. O intervalo de dois dias, para o policial, faria com que a ausência ou a falta de notícias de alguém de fato configurasse desaparecimento. Antes de expirado esse prazo, porém, não haveria caso. Comum em delegacias, essa prática é chamada por alguns policiais de “mito das 48hs” ou “mito das 24hs”. Orientados por esse “mito”, muitos agentes alegam que antes de um ou dois dias sem que o comunicante tenha notícias ou encontre o desaparecido não se pode falar, ainda, em desaparecimento. 51 Esperadas ou não as 24 ou 48hs solicitadas em algumas repartições, todo Registro de Ocorrência preenchido a partir das falas de comunicantes, assim como todo Termo de Declarações, é feito em formulário próprio, que “impõe ao policial uma forma de contar o evento” (Paes, 2008, p.172). Em linhas gerais, o formulário de RO oferece espaço para que as pessoas envolvidas na ocorrência sejam identificadas, para que a própria ocorrência seja descrita e para que as diligências realizadas por policiais para esclarecê-la e/ou solucioná-la sejam paulatinamente registradas. O primeiro registro de todo RO, porém, é o título da ocorrência, registrado em negrito no topo do documento. O título reflete o segundo juízo fundamental feito pelo policial que confecciona o RO, depois da decisão primeira de registrar ou não o caso. Ao intitular o RO a partir das falas do comunicante que tem seus relatos registrados, policiais decidem de que se trata o evento (classifica o fato como crime ou não), depois, por meio de um processo de criminalização, procuram impor uma definição legal ao crime, ver qual artigo do Código Penal pode ser atribuído ao fato – em 51

Para combater esse mito, mas apenas diante de casos envolvendo crianças, adolescentes e deficientes, em julho de 2001 foi sancionada pelo então governador do estado do Rio de Janeiro a chamada “Lei Estadual de Busca Imediata”, que “determina à autoridade policial e aos órgãos de Segurança Pública a busca imediata de pessoa desaparecida menor de 16 (dezesseis) anos ou pessoa de qualquer idade portadora de deficiência física, mental e/ou sensorial” (Rio de Janeiro, 2001). Conforme discuto no capítulo 4, lei semelhante, mas válida para todo o território nacional e apenas para desaparecimentos de crianças e adolescentes, foi sancionada pelo presidente da República em dezembro de 2005.

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caso de suspeita ou se estiver sustada a existência do crime, são atribuídas algumas categorias administrativas, tais como remoção de cadáver, fato atípico ou auto de resistência. (Paes, 2008, p. 173)

O título mais comum dado aos ROs de desaparecimento é “Desaparecimento – Desaparecimento (Outros)” e “Fato Atípico – Desaparecimento (Outros)”. No conjunto de casos com que tive contato, encontrei apenas quatro títulos destoantes: “Fato Atípico – Medida Assecuratória de Direito Futuro”, “Desaparecimento de menor”, “Desaparecimento nas águas” e “Desaparecimento de adolescente”.52 No RO e em outros documentos produzidos posteriormente sobre cada caso, o desaparecimento, como toda ocorrência policial, é chamado de “fato”. Em seguida ao título, o policial deve firmar no RO a “data e hora do fato”, bem como o “local” onde ele ocorreu. Além da importância investigativa dessas coordenadas, é imprescindível determinar o “local” do fato para que a responsabilidade pela investigação seja estabelecida. Delegacias são responsáveis por áreas da cidade denominadas “circunscrições”. Depois de efetuado RO em determinada delegacia, caso o “local” da ocorrência esteja na circunscrição de outra DP, a primeira delegacia deve remeter o documento à DP responsável. 53 Não são raros casos de desaparecimento que transitam entre DPs em função do “local” do fato, não só por ser prática comum em repartições policiais, mas também por características do próprio desaparecimento. Afinal, não há como determinar com precisão onde e quando uma pessoa desapareceu, o que dificulta não só o preenchimento do RO, mas também a determinação da responsabilidade pela investigação. Em grande parte dos casos, tanto a “data e hora do fato”, quanto o “local” registrados no RO referem-se à “última vez” que o comunicante do desaparecimento esteve com o desaparecido. É comum também que o “local” registrado seja o endereço residencial do comunicante ou do desaparecido, ou ainda faça referência ao local ao qual, segundo o comunicante, o desaparecido dirigia-se quando desapareceu. Bom exemplo é o caso de Otávio, narrado mais adiante neste capítulo. O jovem dissera a seus pais que iria ao bairro de 52

ROs feitos em delegacias que ainda não foram reestruturados pelo Programa Delegacia Legal e, portanto, não possuem os formulários em computadores, oferecem margem para que diferentes títulos sejam dados às ocorrências. Essas DPs são chamadas por policiais de “delegacias tradicionais”. Nelas, os ROs são preenchidos em máquinas de escrever e não impõem aos policiais a obrigatoriedade de preenchimento de todos os campos, nem o uso de títulos e terminologias pré-determinadas pelo sistema de informática usado nos computadores das “delegacias legais”. Só encontrei títulos diferentes de “Desaparecimento - Desaparecimento (Outros)” e “Fato Atípico – Desaparecimento (Outros)” em ROs confeccionados em delegacias tradicionais. 53 Paes (2008) mostra que tecnologias hoje disponíveis nas “delegacias legais” do Rio de Janeiro, destinadas ao acompanhamento georreferencial das ocorrências registradas, são cotidianamente utilizadas para a determinação de responsabilidades por “circunscrição”, embora sua finalidade seja produzir dados que venham a orientar políticas públicas na área de segurança.

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Copacabana. Buscando traduzir essa informação, o RO de desaparecimento de Otávio firma como “local” do fato o seguinte endereço: “Av. Nossa Senhora de Copacabana, número 0, bairro Copacabana, município Rio de Janeiro, RJ, CEP 00000-000”. Há ainda registros em que o “local” do fato é apenas o nome de um bairro ou favela, e outros que registram referências a instituições, como “próximo do Asilo dos Velhos José Lima, bairro Novo, município Bom Jesus de Itabapoana, RJ”, ou “Rodoviária Novo Rio”, ou ainda “Aeroporto Internacional do Galeão, Ilha do Governador”. Quanto à “data e hora do fato”, o formulário que dá corpo ao RO oferece espaço não para dia e hora específicos, mas para o intervalo de tempo em que a ocorrência teria se passado. Os desaparecimentos são usualmente registrados como tendo ocorrido entre a data e horário aproximados do último encontro entre comunicante e desaparecido e a data e hora em que o RO é confeccionado na DP. Porém, essa é apenas a mais comum das estratégias utilizadas por policiais para preencher esse dado obrigatório. Foi usada, por exemplo, no caso de Francisco, que tem como “local” do fato o endereço residencial de Graça, e no de Lúcio, que desapareceu entre “01/11/2006 e 07/02/2007”. Outra estratégia comumente utilizada pelos policiais é deixar quase vazio o espaço do formulário dedicado a esses dados, fornecendo apenas uma data como “data e hora” da ocorrência. No campo descritivo do RO, sobre o qual falo mais adiante, referências as mais variadas são feitas a “data e hora” do desaparecimento, indicando a imprecisão que leva policiais a adotarem essas estratégias. Encontrei nos arquivos do SDP um caso que teria ocorrido “desde o último telefonema” do desaparecido para o comunicante, outro “na terça-feira, quando foi vista na escola” e, lembrando o desaparecimento de Geraldo, um terceiro que teve como marco a data de vencimento da primeira (de muitas) pensão que não foi recebida pelo desaparecido. Determinado título, data, horário e local do “fato”, cabe ao policial preencher o campo do documento intitulado “Envolvidos”. Trata-se do espaço do RO destinado à identificação de pessoas relacionadas à ocorrência. Em casos de desaparecimento, essas pessoas são o comunicante, o desaparecido e, eventualmente, terceiros citados pelo comunicante. O comunicante é qualificado no próprio formulário como “Testemunha”, e o desaparecido como “Vítima” - embora, como vimos no caso de Rodrigo, haja melindre e hesitação entre policiais no uso desse último termo para falar de desaparecidos. Terceiros citados pelo comunicante que sejam identificados no RO são também qualificados como “Testemunhas”. Sobre cada um dos “Envolvidos” são registrados: número de carteira de identidade, data de nascimento, naturalidade, endereço residencial, local de trabalho, telefones, filiação, estado civil, sexo, 82

cor, nacionalidade e ocupação principal. Em alguns casos, “Envolvidos” têm registrado a seu respeito também números de outros documentos, como CPF e carteira de trabalho, e o vínculo que mantêm entre si. Encontrei muitos casos em que, ao lado do nome do comunicante, registrou-se, freqüentemente à mão, que aquela “Testemunha” é mãe, pai, tio, filho, marido ou esposa do desaparecido, entre outros tipos de vínculo como vizinho, companheiro e amigo. É comum que nem todos os campos para preenchimento com dados sobre os “Envolvidos” contenham efetivamente a informação que demandam. Policiais empregam os termos “ignorado”, “não informado” e/ou “desconhecido” para preencher esses campos, ou mesmo optam por deixá-los em branco quando possível. Se, além de pessoas, há “Bens Envolvidos” na ocorrência – por exemplo o carro ou documentos do desaparecido, que o comunicante entende terem desaparecido também –, a listagem desses “Bens” é feita abaixo da identificação dos “Envolvidos”. Além de dados “ignorados” ou “não informados”, que tornam precária a identificação dos “Envolvidos”, e das múltiplas estratégias usadas por policiais para lidar com a difícil determinação da data, hora e local do desaparecimento, a própria intitulação do “fato” como “Fato Atípico - Desaparecimento (Outros)” é mais complexa do que pode parecer a princípio, quando vista, em negrito, anunciada no topo do RO. Ao longo da rotina burocrática que sigo descrevendo, em muitos momentos e documentos preenchidos sobre o caso policiais questionam sua classificação como desaparecimento. Se relembrarmos o caso de Daniela, encontramos bom exemplo. No último documento produzido sobre o caso, intitulado no RO como “Fato Atípico - Desaparecimento (Outros)” e arquivado no SDP como todos os casos de desaparecimento de que falo nessa tese, um policial do SDP afirmou que “o fato em questão não trata de desaparecimento, uma vez que deve ter ocorrido algum problema familiar”. Não são raros registros firmados no decorrer dos casos que negam sua classificação como desaparecimentos, tratando-os como “fugas”, “separações” ou “problemas de família”. Com isso, tanto as informações iniciais obrigatoriamente registradas no começo de todo caso, quanto seu próprio título são acompanhados de questionamentos, contradições e imprecisões. Depois de intitular a ocorrência, registrar onde e quando ela se passou e identificar os “Envolvidos”, o policial deve preencher um campo descritivo, desprovido de dados a ser respondidos, intitulado “Dinâmica do fato”. Para Miranda et al (2010), “essa é a segunda reconstrução do fato na lógica institucional policial, a primeira é enquadrar o fato em uma classificação penal ou administrativa.” (Miranda, et al, 2010, p. 129). A meu ver, contudo, esse é o terceiro juízo fundamental feito pelo policial diante do caso, já que o primeiro é a 83

decisão de registrar o fato, oficializando-o (ou não) como ocorrência policial; a segunda, enquadrá-lo em classificação específica, dando-lhe um título; e a terceira, por fim, sua descrição como um fato que pode ser resumido no campo do formulário destinado a esse fim. Esses três juízos são também exercícios de triagem, por meio dos quais o policial paulatinamente delimita o universo de solicitações com que terá que lidar. Nesse sentido, inicialmente o agente determina o que é (e o que não é) ocorrência policial, em seguida designa a ocorrência com o título específico que a defina e, por fim, seleciona fatos e relatos que julga relevantes e suficientes para descrevê-la. A descrição fornecida como “Dinâmica do fato” deriva diretamente das falas dos comunicantes, como fica claro no caso de Francisco. Muitas vezes essa descrição coincide integralmente com o que é registrado a partir das falas do comunicante em Termo de Declarações. A descrição do “fato”, portanto, pode coincidir literalmente com o que o comunicante relata ao policial que primeiro o recebeu na DP. O mais comum, contudo, é que a “Dinâmica do fato” seja uma forma sintética de apresentar seleções de trechos das declarações do comunicante. Termos de Declarações não são produzidos a partir das falas de comunicantes em todos os casos, embora em muitos acompanhem a produção do RO. No caso de Francisco, como já afirmado, a primeira ida de Graça à delegacia deu origem a um Termo de Declarações e ao RO. O conteúdo do Termo, do qual deriva a descrição resumida registrada como “Dinâmica do Fato”, é o seguinte: Disse que seu sobrinho saiu de casa no dia 17/03/2007 com destino ao Município de Mesquita para trabalhar e até a data de hoje não retornou nem telefonou, ele também tem problema psiquiátrico e faz tratamento de saúde. Ela procurou por ele no HUAP [Hospital Universitário Antônio Pedro] e foi informado que o mesmo não estava, e foi no CPN [Hospital Municipal Carlos Tortelli] onde o mesmo já foi internado e não estava lá, e informou ainda que ele quando sai do trabalho vai direto para casa para a janta ou telefona, e disse que próximo a sua residência não teve nenhum vizinho que o visse.

Já sua versão sintética, registrada no RO como “Dinâmica do fato”, é a seguinte: Relata a comunicante que seu sobrinho saiu de casa no dia 17/03/2007 com destino ao bairro de Mesquita para trabalhar até a data de hoje não retornou a sua residência e nem telefonou e o mesmo não está acostumado a fazer isso e ainda ele tem problema psiquiátrico e faz tratamento.

Produzido o RO, marco inicial que, em alguns casos, é acompanhado de Termo de Declarações que registra as falas do comunicante, todo caso de desaparecimento passa para 84

um segundo momento, agora sem a presença do comunicante junto ao policial. A despeito dessa saída de cena nas repartições policiais, é comum que comunicantes sigam interagindo com repartições burocráticas e fazendo buscas pelo desaparecido, como discuto no capítulo 3. Há registros de que comunicantes fazem visitas periódicas ao IML, a hospitais públicos e a locais em que acreditam poder encontrar o desaparecido ou obter notícias. Em casos que envolvem crianças e adolescentes, comunicantes dirigem-se também a Conselhos Tutelares e ao “SOS Criança Desaparecida” da FIA/RJ, muitas vezes por sugestão dos próprios policiais que os atenderam em DPs. No “SOS Criança Desaparecida”, comunicantes relatam os casos, recebem atendimento e, quando munidos de fotografia do desaparecido, recebem também cartazes para distribuição e divulgação do retrato, que neles é impresso em formato ampliado. Além da foto e do telefone do “SOS Criança Desaparecida”, esses cartazes contêm nome e data de nascimento do desaparecido e, em alguns casos, números de telefone para que qualquer pessoa que tenha notícias sobre ele faça contato com o comunicante. Na delegacia, paralelamente às medidas tomadas pelo comunicante fora de repartições policiais, o policial encarregado do caso leva adiante algumas diligências, a partir não só de suas deliberações, mas também guiado por Despachos redigidos pelo delegado titular da DP que, por “circunscrição”, fica responsável pelo caso. Nos termos utilizados em delegacias, delegados comunicam-se com os agentes exarando Despachos em que determinam por escrito que providências devem ser tomadas diante de cada ocorrência investigada nas DPs em que são autoridade máxima. No caso de Francisco, o policial encarregado consultou as bases de dados a que tem acesso, diligência que lhe permitiu confirmar os dados sobre o servente de pedreiro já preenchidos no RO, além de obter a informação de que ele “não possui anotações criminais”. Ademais, recebeu Despacho do delegado da DP, solicitando que fossem tomadas as providências assim listadas: 1. Ao GI [Grupo de Investigação] para, em 15 dias, diligenciar, visando a localizar o paradeiro da pessoa desaparecida, oferecendo ao final informação das investigações realizadas; 2. Ao final do prazo, não havendo solução, a investigação deverá vir a ser encaminhada para a SDP/DH; 3. Seja ouvida a comunicante, minudentemente, ocasião em que deverá descrever os trajes da pessoa desaparecida por ocasião do fato. 4. Outras medidas indispensáveis à instrução do procedimento.

As diligências mais usualmente realizadas depois da feitura do RO são consultas a bases de dados, como feito no caso de Francisco, e oitivas de comunicantes e de outras pessoas arroladas nos ROs como “Envolvidos”, conforme solicitado pelo delegado no terceiro 85

item de seu Despacho. No desaparecimento de Francisco, o policial responsável não realizou outra oitiva de Graça, e apenas produziu Relatório de “Informação sobre investigação preliminar” com informações não sobre Francisco e seu paradeiro, e sim sobre as diligências por ele realizadas (e mal sucedidas). Miranda et al (2010) sustentam que, na descrição de procedimentos e não de informações sobre os casos, encontra-se mais um indício da lógica cartorial vigente em repartições policiais. De forma breve, no Relatório do policial sobre o desaparecimento de Francisco, o agente sugeriu que o caso fosse remetido ao SDP “salvo melhor juízo” – isto é, desde que o delegado não apresentasse outra visão do caso ou outra diretriz. O jargão “Salvo melhor juízo”, normalmente abreviado como “s.m.j,”, aparece em todos os Relatórios emitidos por policiais em DPs e no SDP. Chamados por policiais de “Informação”, Relatórios de “Informação sobre investigação preliminar” ou “Informação sobre investigação definitiva” são dirigidos aos delegados das DPs ou da DH quando os policiais encarregados dos casos julgam que algum desfecho deve lhes ser dado – mesmo que esse desfecho consista não no encerramento do caso, mas em seu envio para outra repartição policial. Normalmente, nas DPs os Relatórios sugerem que os casos sejam remetidos ao SDP; já no SDP, solicitam seu arquivamento. Caso concordem com a sugestão ou solicitação apresentada no Relatório, delegados exaram Despachos ordenando que a sugestão seja efetivada. O Relatório do caso de Francisco, acatado pelo delegado, diz: Dr. Delegado, Informo que por diversas vezes tentamos contato, e inclusive efetuamos diversas diligências com o objetivo de localizar o desaparecido, porém não logrando êxito na empreitada, face ao exposto sugiro s.m.j. a remessa do feito ao SDP/DH para as devidas pendências.

Alguns casos contêm Relatórios mais extensos, que descrevem o caso, qualificam os “Envolvidos” e detalham diligências levadas a cabo nas delegacias, compilando informações registradas em ROs, Termos de Declarações, Despachos e outros documentos produzidos acerca do caso, mas é usual que o conteúdo desses documentos seja curto e contenha seleções enxutas de informações. A remessa do caso para o SDP não necessariamente significa seu encerramento na DP. Graça, por exemplo, retornou à repartição a que comunicara o desparecimento de Francisco três dias depois que o caso já havia sido encaminhado ao SDP, demandando que o policial que a atendeu desse continuidade ao “feito” e registrasse suas falas. Por isso, diante de sua 86

presença na repartição, o policial registrou novo Termo de Declarações, onde se encontram, em discurso indireto, os relatos de Graça sobre as notícias mais recentes que teve de seu sobrinho. O Termo de Declarações, depois de “lido e achado conforme” e assinado por Graça, foi remetido ao SDP. No Setor, seu conteúdo justificou a última diligência levada a cabo no caso de Francisco: seu arquivamento como Sindicância Solucionada. Vale ressaltar que a ida de Graça à DP para relatar que seu sobrinho lhe dera notícias foi registrada como anúncio do desfecho do caso, pois o que restou registrado no Termo de Declarações remetido ao SDP motivou seu arquivamento. Contudo, tanto quanto adjetivei como imponderáveis as razões que determinam que tipo de quebra de rotina é levada à repartição policial e registrada como desaparecimento, nos ares de desfecho que revestem as falas de Graça há também algo de imponderável. Graça não encontrara com Francisco, não estivera em Mangaratiba, onde o desaparecido disse estar, e não o recebera novamente em casa para seus jantares habituais. Todavia, mesmo que a rotina dos dois ainda não tivesse sido restaurada, a notícia que teve dele foi encarada por Graça como fim do desaparecimento de seu sobrinho, o que foi referendado nos registros do caso. Há casos, a um só tempo semelhantes e distintos do de Francisco, em que o comunicante tem notícias do desaparecido, mas não considera que essas notícias impliquem o fim do desaparecimento. Saber onde o desaparecido está, localizando-o, sem que isso implique o retorno dele ao local de onde desaparecera, em alguns casos – mas só em alguns é considerado continuação do desaparecimento. Esses casos indicam que, para alguns “Envolvidos”, somente o retorno do desaparecido para o local ou círculo social de onde ele desaparecera encerra o caso. Entre policias, contudo, a praxe é considerar o caso solucionado a partir da localização do desaparecido, independente de haver retorno ou não. Caracterizam a localização do desaparecido, do ponto de vista dos policiais: “declarações” de Envolvidos que afirmem que o desaparecido retomou contato ou retornou para casa, como no caso de Francisco; emissão de documentos em datas posteriores ao desaparecimento, como vimos no caso de Graziele; constatação da presença do desaparecido em alguma repartição pública; ou a presença do desaparecido na própria DP em que o caso foi registrado. No capítulo 3, reflito sobre essa questão. Por ora, vale ressaltar que são freqüentes casos em que o desaparecido retorna ao local e ao círculo social de que havia desaparecido e comunicantes não só relatam esse retorno, mas também buscam dar garantias dele à polícia, levando consigo documentos de identificação do desaparecido ou sublinhando a volta da rotina rompida pelo desaparecimento. São comuns 87

relatos como “retornou e já está freqüentando a escola”, “voltou à casa e ao trabalho” e “já retomou contato”. São igualmente comuns relatos de que o desaparecido “está bem”, “está em bom estado de saúde” e “com aparência de estar bem cuidado”, que pretendem assegurar não só o retorno do desaparecido, mas também seu bem-estar no local, no círculo social e na rotina que retomou. Ao mesmo tempo, porém, é igualmente comum que comunicantes não retornem às DPs para relatar o retorno do desaparecido. São muitos os casos remetidos para o SDP e considerados “em andamento” que, depois de telefonema dado pelo policial encarregado, revelam estar solucionados há tempos para os comunicantes, embora o retorno ou a localização do desaparecido não tenha sido notificada à polícia. Essas múltiplas possibilidades de localização e retorno do desaparecido fazem com que o encerramento dos casos seja tão variado e repleto de imprecisões e imponderabilidades quanto seu início. Embora não necessariamente implique seu encerramento na DP, e a despeito de tantas imprecisões, a remessa do caso para o SDP engendra um novo começo que é, também, continuidade. Ao ser recebido na Delegacia de Homicídios, antes mesmo de ser encaminhado para a sala 709, onde fica o SDP, a VPI oriunda das DPs dá origem a outro Registro de Ocorrência. Nesse RO, feito na sala do Plantão da Delegacia de Homicídios, são copiados os dados dos “Envolvidos” contidos no primeiro RO do caso. Contudo, quem figura como comunicante do fato não é mais a pessoa que se dirigira à DP, e sim o delegado titular daquela repartição, que decidiu em Despacho acatar a sugestão de um policial e remeter o caso ao SDP. Além disso, nesse documento consta como “Dinâmica do fato” não a descrição do desaparecimento a partir da fala do comunicante, como no primeiro RO, e sim um parágrafo bastante padronizado que dá poucos dados sobre o caso e prioriza três registros: a delegacia de origem, a relação entre o primeiro comunicante e o desaparecido, e o título da ocorrência. No caso de Francisco, é também priorizado o registro de seus “problemas mentais”: Trata-se de expediente oriundo da 79ª DP, sobre DESAPARECIMENTO do nacional Francisco, onde segundo informação da comunicante, Sra. Graça, tia de Francisco, o mesmo havia saído de casa no dia 17/03 para trabalhar e não retornou e nem telefonou, e que Francisco tem problemas mentais e faz tratamento de saúde.

Depois de confeccionado pela equipe do Plantão, o Registro de Ocorrência passa pela apreciação de um dos delegados da DH, que exara Despacho no próprio RO, à mão, oficializando a instauração de Sindicância e a encaminhando ao SDP. Esse Despacho permite a circulação dos documentos entre as salas da Delegacia de Homicídios. 88

No SDP, a Sindicância é considerada “em andamento” desde o momento em que é recebida na sala 709 até seu arquivamento, o que perdura por períodos de tempo que variam caso a caso. Encontrei casos arquivados menos de um mês depois de recebidos no SDP, mas também li e transcrevi outros em que três, quatro e até cinco anos se passaram entre seu recebimento e arquivamento. No decurso desse intervalo temporal de duração variada, dois tipos de diligências são usualmente empreendidos pelos agentes do SDP: buscas a partir do nome do desaparecido em sistemas de informação e bases de dados que reúnem registros de órgãos públicos, repetindo procedimentos também comumente levados a cabo nas DPs; e remessas de Ofícios para instituições diversas, solicitando que buscas semelhantes sejam feitas em seus arquivos. Em alguns casos, oitivas de comunicantes e de outros “Envolvidos” também são feitas, mediante Mandados de Intimação enviados a essas pessoas por telegrama ou convites feitos pelo telefone por policiais. Os Ofícios remetidos pelos agentes do SDP a instituições que possam contribuir para as investigações contêm um texto padrão, que independe da instituição de destino. Conforme transcrito abaixo, sucede o texto campos para preenchimento com uma seleção de dados sobre o desaparecido e o desaparecimento. Ao preenchê-los, policiais repassam a imprecisão registrada nos casos para as instituições que recebem os Ofícios: no campo “Local do Desaparecimento” registram uma área de circunscrição de delegacia, embora “circunscrições” desempenhem função importante em repartições policiais, mas não digam muito para outras instituições; já em “Data do Desaparecimento”, empregam aproximações como as feitas nos ROs. O exemplo citado abaixo foi retirado do caso de Justo, narrado mais adiante: Pelo presente solicitamos que seja informado a este Serviço de Descoberta de Paradeiros, com a maior brevidade possível, o que consta registrado nos arquivos deste órgão/instituição, sobre a pessoa abaixo relacionada. Outrossim, esclarecemos que trata-se de pessoa desaparecida e que a presente solicitação visa instruir a Sindicância em referência. Nome: Justo Silva Filiação: Pedro Silva e Maria da Silva Nascimento: 14/05/1946 Identidade: XXXXX Data do Desaparecimento: 27/08/2003 Local do Desaparecimento: área da 159ª DP

O rol das instituições que recebem os Ofícios em cada caso retrata hipóteses aventadas pelos agentes do SDP quanto ao paradeiro do desaparecido. Os destinatários dos Ofícios variam caso a caso, mas três instituições são consultadas em todos os desaparecimentos que contam com essa diligência: o IML, o IFP e a Santa Casa de Misericórdia, cujos arquivos 89

podem conter registros de óbito e/ou sepultamento em nome do desaparecido. A morte, portanto, é uma hipótese de desfecho considerada válida em todo desaparecimento. Em casos como o de Francisco e de Lúcio, em que há registros de que o desaparecido possui “problemas mentais”, Ofícios são usualmente remetidos a hospitais, ao Instituto Pinel e à Fundação Leão XIII. Ao remeter Ofícios para essas instituições, policiais apostam na possibilidade do desaparecido ter sido internado ou atendido em instituições de saúde ou assistência social. Hospitais são consultados na maior parte dos casos, e não só nos que enredam alegados “problemas mentais”. Porém, o conjunto de hospitais consultados em cada caso varia de acordo com o impreciso “local” do fato registrado do RO da DP e repetido no RO da DH. Assim como Graça procurou por Francisco em instituições que ficam em Niterói, onde ambos moram, agentes do SDP optam por consultar hospitais próximos do “local” do desaparecimento. Além de hospitais, são comuns a muitos casos consultas a órgãos que controlam carceragens e penitenciárias e, em casos de crianças e adolescentes, ao Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE). Ofícios remetidos a essas instituições indicam que, entre os policiais, levanta-se usualmente a hipótese do desaparecido ter cometido algum crime ou infração e estar encarcerado ou cumprindo medidas sócioeducativas. O desaparecimento de Otávio, narrado a seguir, é um dos casos arquivados no SDP em que essa hipótese foi confirmada. Todavia, a informação de que Otávio estava encarcerado não foi obtida via Ofício, e sim através de comunicação entre o SDP e DP em que o desaparecimento foi comunicado. Esse traço do caso de Otávio indica que, no decurso da rotina burocrática percorrida pelos casos, SDP e DP podem fazer contato e trocar informações sobre os desaparecimentos. Outra especificidade do caso de Otávio indica um segundo aspecto da rotina burocrática dos casos de desaparecimento que se faz presente desde seu início nas DPs, passando por sua trajetória no SDP e comparecendo em falas de policiais como as que registrei no capítulo anterior: a desconfiança entre comunicantes e policiais. A inspetora Telma compartilhou comigo algumas vezes seu entendimento de que “as famílias mentem” e “as famílias se contradizem”, afirmando que a troca de informações sobre casos entre comunicantes e policiais se faz em cenário de desconfiança, sobre o qual reflito no capítulo 3. Como aparece no caso de Otávio, comunicantes podem relatar a policiais fatos que diligências levadas a cabo nas delegacias venham a contradizer, e vice-versa. Conforme relatou a mãe de Otávio, ele saíra de casa “rumo a Copacabana” e nunca mais dera notícias. O pai do jovem 90

teria procurado por ele no IML, em hospitais e na Polinter, mas não obtivera sucesso. Segundo as buscas de policiais, contudo, o jovem havia sido preso por cometer um crime em Copacabana, informação que uma busca na Polinter, que administra as carceragens do estado, poderia confirmar. Não é possível, nem útil, determinar se a mãe de Otávio mentiu para o policial. Não obstante, é importante ressaltar que essa é uma possibilidade que ronda a rotina dos casos de desaparecimento e as contradições entre registros firmados em cada caso.

OTÁVIO Filho de Shirley e Tito, Otávio é desempregado e, segundo sua mãe, “não tem residência fixa”. Em outubro de 2006, aos 19 anos de idade, Otávio teria saído da casa de seus pais, em São João de Meriti, “rumo ao bairro de Copacabana”. Desde então, nem Shirley, nem Tito souberam dizer precisamente onde seu filho poderia ser encontrado. Embora Otávio tenha telefonado para a casa dos pais algumas vezes, esses contatos foram rareando até que cessaram. Shirley e Tito decidiram então procurar por ele em alguns órgãos públicos: Tito foi à Polinter, “e lá informaram que Otávio não teria sido preso”, ao passo que Shirley foi ao IML e ao IFP. No IML, não encontrou nenhum corpo e/ou registro que dissesse respeito à Otávio; no IFP, foi orientada a procurar uma DP. Seguindo essa orientação, dia 8 de janeiro de 2007, Shirley foi à 13ª DP, em Copacabana. Comunicou ao inspetor o desaparecimento de Otávio, que foi registrado como tendo acontecido na data de 30 de outubro de 2006, “na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, número 0, bairro Copacabana, município Rio de Janeiro, RJ, CEP 00000-000”. Passados exatos 15 dias da feitura do RO, a 13ª DP encaminhou o caso para o SDP. No Setor, pesquisas em sistemas de informação revelaram que Otávio tinha “uma anotação criminal” e que seu nome constava, até aquela data, em cinco diferentes Registros de Ocorrência além do efetuado a partir da comunicação de Shirley. A “anotação criminal” refere-se à prisão em flagrante sofrida por Otávio, que foi autor de roubo, ocorrido no bairro de Copacabana, dia 2 de setembro de 2006. Os ROs, por sua vez, assim se distribuem: três efetuados em 2003, em que Otávio figura como “adolescente infrator”, sendo dois por “tráfico de entorpecentes” e um por “porte de entorpecentes para uso”; um RO de desaparecimento, também registrado em 2003; e, por fim, o RO de roubo pelo qual Otávio foi preso em flagrante. Depois de obter essas informações, o inspetor do Setor que ficou responsável pelo caso sugeriu seu arquivamento como solucionado, sugestão acatada pelo Delegado da DH em março de 2007. A justificativa para o arquivamento encontra-se assim registrada: Que este Sindicante ao consultar o sistema de identificação notou que a vítima tinha uma anotação criminal, ao verificar viu que se tratava de uma prisão em flagrante no Artigo 157 do CP, datado de 02/09/06 na 12ª DP –

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Copacabana, em contato com o Controle de Presos, este sindicante foi informado que o mesmo continua detido na Casa de Custódia de Magé.54

Retomemos a descrição da rotina burocrática dos casos, agora considerando não só a imprecisão que os ronda, mas também a possibilidade de contradições perpassarem seus registros. Os órgãos a que são remetidos Ofícios respondem ao SDP com documentos tão padronizados quanto os próprios Ofícios que recebem. A leitura dessas respostas deixa a nítida sensação de que as instituições têm, normalmente em seus departamentos de registro e arquivo, formulários prontos, cuja finalidade é justamente preencher esse momento da rotina burocrática dos desaparecimentos. Todas as (curtas) repostas aos Ofícios, à medida que chegam ao Setor, são anexadas aos documentos relativos a cada caso. Não tive contato com nenhum caso em que a resposta das instituições fosse distinta de “nada consta”, “não encontramos em nossos arquivos informações sobre a pessoa em referência”, “não há registro” e negativas semelhantes. Encontrei apenas repostas do IFP que destoassem dessa lista de negativas, não por conterem informações sobre o paradeiro do desaparecido, mas por registrarem dados sobre seu documento de identidade e, quando há, suas “anotações criminais”. Caso as buscas em sistemas de informações, os Ofícios remetidos a instituições, eventuais oitivas de “Envolvidos”, comunicações com as DPs ou, durante essas diligências, caso o comunicante ou o próprio desaparecido notifiquem ao SDP seu retorno ou localização, a Sindicância é arquivada como Solucionada. Para que isso seja feito, porém, o policial encarregado do caso deve antes redigir Relatório de “Informação sobre investigação definitivo” resumindo a ocorrência e sugerindo seu arquivamento ao delegado. Relatórios de “Informação sobre investigação definitivo”, como ocorre nas DPs, são lidos por um dos delegados da DH, que avaliam se o arquivamento sugerido deve ser efetuado ou se fazem “melhor juízo” sobre como proceder. A redação dos Relatórios varia pouco, e seus conteúdos são bastante padronizados. Há, contudo, exceções - como veremos no caso de Elói, narrado ao final desse capítulo. Independentemente desses textos padronizados, que pouco refletem as especificidades dos casos, não encontrei nenhum caso em que o delegado não acatasse a sugestão de arquivamento feito pelo policial encarregado. Sindicâncias que não têm esse destino permanecem “em andamento” mesmo depois de feitas consultas em bases de dados, oitivas de “Envolvidos”, emissão de Ofícios, recebimento de respostas de instituições e contatos com as DPs. Isso significa que essas Sindicâncias 54

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 022/07 do SDP/DH.

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permanecem à vista dos policiais, fora das gavetas do SDP, mesmo que nenhuma diligência em relação a elas seja levada a cabo durante todo o tempo em que estão “em andamento”. Em determinadas semanas do ano, quando julgam que devem dar desfecho às várias Sindicâncias que progressivamente se empilham sobre suas mesas e no interior dos armários, os agentes do Setor redigem Relatórios de “Informação sobre investigação” em que sugerem o arquivamento de vários casos como Sindicâncias Suspensas. Além de tê-la presenciado algumas vezes ao longo da pesquisa, encontrei muitos Relatórios redigidos na mesma data por um mesmo policial, indicando essa prática de solicitação de arquivamento de Sindicâncias Suspensas em conjunto. É usual que essa prática aconteça semanas antes da chamada “Correição” – procedimento efetuado três vezes ao ano na DH e em todas as delegacias de polícia, no curso do qual servidores da Corregedoria da Polícia Civil auditam e conferem os procedimentos efetuados nas repartições. Sindicâncias são Suspensas também depois que, como vimos no caso de Álvaro, Certidões são expedidas para que comunicantes e outros “Envolvidos” dêem prosseguimento a trâmites burocráticos em outros órgãos e repartições em que haja processos (das mais variadas naturezas) envolvendo o desaparecido. Como vimos, casos como o de Álvaro são movidos não só por interesses na descoberta do paradeiro do desaparecido, mas também em documentos que atestem seu desaparecimento. Vale então citar o texto de uma Certidão. A aqui transcrita traz dados de Marília, desaparecida que protagoniza um caso que narro mais adiante, ainda neste capítulo. O texto do documento reúne formas narrativas e aspectos da rotina burocrática dos casos que apresentei até aqui, como a fé pública encarnada pelo policial, o impreciso “local” do fato, e a referência à remessa de Ofícios para consulta a instituições e a suas repostas negativas: CERTIDÃO CERTIFICO e DOU FÉ que consta instaurada nesta Delegacia Especializada a Sindicância no. XXX/2005 para apurar o desaparecimento de MARÍLIA, onde CARMEN TEIXEIRA, RG XXXX/IFP, residente na Rua Alice, Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ, na qualidade de Procuradora, REQUER que seja passado por CERTIDÃO, para fins de prova junto à Justiça, o que consta com referência ao desaparecimento de MARÍLIA LOPES, desaparecida da circunscrição da 9ª Delegacia Policial, sendo o registro efetuado nesta Delegacia de Homicídios sob o número de ocorrência RO XXXX, que originou a Sindicância XXX/05 no Setor de Descoberta de Paradeiros. O que consta é a realização de diversas pesquisas junto aos registros de órgãos públicos competentes, bem como, diligências e oitivas de testemunhas na tentativa de localizar o paradeiro da cidadã desaparecida, sendo certo que, até a presente data, não foi logrado êxito quanto à localização do paradeiro da desaparecida, MARÍLIA LOPES, razão pela qual este SDP e os demais órgãos públicos continuarão empenhados na sua 93

busca. Dada e passada aos dois dias do mês de outubro de dois mil e oito. Eu, oficial de cartório, lavrei e assino. 55

Embora tenham sido expedidas em muitos casos e possam ser encontradas em cópias anexadas a muitas das Sindicâncias arquivadas no Setor, logo no começo da pesquisa o inspetor Fernando advertiu-me de que Certidões eram documentos que “não deveriam ser feitos no SDP”. Segundo ele, policiais não possuem “essa atribuição, e o correto é que a pessoa procure a Defensoria Pública”, mas como muitas vezes comunicantes solicitavam dele e de seus colegas esse tipo de documento, achava por bem atender às solicitações e prestar esse serviço. “Emitimos pra eles resolverem logo suas questões”, me disse Fernando certa vez. Em agosto de 2009, o próprio Fernando instruiu aos policiais do SDP que a partir daquele dia Certidões não seriam mais expedidas no Setor. Caso comunicantes os procurassem com esse fim, “a ordem é encaminhar para a Defensoria.” Depois de arquivadas, Sindicâncias Solucionadas e Suspensas só são consultadas se e quando novos casos que chegam ao SDP enredam pessoas envolvidas em casos já arquivados. Não são raros casos protagonizados por um mesmo desaparecido, razão pela qual há, no SDP, uma classificação para as Sindicâncias que têm o mesmo nome como “vítima” - as Sindicâncias Juntadas. Com exceção dos momentos em que reúnem Sindicâncias Juntadas, são esporádicas as ocasiões em que policiais abrem as gavetas de arquivo do Setor.

2.2 De que é feito um enigma No decurso da rotina burocrática descrita, que assim se apresenta em todos os casos, mas, em alguns, é dilatada e acrescida de procedimentos e registros além dos destacados aqui, a imprecisão que ronda o desaparecimento de pessoas se faz presente reiteradamente, expressando-se tanto em registros como a “data e hora” e “local” do fato, quanto nas imponderáveis e múltiplas razões que levam alguém a uma DP tanto para comunicar o desaparecimento, quanto para notificar que ele já foi solucionado. A imprecisão que ronda essa ocorrência policial, nesse sentido, não só não impede o registro dos casos, como também é gradualmente firmada, oficializada e arquivada. A vaga determinação de coordenadas espaço-temporais e as escorregadias distinções entre rupturas de rotina que configuram casos 55

O cargo de Oficial de Cartório Policial é um posto do quadro permanente da Polícia Civil do Rio de Janeiro e de outras unidades da federação. Embora as Certidões emitidas no SDP afirmem, em seu texto padrão, que quem as lavra e assina é um oficial de cartório, contudo, policiais que ocupam outros cargos assinam esse documento sem restrição.

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e outras que não são comunicadas e/ou não são registradas por policiais, afinal, perpetuam-se nos documentos e trâmites constitutivos da rotina burocrática dos desaparecimentos. Ao longo dessa rotina, procedimentos menos marcados que o preenchimento do RO, a emissão de Ofícios e Certidões ou o registro de Termos de Declarações também são empreendidos. A conversão de pessoas que vão a delegacias em “comunicantes” e “Envolvidos”, de suas solicitações e falas em “declarações”, de trechos selecionados de seus relatos em “Dinâmica do fato”, além da tradução e síntese do conteúdo de seus dizeres em ocorrências de “fato atípico” são medidas tomadas e referendadas no decurso dos casos. Tais medidas são tão constitutivas da rotina burocrática dos desaparecimentos quanto qualquer diligência empreendida por policiais para investigá-los. Esses procedimentos engendram efeito específico sobre os desaparecimentos: a construção dos casos como enigmas, que amplifica a imprecisão que os ronda desde seus primeiros registros. Se a princípio as falas de comunicantes expressam interesses variados, desconhecimento quanto ao paradeiro de uma pessoa e/ou preocupações diante de sua ausência, ao longo da rotina percorrida pelos casos essa ausência é gradualmente revestida de um cunho enigmático bastante peculiar. As falas de uma pessoa sobre a ausência ou a falta de notícias de outrem, porque registradas em delegacias de polícia como “declarações” do “comunicante” de um “fato” ocorrido em “data e hora” e “local” imprecisos e tomadas como objeto de Ofícios que indicam hipóteses de morte, prisão e internação são as bases mais fundamentais que constroem casos de desaparecimento. Como se operassem a partir de um leque de hipóteses quase ilimitado, partindo do pressuposto de que qualquer coisa possa ter ocorrido aos desaparecidos, “declarações” de comunicantes muitas vezes apresentam desaparecimentos como eventos indecifráveis. Ainda que eventualmente esbocem suspeitas, “declarações” proferidas e registradas em delegacias por comunicantes e “Envolvidos” produzem incógnitas. Não obstante, no decurso da rotina burocrática que percorrem, tais incógnitas são paulatinamente matizadas e convertidas em ocorrências não exatamente indecifráveis – ainda que restem arquivadas como casos sem solução. Como se operassem a partir de restrito leque de hipóteses, partindo do pressuposto de que alguns fatos como morte, prisão e internação permitam não só concluir o que se passou aos desaparecidos, mas também localizá-los, policiais nuançam o caráter enigmático dos casos. O limitado arco de hipóteses que determina as instituições para as quais são remetidos Ofícios solicitando informações sobre os desaparecidos, afinal, contrasta a olhos vistos com o amplo leque de possibilidades que um enigma carrega em si. 95

Vejamos, a partir do caso de Justo, como isso acontece. Embora a comunicante do desaparecimento do agricultor esboce suspeitas do que lhe teria ocorrido, o caso é inicialmente revestido de caráter enigmático. No decurso de sua trajetória burocrática, é investigado a partir apenas de duas hipóteses: morte ou prisão. Não havendo confirmação de nenhuma delas, o desaparecimento é arquivado como Sindicância Suspensa, perpetuando no tempo aquele caráter enigmático com que primeiro foi registrado.

JUSTO Justo e sua esposa Iraci vivem em um sítio no município de Magé. Justo é aposentado; Iraci, dona de casa. Na tarde de 27 de agosto de 2003, Justo adentrou uma fazenda em Cachoeiras de Macacu para fazer algo que, segundo Iraci, ele gosta muito: caçar passarinhos. Enquanto caminhava pela propriedade, deparou-se com o encarregado da fazenda, Paulo Cigano, com quem discutira. A razão da discussão, segundo Iraci, seria exatamente o fato de que Justo “estava passando no interior da fazenda em causa”, o que, para o encarregado, era uma ofensa. Depois da discussão, “ninguém mais teve qualquer registro de Justo”. Dois dias depois, ainda em agosto de 2003, Iraci foi à delegacia de Magé. A partir de seus relatos, foi registrado que Justo desapareceu às 15hs do dia 27, na “Fazenda cujo encarregado é Paulo Cigano de Tal, km 13, no caminho de C. Macacu, depois da moita de Bambu”. Iraci figura nos documentos em que esses registros foram feitos como “testemunha” do desaparecimento de seu marido. Além de Paulo Cigano, outros empregados da fazenda teriam avistado Justo na propriedade no dia de seu desaparecimento. Contudo, esses empregados “o viram entrar, mas não o viram sair das matas da mesma”. Iraci e alguns amigos conversaram com esses trabalhadores e procuraram por Justo na fazenda. Encontraram rastros da passagem dele por lá, mas também esses rastros desapareceram: A testemunha e outros amigos do desaparecido viram pegadas do nacional JUSTO entrando na mata, todavia, depois de segui-las, observaram que ao começar o terreno na forma de brejo as referidas pegadas desapareceram.

Passado mais de um ano do desaparecimento de Justo, o registro efetuado na DP de Magé foi encaminhado para a DP de Cachoeiras de Macacu, “para fins de registro”, em função do “local” do fato. Tendo o desaparecimento ocorrido na circunscrição da DP de Cachoeiras de Macacu, caberia a esta repartição investigá-lo. Lá, o inspetor a quem coube o caso produziu novo registro sobre o ocorrido, não sem hesitação: Procedimento iniciado nesta UPAJ [Unidade de Polícia Administrativa e Judiciária, designação dada a Delegacias Policiais em alguns registros] em 9 de novembro de 2004, tratando-se do DESAPARECIMENTO de JUSTO

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LIMA. O desaparecido e a comunicante residem, digo, residiam no município de Magé na época do fato, sendo que a comunicante segue residindo naquele município.

Passados outros seis meses, já em 2005, os mesmo documentos circularam novamente entre repartições e foram remetidos ao SDP. No intervalo temporal que separa a data do desaparecimento e a data do encaminhamento do caso para o SDP, a única pesquisa efetuada que ficou registrada é um manuscrito assinado por inspetor da DP de Magé, que diz: “Informa a V. Sa. que após pesquisas realizadas nos Registros de Ocorrência desta Delegacia Policial nada foi encontrado relativo ao nacional Justo Lima. Em 14/04/04”. No SDP, já em agosto de 2005, foi feita pesquisa nos sistemas de informações do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ). Resultou dessa busca o registro de “ausência às urnas” nas eleições de outubro de 2004, associado ao número do título eleitoral de Justo. Em seguida, foram remetidos Ofícios solicitando informações sobre eventuais registros em nome de Justo para as seguintes instituições: IFP, Santa Casa de Misericórdia, Desipe, Polinter, IML de Itaboraí e IML de Nova Friburgo. As seis instituições responderam não ter em seus arquivos qualquer anotação que permitisse esclarecer o desaparecimento. Finalmente, mais de cinco anos depois que Justo adentrou a fazenda em que trabalha Paulo Cigano, o caso foi arquivado no SDP, sob a seguinte justificativa: Trata-se de Sindicância instaurada no ano de 2005, porém, até a presente data não foram encontradas registros em nome do cidadão desaparecido nas diversas pesquisas realizadas; bem como, não há dados suficientes para novas investigações. Assim informado, considerando a carência de elementos para prosseguimento das diligências; considerando o tempo decorrido desde sua instauração, em detrimento às demais ora em andamento, solicito a SUSPENSÃO da Sindicância até o surgimento de novos dados ou manifestação das partes.56

O relato de Iraci sobre as pegadas que marcam um caminho traçado e interrompido no solo da fazenda onde seu marido desapareceu por si só confere ao caso cunho enigmático. Embora Iraci tenha apontado o nome de alguém com quem Justo discutira na fazenda, claramente construindo suspeitas, ao mesmo tempo suas falas sublinham a indeterminação do que teria ocorrido a seu marido depois da tal discussão, delineando um desaparecimento que, como tantos outros que encontrei nos arquivos do SDP, pode ser lido como uma incógnita. Ocorre que a incógnita em que consiste o caso de Justo e de tantos outros homens e mulheres cujos nomes estão registrados naqueles arquivos não resulta apenas de falas de comunicantes, convertidas em “declarações” nos documentos policiais. Antes, é da integração de “declarações” de comunicantes na rotina burocrática constitutiva dos casos que resulta o 56

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 214/05 do SDP/DH.

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caráter enigmático dos desaparecimentos. Assim como o próprio solo onde Iraci procurou pegadas de seu marido apaga rastros, já que se trata de “terreno na forma de brejo”, certamente úmido demais para manter em si marcas de pegadas, a rotina que dá base e forma a todo caso de desaparecimento o constrói como enigma - não por apagar rastros do desaparecido, mas por consistir no acúmulo de registros vagos e imprecisos a seu respeito. Iraci relatou que “ninguém mais teve qualquer registro de Justo” depois de sua discussão com Paulo Cigano, que embora Justo tenha sido visto adentrando a fazenda, ninguém o viu saindo, e fez questão de falar sobre o apagamento das pegadas que viu na propriedade e que, segundo ela, eram de seu marido. Não obstante, durante dois anos policiais que ficaram encarregados do caso registraram também que “nada foi encontrado relativo ao nacional Justo Lima” ao longo das poucas diligências empreendidas para se descobrir seu paradeiro. Essas poucas diligências, talvez exatamente por serem poucas, produziram dados insuficientes “para novas investigações” e, finalmente, engendraram o arquivamento do caso como Sindicância Suspensa. Enfim, o caso de Justo restou arquivado com ares de enigma tanto porque foi assim comunicado por Iraci, quanto porque foram parcas e pouco produtivas as investigações levadas a cabo por policiais, que efetivamente verificaram, através de Ofícios, duas únicas hipóteses: que Justo tivesse falecido e tido sua morte e/ou sepultamento registrados em IMLs, no IFP ou em alguns cemitérios, ou que Justo tivesse sido preso. Os termos empregados por comunicantes de desaparecimentos traduzem, eles mesmos, enigmas. “Sumiu”, “ausentou-se”, “virou areia”, “saiu para não mais voltar”, “não deu mais notícias”, “nunca mais regressou” e “descacetou”, entre outros termos, expressões e frases como o “ninguém mais teve qualquer registro” presente no caso de Justo, ao serem registrados nos ROs e Termos de Declarações apresentam os casos como incógnitas. Revelam, de forma sintética e forte, o amplo arco hipotético de possibilidades que se faz presente na comunicação de muitos desaparecimentos. A afirmação de que alguém “virou areia”, afinal, abarca um campo semântico tão vago quanto ilimitado. Contudo, o acúmulo de papéis que traduzem esses termos como desaparecimento, além dos registros de trechos selecionados das falas de comunicantes e da execução de minguadas diligências, orientadas pelo leque limitado de hipóteses com que trabalham os policiais, consolidam essas incógnitas e, ao evocarem a fé pública, revestem-nas de veracidade. Nesse processo, desempenham papel crucial as incontáveis formas narrativas negativas que aparecem nos casos de desaparecimento, seja para qualificar os “Envolvidos”, seja para informar que “nada consta” ou “não foi encontrado registro sobre o desaparecido” nos arquivos de cemitérios, necrotérios, 98

carceragens, penitenciárias, hospitais e órgãos assistenciais contactados por policiais. O caso de Sebastião é rico em negativas e, também por isso, pode ser lido como um enigma construído no decurso de sua rotina burocrática e por ela perpetuado.

SEBASTIÃO Cearenses que migraram para o Rio de Janeiro no começo da década de 1960, Valdelice e João tiveram quatro filhos: Jacira, Edna, Jurandir e Sebastião. Os quatro cresceram no Rio de Janeiro, mas Jacira mudou-se para Fortaleza e Edna, para São Paulo. Jurandir e Sebastião, que permaneceram na cidade onde foram criados, durante muitos anos viveram no mesmo terreno - Jurandir na casa da frente, com sua esposa Elisa; Sebastião, nos fundos. Depois de muitos anos sem encontrá-los, em julho de 2004 Jacira veio ao Rio de Janeiro visitar seus irmãos e amigos. Contrariando suas expectativas, porém, não encontrou seu irmão Sebastião. Ao chegar ao terreno que ele dividia com Jurandir, “foi informada pela senhora Elisa que o seu irmão [Sebastião] havia sido morto há cerca de 4 anos atrás por uma pessoa desconhecida e que havia fugido para o Nordeste”. Depois de receber a notícia, Jacira voltou para Fortaleza. Mas seis meses depois, já em dezembro de 2004, viajou novamente ao Rio de Janeiro e decidiu ir a uma delegacia. Dizendo-se “muito estarrecida com toda a história”, na DP Jacira relatou o que sua cunhada Elisa havia lhe dito em julho. A partir desses relatos, foi produzido RO de desaparecimento em nome de Sebastião. Uma semana depois, Elisa compareceu à mesma delegacia em que Jacira esteve. Sem fazer qualquer menção ao suposto assassinato de Sebastião, Elisa confirmou que ele desaparecera há cerca de 4 anos, mas acrescentou que antes disso ele já havia desaparecido outras vezes. Listando negativas, Elisa informou que não possui nenhuma foto de Sebastião em sua casa; que não sabe informar se Sebastião possui carteira de identidade do estado do RJ; que não sabe informar o tipo de vida que Sebastião levava neste estado, nem com quem se relacionava quando do seu desaparecimento; que, desde aquela data, Sebastião não manteve mais nenhum contato com a declarante ou com seus familiares; que, na época do desaparecimento, a família não o procurou nos hospitais ou no IML pois o mesmo costumava desaparecer por algum tempo e depois aparecia, mas desta vez tal fato não ocorreu até a presente data; que o companheiro da declarante, Jurandir Cardoso, irmão do desaparecido, nada sabe informar sobre o desaparecimento de Sebastião que possa auxiliar nas investigações. E mais não disse. E como nada mais lhe foi perguntado, mandou a Autoridade Policial encerrar o presente, que depois de lido e achado conforme vai devidamente assinado.

Quinze dias depois, Jurandir compareceu à mesma delegacia em que estiveram sua esposa e sua irmã e acrescentou negativas aos registros produzidos até então: que seu irmão Sebastião nunca trabalhou de carteira assinada; que Sebastião era catador de papel na Zona Sul do Rio de Janeiro; que o seu irmão não

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sofria de qualquer problema mental, nem fazia uso de qualquer tipo de medicamento; que o seu irmão não deixou qualquer aviso que justificasse o seu desaparecimento; que não sabe esclarecer a roupa usada por seu irmão no dia do seu desaparecimento; que desconhece qualquer tipo de amizade que seu irmão possuía; que não possui nenhuma fotografia do seu irmão; que apesar de serem irmãos pouco se falavam; que não sabe informar se o seu irmão era usuário de drogas; que não procurou por seu irmão em qualquer hospital, nem pelo corpo do mesmo no IML; que se encontra à disposição da Justiça no dia em que for intimado. E mais não disse.

Depois de assim registrar as declarações de Jurandir e Elisa sobre o desaparecimento de Sebastião, o policial da delegacia onde o caso foi iniciado optou por encaminhá-lo ao SDP. No relatório final produzido sobre o caso na DP, grafou que “nem sequer a família da vítima procurou em qualquer hospital, nem tampouco pelo corpo do mesmo no IML”. Os documentos foram recebidos na DH em março de 2005. Um ano depois, saíram do SDP, com destino a seis diferentes instituições, Ofícios solicitando informações que pudessem esclarecer o desaparecimento de Sebastião. Foram consultadas a Fundação Leão XIII, a Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, o IML, a Polinter e o Desipe. As seis, contudo, responderam aos Ofícios com frases como “nada consta”, “não foi encontrado dado” e “não há registro quanto ao nome de Sebastião Cardoso”. Reunindo tanto essas negativas, quanto as registradas a partir das falas de Jurandir e Elisa, o caso foi arquivado como Sindicância Suspensa em janeiro de 2009, “considerando a carência de elementos para prosseguimento das diligências”. 57

Um olhar detido sobre os registros acerca de Sebastião e de seu desaparecimento descortina um retrato em negativo do catador de papel, espécie de silhueta vazia de alguém desaparecido também nos documentos, embora a princípio pareçam repletos de informações. Sebastião nunca trabalhou de carteira assinada, não tem problemas mentais, não mantém contato com familiares, não toma medicamentos controlados, não deixou aviso que explicasse seu desaparecimento e não foi procurado em hospitais ou IML por seus irmãos e cunhados. A respeito dele, as pessoas que prestaram “declarações” em delegacias não sabem informar senão negações: que desconhecem desafetos de Sebastião, que não têm fotografias dele e que não sabem informar “o tipo de vida” que levava. No mesmo sentido, instituições que poderiam conter registros a seu respeito, consultadas por agentes do SDP, não têm dados sobre o catador em seus arquivos. Se seu desaparecimento é um enigma, também o é o retrato do próprio Sebastião construído nos documentos. A construção do desaparecimento e do desaparecido como enigmas peculiares é efeito da rotina burocrática constitutiva dos casos. Decorrem, afinal, da forma como os casos são 57

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 193/05 do SDP/DH.

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registrados desde seus marcos iniciais, quando são comunicados como eventos em que qualquer coisa pode ter ocorrido, passando por sua investigação a partir de limitadas hipóteses sobre o que possa ter se passado ao desaparecido, freqüentemente sem sucesso, até chegar a seus arquivamentos justificados, entre outras razões, pela “carência de elementos para prosseguimento das diligências”. Ao percorrer esse circuito, os casos são finalmente reinvestidos do cunho indecifrável com que foram reportados à polícia inicialmente, e assim perpetuam-se nas gavetas do SDP. Não obstante, em alguns casos a construção do desaparecimento como enigma é efeito também de interesses dos comunicantes. O caso do jovem que, segundo seu pai, “saiu de casa por volta das 9hs com uma gaiola com um passarinho e nunca mais apareceu”, é bastante ilustrativo. Cerca de quatro meses depois da confecção do RO em nome de seu filho, o comunicante retornou à DP “pedindo para suspender as investigações para evitar que seja alvo de represálias”. Ele acreditava que seu filho havia sido morto por traficantes e preferia que o caso seguisse sem esclarecimento, por temer que os assassinos de seu filho fossem identificados.58 Em outro caso, comunicado pela esposa do desaparecido, ficou registrado que “seu marido saiu de casa porque passavam por problemas particulares que a comunicante não quer especificar”. Nesse desaparecimento, a comunicante optou por não expor seus “problemas particulares” na repartição policial, independente de terem ou não relação com o caso.59 Em ambos, portanto, comunicantes tinham interesse tanto na localização dos desaparecidos quanto na manutenção do cunho enigmático de seus desaparecimentos, que preferiam que fossem solucionados sem ser exatamente desvendados. No desaparecimento de Sebastião, um registro específico chama atenção para pensarmos sobre a construção dos casos como enigmas: a frase do policial encarregado de que “nem sequer a família da vítima procurou em qualquer hospital, nem tampouco pelo corpo do mesmo no IML”. Com esse registro, o agente converteu a comunicante e os demais “Envolvidos” no desaparecimento do catador de papel em “família”, e os responsabilizou pelo caráter enigmático do caso, acusando-os de descuido e desinteresse. Esse registro faz supor que, no caso em que a comunicante optou por não revelar “problemas particulares” ao comunicar o desaparecimento de seu marido, essa decisão possa ter acarretado a atribuição, por parte de policiais, de responsabilidades em torno do caso à própria comunicante. No decorrer da rotina burocrática dos desaparecimentos, aqueles que reportam fatos e fazem solicitações em delegacias não só são convertidos em comunicantes e “Envolvidos”, 58 59

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 201/05 do SDP/DH. Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 185/05 do SDP/DH.

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mas também em “famílias de desaparecidos”. Responsabilizadas não apenas pela incógnita em que consistem os casos, mas, como discuto no próximo capítulo seguinte, pelo próprio desaparecimento em que estão envolvidas, “famílias de desaparecidos” são entidades recorrentes em falas e registros em delegacias e no SDP e, como mostro no capítulo 4, em outras instituições e entre outros agentes sociais que lidam com casos de desaparecimento. Por “famílias”, contudo, é preciso compreender não o grupo de parentes do desaparecido, mas o círculo de pessoas que o considera desaparecido e, por isso, procura pelos serviços da polícia e de outras instituições. Nos usos do termo feitos por policiais diante de desaparecimentos, “famílias” são unidades de localização em que os desaparecidos estão ou, prescritivamente, deveriam estar inscritos. Tais unidades de localização, como mostram os casos de Marília e de Gutemberg, muitas vezes incluem grupos domésticos e vizinhanças, entre outros conjuntos de pessoas de que o desaparecido é considerado membro em função de vínculos e relações muito mais vastas e variadas do que se costuma supor a partir do termo “família”. No caso de Marília, há acusações de desinteresse semelhantes às registradas sobre a “família” de Sebastião. Os casos de Marília e Gutemberg foram construídos no decurso de rotinas burocráticas dilatadas, constituídas por mais procedimentos que os descritos no começo deste capítulo. Entretanto, o preenchimento de ROs e Termos de Declarações e a redação de Despachos por delegados e de Relatórios por policiais fez-se presente em ambos, exatamente como descritos acima. É notável nos dois casos, embora tenham desfechos bastante diferentes, a construção dos desaparecimentos como enigmas e, ao mesmo tempo, a coexistência de seu caráter enigmático tanto com hipóteses, quanto com revelações sobre o que de fato ocorrera aos dois. Ademais, é também notável em ambos a presença de questões financeiras e patrimoniais entre as razões que levaram os “Envolvidos” a repartições policiais. No caso de Marília, essas questões mobilizaram moradores da mesma casa; no de Gutemberg, levaram o síndico de um condomínio à DP mais próxima ao edifício.

MARÍLIA Dia 10 agosto de 2005, o SDP recebeu uma petição, assinada por um advogado que representava, naquele ato, a Sra. Carmen Teixeira. A petição havia passado, desde o mês de outubro do ano anterior, por três DPs: primeiramente protocolada na 9ª DP, foi de lá encaminhada para a 25ª DP, dela para a 18ª DP e, finalmente, encaminhada para o SDP. Anexada à petição, encontravam-se duas procurações, cópias de carteira de identidade e duas fotografias de uma senhora de avançada idade. Tratava-se de Marília Lopes, nascida em 1914, 102

que estaria desaparecida. A petição solicitava que a 9ª DP, primeira repartição policial por onde passou o documento, registrasse e investigasse o desaparecimento de Marília. O fato acontecera em dezembro de 2002. Depois de passar mal em sua residência, Marília teria sido levada ao Hospital Municipal Souza Aguiar (HSA) por um “taxista que costumava prestar serviços de táxi para a família” e desde então não fora mais vista. Ao procurá-la no HSA, “a família foi informada de que a mesma não estivera naquele local”. A petição informava mais sobre o que se passara à Marília. Filha de um coronel do Exército já falecido, viúva e sem filhos, ela gozava de direito à pensão junto ao Ministério do Exército. Desde seu desaparecimento, no entanto, sua pensão vinha sendo depositada na conta de um homem de nome José Fernandes. A solicitação de registro do desaparecimento dela, conforme afirmado na petição, foi motivada pela descoberta desse fato por Carmen. Carmen, “que conhece Marília desde 1963” e desconhecia o tal José Fernandes, era apresentada na petição como procuradora de Marília, e desejava compreender por que a pensão dela vinha sendo usufruída por outra pessoa. Carmen compareceu e prestou declarações no SDP em 23 de agosto de 2005. Na ocasião, esclareceu como soube do desaparecimento e narrou fatos que, de seu ponto vista, poderiam ajudar a esclarecer o caso. Em 1969, já viúva, Marília foi morar em uma casa em Laranjeiras em que vivia uma amiga sua, Lavínia, com seus quatro filhos: duas gêmeas, Eva e Diva, e dois meninos. Carmem, então com 15 anos de idade, também vivia na casa, onde “ajudava a criar os filhos” de Lavínia e “fazia parte da mesma família”. Em 1995, Lavínia e seu filho caçula faleceram. Depois disso, permaneceram na casa de Laranjeiras Marília, Carmen, as gêmeas e um terceiro filho de Lavínia, casado, que ali vivia com sua esposa. Também em 1995, Carmen passou a ser procuradora de Marília, que contava cerca de 81 anos de idade. Essa condição dava a Carmen acesso a “uma previdência privada, cujo depósito era feito diretamente da pensão de Marília”. “Em razão de desavenças pessoais com as referidas irmãs gêmeas”, Carmen mudou-se da casa de Laranjeiras em 2002 e “perdeu o contato” com os seus moradores por dois anos. Já em 2004, reencontrou Eva, voltou a viver na casa e soube dos últimos acontecimentos vividos por seus moradores: a morte de Diva, que acabara enterrada como indigente, e o desaparecimento de Marília. Sobre o desaparecimento, Eva narrou a Carmen uma controversa ida de Marília ao Hospital Souza Aguiar e disse que, na ocasião, ela e sua irmã Diva acreditaram que Marília estivesse na companhia de Carmen. Como, na época, as três não se falavam, as gêmeas não verificaram se essa hipótese era verdadeira. Desde então, portanto, nem as irmãs, nem Carmen tinham qualquer notícia sobre Marília. O encontro com Eva levou Carmen a procurar o HSA, onde confirmou a inexistência de registro de atendimento em nome da desaparecida, e “vários locais e órgãos públicos sem sucesso na localização de Marília”. 103

Tempos depois, Carmen teve contato com extratos e contracheques que agravaram a nebulosidade acarretada pelos dizeres de Eva e pela inexistência de registros sobre Marília nos órgãos em que foi procurada. A previdência privada alimentada pela pensão de Marília, à qual Carmem tinha acesso, parara de receber depósitos no mês de janeiro. Investigando a questão, Carmen descobriu que em 2003 Marília não foi recadastrada no Ministério do Exército, como deveria fazer anualmente, o que ocasionou a suspensão da pensão e, conseqüentemente, a ausência de depósitos na previdência privada. Porém, em outubro de 2004 chegou à casa de Laranjeiras “um contracheque de pagamento de pensão, o que levou a crer que seu pagamento havia sido reabilitado”. Para seguir investigando o que teria ocorrido, Carmen procurou o Ministério do Exército onde foi informada que o pagamento da pensão de Marília estava sendo depositado na conta de José Andrade Fernandes, a quem a declarante [Carmen] desconhece; que segundo informações do Ministério do Exército, foi instaurado um Inquérito Militar para apurar se houve alguma irregularidade neste pagamento.

Foi após essa descoberta que Carmen procurou o advogado que assinou a petição entregue na 9ª DP naquele mesmo outubro de 2004 e, após peregrinação por diversas repartições, foi recebida no SDP em agosto de 2005. Foi também após essa descoberta que se chegou ao nome de José Fernandes, o beneficiário da pensão da desaparecida. O inspetor do SDP responsável pelo caso efetuou, entre novembro de 2005 e abril de 2007, algumas buscas em sistemas de dados, consultas através de Ofícios e oitivas de pessoas envolvidas no caso visando esclarecer o que teria ocorrido à Marília. Ofícios foram remetidos e respondidos pelo HSA, pela Santa Casa de Misericórdia, pelo IML e pelo IFP, e correspondências foram trocadas com a Seção de Inativos e Pensionistas do Ministério do Exército. Em todos os documentos produzidos por estas buscas, nenhum registro forneceu pistas do paradeiro dela. Conforme registrado pela chefia da Seção de Inativos e Pensionistas, a mesma falta de pistas caracterizava as buscas feitas pelo Ministério do Exército. De posse então, além das declarações prestadas por Carmen, apenas do nome de quem recebera a pensão de Marília, o inspetor fez consultas nas bases de dados que lhe são acessíveis e tomou nota de três endereços associados não ao nome de Marília, mas de “José Fernandes”, aos quais remeteu Mandados de Intimação: dois residenciais e um comercial. Três pessoas compareceram ao SDP em resposta às intimações, e as três foram unânimes em dizer que desconhecem tanto José Fernandes, quanto as razões que fazem com que seus endereços constem como sendo os mesmos desse homem. Finalmente, em agosto de 2008, exatos três anos depois de receber a petição do advogado de Carmen, o inspetor do SDP que ficou responsável pelo caso de Marília solicitou a Suspensão da Sindicância, que teve anuência do delegado da DH. No relatório que justifica o arquivamento do caso, o inspetor registra não só as razões que o levaram a solicitar a 104

Suspensão da Sindicância, mas também suas hipóteses do que poderia ter ocorrido à Marília: não havendo maiores interesses no atual paradeiro de Marília; ressaltando que o pagamento da pensão foi cancelado desde 2004, acreditando que assim como Diva foi sepultada como indigente, por desinteresse dos irmãos, o mesmo pode ter ocorrido com Marília, ou mesmo seu corpo tenha sido doado para universidades, observados os trâmites legais, o que não podemos afirmar, haja vista que não foram encontrados quaisquer registros nas pesquisas realizadas até a presente data.60

Além de explicitar uma das várias relacionalidades que, entre casas, parentelas e vizinhanças, são designadas por policiais como “famílias”, o desaparecimento de Marília coloca em cena dimensões cruciais do uso de documentos e registros oficiais no contexto dos Estados-nacionais. Afinal, enreda uma trama de roubo de identidade que se assemelha aos casos norte-americanos de ID theft analisados por Peirano (2009) e remete à histórica impostura de Martin Guerre (Davis, 1983), tratada por alguns autores como possibilidade extinta pelas práticas estatais de identificação e documentação inauguradas (e inaugurais) da Modernidade. (Caplan & Torpey, 2001). Não obstante, ao trazer em seu enredo um roubo de identidade, o caso descortina não só os ardis propiciados pela relevância dos documentos no chamado mundo moderno, como também seus “aspectos paradoxalmente complementares: de um lado, permitem a seus portadores vários privilégios em relação aos que não os possuem; de outro, submetem-nos a um constante controle externo.” (Peirano, 2009, p.65) No desaparecimento de Marília, uma pessoa não localizada fisicamente pela polícia, mas que teve nome e endereço identificados em bancos de dados e descobertos como falsos, recebeu por alguns meses posteriores ao desaparecimento a pensão a que Marília tinha direito. Por essa razão, pessoas que jamais ouviram o nome daquele que recebeu a pensão, embora vivam ou trabalhem no endereço a ele associado em registros oficiais, foram intimadas a comparecer a repartições policiais e prestar “declarações” sobre um “fato” que desconheciam. Essa passagem do caso explicita que, se documentos atestam identidades por meio da redundância ideal garantida por fotos, assinaturas e impressões digitais como as contidas nas carteiras de identidade brasileiras (Peirano, 2009, p. 63), por outro lado são instrumentos que permitem a determinadas autoridades intimar cidadãos. Ao mesmo tempo, se documentos permitem àqueles que identificam fazer valer seus direitos e receber benefícios e bens sociais, por outro lado são, eles mesmos, bens. Não bens quaisquer, e sim bens fundamentais, cobiçados e passíveis de serem roubados, que se desdobram em outros bens, como a pensão de Marília. 60

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 377/05 do SDP/DH.

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Vejamos agora o desaparecimento de Gutemberg, que também enreda, na forma de acusação, roubo de bens.

GUTEMBERG Dia 21 de março de 2007 a dona de casa Rejane foi a 18ª DP, repartição policial próxima à casa de sua mãe, no Estácio. Seu marido Gutemberg, técnico de manutenção em elevadores, saíra de casa para trabalhar no dia 5 daquele mês e, desde então, não retornara. Rejane procurou a delegacia e, a partir de suas falas, foi produzido registro de desaparecimento em nome de Gutemberg. No documento, ficaram registrados a descrição física de Gutemberg, relatos de Rejane sobre o dia do desaparecimento e o fato de que, entre aquela data e sua ida à delegacia, Rejane tentou compreender o que ocorrera a seu marido “tendo procurado-o por todos os lugares possíveis, tais como casas de amigos, familiares, locais que habitualmente freqüentavam juntos, sem êxito.” O registro de desaparecimento de Gutemberg foi produzido na 18ª DP, mas, logo em seguida, remetido para a 6ª DP. O policial que efetuara o RO ponderou que, como Gutemberg não morava no bairro do Estácio e o endereço firmado como “local do fato” foi seu endereço residencial, o caso deveria ser investigado pela 6ª DP. Meses depois, da 18ª DP o caso foi remetido ao SDP. Contudo, o policial do SDP que recebeu o caso julgou que cabia à DP a responsabilidade de investigá-lo. Sob a justificativa de que o caso ali chegara “sem que ninguém fosse ouvido e sem que a foto do desaparecido fosse anexada, sendo apenas confeccionado o Registro de ocorrência”, os documentos a ele relativos voltaram para a 6ª DP. Esse último encaminhamento do caso entre repartições aconteceu em novembro de 2007. Menos de quinze dias depois, o caso retornou ao SDP, agora sob a justificativa de que “o prazo da Res. 513 [que determina que em 15 dias as DPs remetam casos não solucionados ao SDP] é fatal”. Enquanto os documentos sobre o desaparecimento do técnico em manutenção de elevadores circulavam, um vizinho seu, de nome Carlos Alberto, foi à 6ª DP comunicar outro fato protagonizado por Gutemberg. Segundo Carlos Alberto, Gutemberg era síndico do edifício em que ambos moravam e utilizou-se do cargo para roubar dinheiro do condomínio. A partir das falas de Carlos Alberto, foi feito RO intitulado “Apropriação indébita” em nome de Gutemberg. Dias depois, o próprio Gutemberg foi à delegacia prestar declarações sobre a acusação de Carlos Alberto. Expôs seu ponto de vista sobre a denúncia e não fez qualquer menção a seu desaparecimento que tenha ficado registrada. Segundo Gutemberg, dia 5 de março de 2007, registrado como data do seu

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desaparecimento, houve em seu edifício uma assembléia de condomínio. Na ocasião, ele foi destituído do cargo de síndico, que ocupava desde outubro de 2005. Mesmo fora do cargo, ele seguira morando no edifício, na casa que dividia com sua esposa Rejane. Meses depois, o casal se separou e “está em fase judicial de reconhecimento dessa situação”. Segundo Gutemberg, tempos depois Carlos Alberto assumiu as funções de síndico, efetuou uma assembléia e alegou que administração anterior havia deixado vários débitos; que o declarante embora tomasse conhecimento desse débito, informa ter dúvidas e entende que melhor seria se fosse feita uma prestação de contas, o que faria ou fará através de medidas próprias e cabíveis no caso; que não se furta de ressarcir o condomínio, mas entende por demais necessário que seja feita após demonstrativos de débitos apresentados e confrontados na prestação de contas; que essa situação é solicitada pelo declarante, desde a data de seu afastamento daquela administração, e que jamais foi aceita ou respondida pelo atual síndico; que tudo foi solicitado ao síndico de forma verbal, e como não respondido, foi feita uma “carta notificação” reiterando os pedidos anteriores e solicitando uma data à realização de uma assembléia, carta essa recebida pelo síndico. E mais não disse.

Cópias dos documentos relativos à denúncia de Carlos Alberto foram remetidas ao SDP, para que fossem reunidos aos registros referentes ao desaparecimento de Gutemberg. Todos os papéis foram compilados e, em março de 2008, arquivados como Sindicância Solucionada. Na justificativa para o arquivamento, lê-se que “o desaparecimento já foi localizado, prestando depoimento na 6ª DP”.61

É provável que a esposa de Gutemberg tenha comunicado o desaparecimento dele à polícia para se proteger da acusação que posteriormente recaiu sobre o desaparecido na forma de um RO de “Apropriação indébita”. É também provável, por outro lado, que Gutemberg tenha desaparecido voluntariamente de sua casa e do edifício em que morava para se esquivar da mesma acusação. De todo modo, há potenciais intencionalidades enredadas no caso do técnico de elevadores que apontam para mais um elemento da rotina dos casos de desaparecimento que tem como efeito sua construção como incógnitas. Além das “declarações” dos “Envolvidos”, dos “nada consta” e das múltiplas negativas que revestem desaparecidos e desaparecimentos de nebulosidade, a possibilidade de todo desaparecimento resultar de decisões do desaparecido reforça seu caráter enigmático. Alguns documentos arquivados no SDP contêm registros que tratam desaparecimentos como comportamentos. Muitos casos protagonizados por crianças e adolescentes que fugiram de suas casas, por exemplo, trazem em seus papéis frases como “a comunicante não entende o que pode ter ocorrido e declara que a desaparecida nunca teve esse comportamento antes” ou 61

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 003/08 do SDP/DH.

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“narra que seu filho sempre faz isso, desaparecendo com freqüência”. Registros como esses indicam que o desaparecido teria optado por deixar o local e/ou o grupo a que costumava estar vinculado deliberadamente, o que leva os comunicantes a se perguntarem pelas razões dessa decisão. Não obstante, muitos casos tratam desaparecimentos não como comportamentos dos quais os desaparecidos são sujeitos ativos, mas, ao contrário, como acontecimentos de que foram agentes passivos. Nesses casos, para retratar a condição de agente passivo do desaparecido, há frases como “não sabe o que pode ter se passado com seu filho” ou “não entende quem pode ter feito isso com o desaparecido”. Entre os dois pólos, um em que o desaparecimento aparece como fruto direto da deliberação do desaparecido, outro em que ao desaparecido é atribuída completa passividade, casos registrados de formas variadas entendem-se ao longo do que Biehal et al (2003) denominam “continuum do desaparecimento”.62 Entre decidir desaparecer, como pode ter ocorrido a Gutemberg, e ser forçado a isso, como talvez tenha ocorrido a Marília, ausências provocadas por motivos muito variados são construídas como casos de desaparecimento. Reforçando seu caráter enigmático, contudo, em todos esses casos faz-se presente, como virtualidade, a possibilidade do desaparecimento ser fruto de uma escolha. Mais do que isso, em todos os casos faz-se presente também a possibilidade da comunicação do desaparecimento ser fruto de decisões que servem a finalidades diversas. Registrar o desaparecimento de Gutemberg, afinal, pode ter sido a maneira encontrada pelo técnico de elevadores para se esquivar de uma acusação ou, ao mesmo tempo, a forma que sua esposa encontrou de proteger-se dos desdobramentos da tal acusação. Em suma, potenciais intenções, tanto de desaparecer quanto de produzir um caso de desaparecimento, fazem-se presentes nos casos e reforçam-lhes seu peculiar caráter enigmático. No Despacho exarado no caso do menino que desapareceu carregando a gaiola de passarinho, citado acima, o delegado titular da DP em que o desaparecimento foi inicialmente registrado menciona as múltiplas intenções e finalidades que podem mobilizar comunicantes e desaparecidos. Destoante dos textos padronizados usualmente empregados em Despachos, o conteúdo do documento apresenta a reflexão do delegado sobre o desaparecimento de pessoas

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Biehal et al (2003) realizaram pesquisa sobre o desaparecimento de pessoas no Reino Unido a partir de registros produzidos pela The National Missing Persons Helpline, instituição beneficente que disponibiliza linhas telefônicas destinadas, por um lado, a prover assistência a familiares de desaparecidos e, por outro, a oferecer aos próprios desaparecidos um canal confidencial para enviarem notícias a suas famílias caso desejem. Os pesquisadores construíram bancos de dados estatísticos compilando todos os desaparecimentos reportados à instituição durante um ano, analisaram em profundidade uma amostra dos casos e, por fim, sistematizaram dados colhidos a partir de formulários respondidos por pessoas desaparecidas que foram localizadas e se dispuseram a participar da pesquisa.

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e um ideal de rotina burocrática a ser seguida diante de cada caso. Cotejada com os parcos e breves procedimentos levados adiante nos casos narrados ao longo deste trabalho, a rotina descrita pelo delegado revela-se um modelo de atuação que, se é vigente em repartições, o é precisamente como modelo, não como prática. Pelo contraste que provoca desde sua primeira linha, vale transcrever integralmente esse Despacho excepcional, sobretudo depois de descrever a rotina que os casos arquivados no SDP percorreram e destacar as imprecisões e os “nada consta” que a constituem: Despacho da Autoridade Prazo de 30 dias. O Desaparecimento é uma ocorrência de grande importância podendo ter sido o desaparecido assassinado ou seqüestrado, gerando direitos civis devido à ausência. É constante se alegar desaparecimento e a pessoa estar presa ou doente mental, que já se ausentou de casa diversas vezes, sendo puro comodismo do comunicante que não quer procurar o local da prisão ou internação e aguardar que se avisem a ele. É de difícil elucidação porque algumas vezes, o desaparecido não quer ser localizado, tendo escolhido outro relacionamento sentimental ou modo de vida. Diversas vezes, é abandono voluntário do lar, problema cível, no qual o companheiro(a) sabe onde a pessoa está, diz que ela desapareceu achando que o encontro pela polícia vai fazê-lo(a) reatar o relacionamento, seja sentimental ou familiar, ou facilitar desfecho favorável na Justiça, o que nem sempre é verdade, devido aos motivos do abandono do lar. O sindicante deve ouvir outros parentes do comunicante que podem ser apresentados no ato do registro e se caso alegar que não os tenha, apresentar vizinhos. A recusa peremptória de apresentação pode ensejar suspeita de que o comunicante está querendo esconder informação valiosa e até grave. É comum o ausente mencionar o destino a várias pessoas, exceto aquele que está comunicando o desaparecimento, pois não quer ser localizado por este, que sabe da ocultação, mas não o local, e está utilizando a polícia para descobrir para ele. Desavenças ou maus tratos familiares, principalmente de padrasto em relação à enteada, não aceitação de opção sexual ou de relacionamento sentimental, ocultação contra a aplicação da lei ou similares, por exemplo, não pagamento de dívidas – o RO serve para dizer que não sabe o paradeiro do procurado – emigração ilegal, etc., são motivos de desaparecimento ocultados pelos comunicantes que dificultam a investigação. Tomadas todas as providências preliminares e havendo fundadas razões de desaparecimento, orientar aos comunicantes acerca da notícia do REAPARECIMENTO e que procurem a hospitais da região, IML(s) e de posse de documento do ausente, em que conste a filiação, ir até ao IFP e verificar se não houve sepultamento como indigente. (O Instituto faz a coleta de individuais datiloscópicas de falecidos e pesquisa no Fichamento. Mesmo localizada a qualificação e endereço do falecido, aguarda-se o comparecimento de familiares ao IML para o sepultamento, e havendo ausência, caso raro porque as funerárias sempre encontram – não se deve esquecer a recusa do pagamento do enterro – é inumado como indigente.) Após, comparecer à Cruz Vermelha, jornais para se publicar o desaparecimento, à FIA (Fundação da Infância e da Adolescência) em Botafogo e a 2ª Vara de Infância e Juventude 109

(Sambódromo), se menor. A televisão é um excelente localizador de desaparecidos. O sindicante deve perguntar onde trabalhava o desaparecido, mesmo atividade informal, seus companheiros e, principalmente, patrão para saber se continua trabalhando ou o paradeiro; se tem parentes, mesmo fora do RJ, porque são excelentes fontes de informações. A foto do desaparecido, alcunha, suas características (tatuagens, defeitos físicos, higidez mental, etc.), roupa que trajava, se estava acompanhado, banco onde tem conta (para saber se houve saque após a ausência), e-mail (deve-se enviar mensagem e ver se foi “baixado”) e se o comunicante informar o telefone do desaparecido, principalmente celular, sem dúvida que deve ser contatado na hora pois isto pode localizá-lo. Perguntar por endereço e telefones das pessoas de relacionamento sentimental ou familiar do desaparecido, mesmo fora do RJ, e principalmente, CPF que informam se existe veículo em nome do desaparecido, o qual o comunicante não informou, podendo haver local e hora [de] infração de trânsito, após a comunicação de desaparecimento, uma boa fonte de pesquisa para localização. Ir até ao local da residência do comunicante e do desaparecido, entrevistando, outros parentes e vizinhos não informados, quando da comunicação. OFICIAR à Polinter e IFP (pode estar preso, com mandado de prisão ou morto o desaparecido), ao Arquivo Nacional, ao Desipe, ao DETRAN-RJ (ver se foi agendado algum serviço após a ausência), ao SPC, Cedae, à Light, à Fenseg (saber se o desaparecido tem seguro de vida e em nome de quem, entrevistando o beneficiário), à Santa Casa de Misericórdia (informa se há certidão de óbito), à Claro, Vivo, Oi, TIM, etc., para saber se tem telefone em nome do desaparecido não informado pelo comunicante, ao TRE (se não votou pode estar morto e em caso de comparecimento a pleito eletivo, após notícia de desaparecimento, por via judicial ou Ministério Público, pode-se saber o endereço constante do banco de dados acerca do título eleitoral), a Institutos de Identificação e Médico-Legais, sede do local de trabalho, DETRAN, Penitenciária, Tribunais de Justiça, no estado natal, fora do RJ, conforme dados colhidos com os comunicantes, porque pode ter havido viagem do desaparecido, sem aviso, e ocorrer algum registro nos órgãos. Pesquisas na Internet, com o nome do ausente, se consta processo na Justiça, como Autor/Réu, verificando se compareceu a audiência após o desaparecimento e à Telemar para saber se tem telefone fixo e qual o endereço. São dados valiosíssimos que facilitam e encerram a investigação com êxito favorável do encontro ou não, porque pode ser encaminhado os autos ao SDP/DELEGACIA DE HOMICÍDIOS ou outra dependência policial, sem pretexto para devolução. 63

Entre as várias intenções que podem mobilizar comunicantes de casos e as múltiplas diligências sugeridas no Despacho, chama atenção que o delegado registre que a “televisão é um excelente localizador de desaparecidos”, apontando para a importância atribuída, dentro de delegacias, para meios de se descobrir paradeiros que estão fora das atribuições dessas repartições. O Despacho indica que não apenas às “famílias” são delegadas responsabilidades pelos casos, como discuto no próximo capítulo, mas também que outras instituições são chamadas a desempenhar papéis na investigação de desaparecimentos. Como mostra o caso de Tiago, algumas vezes meios de comunicação de massa realizam aquilo que, ao procurar 63

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 201/05 do SDP/DH.

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delegacias, cidadãos esperam que seja feito pela polícia. 64 E como fica claro no Despacho, policiais muitas vezes contam com isso. Tiago é um menino surdo-mudo que vivia com a mãe em Teresópolis e, em três ocasiões diferentes, fugiu de onde estava rumo a cidades litorâneas - Niterói, Araruama e Angra dos Reis. Em uma dessas ocasiões, sua mãe e sua tia tomaram conhecimento de seu paradeiro ao ver a foto do menino impressa em jornal comercializado em Barra Mansa. O jornal periodicamente veicula imagens de pessoas que desejam encontrar familiares ou, como no caso de Tiago, que foram acolhidas em instituições públicas e não informaram, por razões as mais variadas, de onde vieram. Esse serviço é executado por um programa da FIA/RJ intitulado “Procuro minha família”. TIAGO Em setembro de 2006, Ângela foi à 110ª DP, em Teresópolis, comunicar o desaparecimento de seu filho Tiago, de 15 anos. Conforme relatado por Ângela, Tiago, que é surdo-mudo, havia saído de casa em direção à escola no dia 1º de setembro e até aquele momento, começo da tarde do dia 12, não retornara. Segundo ela, “fato igual a esse” havia ocorrido em junho daquele mesmo ano, quando Tiago foi encontrado em Niterói e levado de volta para casa quinze dias depois, pelo motorista do Conselho Tutelar local. Em março de 2007, antes que registros de solução ou suspensão do caso fossem produzidos, Delizete, irmã de Ângela e tia de Tiago, foi à 90ª DP, em Barra Mansa, comunicar novo desaparecimento do menino. Relatou então que depois de desaparecer “inicialmente em Teresópolis, onde morava com a mãe”, seu sobrinho havia sido encontrado em um abrigo da cidade de Araruama. O caso ocorrido em setembro de 2006, portanto, poderia ter sido solucionado aí. Contudo, antes mesmo que Ângela ou Delizete reencontrassem Tiago, o adolescente fugiu do abrigo, “estando desaparecido desde então”. Na 90ª DP, Delizete relatou ao inspetor que, depois do desaparecimento de Tiago em setembro de 2006, Ângela esteve internada na Santa Casa, “muito abalada pelo estado emocional”. Depois de deixar o hospital, mudou-se para a casa de Delizete. Além dessa informação, a tia de Tiago agregou aos documentos produzidos pelo polícia um recorte de jornal. Tratava-se de nota intitulada “Procuro minha família”, creditada ao Programa SOS Crianças Desaparecidas, mantido pela FIA/RJ. Ao lado de outras quatro fotografias, a nota veiculava o retrato de Tiago e o seguinte texto: “O jovem foi encontrado próximo a uma Igreja Evangélica de Araruama. Ele se

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Sobre o papel da mídia no fornecimento de bens sociais, que a um só tempo tem alargado a noção de espaço público e esvaziado canais tradicionais de exercício da cidadania, ver Canclini (1999).

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comunica com dificuldade – por sinais –, fala poucas palavras. Ele recebeu o nome de Tiago Costa Cunha, está abrigado e sem referências familiares.” A veiculação da foto de Tiago no jornal foi o que permitiu a Ângela e Delizete saberem que, depois de desaparecer em Teresópolis, o adolescente fora abrigado em Araruama. No entanto, embora tenham tomado conhecimento do abrigamento, as duas não chegaram a rever Tiago antes que ele fugisse. Passado um mês do registro da fuga de Tiago do abrigo na forma de RO de desaparecimento, o caso saiu da responsabilidade da 90ª DP e foi encaminhado ao SDP. A essa altura, já estava sob investigação no Setor a VPI em que constava o RO efetuado na 110ª DP, em setembro do ano anterior, a partir da comunicação de Ângela. Os dois conjuntos de documentos foram então reunidos na forma de Sindicâncias Juntadas. Menos de dois meses depois, novo documento oriundo da 90ª DP chegou ao SDP. Tratava-se de comunicação interna em que o Delegado Titular da DP informava que Delizete havia retornado àquela repartição policial para comunicar que seu sobrinho apareceu no dia 23/5/2007, em bom estado de saúde; que Tiago estava em um abrigo próximo a Praia do Sapo na Cidade de Angra dos Reis, desde o mês de fevereiro; que Delizete comunicou que Tiago está em bom estado de saúde, apesar dos problemas.65

2.3 É problema do Estado Não são raros casos em que as finalidades do registro do desaparecimento passam ao largo da descoberta do paradeiro do desaparecido e miram tão somente o próprio registro. Um deles, relembrando o capítulo anterior, é o de Geraldo. Em casos como o dele, é de interesse de comunicantes e outros “Envolvidos” que nenhuma diligência realizada por policiais conduza à localização do desaparecido. Ao contrário, é de interesse deles que os casos se reproduzam no tempo como enigmas não solucionados. Não como enigmas quaisquer, evidentemente, mas como enigmas registrados e certificados em repartições policiais. No SDP, o registro e certificação de enigmas como os desaparecimentos de Gutemberg, Marília, Sebastião, Justo, Otávio, Lúcio e Tiago são feitos em meio a questionamentos quanto à responsabilidade da própria polícia diante do desaparecimento de pessoas. Como me disse algumas vezes a inspetora Telma, o desaparecimento “é um problema do Estado” e cuidar dos casos “não é serviço nosso, mas a gente acaba fazendo”. Para a policial, desaparecimentos são “problemas de família” e “problemas de assistência social” que se situam na jurisdição do que ela chama de “Estado”. Esse “Estado” exclui a 65

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 120/07 do SDP/DH.

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polícia e suas repartições, apesar de, em certa medida, incluir a televisão, como indica o Despacho citado acima. Mas o que, afinal, significa dizer que o desaparecimento é “problema do Estado”? Por que separar a polícia do “Estado” é a forma encontrada pela policial para lidar com os casos e refletir sobre o desaparecimento de pessoas? Tanto quanto “a burocracia”, “o Estado” é um construto retórico evocado por cidadãos diante de desapontamentos, frustrações e humilhações experimentadas em encontros com servidores públicos em repartições variadas como, por exemplo, delegacias de polícia. 66 Não raro cidadãos queixam-se, em diversas instâncias, de que procedimentos e exigências feitas por funcionários de repartições são excessos opressores e absurdos, como mostra Reis (1998), verdadeiros “sinais de um intolerável e brutal, porque impessoal e mecânico, controle político-burocrático” (DaMatta, 2002, p.39). Nessas queixas, “a burocracia” e “o Estado” figuram como entidades logicamente opostas à agência individual dos cidadãos, dotadas de força e poder tais que causam, por si sós, toda a opressão e brutalidade que possa ter recaído (ou vir a recair) sobre aquele que vai a uma repartição pública solicitar serviços, receber benefícios ou cumprir determinações legais. Impotentes, cidadãos seriam acachapados pelo poder mecânico e impessoal dessas entidades. Para Herzfeld (1992), evocar desse modo “o Estado” é um recurso simbólico que permite aos cidadãos tanto lidar, de modo fatalista, com seus próprios desapontamentos diante de servidores, repartições e procedimentos burocráticos, quanto resignar-se face às humilhações experimentadas por outros cidadãos, reproduzindo um processo de “produção social da indiferença”. (Herzfeld, 1992, p.13) Ao dizer que o desaparecimento é “problema do Estado”, a inspetora Telma defende que casos como os arquivados no SDP não sejam registrados e investigados por policiais, e sim geridos por servidores de outros órgãos e instituições que não a polícia. Não obstante, ao evocar “o Estado” separando dele a polícia e os policiais, Telma também aponta para as frustrações e descontentamentos experimentados por ela, por seus colegas de Setor e por comunicantes e “Envolvidos” diante da rotina burocrática que tece os casos de desaparecimento. Como busquei apresentar ao longo deste capítulo, relatados como enigmas por pessoas encaradas com desconfiança ou responsabilizadas pelos casos nas delegacias, desaparecimentos são registrados de forma precária. Questões centrais em toda ocorrência policial, o quando, onde e como do desaparecimento são perguntas de resposta impossível, que tornam o conteúdo dos documentos relativos a cada caso impreciso e ineficaz como instrumento de investigação. O efeito mais notável desses registros, repletos de negativas e 66

Sobre “o Estado” como construto retórico, ver também a análise de Gupta (1995) sobre discursos de indianos em torno da “corrupção”.

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retratos vazios, é reproduzir o caráter enigmático com que os casos são revestidos quando comunicados, e não facilitar a “descoberta de paradeiros”, tarefa que dá nome ao SDP. Diante disso, não é difícil imaginar o quão frustrante pode ser, tanto para policiais, quanto para comunicantes, relatar e registrar um caso de desaparecimento. Ademais, o desaparecimento é considerado ocorrência desimportante no universo mais amplo de “fatos” investigados em repartições policiais, a despeito do que se lê no Despacho exarado pelo delegado titular da DP onde o caso do menino que desapareceu carregando uma gaiola foi registrado. Não foram poucas as vezes que o inspetor Fernando chamou minha atenção para o contraste entre a invisibilidade dos milhares de casos arquivados no SDP e alguns desaparecimentos de grande repercussão, como o da garota inglesa Madeleine McCain. 67 Nessas ocasiões, o policial sugeria que o mesmo contraste se dava entre os trabalhos feitos no SDP e as operações policiais espetaculares em torno de crimes e outras ocorrências grandiloqüentes, como a “Operação Anjo”, mencionada no primeiro capítulo, da qual ele mesmo participou. A rotina de “só preencher papel” que faz da investigação de paradeiros “uma ilusão” que, na prática, nada tem a ver com o extenso e detalhado Despacho supra citado, reveste o SDP e os casos ali arquivados de pouco ou nenhum prestígio, e pouca ou nenhuma visibilidade. Os frustrantes e incômodos resultados disso, conforme registrado no caso de Antônio e, a seguir, no de Elói, são a “falta de informação dentro do próprio organismo da Polícia Civil, seja no que diz respeito ao registro do desaparecimento, seja a área de sua atribuição”, e um trabalho policial que “pouco conforma, apenas informa que não há registros em nome daquele desaparecido”. O inspetor Carlos Ernesto resume a desimportância e invisibilidade do desaparecimento e do SDP dizendo que “por mais que a gente trabalhe, tudo o que a gente faz aqui é só procedimento administrativo, não têm valor nenhum e não adianta nada”. O desaparecimento de Elói coloca em cena tanto a frustração, quanto a resignação do policial encarregado do caso diante de seu desfecho. Na forma como relata a ocorrência antes do arquivamento, o agente comunica não só que pouco foi feito para solucioná-la, resignandose, mas também que pouco poderia ser feito nesse sentido, afirmando que o trabalho policial é impotente diante dos desaparecimentos. Não obstante, o caso também coloca em cena a

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Em 3 de maio de 2007, Madeleine McCain, de 3 anos de idade, desapareceu em um hotel da Praia da Luz, em Portugal, onde estava hospedada com seus pais e dois irmãos menores. As polícias portuguesa e inglesa investigaram o caso e, paralelamente, os pais da menina implementaram um programa de doação de recursos para viabilizar investigações particulares. Meios de comunicação de todo o mundo deram espaço para o caso, ainda não solucionado. A versão dos pais da criança sobre o ocorrido pode ser lida em http://www.findmadeleine.com

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comoção do agente diante de sua trama, comoção esta que se revela em toda sua força tanto pelas palavras e frases escolhidas para relatar detalhadamente o caso, quanto pelo evidente contraste entre elas e as formas narrativas padronizadas também presentes no documento. Se, como vimos no caso de Tiago, comunicantes e “Envolvidos” como a mãe do menino ficam “muito abalados pelo estado emocional” engendrado pela experiência do desaparecimento, o caso de Elói convida-nos a pensar sobre os impactos provocados pelos relatos dos comunicantes nos policiais que os registram. Em suma, o desaparecimento do jovem demanda que a idéia da “produção social da indiferença” (Herzfeld, 1992) seja encarada com parcimônia, chamando atenção para a possibilidade de um espectro de sentimentos bastante distintos da indiferença conviverem com a resignação e impotência de que fala um cidadão, seja ele servidor público ou não, quando fala que determinada questão é “problema do Estado”. Prestar serviços que mais se parecem com “atendimento psicológico”, como tantas vezes me disse o inspetor Fernando, faz com que policiais encarregados de casos de desaparecimento tomem contato com os “estados emocionais” dos comunicantes e demais “Envolvidos”. Logo em nossas primeiras conversas, Fernando me contou que muitas vezes fornece o número de seu telefone celular para as “famílias de desaparecidos”, envolvendo-se com os casos e colocando-se à disposição com mais intensidade e por mais tempo do que faz supor a rotina burocrática padronizada percorrida pelos desaparecimentos. “Perco noites de sono”, me disse certa vez. Depois de atender a mãe de adolescente desaparecida que foi ao SDP buscar e dar notícias sobre o caso, o inspetor me contou que aquela “família” vinha procurando um Centro Espírita para ter pistas do paradeiro da garota. Toda pista obtida no Centro era cuidadosamente informada ao SDP para auxiliar nas investigações. Segundo Fernando, “religião e crenças são fontes de esperança para as famílias”, e para ele os policiais não devem “retirar delas essa esperança”. Sensibilizado pelos freqüentes contatos daquela mãe para fornecer pistas sobre o caso de sua filha, o inspetor as ouvia e anotava diligentemente. Não considerava que as informações obtidas no Centro Espírita pudessem de fato auxiliar na solução do caso, mas julgava imprescindível respeitar “a esperança” e outros sentimentos que, em meio a elas, a mãe da menina comunicava à polícia. No desaparecimento de Elói, entre procedimentos e formas narrativas constitutivas da rotina burocrática de todo caso arquivado no SDP, encontramos registros que firmam em documentos escritos o que essas falas do inspetor Fernando indicam.

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ELÓI Sr Delegado, Trata-se de mais um caso onde as famílias são as vítimas maiores, pois nelas se misturam as incertezas e as certezas dos acontecimentos que levam ao desaparecimento de seus filhos, sobretudo, e principalmente, quando se trata de envolvimento com as drogas. Desocupado e morando sozinho o jovem Elói se aproveitava do sustento que o pai proporcionava para alimentar seu vício; acreditava o pai que o mantendo financeiramente o teria mais perto, mesmo dando-lhe espaço físico e geográfico, pois mudou-se com a mulher para Saquarema para lhe proporcionar maior liberdade, na melhor das intenções. No entanto, a partir do desaparecimento encontrou um rastro de desordem e apenas a notícia de que o seu filho saíra para comprar drogas em um morro, enquanto alguns amigos esperavam em casa, porém, não mais retornou. A partir daí surgiram inúmeros comentários e detalhes mórbidos do que teria sido sua execução por parte dos traficantes, não se sabendo a razão ou mesmo se são verdadeiras ou falsas. Resta o registro de desaparecimento, antecipação de um óbito imaginário; resta um trabalho policial que pouco conforma, apenas informa que não há registros em nome daquele desaparecido. Infelizmente. Nada encontrado. Nenhum registro. Nenhuma esperança de vida. Assim exposto, considerando o tempo decorrido desde sua instauração; considerando a carência de indícios ou fatos; considerando as respostas negativas às pesquisas realizadas, solicito a Vossa Senhoria a SUSPENSÃO da Sindicância, até segunda ordem, salvo melhor juízo. É o que me cumpre informar.

Destoando dos textos padronizados que dão corpo a relatórios de “Informação sobre investigação definitivos” produzidos no SDP, assim foi encerrado o caso de Elói, de 20 anos, que desapareceu em agosto de 2005. Depois de consultar diversas instituições sem sucesso e registrar declarações do pai do jovem, o inspetor que cuidou do caso relatou não só a intenção de arquivá-lo, mas também a supracitada descrição comovida de alguns de seus elementos. Elói morava sozinho no bairro de Vila Isabel, em imóvel pertencente aos pais, que haviam se mudado do Rio de Janeiro para Saquarema. Na noite de quinta-feira, 4 de agosto de 2005, Elói recebeu três amigos em sua casa: Marina, Helena e Tomás. Os quatro partiriam juntos para Saquarema no dia seguinte, e combinaram de passar a noite juntos para viajar no amanhecer. Porém, por volta das onze horas da noite, Elói tomou emprestada a moto de Tomás, foi comprar drogas no Morro São João, e não mais retornou, nem deu notícias. Dias depois, Gilson, pai de Elói, veio ao Rio de Janeiro. Esteve no IML e nos hospitais municipais Souza Aguiar e do Andaraí procurando por seu filho. Não o encontrou. Portando uma fotografia dele, foi então à delegacia registrar o desaparecimento de Elói. Na ocasião, relatou não só o que sabia que se passara na casa de Elói na noite do desaparecimento, mas também o que “realmente teria acontecido” com ele no Morro São João: lá teria ocorrido um desentendimento e os traficantes do local teriam tomado a motocicleta dele estando ele desaparecido desde então, surgindo comentários que ele estaria morto; que ainda obteve informações que seu filho não tinha dívidas na boca de fumo; que segundo outra informação que

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recebeu seu filho teria sido levado para Madureira e deixado morto dentro de um veículo incendiado, ainda não tendo procurado por ele naquele bairro; que também foi informado que o corpo dele estaria jogado na divisa entre os Morros São João e Macacos; que policiais militares do 3º e do 6º BPMs fizeram incursões aos Morros São João e Macacos, porém não conseguiram localizá-lo; que a motocicleta também está sumida.

Minutos após registrar essas declarações, o investigador de polícia que recebeu Gilson na DP solicitou informações sobre Elói à Santa Casa de Misericórdia, ao Hospital do Andaraí, ao IML, ao IFP e à Polinter. Nas solicitações, aventava a possibilidade de Elói “ter dado entrada com o nome de Tomás Kupfer”, proprietário da moto que guiava quando desapareceu. Nenhuma das instituições forneceu informações que esclarecessem o paradeiro de Elói. Quinze dias depois, quem compareceu à DP foi Tomás, que relatou brevemente o que acontecera na noite do desaparecimento de Elói e solicitou Registro de Ocorrência de “Roubo de Veículo”, para documentar o que ocorrera à sua motocicleta. O caso de Elói foi encaminhado ao SDP em novembro de 2005. No começo de dezembro, Gilson compareceu ao Setor e prestou extensas declarações sobre o desaparecimento de seu filho. Na ocasião, além do que já havia narrado na DP, relatou fatos de que tomara conhecimento posteriormente ao desaparecimento de Elói e que fariam parte da trajetória de seu filho no que chamou de “mundo da ilegalidade”. Elói faria parte de um esquema de “roubo de mangueiras de incêndio de prédios residenciais”, o que Gilson pôde comprovar ao encontrar instrumentos como “alicates para grandes cortes” guardados em malas no apartamento em que Elói vivia. Sobre o desaparecimento do jovem, Gilson estendeu-se em descrições sobre o que teria acontecido no Morro São João na noite de 4 de agosto: O desaparecido teria sido reconhecido por um dos componentes da boca como sendo comprador de uma “boca” rival, ou seja, pertencente a uma outra facção criminosa; que dali iniciou-se uma discussão resultando em briga corporal, onde Elói levou um tiro e foi arrastado para o alto do morro, de onde foram ouvidos mais tiros; que o declarante ouviu comentários também de que logo em seguida foi dado dinheiro para alguns menores do morro comprarem gasolina e pneus para serem utilizados na carbonização do corpo de Elói, e que realmente naquele dia foi feita uma grande fogueira na localidade; que esse referido local foi fotografado e realizado algumas incursões pelos policiais do 3º BPM, no entanto, não foram encontrados vestígios de carbonização, sabendo-se apenas que o local foi devidamente limpo; que tal versão mencionada pelo declarante foi confirmada por moradores da comunidade, o que fez o declarante acreditar que realmente seu filho tenha sido morto por traficantes daquela “boca de fumo”.

Foi depois dessas declarações de Gilson que o inspetor que o recebeu no SDP redigiu o relatório acima transcrito encerrando o caso. 68

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 394/05 do SDP/DH.

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Na “versão mencionada” por Gilson, Elói foi morto e carbonizado em função da rivalidade entre traficantes que comandam diferentes bocas de fumo. Os detalhes do assassinato e extermínio do corpo chegaram ao conhecimento de seu pai e fizeram parte das “declarações” por ele prestadas no SDP, a despeito de não terem sido confirmadas pelas incursões de policiais militares ao Morro São João, nem checadas por agentes do SDP ou da DP que registrou o caso. Por isso, do ponto de vista do policial encarregado do caso no Setor, os registros do desaparecimento de Elói consistem na “antecipação de um óbito imaginário” que restou e restará sem confirmação ou contestação. O arquivamento do caso como Sindicância Suspensa, afinal, garante que os documentos que registram a possível execução do jovem ficarão depositados nas raramente abertas gavetas de arquivo do SDP. Muitos são os casos guardados nos arquivos do Setor que trazem registros de suspeitas, boatos e suposições de que o desaparecido tenha sido morto e tido seu corpo ocultado, carbonizado ou exterminado de alguma maneira. “Acredita-se que esteja morto”, “disseram que foi assassinado”, “possivelmente sendo vítima de homicídio”, “ouviu dizer que foi morto e queimado” ou “sabe que seu filho foi queimado por bandidos” são frases registradas em casos semelhantes ao de Elói que indicam o que o policial que cuidou do caso do jovem chama de “antecipação de um óbito imaginário”. São casos em que os protagonistas figuram como agentes passivos de seus desaparecimentos, opostos àqueles em que se registra a intenção de desaparecer. Esses casos costumam trazer descrições não de hábitos e características da personalidade do desaparecido, como muitos desaparecimentos arquivados no SDP, e sim sobre detalhes de seus corpos. Enquanto dados sobre hábitos e personalidade poderiam auxiliar a descoberta de um paradeiro, detalhes sobre corpos facilitariam a identificação de cadáveres. O caso de Wilson, de 20 anos, é bastante ilustrativo. O pai de Wilson, ao comunicar o desaparecimento de seu filho, relatou que o jovem “foi executado por traficantes do Morro São Carlos e enterrado em um local conhecido como grotão, em uma mata próxima de um muro branco que faz divisa com um local de que não se recorda”. Wilson encontra-se assim descrito nos documentos: Foi visto por último pela genitora, utilizando bermuda preta, camisa de malha amarela e tênis de cor cinza, no local onde reside. É negro, com vinte anos de idade, forte, com pelo menos 1.75m de altura, cabelo rapado, possui duas tatuagens, uma tatuagem de uma índia no ombro esquerdo, um desenho de contorno de Jesus Cristo na costa do lado direito. Um dente quebrado da arcada superior. Sobrancelhas cerradas e unidas. Não sabe o nome da

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dentista recordando-se apenas que tem consultório no Jardim Catarina em São Gonçalo. 69

O cunho imaginário da morte desses desaparecidos não decorre de dúvidas dos comunicantes, que detalham execuções a partir de boatos, recados e informações obtidas de fontes não reveladas. De fato, muitas “declarações” como as do pai de Elói são feitas não como certezas, mas como descrições de fatos sobre os quais o comunicante “ouviu dizer”, “acredita, mas não pode confirmar”, e “tomou conhecimento porque dizem pela localidade que o desparecido foi morto”. Porém, o óbito desses desaparecidos é imaginário não em função das dúvidas que revestem as falas de comunicantes, mas porque tais falas restam sem confirmação ou contestação por parte dos policias. No mais das vezes, as diligências realizadas tendo como finalidade verificar se houve ou não óbito em casos de desaparecimento restringem-se a buscas em sistemas de informação e ao envio de Ofícios ao IML, IFP e Santa Casa de Misericórdia, respondidos usualmente com os “nada consta” que tornam os casos mais nebulosos quanto mais se acumulam. A prática de não averiguar e, assim, não confirmar nem contestar relatos de assassinato e carbonização de cadáveres situa os desaparecidos e demais “Envolvidos” em casos semelhantes ao de Elói nas “margens do Estado” de que falam Das & Poole (2004). 70 Meios em que, porque ausente, o poder regulador do Estado constitui-se como imprescindível, espaços territoriais e populações “marginais” são aquelas que passam ao largo da lei e de certa pedagogia no mundo da lei, de práticas de documentação e estatística e/ou de poderes disciplinares. (Das & Poole, 2004, p.9-11) A não confirmação dos relatos registrados sobre o destino de Elói, à luz dessas idéias, revela a posição marginal em que o próprio jovem desaparecido é situado no decurso da trajetória burocrática de seu caso, ao lado de seu pai, que o comunica à polícia, e ainda do próprio “morro” em que ele teria sido assassinado. A cena da morte do jovem descrita por Hamilton, afinal, nada mais é que a descrição de um

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 205/05 do SDP/DH. Na concepção de Das & Poole (2004), práticas administrativas estatais constroem e perpetuam “margens” territoriais e sociais nas quais o próprio poder de estado é cotidianamente refundado. Apresentadas como desordeiras, ilegíveis e fora de controle, as “margens do estado” de que falam as autoras são espaços e populações face aos quais o estado, porque aparentemente ausente, constitui-se como instrumento de regulação imprescindível. Tal perspectiva demanda que nos afastemos de concepções do estado como forma administrativa racionalizada que se torna mais frágil em suas margens e de suposições de que o que está fora da ordem e da lei está necessariamente fora do estado ou ameaçando seu poder. Ao contrário disso, espaços e populações sobre os quais não há registros e processos de documentação oficiais, regulamento e normatização legal ou, como em casos de desaparecimento, identificação e localização de indivíduos, são condição de possibilidade para a constituição do próprio estado em toda sua força reguladora. 70

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episódio de desordem, vivido em território fora da lei e protagonizado por pessoas não identificadas, às quais não serão imputadas responsabilidades pelo ocorrido. Segundo o inspetor Menezes, o desaparecimento é hoje uma das formas de atuação mais comuns entre “bandidos e traficantes de morros cariocas”. Construindo uma cadeia de acontecimentos que começa com a retirada de uma pessoa de circulação, o inspetor sustenta que “os bandidos e traficantes desaparecem com as pessoas, depois matam e desovam ou queimam os corpos”. Sem precisar exatamente quando essa mudança teria ocorrido, Menezes defende que “antes” bandidos e traficantes assassinavam seus rivais e inimigos e, para demonstrar poder, exibiam os cadáveres “à luz do dia, pra quem quisesse ver”. “Agora” a prática é distinta: os cadáveres das vítimas desses criminosos são carbonizados, entre outros métodos, no interior da pilha de pneus do chamado forno de microondas, como teria ocorrido a Elói, ou desovados em locais de difícil acesso que são controlados por bandidos, como Wilson. Ocultar ou exterminar os corpos de suas vítimas para apagar possíveis pistas dos crimes que cometem seriam fonte de poder para criminosos hoje, ao contrário da exposição de cadáveres de que faziam questão “antes”. A recorrência com que essa prática é empregada no Rio de Janeiro, para Menezes, é a grande causa do recebimento diário de casos de desaparecimento no SDP e faz com que muitas ocorrências restem sem solução. Afinal, nos termos dele, “a polícia não sobe o morro e, mesmo se subir, não encontra os corpos”.

2.4 (Outros) Casos como o de Elói e, a seguir, o de Urbano, enredam suspeitas e denúncias de crimes que são registrados como desaparecimentos, embora aparentemente pudessem ser enquadradas em tipos penais. Muitas vezes isso ocorre porque em sua primeira ida a repartições policiais comunicantes dizem apenas que não sabem onde estariam as pessoas por que procuram, desconhecendo ou optando por não relatar notícias, boatos e informações sobre suas execuções e mortes. Não obstante, ao prestar “declarações” na segunda ou terceira ida às delegacias, comunicantes detalham cenas de execução, homicídio, vilipêndio e ocultação de cadáveres que seguem registradas sob o título “Desaparecimento - Desaparecimento (Outros)”. A segunda ou terceira ida do comunicante à delegacia, portanto, não incide sobre os juízos feitos pelos policiais que registraram o caso no ato de sua comunicação. Mesmo que suas “declarações” neguem o que havia dito na primeira vez que procurou a repartição e descrevam o caso em todos os seus “detalhes mórbidos”, como relatou o policial encarregado 120

do caso de Elói, o que o comunicante diz no decorrer do caso não leva o policial a questionar sua decisão inicial de intitular a ocorrência como desaparecimento. No desaparecimento de Urbano, o policial encarregado registra com tom de certezas que o jovem foi “assassinado por traficantes”. Contudo, esse assassinato está registrado como caso de desaparecimento, hoje arquivado como Sindicância Suspensa junto a todos os desaparecimentos que venho narrando até aqui.

URBANO Dia 23 de novembro de 2003, Hamilton dirigiu-se à DP de Neves, em São Gonçalo, para comunicar o desaparecimento de seu filho Urbano, que completara 20 anos pouco antes, no comemorativo dia 15 de novembro. Segundo Hamilton, na manhã do dia 21, Urbano saiu para trabalhar em seu horário habitual e, desde então, não voltou para casa. Hamilton aguardou a volta do filho por dois dias, até que “recebeu um telefonema anônimo em que diziam que seu filho havia sido morto na FAZENDINHA DE INHAÚMA e que seu corpo havia sido carbonizado”. Ao solicitar o registro, Hamilton firmou compromisso de retornar à DP levando uma foto de Urbano e, ainda, pediu “uma ressalva para as horas ausentes de trabalho” que passara na repartição policial. Em abril de 2003, sob a justificativa de que “os familiares do desaparecido não atenderam aos convites enviados, mostrando assim, total falta de interesse no fato”, o inspetor da DP que ficara responsável pelo caso solicitou seu encaminhamento para o SDP. Do SDP, porém, o caso retornou para DP, já em março do ano seguinte. Um inspetor do Setor, afirmando não ter havido investigações efetivas em torno do caso na DP, devolveu o caso “para o cumprimento integral da Res. 513/1991”. Em maio de 2004, Hamilton voltou à DP e prestou novas declarações. Contradizendo a si próprio, afirmou então que Urbano não saíra de casa para ir trabalhar no dia 21 e que, na verdade, seu último contato com o filho havia sido por telefone, dia 15 de novembro. Depois do telefonema, a única notícia que teve do filho foi aquela trazida pelo telefonema anônimo. Contando com as novas declarações de Hamilton, o caso foi reencaminhado para o SDP. Em agosto de 2004, então, circularam Ofícios entre o Setor e o IFP, a Santa Casa de Misericórdia, o Desipe, a Polinter e o IML. Neles, informações sobre Urbano foram solicitadas e respostas negativas foram remetidas ao SDP. Também naquele mês, o inspetor do Setor que cuidou do caso solicitou de duas DPs de São Gonçalo que seja enviada ao Serviço de Descoberta de Paradeiros desta Especializada, cópias dos registros de ENCONTRO DE CADÁVER, não identificados, no período de 16 a 30 de novembro de 2003. No ensejo, informo que tal solicitação visa instruir os autos da sindicância acima em referência, instaurada para apurar o paradeiro do cidadão URBANO AMARAL.

Ambas DPs responderam à solicitação remetendo ao SDP, ao todo, sete Registros de 121

Ocorrência: quatro de “Encontro de Cadáver”, acompanhados de suas respectivas Guias de Remoção; um de “Homicídio proveniente de Auto de Resistência”; e dois de “Homicídio Provocado por PAF (Projétil de Arma de Fogo)”. Em todos os ROs havia referência a cadáveres não-identificados que foram assassinados, encontrados e/ou removidos no mês do desaparecimento de Urbano. Nenhum deles, segundo o inspetor que cuidou do caso, era de Urbano. Além de reunir os ROs recebidos e checados à Sindicância de Urbano, o inspetor também consultou o registro do desaparecido na Justiça Eleitoral. Constatou então que Urbano esteve “ausente nas urnas em 10/2004 e 10/2005”. Quase cinco anos depois, já em agosto de 2008, a Sindicância foi arquivada como Suspensa, sob a justificativa de não haver indícios do paradeiro de Urbano que permitissem que a investigação continuasse. Paradoxalmente, porém, no mesmo relatório em que o arquivamento foi solicitado, o inspetor que cuidou do caso registrou certezas quanto ao que ocorrera ao desaparecido: Sendo certo que restou apurado que seu [de Hamilton] filho foi assassinado por traficantes na Comunidade Fazendinha, no Bairro de Inhaúma, que após matá-lo atearam fogo ao seu cadáver, fato ocorrido no alto do referido Morro. Ressaltando-se desde logo que o requerimento de suspensão não implica na paralisação definitiva das investigações, que deverá ser reativada tão logo haja indícios para seu prosseguimento ou qualquer manifestação positiva das partes envolvidas.71

A decisão de intitular o RO que deu início ao caso com o termo desaparecimento foi tomada diante dos primeiros relatos do pai do jovem, Hamilton, ao policial encarregado do caso na DP. Embora tenham sido parcialmente contraditos meses depois, esses relatos já informavam sobre o telefonema anônimo recebido na casa de Urbano, através do qual seu pai ficara sabendo de seu possível assassinato. Entre os documentos do caso, não há registros de que essa informação tenha sido rastreada por policiais. Tampouco há registros de contatos telefônicos ou Mandados de Intimação que tenham sido emitidos pela DP para o pai de Urbano, convocando-o a retornar a DP. Entretanto, o caso conta com o registro acusatório de que “os familiares do desaparecido não atenderam aos convites enviados, mostrando assim total falta de interesse no fato”. Ainda assim, o “fato” que levou Hamilton à DP e a reportar ao policial que o atendeu o conteúdo do telefonema anônimo recebido em sua casa foi tratado no Relatório final do caso como um assassinato que “restou apurado”. Consultas a instituições feitas através de Ofícios permitiram ao policial do SDP encarregado do caso não obter notícias do desaparecido, mas confirmar seu desaparecimento e reforçar seu caráter enigmático: Urbano não compareceu às urnas para exercer suas obrigações eleitorais, não teve seu corpo necropsiado no IML, não teve seu óbito registrado pelo IFP, não foi enterrado em nenhum dos treze cemitérios administrados pela Santa Casa e 71

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 304/04 do SDP/DH.

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não foi preso ou recebeu Mandado de Prisão que pudesse ser rastreado no Desipe e na Polinter. A checagem de ROs de “Encontro de Cadáver” registrados em datas próximas ao desaparecimento do jovem também tiveram o mesmo efeito: do ponto de vista do policial que cuidou do caso na DP, nenhum dos cadáveres citados nos documentos seria de Urbano. Cada uma dessas negativas pode ser encarada como confirmação do relato de Hamilton: se Urbano foi morto e carbonizado, sua morte de fato não engendraria registro nas instituições consultadas e seu corpo, convertido em cinzas, não seria objeto de ROs de “Encontro de cadáver”. Não há, contudo, registros de que essa hipótese tenha sido verificada, embora o Relatório final do caso afirme sumariamente que ela “restou apurada”. Urbano foi assassinado e teve seu corpo carbonizado, mas seu caso restou arquivado como desaparecimento. Paradoxalmente, esse desaparecimento é tanto construído como enigma, quanto traz em si uma provável resposta para esse enigma. Embora não seja crime, e sim uma categoria administrativa como todo “fato atípico” registrado em delegacias, o desaparecimento pode conter relatos de fatos passíveis de ser classificados como crimes e enquadrados em tipos penais, como o caso de Urbano torna nítido. Contudo, a decisão de intitular um RO como desaparecimento, tomada no começo da rotina burocrática de todo caso, incide sobre sua trajetória de modo determinante, se não irreversível. Casos como o de Urbano, Elói e tantos outros jovens sobre os quais são descritos “detalhes mórbidos do que teria sido sua execução”, talvez justificassem prestigiosas operações policiais como as que contrastam, nos dizeres do inspetor Fernando, com o “só preencher papel” característico do dia-a-dia do SDP. Mais do que isso, casos como esses talvez explicassem por que, afinal, o Setor consiste em uma sala da Delegacia de Homicídios. Entretanto, como profecias que se auto-cumprem, desaparecimentos são inicialmente registrados como ocorrências desimportantes e assim seguem seu curso até o momento de seu arquivamento, sem que registros firmados entre seus documentos dêem origem a muito mais que novos registros. Execuções, carbonização de cadáveres, suspeitas de envolvimento com tráfico de drogas e relatos de vinganças e querelas entre desaparecidos e aqueles que o inspetor Menezes chama de “bandidos e traficantes” preenchem as gavetas do SDP. São considerados aspectos dos enredos de desaparecimentos, e não indícios de que os casos possam consistir em outros tipos de ocorrência policial. Entretanto, esses são aspectos de apenas alguns dos desaparecimentos guardados nas gavetas do Setor. Tramas variadas, constituídas por elementos que não justificam, e sim lançam dúvida sobre a pertinência do SDP à Delegacia de Homicídios, convivem naqueles 123

arquivos. Ao longo da pesquisa, para tentar compreender e tornar manejável a heterogeneidade dos casos guardados no SDP, agrupei as Sindicâncias com que tive contato em onze grupos que apresento no Quadro 3, começando pelo que reúne desaparecimentos como os de Urbano e Elói. Ao construir grupos a partir de semelhanças entre casos, busquei tanto abarcar a variedade de tramas registradas como ocorrências de desaparecimento, quando explicitar os limites dessa variedade. O quadro que descreve os grupos permite visualizar a multiplicidade de enredos que subjazem à idéia de desaparecimento, apresentando em resumo o espectro de tramas que um “fato” assim registrado em repartições policiais pode comportar. Esse espectro não é nem ilimitado quanto fazem supor as comunicações de casos que os constroem como incógnitas, nem tão restrito quanto o enxuto leque de hipóteses levantado de praxe por policiais leva a pensar.

Grupo Rumores de morte

Característica comum Casos em que há registros como “acredita-se”, “supõe-se”, “suspeita-se” ou, enfim, presume-se que o desaparecido esteja morto, mas não há registros de que seu cadáver e/ou registro de óbito tenham sido localizados. Registram suposições de morte, como os casos de Urbano e Elói (neste capítulo).

Andanças

Casos em que há registros de que os desaparecidos vivem nas ruas e/ou foram encontrados perambulando pela cidade ou vivendo na mendicância. Registram descrições de certo modo de vida andarilho, como o caso de Vicente (próximo capítulo).

Perturbações

Casos em que há registros atribuindo aos desaparecidos desvios como “problemas mentais”, “doença mental”, “perturbação da cabeça”, “esquizofrenia” ou “problemas psiquiátricos”. Registram fatos vistos como decorrentes de problema mental (permanente ou temporário) que acometeu o desaparecido, como no caso de Lúcio (neste capítulo).

Institucionalizações

Acidentes

Desapropriações

Casos em que o desaparecido, enquanto era procurado como tal, encontrava-se internado, abrigado ou sob tratamento em hospital, abrigo ou asilo, sem que aquele que comunicou seu desaparecimento tivesse conhecimento. Registram internações em instituições que não são de conhecimento daqueles que procuram o desaparecido, como o caso de Otávio (neste capítulo). Casos em que o desaparecido foi vítima de um acidente, intempérie ou calamidade pública. Registram a impossibilidade de se encontrar vítimas de acidentes, intempéries ou calamidade ou localizar seus cadáveres, como o caso de Bruno (próximo capítulo). Casos em que o desaparecido possui patrimônio, bens, direitos ou obrigações pendentes e/ou que sejam do interesse de outrem. Aqueles que comunicam esses casos o fazem para posteriormente obter Declaração de Ausência ou qualquer documento que certifique o desaparecimento da pessoa e permita desembaraçar pendências ou processos de transmissão de patrimônio. Registram ausências que deixaram questões judiciais e/ou 124

administrativas em aberto, como o caso de Sílvio (capítulo 1).

Rotinas desconhecidas

Enterros não sabidos

Casos em que há registros de que o desaparecido, enquanto era assim considerado, estava realizando atividades costumeiras. Trazem frases como “estava no trabalho” ou “só tinha ido dormir fora”. Registram o desconhecimento por parte de quem comunica o fato à polícia de que o desaparecido está realizando atividades habituais, como o caso de Francisco (neste capítulo). Casos em que o desaparecido faleceu e teve óbito certificado e registrado em cartório sem que pessoas de seu convívio tomassem conhecimento. Registram o desconhecimento da morte do desaparecido por parte de quem comunica o fato, como o caso de Humberto (próximo capítulo).

Fugas

Casos em que o desaparecido partiu furtivamente, sem deixar qualquer aviso ou expressar abertamente desejo de partir, sendo por isso visto como alguém que fugiu - de uma casa, instituição ou local em que costumava ser visto. Registram fugas, como o caso de Arlete (próximo capítulo).

Retiradas

Casos em que o desaparecido deixou o lugar em que vivia voluntariamente, deixando aviso ou expressando abertamente o desejo de partir e não ser procurado. Registram retiradas, como o caso de Rodrigo (capítulo 1)

Outros

Casos que não contêm registros que permitam enquadrá-los nos outros grupos. Os documentos não deixam saber nada além do fato de que um comunicante reportou à polícia que uma pessoa desapareceu.

Quadro 3: Grupos de casos

Como discuto no capítulo 5, o Quadro 3 não tem como finalidade apresentar uma taxonomia do

desaparecimento

de pessoas,

sobretudo

porque separar tipos de

desaparecimento causa a equivocada impressão de que casos são facilmente agrupáveis e distinguíveis, quando na realidade muitos têm características que os fazem deslizar entre os grupos propostos e os tornam passíveis de ser enquadrados em dois ou três deles ao mesmo tempo, colocando em questão a validade da própria distinção de grupos. Agrupar casos torna possível localizar os desaparecidos de um ponto de vista lógico e analítico, a partir dos registros feitos pelos policiais que são chamados a localizá-los física e burocraticamente. Diferente de classificar desaparecimentos, sua função é exibir e delimitar a heterogeneidade das ocorrências arquivadas no SDP, construindo um mapa do território documental relativamente vasto que se descortina a quem abre as gavetas do Setor. Além de uma forma de representação da limitada heterogeneidade dos casos, o quadro produz um efeito digno de destaque: a constatação de que muitos casos não cabem em grupos e tipos, sobrando para o grupo que intitulei “Outros”. Os casos reunidos como “Outros” são desaparecimentos cujos registros resultam somente em sua construção e reprodução como enigmas. Não contêm relatos de supostas mortes, nem de desaparecidos que vagam pela 125

cidade, fugiram de suas casas, sofreram acidentes ou, entre outras possibilidades, estavam simplesmente executando atividades rotineiras sem que aquele que comunicou seu desaparecimento à polícia soubesse disso. Enquanto os casos reunidos nos demais grupos contêm registros que especificam suas tramas, os “Outros” revelam apenas que um comunicante reportou o desaparecimento de alguém, que DPs e SDP realizaram diligências e nada descobriram que esclarecesse o caso, e, finalmente, que ele foi arquivado. Expressão máxima da lógica cartorial vigente em repartições policiais, os “Outros” são casos cujos registros documentam apenas a rotina burocrática por eles percorrida.

JOSÉ Em dezembro de 1966, Otávio e Ivonete tiveram um filho e a ele deram o nome de José. Oito meses depois, Ivonete “levou o menino e o entregou à Sra. Maria dos Santos”, que providenciou o registro de nascimento de José como sendo seu filho. Otávio tentou reaver o bebê naquela época, mas não conseguiu. Vinte e três anos depois, José “quis encontrar os verdadeiros pais”. Foi então que ele e Otávio se reencontraram. Otávio relata “que recebeu o filho com muito carinho e fez com que José se aproximasse de toda família”. Conta ainda que, no reencontro, não só reviu o filho, como também foi apresentado ao neto, Daniel, e à nora, Nélia. Em janeiro de 2004, Otávio recebeu um telefonema de Daniel, preocupado por não ter notícias do pai. Otávio então telefonou para Nélia e confirmou que tampouco ela tinha notícias de José. Saiu em busca do filho “em hospitais, IMLs, casas de amigos e inclusive ligou para a mãe biológica de José, a Sra. Ivonete, mas não obteve êxito”. Decidiu então ir a uma delegacia, onde o desaparecimento de José foi registrado. Na mesma ocasião, os relatos de Otávio sobre a história de sua relação com seu filho foram registrados em um Termo de Declarações. Em março de 2004, passados quase três meses do registro do caso e sem que outras diligências tenham sido levadas adiante, o inspetor que atendera Otávio redigiu relatório informando que “o pai do desaparecido não forneceu elementos necessários para o prosseguimento das investigações”, e sugeriu que o caso de José fosse encaminhado ao SDP. Já em 2005, quase um ano depois de receberem o caso, inspetores do SDP solicitaram informações que pudessem esclarecer o paradeiro de José através de ofícios remetidos a vários órgãos oficiais do Estado, tais como IFP, IMLAP, Polinter, DESIPE, Santa Casa de Misericórdia, entre outros; como também foram efetuadas buscas no INFOSEG – Integração Nacional de Informação de Justiça e Segurança Pública da Secretaria Nacional de Segurança Pública, conforme se verifica nas cópias inseridas nos autos; contudo, as respostas recebidas foram negativas.

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Enquanto as referidas respostas negativas chegavam ao SDP, Otávio e Nélia foram convidados a prestar declarações no Setor, mas não compareceram. Feitos pelo telefone, os convites aos dois foram registrados em relatório, bem como seu não comparecimento no SDP. Os convites não foram refeitos, e nenhuma outra diligência foi empreendida. Anos depois, já em maio de 2008, o caso foi suspenso “até que eventualmente surjam novos elementos com valor investigatório que possibilitem a retomada das investigações”. Além das informações sobre a relação entre José e Otávio, a Sindicância conta apenas com registros dos poucos procedimentos empreendidos em seu decurso. 72

Conforme busquei sustentar neste capítulo, todo caso é construído pelos próprios procedimentos levados a cabo em seu decurso como um enigma bastante peculiar. Como destacado a partir do caso de Urbano, desaparecimentos muitas vezes são compostos, a um só tempo, por registros que os apresentam como enigmas e outros que descrevem em detalhes fatos e questões que os explicariam, especificando suas tramas e permitindo a um pesquisador construir grupos que reúnem casos – ou, como descrevo no capítulo 5, a gestores governamentais, policiais e outros agentes sociais a produzirem, juntos, categorias de desaparecimento. O que os casos que sobram indicam é que muitos desaparecimentos não contam com registros de possíveis explicações para o “fato” que documentam. Por restringirem-se a documentar procedimentos, tais casos restam arquivados como tramas de solução e explicação aparentemente impossível. Essas tramas não são apenas casos remanescentes que desafiam possíveis tipologias e complicam a tarefa daqueles que pretendam compreender o desaparecimento de pessoas. Nas repartições em que são registrados, tais enredos têm evidente utilidade: justificam a idéia de que o trabalho policial diante de desaparecimentos não faz, nem poderia fazer muito além de “só preencher papel”. Afinal, consistem em “fatos” de explicação impossível. Diante deles, só há espaço para um “trabalho policial que pouco conforma, apenas informa que não há registros em nome daquele desaparecido”, como vimos registrado no caso de Elói. Como me disse em certa ocasião o inspetor Carlos Ernesto, “em muitos casos nada adianta. Você pode chamar os familiares, ouvir todo mundo e perguntar um monte de coisas, mas não vai saber nada do desaparecido e nada de nada.” No capítulo 5 retomo o quadro proposto e reflito mais detidamente sobre a utilidade e os efeitos de se construir tipologias a partir de casos de desaparecimento. Antes disso, porém, discuto os artefatos engendrados pela rotina burocrática percorrida pelos desaparecimentos 72

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 321/04 do SDP/DH.

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arquivados no SDP (capítulo 3) e, em seguida, como o desparecimento, a despeito de comportar tramas tão heterogêneas, é construído como um só “problema social”, passível de combate e prevenção (capítulo 4).

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Capítulo 3 Esgotadas todas as possibilidades: Uma ocorrência policial e seus artefatos

A palavra diligência, empregada em repartições policiais para designar cada passo da rotina burocrática de casos de desaparecimento e de outros tipos de ocorrência, pode significar também “interesse ou cuidado aplicado na execução de uma tarefa; zelo”. (Houaiss, 2001, 1.041) Presta-se, pois, tanto a nomear medidas executadas com determinado fim, como em seu emprego usual nas repartições policiais, quanto a qualificar atos e comportamentos. As diligências levadas a cabo diante de desaparecimentos, muitas vezes restritas a chamadas telefônicas, registros de “nada consta” e, nas palavras do inspetor Carlos Ernesto, “só procedimentos administrativos”, são providências tomadas por policiais apesar de seus questionamentos quanto a sua responsabilidade diante dos casos e em meio a frustrações, indiferença, resignação e todo um conjunto de sentimentos. Mesmo afirmando que não são “problema da polícia”, e sim acontecimentos que deveriam estar sob os cuidados da “assistência social”, policiais tomam providências, algumas vezes com diligência, diante das múltiplas situações enredadas nos casos de desaparecimento que registram e arquivam diariamente. Ainda que encarados como “problemas de família” e “problemas de assistência social”, portanto, desaparecimentos são parte constitutiva do trabalho policial. O quadro administrativo burocrático que executa esse trabalho é composto por servidores públicos específicos: policiais civis concursados, que integram a atualmente denominada Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro. Em relação aos que atuam no SDP, é possível especificar ainda mais sua posição organizacional. Trata-se de grupo de servidores inscritos no Departamento Geral de Polícia Especializada e, dentro desse Departamento, lotados na Delegacia de Homicídios do Centro/Capital, hoje Divisão de Homicídios. Essa posição específica e bastante delimitada dos policiais que lidam com desaparecimentos, contudo, deve ser encarada com parcimônia ou, por que não, com bastante diligência. Isso não apenas por se tratar de um quadro de servidores inscrito no pouco especializado âmbito da polícia especializada fluminense, como demonstra Nascimento (2008), mas também pelas propriedades mais amplas do trabalho policial. Bayley (2006), em sua análise comparativa de padrões de atuação e operações policiais em diferentes países, reflete sobre o quão complexa é a tarefa de definir a natureza 129

do trabalho da polícia. “É difícil assegurar o acesso permanente a ela” (Bayley, 2006, p.118), determinando de antemão o que é e o que não é trabalho policial, e daí derivaria essa complexidade. Para o autor, na prática de repartições e operações, a definição do que é o trabalho policial se faz constantemente, levando em conta “a descrição organizacional do que os policiais estão fazendo – patrulhando, investigando, controlando o tráfego, aconselhando e administrando” (Bayley, 2006, 118) e do que usualmente fazem, mas também as situações com as quais a polícia se envolve: crimes em andamento, brigas domésticas, crianças perdidas, acidentes de automóvel, pessoas suspeitas, supostos arrombamentos, distúrbios públicos e mortes não-naturais. Nesse caso, a natureza do trabalho policial é revelada por aquilo com que ela tem de lidar. (Idem, Ibidem, p.119)

O trabalho policial pode, pois, ser definido como aquilo que policiais fazem diante das situações que lhe são cotidianamente apresentadas, mas também por essas situações mesmas, por mais heterogêneas que sejam. Embora seja usual a idéia de que o objeto do trabalho policial restringe-se, factual ou idealmente, a crimes e ocorrências correspondentes a tipos penais, as atribuições da polícia vão muito além da investigação criminal. Como afirma Durão (2008) em sua etnografia da polícia lisboeta, A referência ao crime é investida de uma neutralidade consensual e transforma-se no suporte privilegiado da reivindicação da autonomia profissional e da autodeterminação policial das suas orientações. Mas o trabalho policial e as suas tarefas são de uma variação incomensurável e não merece consenso unânime. Há dificuldade em avançar com uma definição exaustiva do trabalho policial: a ordem social, porque é social, é por definição arbitrária, sujeita às avaliações sociais, ora implicando ora excluindo práticas de conservação, reforço e sanção tão variadas como as que originam os “desarranjos” e as “desordens”. (Durão, 2008, p.79)

A princípio, as reflexões de agentes do SDP mencionadas nos capítulos anteriores parecem refutar essa idéia. Afinal, as falas dos policiais excluem casos de desaparecimento do que seriam “problemas de polícia”, definindo o trabalho policial por oposição ao que seriam “problemas de família” e atribuições “da assistência social” ou, resignando-se diante de frustrações, “do Estado”. Todavia, como cada caso narrado nessa tese não deixa dúvida, em seu trabalho cotidiano policiais efetivamente registram, investigam e arquivam casos de desaparecimento. Ao afirmar que não deveriam fazê-lo, certamente não estão negando que o fazem. Ao invés disso, ao questionar sua responsabilidade diante dos casos os agentes apontam para a incomensurável amplitude de escopo do trabalho policial.

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3.1 São essas coisas de todo instante Em sua genealogia do complexo científico-judiciário que teve como um de seus principais instrumentos e resultados a prisão moderna, Foucault (2006) reflete sobre o processo através do qual resguardar a ordem social deixou de ser função de patronatos, grupos privados de inspiração religiosa ou sociedades de auxílio e tornou-se função de um sistema policial estatizado. Focando a França do século XVIII, o filósofo apresenta o quão amplo era o leque de atribuições do então nascente sistema policial estatizado, e o quão diligente e minuciosa deveria ser sua forma de atuação: se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado, e se foi mesmo diretamente ligada ao centro da soberania política, o tipo de poder que exerce, os mecanismos que põe em funcionamento e os elementos aos quais ela os aplica são específicos. É um aparelho que deve ser coextensivo ao corpo social inteiro, e não só pelos limites extremos que atinge, mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega. O poder policial deve-se exercer “sobre tudo”: não é entretanto a totalidade do Estado nem do reino como corpo visível e invisível do monarca; é a massa dos acontecimentos , das ações, dos comportamentos, das opiniões – “tudo o que acontece”; o objeto da polícia “são essas coisas de todo instante”, “essas coisas à toa” de que falava Catarina II em sua Grande Instrução. Com a polícia estamos no indefinido de um controle que procura idealmente atingir o grão mais elementar, o fenômeno mais passageiro do corpo social. (Foucault, 2006, p. 176)

Os trabalhos de Brandão et al (1981), Holloway (1993), Vianna (1999) e Cunha (2002), entre outros estudos históricos e antropológicos focados na formação e/ou atuação da polícia no Rio de Janeiro, revelam que as palavras de Foucault acerca do sistema policial francês dizem muito sobre cenários e temporalidades tão distantes daquele contexto quanto próximos de nós.73 Nos finais do século XIX e começo do XX, o então Distrito Federal em pleno processo de urbanização teve na nascente polícia um agente de controle que zelava pela manutenção de supostos padrões de ordem pública e decoro moral que poderiam ser violados pelas situações aparentemente mais corriqueiras. “O simples esforço para viver nas cercanias das áreas urbanas e relacionar-se com seus iguais nas ruas ou praças, nas tavernas, nos botequins ou nos batuques de quintal” (Holloway, 1993, p.252), pelos olhos da polícia,

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Outras referências sobre a história e o escopo de atuação da polícia no Rio de Janeiro são: BRETAS, Marcos Luís. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; BRETAS, Marcos Luís. Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: Rocco, 1997; MATTOS, Marcelo Badaró. Vadios, jogadores, mendigos e bêbados na cidade do Rio de Janeiro no início do século. (Dissertação de mestrado.) Niterói: ICHF/UFF, 1991.

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poderia ser convertido em mendicância, embriaguez, jogo e vadiagem, comportamentos definidos pelo Código Penal de 1890 como contravenções. (Vianna, 1999, p. 45). Eminentemente discricionário, o trabalho da polícia como agente de controle demandava (e cumulativamente produzia) um tipo de saber específico, que habilitava seus agentes a reconhecer perigos em potencial, supostamente encarnados por indivíduos tidos como suspeitos. Tomando de empréstimo o iluminador trocadilho que dá título ao trabalho de Vianna (1999), a polícia adivinhava o que poderia advir de determinados sujeitos, enquadrando-os em tipos e categorias e determinando-lhes destinos. Nesse exercício de adivinhação, o trabalho da polícia se fazia como ato e qualificação, unindo os dois significados que o termo diligência comporta. O olhar arguto e perscrutador que permitia aos agentes identificar suspeitos deveria alcançar os espaços mais diversos, supondo que perigos em potencial espalhavam-se por todo o também nascente cenário urbano. 74 Transgressões, crimes e contravenções estariam imiscuídos no emaranhado de fatos e relações constitutivo da vida social, cabendo à polícia não só “identificar na massa o tipo perigoso” (Pechman, 2002, p.359), mas também delimitar e distinguir ordem e desordem, em consonância com as transformações sanitárias e urbanísticas então em processo. (Chalhoub, 1986). Nesse quadro, a polícia desempenhou papel central “na criação de um novo cotidiano urbano, centrado no trabalho – de preferência no trabalho apenas minimamente especializado – como um modo de controle social” (Vianna, 2002, p.45), o que as leis e operações que reprimiam a vadiagem explicitam com nitidez. O arcabouço legal e operacional que incidia sobre sujeitos classificados como vadios, Mais do que cunhar uma concepção em que a idéia de ganhar a vida fica referida ao exercício de uma profissão dando-lhe portanto sentido, permite também a internalização de uma concepção que é o seu oposto, não trabalhar, não exercer uma atividade produtiva é perder a vida, ou melhor, seu direito como cidadão. (Brandão et al, 1981, p. 224)

Kant de Lima (1995), a partir de pesquisa de campo junto à polícia do Rio de Janeiro realizada na década de 1980, mostra que o saber de tons divinatórios empregado por policiais pode ser encontrado na condução dos inquéritos policiais em sua forma contemporânea, 74

Como mostram Carrara (1984), Corrêa (1998), Cunha (2002) e Moses (2002), o processo de formação da polícia e da força policial no Rio de Janeiro e o desenvolvimento de técnicas de identificação de indivíduos suspeitos inscrevem-se no marco mais amplo de “discursos em torno da cientifização dos mecanismos de identificação criminal [que] estiveram intimamente ligados a determinadas concepções que uma série de atores que se debruçaram sobre o tema tinham a respeito da sociedade e dos indivíduos” (Cunha, 2002, p.31) Medicina legal, antropologia e física e antropologia criminal aglutinaram-se em torno da identificação, em um denso processo sobre o qual não me deterei aqui, analisado em profundidade pelos autores em referência.

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iniciada pelo reconhecimento e identificação de suspeitos. Ademais, o autor afirma que segue orientando o trabalho policial “uma correlação positiva entre trabalho e ordem e não-trabalho e crime, (...) na presunção de uma oposição necessária entre duas categorias sociais: trabalhadores e marginais.” (Lima, 1995, p. 56). Se chamo atenção para a pesquisa desse autor, não o faço apenas para indicar continuidades históricas entre o começo e o final do século XX no que diz respeito à polícia do Rio de Janeiro. Antes, meu objetivo é ressaltar que o trabalho policial, tanto em seu processo de formação, quanto em suas operações rotineiras como, por exemplo, a condução de inquéritos, se faz em atos e qualificações de comportamentos e sujeitos.75 Nessas diligências, mobilizam concepções sobre “o trabalho” que lhe conferem papel determinante na manutenção da ordem social. Tais atos e qualificações não são aplicações imediatas do texto da lei, nem se confinam a um supostamente puro mundo do crime e da criminalidade. Ao contrário, o trabalho policial se faz em diligências e rotinas que se espraiam por uma zona relativamente indeterminada, em que acontecem as “coisas de todo instante” de que falou Foucault. Essas “coisas à toa” deslizam através das fronteiras entre ordem e desordem, entre crime e lei e entre trabalho e marginalidade, delineadas em larga medida pela própria polícia, propiciandolhe largo espaço de atuação. Nos termos de Holloway, Entre os cidadãos particulares serem deixados em paz, por um lado, ou serem acusados de transgredir a lei, por outro, havia uma grande área cinzenta preenchida pela correção disciplinar. Quando se criou o sistema policial, esperava-se que seus agentes corrigissem aqueles cujas faltas se enquadrassem nessa área cinzenta, e essa tradição não foi eliminada de forma fácil e completa. (Holloway, 1993, p.258)

Enquanto em seu processo de formação o trabalho policial no Rio de Janeiro e no Brasil respondeu a demandas, interesses e concepções sobre o indivíduo e a sociedade 75

Pesquisadores do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), ligado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vêm produzindo sistematicamente trabalhos sobre inquéritos policiais e outras operações rotineiras levadas a cabo em delegacias do Rio de Janeiro nos dias atuais. Algumas de suas publicações mais recentes são MISSE, Michel et al. (orgs.). O Inquérito Policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink, 2010; MISSE, Michel. O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil: algumas reflexões a partir de uma pesquisa. Revista Sociedade e Estado. Abr 2011, vol.26, no.1, p.15-27; PAES, Vivian Ferreira. A Polícia Civil no Estado do Rio de Janeiro: análise de uma (re)forma de governo na Polícia Judiciária. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006; PAES, Vivian Ferreira. Como se contam crimes: um estudo sobre a construção social do crime no Brasil e na França. Tese (Doutorado em Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010; RIBEIRO, Ludmila. A qualidade do atendimento prestado pelas delegacias de Polícia Civil na perspectiva dos seus próprios usuários: uma experiência de aproximação entre polícia e sociedade. In: Viva Rio. (Org.). Polícia e Sociedade: prática e saberes no campo da integração da segurança pública. Rio de Janeiro: Viva Rio, 2010, v. 01, p. 26-40.

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expressas pelo que Brandão et al (1981) chamaram de classe senhorial, na contemporaneidade assistimos a um processo distinto. Como mostram as etnografias de Mota (1995) e Barreira (2004), as solicitações que mobilizam o trabalho policial são levadas a repartições sobretudo pelas camadas pobres da população ou, para usar o termo de Barreira (2004), pela comunidade. Entre brigas conjugais, querelas de vizinhança, acidentes de trânsito, furtos, assaltos e, claro, tramas classificadas como desaparecimentos, as queixas, conflitos e demandas levadas pela comunidade às repartições policiais são múltiplas. Não obstante, múltiplas também são as respostas geradas por essas demandas, que vão muito além da investigação criminal e do inquérito policial. Resolver desavenças por mediação, conciliar grupos e pessoas em conflito, ouvir relatos e emitir opiniões ou, como indicam alguns casos de desaparecimento, simplesmente produzir um RO ou uma Certidão são serviços prestados cotidianamente pela polícia diante de solicitações feitas em delegacias. Ainda que, nas palavras do inspetor Fernando e de seus colegas no SDP, tarefas como essas sejam “trabalho de assistência social” ou, nos termos do delegado entrevistado por Barreira (2004), trate-se de “clínica geral”, a prestação desses serviços é parte fundamental do trabalho policial. Ausentes de manuais e textos legais, mas exercidas a todo instante nas repartições policiais, reafirmo, tais tarefas são tão variadas quanto são múltiplas as solicitações da comunidade a que visam responder. É a soma entre essas solicitações e tarefas que confere opacidade à zona cinzenta de que fala Holloway. Mais do que isso, é na soma entre elas que se tece o trabalho policial. Voltemos então para os desaparecimentos de pessoa. Narrado a seguir, o caso de Linda enreda situações que se passam nessa zona cinzenta em que se faz o trabalho policial, beirando muitas vezes o mundo do crime e da lei e, ao mesmo tempo, revelando a permeabilidade de quaisquer fronteiras que pretendam delimitá-lo como único espaço de atuação da polícia. Como todos os desaparecimentos narrados ao longo da tese e como todo trabalho policial, o caso de Linda é fruto do encontro entre pessoas – algumas na condição de comunicantes e solicitantes de serviços policiais, outros ocupando ativamente cargos de agentes da Polícia Civil.

LINDA No começo da década de 1980, Ana Maria colocou um anúncio de emprego no Jornal Fluminense. Seu buffet “Rosa Vermelha” precisava de uma lancheira que dormisse no local de trabalho, e a vaga foi oferecida através daquele jornal. Linda, que tinha então 18 anos, 134

apresentou-se e foi contratada. Linda tinha acabado de voltar para o Rio de Janeiro, seu estado natal, depois de morar por alguns anos no Espírito Santo. Pouco tempo depois de ser contratada, Linda passou a trabalhar tanto como lancheira no buffet, quanto como empregada doméstica na casa de Ana Maria. Também pouco tempo depois, começou a namorar Wellington, filho de sua patroa. Passados alguns anos, Linda e Wellington foram viver juntos em São Gonçalo e tiveram dois filhos: Lígia, hoje adolescente, e Felipe, hoje com 9 anos. Separaram-se algumas vezes, mas sempre temporariamente. Linda deixou o trabalho no buffet e tornou-se dona de casa. Wellington é motorista e, nos finais de semana, trabalha como DJ nas festas organizadas pelo “Rosa Vermelha”. No começo de julho de 2004, Carmem Lúcia, irmã de Linda, foi à delegacia da Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro, comunicar o desaparecimento da irmã. Relatou que havia um mês que Linda “não faz nenhum contato com a família, nem mesmo com a própria mãe” e construiu imagem bastante suspeita de Wellington, estendendo a suspeita para Ana Maria. Afirmou que vinha pedindo notícias de Linda a Wellington há algum tempo, e ele “só informa que ela está viajando, não dizendo para onde, que inclusive a mãe dele também é conivente com o filho não dando nenhuma informação”. Arrematando a suspeita, Carmem relatou que certa vez, durante uma briga, o cunhado esfaqueou Linda. Convertidos à linguagem penal, os relatos de Carmen sobre a briga restaram assim registrados: “Wellington anteriormente foi Autor de Crime de Lesão Corporal contra a desaparecida”. Minutos depois de efetuar o registro, o inspetor da DP que atendeu Carmem Lúcia remeteu um Mandado de Intimação a Wellington. Atendendo ao chamado, o companheiro de Linda compareceu à repartição policial e relatou, a sua maneira, os fatos que considerava relevantes para explicar o que ocorrera a Linda. Descreveu também a personalidade de sua companheira e falou um pouco sobre o relacionamento dos dois. Disse que Linda é ciumenta, tem “temperamento explosivo, agressivo e que sempre viveram bem, apesar de algumas separações de curto tempo”. Sobre a briga que, segundo Carmem, teria gerado inquérito de Lesão Corporal em que Linda seria vítima e Wellington, autor, disse sumariamente que “foi quando tinha cerca de 16 anos de idade e era namorado de Linda e havia uma outra mulher e que na briga generalizada houve facadas e que após entendimentos Linda retirou a queixa”. Para Wellington, o que Carmem Lúcia comunicara e a polícia registrara como desaparecimento era apenas mais uma separação “de curto tempo” entre ele e Linda, que “irá retornar mais cedo ou mais tarde”. O motorista e DJ “não registrou o desaparecimento porque já havia se separado por mais tempo anteriormente”, e conforme indicam os registros firmados a partir de suas falas, afirmou conhecer precisamente os motivos que a levaram a sair de casa: Ultimamente a Linda andava deprimida porque queria que o declarante

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parasse de trabalhar com a mãe (...) e também porque tinha brigado com a irmã, a comunicante, e ainda que sua filha de 16 anos estava grávida e o pai seria um ex-presidiário e também que Linda sempre quis casar com o declarante e o mesmo nunca quis; por isso Linda dizia que estava DESGOSTOSA DA VIDA, com vontade de SUMIR. Que há cerca de dois meses Linda pegou uma mochila, colocou algumas peças de roupas e disse que iria caçar seu rumo e partiu deixando um filho menor de 6 anos, e não disse para onde iria e não retornou.

Cerca de duas semanas depois que Wellington compareceu à DP, e depois que inspetores da repartição fizeram buscas em hospitais e outros “locais, juntamente com familiares, onde poderiam encontrar a vítima, porém sem êxito”, o caso de Linda foi encaminhado para o SDP. A primeira providência tomada pelo inspetor do Setor que ficou encarregado de investigá-lo foi convocar Wellington e Ana Maria para “prestar esclarecimentos”. A partir das falas do companheiro e da sogra de Linda, ficaram registradas reafirmações acerca do “temperamento explosivo” da desaparecida, detalhes sobre situações controversas em que ela estaria envolvida e, ainda, uma descrição de seu “conturbado” relacionamento com Wellington. Wellington relatou que meses antes do desaparecimento, Linda, ele e seus dois filhos tiveram que deixar a casa em que viviam em São Gonçalo porque Lígia, a filha mais velha, estava “namorando um traficante da localidade que veio a ser assassinado”. Mudaram-se então para a Cova da Onça, em Niterói, e deixaram a casa de São Gonçalo sob os cuidados de Beto, sobrinho de Linda e filho de Carmem Lúcia. Beto, entretanto, teria furtado alguns bens da casa, frustrando Linda e causando desavença entre ela e Carmem Lúcia. Grande parte da fala de Wellington foi dedicada a relatar essa desavença, tanto quanto grande parte da fala de Carmem, quando da comunicação do desaparecimento, foi dedicada a cobrir Wellington de suspeitas. Ana Maria, por sua vez, relatou seus primeiros encontros com Linda e falou longamente sobre o relacionamento da desaparecida com seu filho - que, nas palavras dela, “era uma confusão só”. Disse que durante o tempo em que Linda morou em sua casa e trabalhou em seu buffet foram vários os episódios de desentendimento entre Linda e ela, entre Linda e seus colegas de trabalho e entre Linda e Wellington. Atribuiu todos esses episódios ao temperamento de Linda, e disse “que por várias vezes teve que chamar a polícia para contornar a situação, chegando a ir na delegacia.” Embora tenham se estendido por longas páginas, as declarações de Wellington e Ana Maria nada informaram sobre o paradeiro de Linda. Enquanto tais declarações eram “tomadas a termo” pelo inspetor do SDP encarregado do caso, ofícios solicitando informações em nome dela já estavam em circulação entre o Setor e um conjunto de instituições entre hospitais, fundações e alguns órgãos da polícia civil do Rio de Janeiro. Tampouco as repostas dadas a esses ofícios forneceram dados esclarecedores do paradeiro de Linda. A essa falta de informações seguiram-se e somaram-se quatro anos sem que Linda 136

fosse localizada por agentes do SDP e sem que qualquer novo registro sobre seu desaparecimento fosse produzido. Em novembro de 2008, o caso foi arquivado como Sindicância Suspensa.76

Como o desenrolar do caso revela, Carmen dirigiu-se à DP para comunicar não só o desaparecimento de Linda, mas também algumas suspeitas em relação ao companheiro e à sogra da desaparecida. A desconfiança de Carmen em relação aos dois baseava-se, por um lado, nas vagas informações sobre o paradeiro de Linda que ambos vinham lhe dando. Por outro lado, fundava-se também no fato de Wellington já ter cometido um ato contra a desaparecida classificado, nos documentos, como “Crime de Lesão Corporal”. Tanto a imprecisão das informações prestadas por Ana Maria e Wellington, quanto os acontecimentos passados entre ele e Linda foram reportados por Carmen à polícia de modo a rebaixar o marido da desaparecida, imprimindo em suas “declarações” a força niveladora da fofoca (Fonseca, 2000). Para confrontar as suspeitas que recaíam sobre ele, Wellington fez parecido: revestiu sua cunhada de suspeitas, colocando em questão sua relação com Linda e acusando o filho dela, Beto, de ter cometido algo que também poderia ser classificado como crime. Além de destacar a briga entre as irmãs e acusar Beto, Wellington negou que houvesse cometido qualquer crime contra sua companheira, dizendo que de fato “houve facadas” numa situação de conflito entre os dois, mas que Linda retirara a queixa. Com isso, explorou a importância dos registros e documentos, posicionando-se diante das acusações de Carmen “como se só existisse no mundo o que está corroborado no papel” (Peirano, 2009, p.70) e sustentando que se não há queixa, não há crime. Por fim, para confrontar a própria comunicação de desaparecimento feita por Carmen, marco mais amplo em que ela inscreveu suas suspeitas, Wellington afirmou que Linda saiu de casa por razões conhecidas e que voltaria “mais cedo ou mais tarde”, tendo inclusive anunciado que estava desassossegada e desejava “sumir”. O que estava acontecendo, do ponto de vista de Wellington, era não um desaparecimento, e sim (mais) uma separação entre os dois. Já Ana Maria, que muitos anos antes contratara Linda como funcionária de seu buffet e empregada doméstica, deteve-se em qualificações sobre o temperamento de Linda e descrições de situações conturbadas por ela causadas. Ao construir a imagem da desaparecida como pessoa destemperada, Ana Maria chamou atenção para as inúmeras vezes em que teve 76

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 343/04 do SDP/DH.

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que “chamar a polícia para contornar” alvoroços provocados por Linda. Ter que recorrer à polícia para dirimir esses alvoroços, da perspectiva de Ana Maria, indicava o quão desordeira poderia ser a presença de Linda. Ademais, levar os conflitos entre sogra, filho e nora a delegacias poderia funcionar como meio de restabelecer cadeias de obrigações e restaurar padrões de ordem (Enne, Vianna e Carrara, 2002) almejados por Ana Maria. Nas descrições de Ana Maria e Wellington, o relacionamento entre Linda e seu companheiro, sua inserção no buffet “Rosa Vermelha”, o tempo que viveu na casa de Ana Maria e acontecimentos que se passaram em sua própria casa aparecem como “uma confusão só”, permeada pela presença da polícia e por acontecimentos ora classificados, ora desclassificados como crimes. Nesse sentido, ter que “prestar esclarecimentos” sobre o desaparecimento de Linda ou, da perspectiva de Wellington, sobre a mais recente separação entre eles, era uma das muitas situações protagonizadas pela nora que teriam levado Ana Maria a repartições policiais. O que é curioso, não obstante, é que a comunicação de Carmen Lúcia, que deu início à rotina burocrática constitutiva do caso de Linda, de certo modo também seguiu nessa direção. Ainda que a ela não interessasse construir a imagem de sua irmã como pessoa destemperada e explosiva, e sim cobrir Wellington de suspeitas, Carmen contribuiu para que a vida de Linda fosse apresentada e registrada como desordeira, ao mencionar as facadas de que a desaparecida já havia sido vítima. Aspecto chave da gestão do desaparecimento de pessoas, a construção de imagens do desaparecido e dos demais “Envolvidos” nos casos se faz presente não apenas no caso de Linda, e sim no conjunto mais amplo de desaparecimentos que encontrei nos arquivos do SDP. Somando-se, mesmo quando expressam pontos de vista distintos ou opostos, as “declarações” de comunicantes de desaparecimentos e demais “Envolvidos”, juntamente aos registros dos policiais que os investigam e arquivam, constroem imagens sobre os desaparecidos e sobre suas vidas. Agregando interesses expressivos e censura (Bourdieu, 1982), o encontro entre pessoas envolvidas nos casos e policiais a que são relatados fatos, cenas e “coisas de todo instante” que restam registradas como desaparecimentos não só constrói enigmas, como afirmado no capítulo anterior, como também produz imagens sobre pessoas e avaliações de comportamentos. Esse encontro engendra, enfim, aquilo que o termo diligência pode significar: atos e qualificações. Reveladores da multiplicidade de demandas e serviços que circulam na zona cinzenta em que se faz o trabalho policial, atos e qualificações engendrados pelo encontro entre “Envolvidos” e policiais são meu foco de atenção no presente capítulo. Se o ofício da polícia 138

é definido por seus métodos e por seus objetos, já que, como afirmado anteriormente, o trabalho policial é o que os policiais fazem diante das situações que lhes são apresentadas, cabe nos perguntarmos também pelos resultados que ele gera. Já que desaparecimentos não engendram inquéritos e investigações criminais, o que o trabalho policial que se faz em torno dos casos produz? Mesmo que o fazer policial diante de desaparecimentos seja encarado como “só preencher papel”, o que resulta desse fazer? Que atos e qualificações específicos a rotina burocrática constitutiva dos casos de desaparecimento engendra? Por mais formalizados que pareçam, dados os formulários padronizados que lhes servem de suporte material e os jargões que veiculam, registros documentais cuja autoria reside em encontros entre funcionários de repartições e cidadãos que lhes demandam respostas e serviços revelam as habilidades narrativas de todos esses agentes. (Davis, 1987). Se pensarmos nos policiais que registram e arquivam casos de desaparecimento, podemos notar suas habilidades para criar e manter arquivos, emblema máximo da burocracia moderna (Riles, 2006), suas tentativas de oficializar conselhos e compromissos e, ainda, sua destreza em exibir um suposto controle total sobre territórios e pessoas. E se pensarmos, ao mesmo tempo, nos cidadãos que vão a delegacias comunicar desaparecimentos, deparamo-nos com o emprego de recursos narrativos que visam a atribuir boa reputação à pessoa desaparecida ou revestir de suspeitas pessoas enredadas nos registros, como vimos no caso de Linda. Sendo assim, se em contextos como o etnografado por Fonseca (2000) manipular opiniões construindo reputações é a arma dos fracos, que impõem suas vontades por outros meios que não a força física, importa tentar compreender a que se presta a construção de imagens positivas e negativas em torno dos “Envolvidos” em casos de desaparecimento. Os atos e qualificações constitutivos do fazer policial em torno de casos de desaparecimento, nesse sentido, precipitam-se do encontro entre estratégias narrativas e podem ser entrevistos no que fica depositado em documentos e arquivos. A seguir, destaco atos e qualificações que considero artefatos centrais da gestão dos casos de desaparecimento que pesquisei no SDP: conselhos e compromissos, reputações, dependência e controle sobre corpos e territórios. Afirmo que tais atos e qualificações são artefatos da gestão dos casos para chamar atenção para seu duplo caráter. Conselhos, compromissos, reputações, dependência e controle são tanto instrumentos, quanto resultados do trabalho policial diante de desaparecimentos.

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3.2 Aborrecimentos, conselhos e compromissos CINIRA Nascidas em Campos dos Goitacazes, as irmãs Jandira e Cinira têm 11 anos de diferença de idade. Em novembro de 2007, quando contava 30 anos, a primogênita foi à delegacia de polícia comunicar o desaparecimento de Cinira, caçula. Afirmando que aquela não era a primeira vez que sua irmã desaparecia, tendo em outra ocasião passado mais de uma semana sem dar notícias, Jandira relatou apenas que cinco dias antes Cinira desapareceu apenas com a roupa do corpo não sabendo informar que tipo de roupa Cinira usava, que já foi a hospitais e no IML, fez contatos com amigos parentes, no sentido de encontrar sua irmã Cinira, porém até a presente data, Cinira não apareceu e tampouco fez contato, procedendo da mesma forma que na 1ª vez que desapareceu; a declarante disse que se compromete a comparecer a esta delegacia, caso tenha notícias de sua irmã Cinira.

Três dias depois que essas declarações de Jandira originaram registro de desaparecimento em nome de Cinira, o caso foi remetido ao SDP. Contudo, passada mais uma semana, foi na delegacia que o registrou que ele teve continuidade. Dia 8 de dezembro, vinte dias depois de desaparecer, Cinira compareceu à repartição onde foi produzido seu registro de desaparecimento. Fazendo uma espécie de confissão de culpa e firmando compromisso de agir de modo diferente daquele momento em diante, Cinira disse que na verdade não ocorreu nenhum crime relacionado ao seu desaparecimento; que saiu da casa onde mora com sua mãe, em data de 17 de novembro, às 22:00 horas aproximadamente, não dando satisfação a ninguém e não fazendo nenhuma espécie de contato e reaparecendo em sua casa em data de 27 de novembro de 2007, ou seja, 10 (dez) dias após o desaparecimento, dizendo que estava aborrecida com a vida, cansada e extremada; que a declarante está muito arrependida de não ter feito contato com a família, que quando sair para passear e demorar um pouco ligará para alguém de sua família, para comunicar onde e com quem está; a declarante disse que esta é a segunda vez que desaparece, sendo que na primeira nem sequer conversou com a mãe, o que ocorreu durante o tempo em que ficou fora de casa, que foram 9 (nove) dias; que desta vez conversou com sua irmã Jandira dizendo que estava em Volta Redonda, na casa de uma amiga; que durante o período em que ficou fora não sentiu vontade de falar com ninguém, atitude da qual se arrepende e muito. E nada mais disse.

Uma cópia do Termo de Declarações em que estão registradas as falas de Cinira foi imediatamente remetida ao SDP, onde o caso foi arquivado como Sindicância Solucionada.77

Jandira já havia passado por situação semelhante: Cinira certa vez desapareceu, passando nove dias sem dar notícias, mas depois retornou. Diante de novo episódio, que 77

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 020/08 do SDP/DH.

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poderia ter o mesmo desfecho, a mais velha das irmãs fez o que a grande maioria dos comunicantes de desaparecimentos faz: esperou, procurou pela desaparecida entre amigos e parentes e percorreu hospitais e IML. Por não obter sucesso em nenhum desses atos, dirigiuse à delegacia de polícia. Muitos casos apresentam entre seus primeiros registros o jargão “esgotadas todas as possibilidades” para se referir ao fato de o comunicante ir à delegacia apenas após ter tomado essas providências. A delegacia é apresentada, com isso, como último recurso para a localização de desaparecidos, instância à qual se delega a função de encontrálos apenas depois de tomadas outras medidas – medidas, aliás, que seguem sendo empreendidas em paralelo ao trabalho policial, uma vez que muitos desaparecidos são encontrados pelos próprios comunicantes. O caso de um idoso, comunicado na delegacia por sua filha, esclarece bem essa questão. Depois de relatar ao policial que seu pai sofria de recorrentes perdas de memória e que deveria estar perambulando pelas ruas do bairro onde mora, a comunicante recebeu do agente um catálogo telefônico e a instrução de primeiro procurar seu pai por conta própria. O policial disponibilizou o telefone da delegacia para que ela fizesse algumas buscas e só depois produziu o RO. Dias depois, o idoso foi encontrado por um vizinho e a comunicante voltou à DP. Além de relatar o encontro, justificou o fato de ter ido à polícia dizendo que quando procurou esta DP para fazer o registro do desaparecimento de seu pai foi pelo fato de estar desesperada e achar que se seu pai acabasse sendo achado por alguém que o conduzisse até uma delegacia policial, poderia ser que as demais tomassem conhecimento de que a família o estava procurando.78

Nesse caso, nota-se não só que a polícia aparece como último recurso, mas também que a comunicação do desaparecimento, como afirmado no capítulo anterior, responde a intenções e finalidades variadas, e não simplesmente ao desejo de que o desaparecido seja encontrado através de investigação policial. A filha do idoso desaparecido, afinal, acreditava que a real possibilidade de seu pai ser encontrado residia não no trabalho policial, e sim em “alguém” que pudesse encontrá-lo e eventualmente conduzi-lo a uma delegacia. Em outro caso igualmente revelador, uma mulher comunicou o desaparecimento do pai de seus filhos afirmando saber que ele havia sido morto e carbonizado por traficantes e deixando claro, em tom de súplica, que buscou a polícia não para que o paradeiro do desaparecido fosse investigado, mas para oficializar o desaparecimento e obter junto “às autoridades” uma pensão que restaurasse, ao menos do ponto de vista orçamentário, a rotina de sua casa. Vale 78

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 042/08 do SDP/DH.

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ressaltar que esse caso contém registros em primeira pessoa, destoando do discurso indireto usual em Termos de Declarações e tornando palpável o tom usado pela comunicante: a única prova que tenho são as testemunhas; tenho sete filhos dele, quatro maiores e três menores; eu peço ajuda às autoridades, tudo o que vocês podem fazer por mim e pelos meus filhos, eu necessito da pensão das crianças porque eu preciso criar meus filhos e ele [o desaparecido] trabalhava de carteira assinada.79

Voltando ao desaparecimento de Cinira, encontramos uma das possíveis razões para que a polícia figure nos casos como último recurso: a já mencionada idéia de que o trabalho policial tem como objeto crimes, suspeitas de crime e a criminalidade, e de que, por isso, esclarecimentos são necessários quando as ocorrências não são criminais. A primeira frase registrada a partir das falas de Cinira, nesse sentido, diz que “na verdade não aconteceu nenhum crime relacionado ao seu desaparecimento”, indicando que na zona cinzenta em que se faz o trabalho policial, reflexões como as expressas pelos agentes do SDP transitam também entre comunicantes e demais “Envolvidos” nos casos. Os registros acima transcritos do caso do idoso desaparecido explicitam isso com nitidez, já que a comunicante justificou o fato de ter ido à DP, como se, de seu ponto de vista, o desaparecimento de seu pai não fosse atribuição da polícia. Cinira, depois de esclarecer que seu desaparecimento não teve relação com nenhum crime, estendeu-se em relatos não só sobre onde esteve, mas também sobre sentimentos que causaram seu desaparecimento (aborrecida, cansada, extremada) e foram por ele originados (arrependida). Entre esses sentimentos e antes que o jargão do “nada mais disse” encerrasse o registro feito a partir de suas falas, Cinira firmou compromisso, dizendo “que quando sair para passear e demorar um pouco ligará para alguém de sua família, para comunicar onde e com quem está”. Esse compromisso aparece nos registros como conseqüência direta de seu arrependimento. Compromissos como esse, firmados por desaparecidos, comunicantes e outros “Envolvidos” em desaparecimentos diante dos policiais que os atendem, aparecem em muitos casos, envolvendo não só desaparecidos que se comprometem a não desaparecer novamente, o que é recorrente em casos de adolescentes, mas também comunicantes que pactuam que tomarão determinadas providências. É usual que comunicantes se comprometam a retornar à delegacia para comunicar o eventual retorno do desaparecido e a requerer documentos de identidade. A notificação do retorno do desaparecido visa a evitar que a polícia trabalhe sem 79

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 209/05 do SDP/DH.

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necessidade na busca por pessoas que não estejam mais desaparecidas; já a emissão da carteira de identidade é apresentada como forma de evitar desaparecimentos ou, como vimos no caso de Graziele, solucioná-los sem demandar diligências. Não obstante, são também comuns compromissos relacionados ao controle do comportamento dos desaparecidos, que condensam laços de continuidade entre formas patrimoniais e formas burocráticas de dominação como os analisados por Vianna (2002). Isso fica claro no caso da adolescente Arlete, narrado seguir, e em outros casos como o de Melissa, cuja mãe voltou à DP para informar que sua filha “foi encontrada debaixo do viaduto, sendo levada para casa para serem tomadas certas medidas com relação ao comportamento da mesma”. 80 Compromissos de comunicantes com a tomada de providências ou controle de comportamentos, bem como afirmações de desaparecidos assegurando que não desaparecerão novamente, respondem a conselhos e orientações de policiais. Como toda atividade constitutiva do trabalho policial, os atos e qualificações produzidos no decurso de casos de desaparecimento são fruto do encontro entre comunicantes e demais “Envolvidos” e policiais. Compromissos não fogem a essa regra, e muitas vezes são respostas dos “Envolvidos” nos casos a conselhos e sugestões de policiais. No mesmo sentido, conselhos e orientações de policiais respondem a demandas e queixas de comunicantes e outras pessoas ouvidas no decorrer dos casos. Se retomarmos o desaparecimento de Antônio, narrado ainda na Introdução dessa tese, encontramos bom exemplo. Quando Maria foi ao SDP informar que havia encontrado o desaparecido e relatar “o trabalho” que ele lhe dava, o inspetor Fernando sugeriu, com tons de especialista que presta assessoria, que eles deveriam se divorciar “no papel” para que ela se prevenisse de possíveis responsabilizações por acontecimentos futuros. Essa sugestão, evidentemente, respondeu às queixas de Maria.

ARLETE Dia 7 de janeiro de 2008, a empregada doméstica Regina saiu cedo para o trabalho, como de hábito. Voltou por volta das 20hs, horário também habitual, e encontrou sua filha Arlete, de 16 anos, “em casa como sempre”. Por volta das 22hs, Regina foi deitar, “deixando sua filha acordada, e sua filha falou que iria para a residência de sua colega Ana, e lá iria dormir”. No dia seguinte, Regina trabalhou normalmente, mas “quando chegou em casa não encontrou sua filha”. Durante os quatro dias que se seguiram, a doméstica seguiu sua rotina de trabalho,

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Os documentos relativos ao segundo caso mencionado compõem a Sindicância 159/08 do SDP/DH

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esperando encontrar Arlete toda noite ao voltar para casa, o que não aconteceu. Dia 12 de janeiro, então, Regina foi à delegacia “para formalizar o registro de desaparecimento de Arlete”. Ao policial que a atendeu, narrou o ocorrido, descreveu a adolescente fisicamente e afirmou “que esta é a primeira vez que sua filha sai de casa e não retorna.” Quase um mês depois, Regina voltou à delegacia, agora para comunicar o contrário: Que sua filha, a MENOR Arlete Santos, já retornou ao lar; que perguntado para sua filha onde esteve, a mesma falou que foi para a residência de uma colega, mas resolveu ir para residência de outra colega; que sua filha retornou no dia 14/01/2008, uma semana após ter desaparecido.

Em junho de 2008, o caso de Arlete foi encaminhado para o SDP. O inspetor que recebeu os documentos arquivou o caso como Sindicância Solucionada. Antes disso, porém, telefonou para a mãe da menina e confirmou que sua filha retornou para casa, após ficar alguns dias na companhia de colegas; [Regina] disse ainda que desde então procura manter maior controle da menor, inclusive, a castigou com uma surra quando chegou em casa. Foi orientado 81 que a mãe providenciasse carteira de identidade da menor.

Ao analisar como são administrados processos judiciais em torno de crianças e adolescentes “sem conflito com a lei penal”, Lugones (2009) denomina as técnicas empregadas nos tribunais em que fez trabalho de campo de “formas de aconselhamento” e “fórmulas de compromisso”. Essas técnicas reúnem “a força intrínseca da forma (o conselho) e a eficácia própria da formalização dos compromissos exercida por especialistas” (Lugones, 2009, p.203), além de operacionalizarem exercícios de poder “que reencaminham situações „desgovernadas‟ através de atuações pedagógicas” (Idem, Ibidem, p.203). Registradas nos autos dos processos, “formas de aconselhamento” e “fórmulas de compromisso” cristalizam maneiras de conduzir situações tidas como fora de controle, e devem sua eficácia justamente a sua forma, que desliza entre conselhos, assessorias e ordens, e ao seu alcance, já que envolvem todo o círculo social em que as crianças e adolescentes em causa estão inscritos. Iluminados pelo trabalho dessa autora, os compromissos e conselhos firmados em casos de desaparecimento revelam toda sua força e relevância. Assim como os menores em causa nos processos judiciais acompanhados por Lugones (2009) não têm “conflito com a lei penal”, casos de desaparecimento são ocorrências policiais não-criminais. Como objetos de administração judicial ou policial, ambos são construídos e geridos por atos, qualificações, formas e fórmulas que se espraiam pelo amplo espaço aberto pela impossibilidade de se julgar e penalizar pessoas por crimes previstos na lei penal. Nesse espaço, conselhos que têm tons de 81

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 131/08 do SDP/DH.

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assessoria especializada e intenções registradas como compromissos desempenham papel central, funcionando muitas vezes como instrumentos de controle de pessoas e situações construídas, para usar o termo de Lugones (2009), como “desgovernadas” - ou, para lembrar o caso de Linda, como “uma confusão só”. A surra que a mãe de Arlete lhe deu e relatou ao policial com quem falou pelo telefone, a orientação desse agente para que ela providenciasse o RG da menina e a garantia de Cinira de que não desapareceria novamente são apenas alguns dos vários conselhos e compromissos produzidos no decurso de casos de desaparecimento. As fórmulas e formas mobilizadas nos tribunais junto aos quais Lugones (2009) realizou sua etnografia tinham lugar no marco mais amplo das concepções das funcionárias que administravam os processos sobre a importância de seu trabalho. As empregadas que levavam as causas, nos termos da autora, “consideravam que suas próprias atuações não eram decisivas” (Lugones, 2009, p.158), e sim que os destinos dos menores envolvidos nos processos eram determinados pelo juiz, autoridade máxima dos tribunais, cujas decisões eram revestidas da máxima relevância. Contudo, os serviços por elas prestados através de “formas de aconselhamento” e “fórmulas de compromisso” incidiam sobre os rumos desses destinos de modo tão eficaz quanto aparentemente invisível. Analogamente, nos casos de desaparecimento conselhos e compromissos são oferecidos e firmados no marco mais amplo das concepções dos policiais sobre a importância de seu trabalho. Não obstante, nos desaparecimentos essas concepções desdobram-se em posições sobre o papel das “famílias” nos rumos tomados por cada caso. A “família”, da perspectiva dos policiais, é a instância em que os casos são gerados e devem ser solucionados, cabendo à polícia entrar em cena apenas depois de “esgotadas todas as possibilidades” e para exercer papel, nas palavras do inspetor Fernando, de “apenas mediação”. De forma semelhante ao que ocorre a muitas denúncias de violência contra mulheres, policiais inscrevem as tramas de desaparecimento “no plano do cotidiano da relação, procurando retirar sua excepcionalidade.” (Enne, Carrara e Vianna, 2002, p.53). Se, como vimos na fala de Cecília citada no capítulo anterior, familiares de desaparecidos constroem os casos atribuindo-lhes excepcionalidade, policiais fazem o oposto: domesticam o caráter extraordinário atribuído aos desaparecimentos pelos comunicantes, classificando os casos como “problemas de família”. Ao retirar a excepcionalidade dos desaparecimentos, policiais eximem-se de responsabilidade diante deles e explicitam que, de seu ponto de vista, “famílias” necessariamente têm “problemas” e devem geri-los por conta própria.

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Para Fernando, “quem encontra um desaparecido é a própria família”, o que acontece em dois sentidos: são as informações fornecidas pela própria família, e só elas, que habilitam policiais a localizar desaparecidos; e muitas vezes quem efetivamente encontra o desaparecido é um familiar que, cumprindo o compromisso muitas vezes firmado no ato da comunicação do desaparecimento, retorna à DP e relata que teve sucesso em sua busca. Para Fernando, “se a família não comunica, a polícia não vai investigar, e se a família não colabora, a polícia não tem nem por onde começar”. Da perspectiva dele, todo caso de desaparecimento começa e termina na família, apenas passando pela polícia: é a família que vai à delegacia e comunica o desaparecimento, e é a família que capacita (ou não) a polícia a descobrir o paradeiro do desaparecido e solucionar o caso. Conselhos de policiais a comunicantes e demais “Envolvidos”, bem como compromissos por eles firmados diante de policiais inscrevem-se nesse quadro. Designando essas pessoas como “famílias”, policiais atribuem a elas tamanha responsabilidade pelos casos que se colocam na posição de mediadores, que aconselham, dão sugestões e empreendem diligências, mas não determinam os desfechos dos desaparecimentos. Não obstante, como me disse algumas vezes a inspetora Telma, do ponto de vista de muitos policiais “as famílias mentem” e costumam “ocultar fatos”, em larga medida por medo do que a polícia possa fazer aos desaparecidos. Muitos dos conselhos e compromissos firmados nos encontros entre policiais e “Envolvidos”, portanto, inscrevem-se não só num quadro amplo de concepções que atribuem às “famílias” a responsabilidade pelos casos, mas também em um cenário de desconfiança. Durante a pesquisa no SDP, tomei parte desse cenário de desconfiança algumas vezes, dentre as quais destaco duas. Em uma ocasião, enquanto transcrevia documentos, presenciei a chegada de um homem de meia idade que, depois de relatar memórias de sua mais tenra infância aos policiais do Setor, afirmou acreditar ser o menino Carlinhos. Carlinhos é a criança que sofreu um controvertido seqüestro em 1973 e jamais foi encontrada, protagonizando o que se tornou um caso de desaparecimento de grande repercussão não só no Rio de Janeiro, mas em todo país. 82 Depois que o homem deixou o SDP, entusiasmada eu disse aos inspetores que talvez ali estivesse a solução de um dos casos mais célebres de que já

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Carlos Ramires da Costa, que tinha então 10 anos de idade, teria sido seqüestrado na casa onde residia com sua família, em Laranjeiras, tendo o seqüestrador deixado um bilhete com pedido de resgate para sua família. Um inquérito policial foi instaurado em torno do caso. O homem apontado no inquérito como seqüestrador do garoto foi julgado e absolvido pela Justiça. O jornalista que redigiu a primeira matéria sobre o chamado “caso Carlinhos” a sair na mídia impressa compilou em seu website pessoal os jornais da época que divulgaram o caso (cf. http://www.serqueira.com.br/caso/recortes.html).

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tive notícia. Os policiais, rindo da minha empolgação e contrapondo-lhe o saber de tons divinatórios constitutivo do trabalho policial, logo descartaram qualquer possibilidade da hipótese do homem ser verdadeira, dizendo que “só de olhar dá pra saber que é um maluco!”. Na ocasião, a forma tão automática quanto assertiva com que os agentes desqualificaram a hipótese do suposto Carlinhos frustrou minhas expectativas. Por outro lado, porém, explicitou o que, do ponto de vista daqueles detentores de um conhecimento encarado como “disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu, 2010, p.61), os diferencia definitivamente de mim e de outras pessoas que não compartilhem de seu habitus. Como nas formas de saber cujos preceitos não se prestam a ser ditos ou formalizados de que fala Ginzburg (1989), o conhecimento detido por policiais é constituído por “elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” (Ginzburg, 1989, p.179). Tais elementos permitem-lhes identificar não só criminosos em potencial que ameaçam a ordem pública, mas também “malucos” como o homem que afirmou ser o menino Carlinhos. Nesse sentido, a situação protagonizada por esse “maluco” e os risos dos policias diante do entusiasmo que ela me causou seriam evidências de que, enquanto para eles “só de olhar dá pra saber” informações sobre fatos e pessoas, a mim ocorreriam idéias pouco astutas diante de muitos dos cidadãos que procuram o SDP. Em outra situação igualmente reveladora, o irmão e o pai de um desaparecido foram ao Setor perguntar o que deveriam fazer. O desaparecido havia sumido em uma favela e quando seu irmão foi à DP mais próxima solicitar investigações em torno do caso ouviu de policiais que não fariam buscas na localidade. Depois de orientá-los a retornar à DP, o agente do SDP que os atendeu me disse que era certo que se tratava de caso de envolvimento com o tráfico de drogas, dada a favela mencionada. Dirigindo-se a mim, mas falando também para outro policial presente, afirmou que o pai e o irmão do desaparecido “com certeza não disseram tudo o que sabem. Estão querendo me convencer que não sabem o que o sujeito foi fazer na favela? Aposto que tem ficha suja e a família vai dizer que também não sabe o que ele foi fazer na cadeia.” O outro policial então afirmou: “É assim, enquanto o filho está lá usando ou vendendo droga, eles não fazem nada. Depois some e é morto e eles vêm aqui.” Essa situação indica o que aparece expressamente em alguns dos depoimentos compilados por Soares et al (2009) e nas falas de familiares das vítimas da Chacina de Acari (Nobre, 2005; Araújo, 2007a, 2007b, 2008). Concepções em torno da favela que a associam às categorias pobreza e criminalidade têm efeitos diretos sobre a forma como policiais lidam com solicitações de seus moradores e com fatos que se passam em seu território. Os trabalhos 147

citados mostram que o que chamo de cenário de desconfiança recobre as demandas levadas a repartições policiais por moradores de favelas ainda com mais força, carregando de concepções depreciativas e estereótipos as poucas e pouco empenhadas diligências levadas a cabo para respondê-las. Decker & Wagner (2007), analisando denúncias de cidadãos contra a polícia de certa municipalidade estadunidense, mostram processo semelhante diante de demandas e solicitações de negros que lá procuram por repartições policiais e solicitam seus serviços. Em depoimento apresentado em Soares et al (2009), a mãe de uma das vítimas da Chacina de Acari, hoje militante de movimento social, afirma que a própria classificação de fatos como desaparecimento pode responder a esse cenário de desconfiança e à associação entre favela, pobreza e criminalidade. Ao apontar para essa associação, a militante aponta também para a inferioridade atribuída ao desaparecimento em relação a ocorrências criminais e à domesticação de seu caráter excepcional empreendida por policiais. Classificar acontecimentos como o que se passou com sua filha como desaparecimentos, para ela, é uma forma de diminuir sua importância para fazer jus à inferioridade atribuída ao “pobre” e aos moradores de favelas: Rosana viajou com mais dez jovens, quase todos moradores de Acari. No dia 26 de julho de 1990, por volta das nove da noite, eles foram retirados do sítio em que estava e até hoje estão desaparecidos. O desaparecimento – porque pobre desaparece, não é seqüestrado – foi registrado na delegacia local. (Soares et al, 2009, p. 93)

A inferioridade do desaparecimento, da favela e de seus moradores anunciam um segundo artefato do trabalho policial em torno de casos de desaparecimento, que destaco a seguir: a construção de reputações. No cenário de desconfiança em que os casos são registrados, “só de olhar” policiais levantam parcos conjuntos de hipóteses sobre o que pode ter passado a certos desaparecidos. Como a situação acima narrada deixa claro, casos de homens jovens registrados como tendo ocorrido em favelas são freqüentemente encarados a partir de um leque de hipóteses ainda mais restrito que o característico da rotina burocrática percorrida por desaparecimentos. Se, como vimos no capítulo anterior, de modo geral policiais trabalham com as hipóteses de morte, prisão e internação, diante de muitos casos esses mesmos agentes afirmam ter certeza do que se passou: os jovens estariam envolvidos com uso ou tráfico de drogas e teriam sido mortos em conseqüência disso. Já diante de casos

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protagonizados por mulheres jovens e meninas, muitas vezes policiais expressam suspeitas de que as desaparecidas estariam se prostituindo ou teriam sumido com seus namorados. 83 Essas hipóteses e certezas alegadas por policiais diante de muitos casos restam registradas nos documentos não de forma direta, mas a partir de um de seus efeitos. Comunicantes e outros “Envolvidos” que prestam “declarações” em delegacias muitas vezes alongam-se em relatos sobre os desaparecidos que intentam contrapor-se ao cenário de desconfiança que recobre os casos e às restritas possibilidades de desfecho aventadas por policiais. Negando que jovens desparecidos são usuários de drogas ou têm envolvimento com tráfico, e afirmando que meninas desaparecidas não têm namorados, tais relatos parecem responder ao que, por vezes silenciosamente, policiais acreditam saber “só de olhar”. Ainda que, por definição, os desaparecidos estejam fora do alcance desse “olhar”, as avaliações divinatórias características do fazer policial não deixam de se fazer presentes em casos de desaparecimento. Ao invés da ausência do desaparecido implicar a impossibilidade desse tipo de avaliação, o que ocorre nos desaparecimentos é que “só de olhar” para os comunicantes e demais “Envolvidos” nos casos que se dirigem às DPs, policiais parecem “saber” informações inauditas sobre os desaparecidos.

3.3 Desvios, suspeitas e reputações No cenário de desconfiança e no quadro de responsabilização das “famílias” pelos casos de desaparecimento, não são produzidos somente conselhos e compromissos. Tampouco são apenas mobilizados estereótipos e concepções sobre porções da população e localidades como as favelas, partindo de supostas reputações pré-definidas. Do trabalho policial em torno dos desaparecimentos também resulta a construção de reputações, boas ou más. Essas reputações visam não só a fazer frente à desconfiança e à responsabilização das “famílias”, mas também a explicar fatos e comportamentos de pessoas enredadas nos casos. Nas descrições de Linda como mulher de temperamento explosivo e de Wellington como homem que sonega informações e esfaqueia a companheira, na confissão de culpa de Cinira, em que ela se apresenta arrependida, e nas falas da mãe de Arlete sobre si mesma, descrevendo-se como alguém que trabalha o dia inteiro todos os dias, mais que informações variadas sendo prestadas para auxiliar buscas de paradeiro, vemos reputações sendo 83

No quarto capítulo detenho-me sobre as suspeitas que recaem sobre as meninas, a partir das falas de mães de desaparecidos que integram a ReDESAP.

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comunicadas e registradas em documentos policiais. Reputações, vale dizer, não são qualidades intrínsecas de alguém, mas opiniões de algumas pessoas sobre outras. A importância dessas opiniões para as pessoas envolvidas depende da intensidade das interações entre elas. (Bailey, 1971) Em seus encontros com policiais, “Envolvidos” em casos de desaparecimentos são inscritos nas tramas documentadas através de descrições e informações sobre hábitos e características suas que certamente não são comunicadas e registradas sem propósito. Mirando finalidades múltiplas, essas descrições desenham imagens pessoais ora positivas, ora negativas: ou descrevem pessoas idôneas, trabalhadoras, tranqüilas e localizáveis em círculos sociais, instituições e endereços residenciais ou, por outro lado, apresentam pessoas desgovernadas, desgarradas, intranqüilas e envolvidas em situações e relações obscuras. Para pensar sobre imagens negativas, vale lembrar o caso de Sílvio, sutilmente descrito por sua prima como alguém desgarrado, que vivia em meio a entulhos e andava pela cidade guiando sua bicicleta velha. Outro exemplo aparece no desaparecimento duplo dos irmãos Gil e Cid, que saíram de casa juntos e não mais retornaram. As falas do irmão mais velho dos dois constroem imagens positivas de ambos e delas excluem características que as poluiriam: Que desconhece qualquer ameaça que seus irmãos tenham sofrido e também qualquer problema com eles ou que estes tenham se envolvido com a marginalidade da região onde residem. Que seus irmãos moravam juntos com a mãe e o declarante, eram boas pessoas e estudavam regularmente, tendo Flávio [um dos dois] completado o 2º grau e estava recentemente procurando trabalho. 84

Outro exemplo da construção de imagem negativa aparece em mais um desaparecimento de irmãos, cujos registros afirmam que A comunicante [mãe dos garotos] procurou o Conselho Tutelar, que a encaminhou para esta delegacia para fazer o registro. As crianças citadas fogem constantemente, têm desvio de conduta, dizem que serão marginais e a comunicante não tem qualquer autoridade sobre eles, que são rebeldes.85

Duas das múltiplas finalidades da construção de imagens positivas ou negativas em torno dos desaparecidos e de outros “Envolvidos” nos casos são o fornecimento de possíveis explicações para os desaparecimentos e o seu avesso - a afirmação que nenhuma característica ou comportamento da pessoa pode explicar o que teria ocorrido. No caso 84 85

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 281/05 do SDP/DH. Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 043/07 do SDP/DH.

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envolvendo um idoso, por exemplo, registrou-se a partir das falas do filho do desaparecido “que José tinha perfeita saúde mental, mantinha um bom relacionamento familiar e não passava por nenhum tipo de problema que pudesse dar causa a seu desaparecimento.”86 Em outro, envolvendo uma garota de 13 anos, encontra-se o registro de que a menina “sempre foi uma criança muito tranqüila e nunca cometeu atos de rebeldia”. 87 Por fim, em um terceiro e especialmente interessante, lê-se logo nos primeiros registros do caso que o desaparecido, homem de 49 anos, “nunca fez algo do tipo, sendo homem de compromisso e seriedade, que também não tinha inimigos ou desafetos, não acreditando a esposa em nenhum problema por conta disso”.88 O homem havia saído do trabalho com um colega e ido ao bar próximo de sua casa. Depois que deixou o bar, não foi mais visto nem pelo colega, nem por vizinhos, nem por sua esposa, que foi à DP comunicar o desaparecimento. Assim como nesse caso, desaparecer aparece em muitos outros como ato ou comportamento desabonador, um “desvio de conduta” como o dos irmãos acima referidos, indicativo de que o desaparecido não é “homem de compromisso e seriedade”. O emprego dos termos desaparecer e desaparecimento com esse sentido sugere que, em casos voluntários, em que desaparecidos optam por “sumir”, como pode ter ocorrido a Linda, a ruptura de vínculos por eles provocada é avaliada como irresponsabilidade, leviandade, insensatez, enfim, como um ato de que o desaparecido deveria se arrepender, como ocorreu a Cinira. Nesses casos, atribuir boa reputação ao desaparecido pode ter entre suas finalidades contrapor-se ao sentido negativo atribuído ao próprio desaparecimento e, ainda, descrever o círculo social de onde ele partiu como meio moralmente adequado e capaz de garantir que seus membros não se desgarrem (Vianna, 2002, p.130), apesar daquele episódio de desaparecimento. O caso de um idoso que deixou a casa onde morava revela que o próprio desaparecido por vezes faz frente a esse sentido negativo atribuído ao desaparecimento e se apressa em valorar positivamente a casa que deixou. O idoso partiu deixando bilhete para as duas irmãs que o abrigavam. Na nota, pediu desculpas por partir, disse nunca ter encontrado pessoas mais generosas do que elas e que melhor o acolhessem, e afirmou, como quem oferece a compensação por um mal, que “pelo menos um bilhete eu deixei pra vocês”. 89

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 358/05 do SDP/DH. Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 092/07 do SDP/DH. 88 Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 202/05 do SDP/DH. 89 Esse desaparecimento encontra-se narrado no quinto capítulo. Os documentos a ele relativos compõem a Sindicância 004/07 do SDP/DH. 87

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Narrados abaixo, os casos de Janilson e Humberto colocam em cena a construção de imagens positivas e negativas em torno dos “Envolvidos” em desaparecimentos. Neles, como em tantos outros casos com que tive contato, as imagens positivas delineiam boas reputações, ao passo que as negativas revestem de suspeitas aqueles a que se referem. No caso de Janilson, as suspeitas colocadas sobre o desaparecido parecem fundamentar-se no local em que ele “foi visto pela última vez” - um baile funk, evento em torno do qual pululam representações estigmatizantes, como mostram Herschmann (2000) e Silveira (2007). O baile aconteceu em uma favela, trazendo para o caso os estereótipos e concepções depreciativas que recaem sobre essa localidade e seus moradores. A imagem negativa em torno do desaparecido aparece sobretudo no relatório final do policial que cuidou do caso na DP, e se contrapõem à boa reputação delineada pelas “declarações” dos amigos e de uma conhecida do desparecido que estiveram na DP que cuidou do caso. Já no caso de Humberto, sua boa reputação calca-se em repetitivas afirmações sobre sua inserção no mundo do trabalho, remetendo-nos ao papel crucial atribuído ao trabalho como instrumento de controle social sobre o qual falam Vianna (2002) e Brandão et al (1981), entre outros autores citados. “O emprego” ou “o trabalho”, assim como “a família”, comparecem nos desaparecimentos como unidades de localização e formação moral. Expressam, afinal, vínculos cotidianos com firmas, patrões, colegas e/ou tarefas ordenadas que tanto inscrevem o sujeito em círculos sociais e espaços territoriais determinados, quanto o distanciam das concepções de policiais (mas não apenas deles) em torno da marginalidade e do leviano ato de desgarrar-se e “sumir”. Como registrado no caso de Humberto, o fato de estar empregado indica que o desaparecido é um sujeito “estável”. Vale destacar ainda que o desaparecimento de Humberto enreda uma operação policial de rua e, diferente dos casos narrados até aqui, conta não só com um componente criminal virtual, mas também com cenas de tiros e encontro de cadáver que, se cotejadas com as reflexões de policiais apresentadas nos capítulos anteriores, talvez os levasse a questionar se, como muitos afirmam, desaparecimentos são “problema de assistência social”.

JANILSON Janilson, 28 anos, ajudante de caminhão, costumava freqüentar os bailes funk da Cidade Alta, em Cordovil, com seus amigos Nildo e Gonçalves. Na noite de 5 de fevereiro de 2005, como de hábito, os três saíram juntos da casa de Janilson em direção ao baile. Ao deixarem a casa, passaram por Marina, vizinha de Janilson e amiga de Jane, sua mãe. Diferente das outras vezes que lá estiveram, naquela noite “Janilson começou a 152

namorar uma jovem no baile e no final do baile, ao ser chamado pelos colegas para ir embora, o mesmo lhes informou que ficaria com a jovem”. Desde então, Janilson não retornou para casa, nem foi mais visto nem por seus amigos ou pela vizinha Marina. Cinco dias depois, Jane foi à delegacia mais próxima de sua casa. A partir de seus relatos acerca do ocorrido, foi então produzido um Registro de Ocorrência de desaparecimento em nome de Janilson. No começo de março, ainda sem notícias de seu filho, Jane voltou à repartição policial, levando consigo uma foto 3X4 e uma cópia da certidão de nascimento de Janilson. Além de repetir o que já havia relatado, acrescentou que tinha procurado por ele “em todos os lugares possíveis”, que vinha telefonando periodicamente para o celular dele e que havia recebido algumas ligações de um número que lhe era estranho. Sem especificar quais seriam, em nenhum dos lugares em que procurou pelo filho Jane obteve qualquer informação. Sobre os telefonemas, disse que algumas de suas chamadas para o telefone de seu filho vinham sendo atendidas por uma pessoa que logo desligava a ligação; e sobre o número estranho de onde partiram chamadas para ela, disse ter descoberto ser o telefone de uma pessoa de nome Auxiliadora Silva. Contactada por policiais, no dia seguinte Auxiliadora compareceu à mesma DP e prestou declarações. Sobre o desaparecimento de Janilson, nada disse; já sobre o desaparecido e sua relação com ele, falou um pouco: Inquirido, DISSE: que conhecia o nacional Janilson Vieira, o qual se encontra desaparecido, pois o mesmo residia próximo a residência da mãe da declarante; que acredita a depoente que possivelmente sua mãe foi quem ligou para a mãe do desaparecido, uma vez que a mãe da declarante tinha muito “carinho” pelo desaparecido, pois o mesmo se assemelhava a um irmão da depoente já falecido; que a declarante conhece a mãe do desaparecido, no entanto não tem vínculo de amizade com a mesma; que não sabe detalhes da vida pessoal do desaparecido, no entanto o mesmo parecia ser boa pessoa e muito respeitador. Que está a disposição da Justiça para dirimir qualquer tipo de dúvida. Nada mais disse nem lhe foi perguntado.

Já no mês de abril, em dois dias diferentes, os amigos de Janilson que com que ele foram ao baile funk também compareceram à DP. Separadamente, ambos narraram os fatos de forma semelhante e acrescentaram aos registros do caso, assim como fizera Auxiliadora, apenas descrições sobre Janilson e as relações entre os três. Nildo afirmou que “sua relação de amizade com o desaparecido era das melhores”, e Gonçalves, com uma série de negativas e associando sua reputação à do amigo, afirmou que não houve nenhum tipo de confusão no período em que estiveram no baile, que não sabe informar o que possa ter havido com Janilson, que vem ressaltar que não tem vícios de fumar ou de usar “drogas”, e que Janilson também não fazia uso de “drogas”; que foram embora deixando Janilson no baile, para nunca mais voltarem a vê-lo.

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Em agosto de 2005, o inspetor que cuidou do caso na DP produziu relatório encerrando a participação daquela repartição nas investigações e encaminhando o caso para o SDP. Em contraste com as descrições sobre Janilson e suas relações, registradas a partir das falas de seus amigos e de Maria Auxiliadora, no documento o policial assim resumiu o desaparecimento: foi apurado que Janilson saiu em companhia de 02 amigos para irem a um baile funk no local conhecido como Cidade Alta, no bairro de Cordovil, local onde se homiziam marginais da pior espécie, devido aquela comunidade ser propícia ao tráfico de entorpecentes, que em determinada hora, os acompanhantes o teriam chamado para ir embora, no que foi recusado pelo mesmo, que então Janilson foi deixado no local, não mais sendo visto até a data presente.

No SDP, além da emissão de ofícios para diversas instituições que poderiam ter registros e esclarecedores sobre o desaparecimento de Janilson, foram feitas consultas em sistemas de dados da polícia e da justiça. Todas essas diligências geraram informações negativas sobre Janilson: ele não foi atendido em hospitais públicos que foram contactados, nem teve entrada registrada no IML, na Polinter, na Fundação Leão XIII ou no Instituto Pinel. As pesquisas em sistemas de dados revelaram ainda que ele “não possui anotações criminais”. Em outubro, nove meses depois do desaparecimento de seu filho, Jane foi ao SDP. Afirmou que, assim como policiais do Setor fizeram através de ofícios, ela vinha fazendo buscas pessoalmente no IML e em hospitais públicos. Além disso, vinha também conversando “com moradores do local do referido baile, mas não ficou sabendo de qualquer incidente diferente naquela localidade”. A única informação que obtivera e poderia acrescentar algo às investigações, segundo Jane, era o fato de que cerca de uma semana depois do desaparecimento dois saques foram feitos na conta corrente de Janilson, “um no valor de dez reais, e outro no valor de duzentos”, que ela comprovou com um extrato bancário. Em março de 2009, sem que nenhuma diligência tenha sido levada a cabo depois da ida de Jane ao Setor, o caso foi arquivado no SDP como Sindicância Suspensa. 90

HUMBERTO Em 2001, depois de se aposentar como motorista, Humberto decidiu seguir trabalhando para complementar sua renda. Tornou-se então funcionário de uma empresa de táxi. Costumava acordar às 6hs30min e começar a trabalhar logo em seguida. Algumas vezes na semana, dormia e saía para trabalhar da casa de sua namorada Jurema, em Jacarepaguá. Jurema “é autônoma, fazendo bolos, salgados e doces para clientes”. Conheceu Humberto em 1995, e desde então os dois mantêm o que ela chama de “um relacionamento caseiro”. Nos dias da semana em que não dormia na casa dela, Humberto saía para trabalhar de sua própria

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 380/05 do SDP/DH.

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residência, em Padre Miguel, que fica no terreno onde há duas outras casas: a de seu filho Luiz Humberto, e a de uma prima sua, Vanda. Na última semana de setembro de 2006, Humberto dormiu na casa de Jurema todos os dias. Na manhã de sexta-feira, ao sair para trabalhar, disse a ela que voltaria por volta das 22hs, como havia ocorrido nas noites anteriores. Jurema então esperou pela chegada de Humberto, mas ele não apareceu nem no horário marcado, nem nas horas que se seguiram. Preocupada e sem conseguir falar com o namorado pelo telefone celular, procurou por Luiz Humberto, filho e vizinho dele. Luiz Humberto, que é policial militar, disse não saber onde seu pai estava, nem porque não teria comparecido ao encontro com Jurema. Na busca por explicação, fez contato com amigos de seu pai, mas nenhum deles sabia de Humberto. Passaram-se três dias sem que qualquer notícia de Humberto chegasse ao conhecimento de Jurema ou de Luiz Humberto. O filho do desaparecido decidiu então procurar informações na empresa de táxi e “em todos os hospitais e nos institutos do IML”. Na empresa, soube apenas que na sexta-feira, dia 29 de setembro de 2006, Humberto esteve na firma, como de costume, “por volta das 14hs, saindo depois com o táxi, que também desapareceu”. Nos hospitais e institutos, nada encontrou que esclarecesse o sumiço de seu pai. Diante de tanta falta de informação, Luiz Humberto dirigiu-se finalmente a uma delegacia de polícia. A partir dos relatos dele, na DP foi confeccionado RO de desaparecimento em nome de Humberto. No documento foram registradas, como negações de hipóteses que pudessem explicar o que ocorrera a seu pai, que Luiz Humberto “não tem conhecimento de ameaças ou inimigos que possa informar e que a saúde de seu pai era estável e não tomava medicamentos; que seu pai não tinha vício algum”. Além desses registros, na DP foi feita pesquisa sobre o táxi que Humberto dirigia no “Sistema de roubos e furtos de veículos do estado do RJ”. Não constava qualquer alerta ou pendência no sistema a respeito do automóvel. Entre os dias 3 e 5 de outubro, porém, motoristas da empresa de táxi em que Humberto trabalhava avistaram o carro “circulando nos bairros do Estácio e Candelária em poder de um homem, cor parda, cabelos baixos quase careca, aparentando 30 a 35 anos”. Diante dessa informação, um representante da firma foi até a DP onde o desaparecimento de Humberto foi registrado e prestou queixa de furto do automóvel. Ao RO de desaparecimento foi então acrescentado mais um título: “Furto de veículo”. Com esse acréscimo e dados sobre o automóvel, o RO foi encaminhado à Delegacia de Roubos e Furtos de Autos (DRFA), ao DETRAN-RJ e ao 3º Batalhão de Polícia Militar (BPM) do Rio de Janeiro. A partir das falas do representante da empresa foram firmados registros sobre a boa reputação e a “vida particular” de Humberto: Humberto sempre cumpriu com as obrigações referentes a empresa, não causando nenhum problema ou outro motivo que desabonasse sua conduta; que Humberto tinha o costume de ingerir cervejas, mas nunca apresentou

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problemas referentes a bebida; que Humberto era bem visto por todos e não tinha inimigo na empresa; que sobre sua vida particular, sabe informar que tinha família e filhos; que Humberto costumava dizer que ia para Saquarema, Santa Cruz e Muriqui nos dias de folga; que não sabe fornecer mais dados sobre sua vida particular; que procurou saber com outros motoristas da empresa algum motivo ou ameaça que pudesse elucidar tal desaparecimento, mas nada foi informado.

Outra descrição da boa reputação de Humberto, associada a possíveis explicações para seu desaparecimento, foi registrada a partir de falas de Jurema. A namorada de Humberto esteve na DP horas depois do representante da empresa de táxi e, além da boa reputação do desaparecido, falou também sobre lugares que Humberto costumava freqüentar, dentro e fora da cidade do Rio de Janeiro, construindo um mapa de seus trajetos costumeiros. A cada lugar, encontra-se associada uma pessoa do círculo de convivência de Humberto: Humberto nunca comentou qualquer assunto que viesse ajudar na elucidação do seu desaparecimento, como também nunca comentou que tivesse sido ameaçado, brigado na rua ou inimigos (sic); que Humberto tinha o hábito de beber cervejas e era conhecido no local, sempre fazendo amigos; que Humberto não tinha problemas de coração ou pressão a ponto de passar mal e não fazia uso de medicamentos; que Humberto não tinha vícios em jogos e não fumava; que Humberto era aposentado como motorista e recebia pelo INPS; que a declarante não sabia quanto Humberto recebia de benefícios; que não sabe informar se Humberto tinha conta bancária ou dívidas, pois nunca comentou sobre sua situação financeira; que um dos prazeres de Humberto era visitar o filho que reside em Saquarema, de nome Alan; que visitava também o irmão da declarante, de nome Péricles, em Muriqui, sempre acompanhado da declarante; que Humberto comentava que trabalhava rodando na praça, não se fixando em ponto de táxi; que por não ter ponto fixo, Humberto freqüentava diversos bairros, em especial o bairro da Tijuca e morros adjacentes, não demonstrando medo.

Na manhã de 10 de outubro, quando já havia mais de dez dias que Humberto estava desaparecido, o táxi que ele dirigia foi encontrado. Enquanto fazia ronda no bairro de Copacabana, um policial militar “ouviu no rádio a respeito de uma ocorrência na qual o pai de um policial militar estava desaparecido juntamente com seu veículo”. Naquele mesmo instante, avistou o táxi cujas características foram descritas no rádio e aproximou-se para “fazer a abordagem”. Diante do policial, o homem que dirigia o táxi “sacou uma arma da bolsa, todavia, como estava rendido, não efetuou nenhum disparo e voltou a guardá-la”. O motorista então saiu em disparada, sendo perseguido pelo policial, que “executou dois disparos de arma de fogo para neutralizar a fuga”. Ferido, o motorista abandonou o veículo e seguiu em sua fuga a pé. O policial recuperou o táxi, que foi rebocado para uma DP, mas o motorista não foi alcançado. Em seguida, Luiz Humberto foi avisado do que ocorrera. Já em novembro, Luiz Humberto retornou à DP em que comunicou o desaparecimento. Relatou que já havia ido várias vezes ao IML e a alguns hospitais em busca do pai, além de ter 156

conferido se houve movimentação na conta bancária dele desde o desaparecimento. Relatou ainda que os documentos de Humberto foram encontrados na Barreira do Vasco, em São Cristóvão, por um funcionário da linha de ônibus que percorre a região. Depois de encaminhados à empresa de táxi, os documentos foram entregues a Luiz Humberto. Em janeiro de 2007, o caso foi encaminhado ao SDP. Na primeira pesquisa realizada no Setor, pelo sistema de identificação civil do DETRAN-RJ, foi encontrado registro de óbito em nome do desaparecido, o que encerrou a Sindicância como solucionada. Luiz Humberto já sabia do óbito, mas não retornara à DP para informá-lo. Depois de se inteirar dos acontecimentos através de um telefonema para a delegacia, o inspetor que cuidou do caso no SDP registrou que Humberto faleceu em outubro de 2006, o que foi descoberto quando uma viatura foi solicitada para comparecer a Rua Frei Fabiano em frente a numérica 467, no bairro do Méier, onde constatou um cadáver de um homem, que os policiais, sabedores do ocorrido com o pai de um colega de farda, entraram em contato com o 26º DP onde foi feito a ocorrência do desaparecimento, que o comunicante [Luiz Humberto] foi chamado a Unidade Policial e posteriormente ao IML onde reconheceu o corpo sendo 91 do seu pai.

Janilson não usa drogas e não houve qualquer confusão no baile funk em que esteve. Humberto nunca teve problema com a bebida ou no trabalho, não demonstra medo quando transita próximo a favelas e nunca comentou que tivesse sido ameaçado ou brigado na rua. Como muitos desaparecidos e pessoas envolvidas nos casos arquivados no SDP, os dois não têm vícios, não têm inimigos, não fumam, não têm dívidas e são qualificados através dessas e de várias outras negativas. Se, como afirmado no capítulo anterior, negativas e repetidos “nada consta” constroem desaparecimentos como enigmas, por outro lado essas mesmas formas narrativas tão presentes nos casos constroem também reputações. Uma possibilidade interpretativa passível de ser acionada diante delas é encará-las como negativos fotográficos, como se fossem respostas para indagações de policiais que não restaram registradas nos documentos. Assim como compromissos firmados por comunicantes e desaparecidos muitas vezes respondem a conselhos a eles fornecidos por policiais, as falas dos primeiros muitas vezes respondem a interrogações dos últimos. Inquirir comunicantes e “Envolvidos” em ocorrências, afinal, é método básico de investigação policial. Entre inúmeros outros, o registro de que “Humberto nunca comentou qualquer assunto que viesse ajudar na elucidação do seu desaparecimento” é um bom exemplo. É difícil imaginar que Jurema, namorada do taxista, tenha dito algo nesse sentido sem que fosse provocada por

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 025/07 do SDP/DH.

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alguma pergunta acerca de possíveis causas do desaparecimento dele, a serem procuradas retroativamente em sua memória. Contudo, essa possibilidade interpretativa conduz à equivocada idéia de que é possível separar, nos documentos, o que é registro de fala de comunicantes do que é registro (ou ausência de registro) de supostas falas e perguntas de policiais. Conforme venho chamando atenção ao longo da tese, os casos de desaparecimento são produzidos em encontros entre comunicantes e policiais, e se interpelados em termos de autoria mostram-se como composições únicas produzidas por múltiplos autores. A própria forma como são construídos os registros, que empregam no mais das vezes o discurso indireto, não transcrevem perguntas, nem indicam que uma ou outra frase responde a determinada indagação, resiste a tal interpelação. Se reputações, tanto quanto conselhos e compromissos, precipitam-se desses encontros, buscar autorias exclusivas em fragmentos dos casos é não só impossível, como também analiticamente improdutivo. Se trechos de casos parecem derivar diretamente das “declarações” do comunicante, é preciso levar em conta que necessariamente foram registrados por policiais, a despeito de terem ou não sido provocados por perguntas. No mesmo sentido, se alguns registros parecem aplicações automáticas de jargões policiais, é preciso considerar que consistem em respostas a demandas e solicitações de comunicantes. Mas há algo mais na improdutividade de se separar as partes dos encontros que tecem casos de desaparecimento. Entre solicitações e respostas, falas e registros, interesses expressivos e censuras, os comunicantes e policiais articulam-se e estabelecem laços de complementaridade que qualquer separação obscureceria. Um conselho ou compromisso firmado por aqueles que os policiais denominam “famílias” de pessoas desaparecidas, como ocorre nos processos judiciais analisados por Vianna (2002), “supõe a prerrogativa da capacidade das últimas em conseguir controlar seus membros num plano mais individual, cabendo à administração gerir populações” (Vianna, 2002, p.42) Não que a polícia se exima de suas obrigações diante de casos de desaparecimento. Antes, o que se passa é a instituição de uma cadeia de responsabilização semelhante ao que Vianna (2002) intitula “circuito tutelar de obrigações sobrepostas”, em que policiais e comunicantes de casos não se opõem ou separam, mas se complementam. Nessa cadeia, procurados por comunicantes cujas solicitações são registradas como casos de desaparecimento, policiais os aconselham a manter os desaparecidos sob controle; esses comunicantes, por sua vez, comprometem-se a providenciar documentos de identificação e a corrigir e vigiar comportamentos. Nesse sentido, o trabalho policial se faz não só por meio de 158

diligências, mas também por meio de delegações: para gerir casos de desaparecimento, policiais delegam a gestão dos desaparecidos e das relações em que eles se inscrevem a suas “famílias”, devolvendo-lhes, em novas formas, suas solicitações. Em suma, se a polícia é apresentada nos casos como último recurso, e se comunicantes procuram delegacias depois de “esgotadas todas as possibilidades” de busca de que parecem dispor, o trabalho policial em torno dos desaparecimentos abre novas possibilidades e aponta para outro último recurso, encarnado pelos próprios comunicantes que vão àquelas repartições e se postam diante dos policiais para solicitar seus serviços. Inscrevendo comunicantes e demais “Envolvidos” nas unidades a que chamam “famílias”, policiais a elas delegam funções e atribuições. Nesse exercício, contam com o papel ativo dos membros dessas “famílias”, que se comprometem a tomar providências que se distribuem por um continuum de atos e qualificações que vão desde a emissão de um RG até “uma surra”, como no caso de Arlete. Embora as “famílias” tenham papel ativo nessa delegação, e ainda que seja necessário pensar nos casos como frutos do encontro entre essas “famílias” e os policiais, é preciso também levar em conta que os laços de complementaridade aí tecidos não implicam simetria de poder. O esforço de comunicantes por atribuir boas reputações aos desaparecidos e a si mesmos, assim como a confissão de culpa de Cinira diante de um policial ou a justificativa da filha do idoso que “só” procurou a delegacia porque estava mesmo “desesperada”, indicam um desnível entre comunicantes e policiais. Em todos esses casos, vemos comunicantes, em sua condição de membros de “famílias”, situados na ponta da gestão dos desaparecimentos, responsáveis últimos pelo controle de seus membros e suas relações. Ao mesmo tempo, legitimando essa delegação, vemos esses mesmos cidadãos situados abaixo do patamar de poder de decisão em que estão colocados os policiais que ouvem seus relatos, registram suas solicitações e arquivam os casos que lhes dizem respeito. Chamo atenção para essa superioridade do poder de decisão dos policiais não apenas para apresentá-la como característica do trabalho policial, mas para apontar um de seus efeitos: nos desaparecimentos, a assimetria entre policiais e “famílias” é condição de possibilidade para que os encontros entre eles tomem, efetivamente, a forma de casos. Diante da miríade de situações e “coisas de todo instante” que fazem o trabalho policial, zelar por padrões de atuação e formas de registro é uma prerrogativa dos policiais imprescindível para tornar seu trabalho possível. Afinal, são esses padrões e formas, ao determinar o que fica e o que não fica registrado nos documentos, que emolduram cada caso, definindo a extensão e a

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complexidade dos problemas com que a polícia tem que lidar. Assim como nos processos analisados por Vianna (2002), nos casos de desaparecimento A autoridade narrativa dos diferentes agentes especializados que transformam a polifonia das falas em peças padronizadas e univocais é, assim, não apenas tributária da posição de autoridade de que dispõem, mas uma exigência a ser cumprida para que tal polifonia não crie a inviabilidade da administração dos “problemas” a serem resolvidos (Vianna, 2002, p.95)

Diante das solicitações de comunicantes, tantas vezes extensas, pouco lineares e permeadas por sentimentos, e também das informações obtidas em sistemas de dados e através de Ofícios que circulam entre instituições, a delimitação e organização do que resta registrado viabiliza o trabalho policial. Talvez valha a analogia com a própria emolduração dos casos de que venho lançando mão ao longo desta tese. Construir narrativas a partir de conjuntos de documentos reunidos em pastas e, em seguida, colocar tais narrativas em caixas que se destacam do corpo do texto são instrumentos de que venho dispondo para tornar os múltiplos papéis pesquisados nos arquivos do SDP manejáveis para a produção de um trabalho acadêmico. Tanto na redação desta tese, quanto nos registros firmados por policiais, bordas que circunscrevem casos e jargões como “nada mais disse nem lhe foi perguntado” são formas de interromper fluxos de idéias, atos e qualificações para convertê-los em objetos administráveis nos marcos, respectivamente, do trabalho acadêmico e do trabalho policial. Sigamos agora para um terceiro artefato do trabalho policial em torno dos desaparecimentos, que se soma às reputações e aos conselhos e compromissos: a construção da dependência.

3.4 Perturbações, cuidados e dependência NINA Viúva, a dona de casa Maria Célia mora no Méier em companhia da filha Nina, de 35 anos. Segundo Maria Célia, Nina “é deficiente mental e só sai de casa para ir à padaria e à Igreja próxima de sua residência”, de onde sempre retorna tranquilamente. Na manhã do dia 26 de outubro de 2007, porém, Nina “saiu para comprar pão e não voltou mais”. Preocupada, Maria Célia aguardou a volta da filha por dois dias, durante os quais não teve qualquer notícia. Na manhã do terceiro dia, procurou uma delegacia, onde foi produzido Registro de Ocorrência de desaparecimento em nome de Nina. Maria Célia levou consigo “um laudo médico de Nina, que descreve um quadro de retardo cognitivo e esquizofrenia parcial com agitações psicomotoras”, e relatou que sua filha “já foi 160

internada no Instituto Pinel”. Além desses dados sobre a saúde mental de Nina, Maria Célia mencionou ainda “que a desaparecida teria dito que gostava de um rapaz de nome Renato Magalhães e que se casaria com ele. Ainda segundo a declarante, Nina foi vista com ele perto da Igreja.” No final de novembro, o registro de desaparecimento de Nina foi encaminhado a outra delegacia. O inspetor que cuidava do caso verificou que a rua registrada como local de ocorrência do fato, endereço da casa de Maria Célia e Nina, pertence às circunscrições de duas DPs: a 22ª e a 23ª. Examinando o número da casa das duas, concluiu que o caso deveria ser investigado na 23ª DP, e não na repartição em que ele estava lotado, a 22ª DP. Depois do encaminhamento, Maria Célia foi chamada a prestar declarações na delegacia que passaria a cuidar do caso. Na ocasião, relatou não que Nina saíra para comprar pão e não mais retornara, e sim que “desceu por sua própria conta para o portão da casa, onde apareceu uma pessoa e chamou sua filha pra ir com ele; que sua filha então foi com o rapaz, pois o portão estava destrancado”. Além dessa nova narrativa sobre o momento do desaparecimento de Nina, Maria Célia estendeu-se em relatos sobre a incapacidade da filha, que restaram assim registrados: que sua filha tem problemas psiquiátricos inclusive toma diversos remédios controlados e faz acompanhamento médico tendo estado internada por mais de 1 ano; que a declarante informa que é a pessoa responsável por sua filha doente; que a declarante informa que sua filha não responde por ela, pois tem problemas mentais, e que é a própria declarante que responde por ela sendo a responsável por medicá-la e por levá-la aos locais necessários; que a declarante obteve a informação de que a pessoa que levou sua filha é morador da favela Boca do Mato, de nome Renato Magalhães e que sua filha falava sempre em casa que gostava dele e que iria se casar com ele; que a declarante está muito preocupada pois além de estar longe de sua filha já faz dois meses, ainda tem medo de que alguém a obrigue a fazer algo de errado, pois sua filha tem debilidade mental e por isso não sabe o que faz.

Em janeiro de 2008, passado cerca de um mês da produção desses registros, o caso de Nina foi encaminhado ao SDP. Passados outros cinco meses, o agente do Setor encarregado do caso telefonou para Maria Célia para obter informações e prosseguir as investigações iniciadas na 22ª e 23ª DPs. Na ligação, Maria Célia, “na condição de mãe da desaparecida, informou que sua filha já retornou para o lar há cerca de 3 meses”. Com base nessa informação, na mesma data do telefonema o caso foi arquivado como Sindicância Solucionada.92

Em função do que aparece no caso como “problemas mentais”, “debilidade mental”, “problemas psiquiátricos” e “deficiência mental”, Nina tem pouca mobilidade e quase nenhuma autonomia: “só sai de casa para ir à padaria e à Igreja” e “não responde por si”. Restrita a esses três locais - casa, Igreja e padaria - e ao percurso entre eles, sua vida é

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 010/08 do SDP/DH.

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responsabilidade de sua mãe, Maria Célia, que “responde por ela” e executa duas tarefas que talvez sintetizem seu caso de desaparecimento: “medicá-la e levá-la aos locais necessários”. Quando Nina fez um deslocamento que destoou dos curtos percursos que constituem sua rotina, Maria Célia procurou a polícia. No primeiro momento, afirmou que a quebra de rotina que determinou o desaparecimento de Nina ocorreu quando ela saíra para comprar pão. Em uma segunda ocasião, afirmou que a quebra da rotina teria sido outra: contrariando o hábito de só ser conduzida por sua mãe, e apenas quando precisa ir “aos locais necessários”, Nina saíra de casa com um rapaz, cujo nome e local de moradia Maria Célia informou à polícia. Entre os relatos que fez na DP, Maria Célia expressou ter medo que “alguém a [Nina] obrigue a fazer algo errado, pois sua filha tem debilidade mental e não sabe o que faz”. Até mesmo em suas preocupações em relação ao desaparecimento de sua filha, portanto, sublinhava a incapacidade de Nina para tomar decisões e conduzir a si mesma e a sua vida, fundamentando essa incapacidade em uma “doença mental”. No caso de Nina, mais que investimentos na construção de reputações, destacam-se reiteradas afirmações de que seu desaparecimento decorre de uma condição à qual é atribuído poder explicativo máximo. Não só o desaparecimento de Nina, que seria uma ruptura de sua rotina, mas sua rotina de vida mesma é determinada diretamente por sua “deficiência mental”, que faz dela alguém que necessita, sempre, não só de cuidados, mas de uma pessoa que por ela se responsabilize integralmente. Nesse sentido, o caso parece prescindir de reputações, conselhos e compromissos por ter como eixo central a “doença mental” da desaparecida, que aparece na trama não só como causa primordial daquele desaparecimento, mas também como dispositivo capaz de lhe conferir importância diferenciada, tornando-o automaticamente delicado. Afinal, pode ser que “alguém a obrigue a fazer algo errado”. A condição de Nina, em suma, tanto explica seu desaparecimento, quanto o constrói como uma passagem da peculiar biografia moral ou da carreira de um doente mental (Goffman, 1999). Ainda que seja objeto de trabalho policial, e não de ação judicial, o caso de Nina remete aos processos de interdição civil analisados na etnografia de Zarias (2005). O autor destaca processos que correlacionam “doença mental” e “incapacidade civil” e reflete sobre as relações entre família, justiça e medicina que se fazem nos autos, abordando as interdições como espaços de negociação de significados entre essas instituições. Processos de interdição têm como finalidade última retirar a condição de cidadão pleno daquele que se quer interditar, declarando-o desprovido de “condições de responder por seus atos e por sua pessoa segundo a lei” (Zarias, 2005, p.24) e nomeando-lhe um curador. O curador passa a responder 162

judicialmente pela gestão do interdito e de seus bens ou somente de seus bens. Guardadas as especificidades dessas figuras jurídicas, a interdição assemelha-se à ausência, condição para que bens de um desaparecido declarado judicialmente ausente possam ser transmitidos, como apresentado no capítulo 1. “A curatela, cargo cuja responsabilidade corresponde à regência da pessoa e dos bens, ou somente dos bens de pessoa que por si só não se encontra em condições de fazê-lo, em virtude de problemas de ordem física ou mental” (Zarias, 2005, p.38), ilumina a posição ocupada por Maria Célia no caso de desaparecimento de Nina. Não ter sido judicialmente nomeada curadora de sua filha não impede que Maria Célia declare que Nina não tem condições de reger a si mesma e a seus movimentos, atribua essa incapacidade à sua condição de “deficiente mental” e, ainda, declare a si mesma como responsável por “medicá-la e levá-la aos locais necessários”. Dessa apresentação da desaparecida e de sua relação com sua mãe, assim como dos autos de muitos processos de interdição civil, resulta a produção e formalização de uma relação de dependência. Nina depende de cuidados e controles constantes, e seu desaparecimento aparece nos registros como evidência máxima dessa dependência. Se, como dito anteriormente, em alguns casos desaparecer é visto como ato irresponsável e leviano, no caso de Nina esse mesmo verbo designa um acontecimento de que a desaparecida não pode ser responsabilizada, apresentado como conseqüência de sua condição de “doente mental”. Nina, afinal, “não sabe o que faz”. Ainda que tenha saído de casa em companhia do rapaz por quem se diz apaixonada, nem essa saída, nem sua paixão são encaradas como decisões e atos plenamente conscientes e conseqüentes, frutos que são de uma condição que a destitui de autonomia. Como indica o especulativo futuro registrado no caso, tão temido por Maria Célia, se Nina vier a fazer “algo errado” será certamente por ter sido obrigada por outrem. Não são poucos os casos de desaparecimento depositados nas gavetas do SDP em que o

desparecido

é

qualificado

como

“doente

mental”,

“desequilibrado

mental”,

“esquizofrênico”, “têm transtorno mental”, “distúrbio mental”, “problema de nervos”, “perturbação da cabeça”, “toma remédios controlados” e outros termos semelhantes. Os casos de Francisco, Lúcio e Tiago, narrados no segundo capítulo, são apenas três de muitos. Sua especificidade reside justamente no emprego de expressões como essas, que se aproximam, de formas e em graus variados, do campo de saberes psi. Em alguns casos, nomes de doenças e listas de medicamentos registradas nos documentos parecem derivar diretamente de uma receita, consulta ou diagnóstico psiquiátrico. Em outros, que afirmo sem hesitar serem muito 163

mais numerosos, os termos empregados para qualificar “doenças” fazem sentido quando afastados dos diagnósticos psiquiátricos e encarados como parte do que Duarte (1986) chama, em sua etnografia junto a classes trabalhadoras urbanas, de “perturbações físico-morais”. Conforme mostra o autor, o nervoso, “que é o modo ou código em que se enuncia fundamentalmente as „perturbações físico-morais‟ sofridas pelos membros desses grupos sociais” (Duarte, 1986, p.13), é um dispositivo vital para que as classes trabalhadoras situemse no mundo social articulando sua cultura e as concepções de pessoa, corpo e doença nela vigentes às noções da cultura dominante, conformada pelo modelo individualista impregnado nos saberes psi. Nos casos de desaparecimento em que aparecem, “doença mental”, “perturbação da cabeça” e outras expressões também desempenham papel importante, já que figuram como explicações para os desaparecimentos a que se referem. Pessoas com “doença mental” ou “perturbações de cabeça”, nesse sentido, desaparecem exatamente porque são pessoas com “doença mental” ou “perturbações de cabeça”. Por vezes, tais expressões qualificativas são sustentadas por laudos levados às delegacias pelos comunicantes como prova da condição de “doente” do desaparecido, mas por outras se fundamentam em descrições de comportamentos, excentricidades, internações e desaparecimentos prévios protagonizados pelo desaparecido. O fato de alguns “doentes mentais” já terem desaparecido outras vezes é apresentado como indício de sua doença, o que faz do desaparecimento mais um possível “aspecto da carreira da pessoa a quem foi atribuído o papel de doente” (Zarias, 2005, 76), assim como a interdição civil. A diferença entre esses aspectos da carreira do “doente”, contudo, é que o desaparecimento figura como um controverso problema de polícia, ao passo que a interdição consiste em questão médico-judicial. Desaparecidos descritos com expressões como as atribuídas a Nina são também qualificados, afirmativa ou negativamente, a partir de informações sobre uma suposta agressividade que parece estar englobada na idéia mais ampla de “doença mental”. Se a dependência produzida em seus casos demanda cuidado e controle, em larga medida é para fazer frente a essa agressividade. No ilustrativo caso envolvendo um homem de 52 anos, lê-se que “ele era doente mental, razão pela qual teria sido aposentado; que esta não é a primeira vez que desaparece, mas que o mesmo não é agressivo ou violento.”93 Em outro, que associa não só agressividade, mas também dificuldade de comunicação à “doença mental”,

93

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 330/04 do SDP/DH.

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A comunicante relata que seu irmão, que possui problemas mentais, foi internado no HFM [Hospital Ferreira Machado] no último domingo, depois que se sentiu mal. Na segunda ele teve alta e desde então a família não teve mais notícias. O desaparecido não aparenta ter problemas mentais, pois comunica-se bem e não é agressivo, mas não sabe voltar para casa sozinho e é muito inocente na relação com as pessoas. 94

Alegações de agressividade são associadas, ainda, a rupturas ou dificuldades na manutenção de vínculos entre o desaparecido qualificado como “doente” e outras pessoas. Em caso exemplar, “a comunicante esclarece que a desaparecida começava a apresentar distúrbios mentais, tais como perda de memória e excesso de agressividade com os próprios parentes.” 95 Em outro, comunicado pela esposa do desaparecido, a partir das “declarações” da comunicante restou registrado Que é casada com Firmino Lopes, o qual sofre de problemas mentais e está separado da comunicante há cerca de nove anos; que Firmino mora sozinho pois o mesmo é muito agressivo e não consegue conviver sob o mesmo teto com a família; que a comunicante todos os dias levava almoço e janta para Firmino; que no dia 29 de setembro Firmino desapareceu e até a presente data ninguém sabe do paradeiro de Firmino. 96

Agressividade, impossibilidade de manter vínculos “com os próprios parentes”, não responder por si e não saber o que faz são elementos de casos de desaparecimento como o de Nina que, em conjunto, produzem relações de dependência e apresentam os desaparecidos como sujeitos necessitados de cuidados e controle. Nesses casos, a delegação das funções de gestão pela polícia para as “famílias” encontra expressão máxima, como explicita a posição de curadora voluntária e não judicial ocupada por Maria Célia. Não obstante, nesses casos encontra expressão também uma nova delegação, que dá prosseguimento à responsabilização das “famílias” pelos desaparecimentos. Como dito anteriormente, se comunicantes procuram repartições policiais para solicitar serviços e investigações de desaparecimentos, num segundo momento policiais devolvem a eles, como membros de “famílias”, as funções de gestão dos casos, através sobretudo de conselhos e compromissos. O que casos como o de Nina e, a seguir, o de Marlene, tornam patente é que esse jogo de responsabilização não necessariamente finda aí. Comunicantes e pessoas envolvidas nos casos por vezes assumem as funções de cuidado e controle dos desaparecidos, como fez Maria Célia, mas por outras as delegam a instituições 94

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 503/04 do SDP/DH. Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 169/08 do SDP/DH 96 Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 026/08 do SDP/DH. 95

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que não a polícia, como, por exemplo, o Centro Psiquiátrico em que Marlene esteve internada. Isso é freqüente não só em casos que enredam desparecidos qualificados como “doentes mentais”, mas também naqueles protagonizados por desaparecidos qualificados como “menores”. No caso de Gilson Filho, que segue o de Marlene, a instituição que se responsabiliza pelo cuidado e controle do adolescente é um abrigo, hoje intitulado Centro de Acolhimento. Vale ressaltar que abrigos como o que acolheu Gilson Filho, como mostram Schuch e Fonseca (2009), são alvo de densos processos de estigmatização relacionados à crescente responsabilização familiar na gestão da infância e adolescência. Em suma, a produção de relações de dependência em todos esses casos, como se pode notar tanto no desaparecimento de Marlene, quanto no de Gilson Filho, abre novas possibilidades de delegação e atribuição de responsabilidades pelos desaparecimentos e pelos desaparecidos, dada sua necessidade de cuidado e controle. Se, a princípio, policiais atuam depois de “esgotadas todas as possibilidades”, os registros dos casos que restam arquivados em repartições policiais revelam que muitas outras possibilidades entram em cena antes, durante ou depois que os desaparecimentos são matéria de trabalho policial.

MARLENE Dia 4 de maio de 2008, a dona de casa Marta foi à 37ª DP, na Ilha do Governador, comunicar o desaparecimento de sua sobrinha Marlene. No dia anterior, Marlene estava sendo atendida por uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), quando “achou que a citada ambulância iria levá-la para algum manicômio e empreendeu fuga correndo pelas ruas, sendo que desde aquela oportunidade não foi mais vista”. Marta descreveu as roupas que sua sobrinha usava na ocasião, relatou que Marlene “sofre de esquizofrenia e já ameaçou eliminar sua vida; [e] que Marlene vestia camiseta mostarda e bermuda preta quando desapareceu (sem calçados).” Por fim, firmou compromisso de retornar à DP “tão logo obtenha qualquer notícia de Marlene”. Quatro dias depois, cumprindo o compromisso, Marta voltou à delegacia. Relatou então que recebeu dois telegramas informando que Marlene estava internada no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, e que “familiares já se dirigiram ao local e verificaram que a informação é verdadeira”. Antes de deixar a DP, Marta recebeu de volta uma fotografia de Marlene, que havia deixado com o policial ao solicitar o registro de ocorrência. O caso de Marlene foi enfim encaminhado para o SDP e arquivado, como Sindicância Solucionada, em julho de 2008.97

97

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 136/08 do SDP/DH.

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GILSON FILHO Gilson Filho, 16 anos, foi abrigado no Centro de Acolhimento Dom Hélder Câmara, instituição da prefeitura que fica na Praça da Bandeira, no final de março de 2007. “A medida de abrigamento, aplicada pelo Conselho Tutelar”, foi o ponto de chegada de uma história de múltiplos desaparecimentos vivida por Gilson Filho desde seu nascimento. Gilson Filho nasceu em janeiro de 1991, da relação entre Gilson e Ione. Ione abandonou a família quando o menino era ainda recém-nascido. Tempos depois, Gilson casou-se novamente, com Cristiane, com quem teve uma filha. O casamento não durou muito, já que Gilson faleceu pouco depois. Cristiane então “obteve a guarda judicial [de Gilson Filho], tendo em vista a mãe do adolescente ter também desaparecido logo após o nascimento dele”. Cristiane também se casou novamente, com um homem de nome Márcio, e teve mais um filho. Viviam todos na mesma casa, em Coelho Neto. Dia 1º de outubro de 2006, Gilson Filho saiu de casa sem dizer para onde ia ou quando voltaria. Passados dois dias sem que tivesse notícias dele, Márcio comunicou o desaparecimento do enteado em uma delegacia, afirmando que era “a primeira vez que Gilson Filho tem esse comportamento”. Na DP, relatou que o enteado “fora visto pela última vez na Avenida Automóvel Clube, 1.200, Coelho Neto, perto da favela de Acari”, mas não informou quem o vira e em que circunstâncias. Dia 5 de outubro, antes mesmo que qualquer investigação fosse levada a cabo por policiais da DP, Márcio retornou à repartição em que comunicou o desaparecimento, acompanhado de Cristiane. Afirmou então que naquele mesmo dia Gilson Filho “apareceu em casa dizendo que se encontrava na casa de um amigo no bairro da Penha, manifestando a vontade de levar todos os seus pertences, já que havia resolvido morar naquele bairro”. Da DP, Márcio e Cristiane foram encaminhados “ao Conselho Tutelar de Madureira para as medidas cabíveis e para a atenção necessária”. No começo de dezembro, Márcio e Cristiane retornaram à DP e ao CT de Madureira para comunicar que Gilson Filho “ausentou-se do lar mais uma vez sem dar qualquer explicação para onde iria”. Márcio e Cristiane sabiam apenas que amigos do adolescente encontraram Gilson Filho nas redondezas da casa da família, tendo o desaparecido deixado com um dos colegas uma camisa para ser entregue à um irmão, que conta atualmente 5 anos de idade (...) e pedindo somente que avisassem à sua mãe que estava residindo em companhia de uma namorada. Porém não disse quem era, nem tampouco onde a mesma morava.

No final do mês, o inspetor da DP que estava cuidando do caso procurou a família e ao telefone Cristiane relatou que, por informações de pessoas conhecidas, o desaparecido atualmente encontra-se residindo na comunidade de Vila Cruzeiro em Inhaúma, e que foi visto há pouco tempo com aparência de estar bem cuidado, não sabendo informar em que casa ou com quem ele está residindo.

167

Depois de registradas essas informações, o caso foi encaminhado para o SDP. Seis meses depois, o inspetor do Setor que ficou responsável por ele conversou com Cristiane, também pelo telefone, e foi informado que Gilson Filho “foi localizado e acolhido no Abrigo de Menores da Praça da Bandeira”, atendendo medida de abrigamento aplicada pelo Conselho Tutelar da Zona Sul. O inspetor do SDP fez então contato com o abrigo, confirmou a informação e logo em seguida solicitou o arquivamento do caso de Gilson Filho como Sindicância Solucionada. A justificativa para essa solicitação parte de um resumo da história familiar do adolescente e aponta para o fato de que o desaparecimento que deu origem aos documentos que se queria arquivar faz parte de um conjunto de acontecimentos dramáticos envolvendo Gilson Filho, mas pode ser destacado e encarado como único evento que caberia à polícia solucionar: (...) o menor é órfão de pai e foi abandonado pela mãe, sendo adotado legalmente pela madrasta e seu atual companheiro; entretanto, fugiu várias vezes de casa, passando a ser assistido pelo Conselho Tutelar, que optou por sua internação provisória. Considerando que o objetivo dessas investigações é a localização do referido menor, considerando que o menor está atualmente no Centro de Acolhimento Dom Hélder Câmara; considerando que é do conhecimento dos responsáveis o atual paradeiro do menor, solicito o arquivamento da Sindicância, haja vista que está SOLUCIONADA. 98

O caso de Gilson Filho retrata o adolescente como alguém que escapa, já que os documentos a ele referentes não registram somente um desaparecimento. Ao contrário, Gilson Filho vive desaparecendo, e seu caso registra que ele “fugiu várias vezes de casa” e que as notícias que seus familiares têm dele são informações fugidias que o rapaz deixa com vizinhos e conhecidos, aos quais pede que avisem à sua mãe por onde anda ou repassem para seu irmão um presente. A mãe do garoto não sabe ao certo onde ele mora, mas afirma que Gilson Filho “foi visto” exibindo “aparência de estar bem cuidado”. Gilson Filho é, ele mesmo, presença sempre fugidia, e embora suas idas e vindas levem seus pais a procurar polícia e o Conselho Tutelar, ao mesmo tempo engendram certa resignação. Essas mesmas idas e vindas, depois de comunicadas ao CT, provocaram uma medida que teve como objetivo fixar Gilson Filho no interior de uma instituição, permitindo que policiais dessem seu caso por solucionado. Não obstante, o Centro de Acolhimento a que o adolescente foi conduzido pelo CT o recebeu para “internação provisória”, o que por definição implica que o constante ir e vir de Gilson Filho passaria pelo abrigo, mas certamente não cessaria ali. Provavelmente, como indica o próprio caso e também a pesquisa

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 011/07 do SDP/DH.

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de Schuch e Fonseca (2009), a passagem do adolescente pelo abrigo poderia caracterizar-se pela mesma manutenção de laços frouxos, mas ativos, com seus familiares. 99 O caso de Gilson Filho, assim como o de Nina, exibe relações de dependência engendradas pelo trabalho policial diante de casos de desaparecimentos. Porém, o caso do adolescente exibe esse artefato porque o próprio desaparecido tenta negá-lo e refutá-lo a cada “fuga”, “ausência” ou vaivém entre endereços ignorados por seus pais, vizinhos, irmão e conhecidos. Fazendo frente às negações e escapadas do garoto, a medida de “internação provisória” aplicada pelo Conselho Tutelar sublinha, enfim, a posição de dependência atribuída a Gilson Filho em relação a sua “família” e a instituições como o Centro de Acolhimento em que foi abrigado. Os arquivos do SDP guardam muitos casos semelhantes ao de Gilson Filho, protagonizados por crianças e adolescentes que fogem repetidas vezes de suas casas, mas não só delas. São também freqüentes casos de fuga de abrigos como o que acolheu Gilson Filho. Sob o título de desaparecimento, os documentos relativos a casos como esses registram não uma, mas múltiplas idas e vindas entre casas e instituições percorridas pelos desaparecidos em curtos espaços de tempo, e remetem às falas do gestor governamental que coordenava a ReDESAP quando do II Encontro Nacional. Como exposto no primeiro capítulo, o gestor encara desaparecimento como sinônimo de fuga, e de certo modo casos como o de Gilson Filho referendam sua abordagem. Lúcia, 14 anos, também teve seu desaparecimento reportado em uma DP. A mãe da adolescente esteve na repartição e, nos registros então produzidos, o caso de Lúcia desdobrase em duas fugas. É, nesse sentido, semelhante ao caso de Tiago, narrado no capítulo anterior. Em um dos Termos de Declarações que compõem o caso de Lúcia, firmado a partir da presença da mãe da desaparecida na DP, lê-se: Que é mãe de Lúcia; que a comunicante é separada do pai de Lúcia e, por esta razão, ela mora com a declarante; que no dia 3 de abril, Lúcia estava num bar próximo da sua residência juntamente com a irmã Maria; que por volta das 23h, Maria foi para casa e, posteriormente, retornou ao mesmo bar para comprar refrigerante e Lúcia já não estava mais lá; que desde aquele dia Lúcia ficou desaparecida, quando então a declarante perguntou a vários conhecidos se sabiam algo a respeito dela, pedindo ainda para alguém que por acaso encontrasse com ela pedisse para ela voltar para casa; que 99

A partir de pesquisa junto a abrigos da cidade de Porto Alegre, as autoras concluíram “que é possível que essas próprias unidades estabeleçam formas de pertencimento e inserção social que podem funcionar no sentido de provocar continuidade dos laços entre crianças e adolescentes atendidos, instituições e famílias de origem. (...) A colocação em uma instituição para o abrigamento de crianças e adolescentes não implica, desta maneira, necessariamente, ruptura de vínculos com suas famílias de origem.” (Schuch e Fonseca, 2009, p. 135)

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posteriormente, na sexta-feira, dia 6 de abril, Lúcia voltou para casa e disse para a declarante que iria morar com o pai dela, Rivaldo, que mora na Penha, não sabendo a declarante precisar o endereço dele; que a outra filha da declarante, Maria, manteve contato com Rivaldo, o qual informou que Lúcia chegou na casa dele na sexta-feira e dormiu lá, mas, no sábado, por volta das 17h, Lúcia saiu com dinheiro dele para pagar uma conta e desapareceu novamente. 100

Lembrando os recados que Gilson Filho pedia que vizinhos dessem à sua mãe, o caso de Lúcia foi arquivado como solucionado depois que o policial que dele se encarregou no SDP telefonou para um número indicado nos registros como “para recado”. Tratava-se do telefone de vizinha da família, de nome Iracema, que informou ao policial que a garota havia voltado a residir com sua mãe e irmã, e que “estava tudo bem”. A exemplo do que ocorreu no caso de Lúcia, muitos relatórios que encerram casos registram telefonemas atendidos por vizinhos ou conhecidos do desaparecido e/ou do comunicante. As informações fornecidas por essas pessoas constam nos documentos como tão relevantes quanto dados obtidos em sistemas de informação como a Rede INFOSEG ou relatos feitos presencialmente pelo comunicante ou pelo próprio desaparecido, que vão às DPs reportar que o caso em que estão “Envolvidos” foi solucionado. Se lembrarmos do caso de Graziele, narrado no primeiro capítulo, encontramos um desaparecimento solucionado por um dado obtido via sistema informatizado de buscas: a emissão do RG da menina. Se lembrarmos do caso de Antônio, narrado na Introdução, encontramos um desaparecimento solucionado pela comunicante, que foi ao SDP notificar que encontrara o desaparecido “descansando da vida” numa cidade de Minas Gerais. Por fim, se lembrarmos de Cinira, que desapareceu porque estava “cansada, extremada e aborrecida com a vida”, encontramos um desaparecimento solucionado porque a própria desaparecida foi à DP “esclarecer que não aconteceu nenhum crime relacionado” ao seu caso. Entre os múltiplos procedimentos que podem ensejar o fim de um caso, vale destacar a possibilidade de que um vizinho da adolescente desaparecida que diga ao policial, pelo telefone, que “estava tudo bem” seja condição suficiente para que o desaparecimento seja arquivado como solucionado. Essa possibilidade aponta para o último artefato do trabalho policial diante dos casos de desaparecimento que quero destacar: a ênfase no controle de corpos e territórios idealmente exercido pela polícia, com todos os paradoxos e ambigüidades que ele comporta.

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 178/08 do SDP/DH.

170

3.5 Errância, corpos e territórios Não raro, casos de desaparecimento são arquivados assim que policiais obtêm informações sobre o desaparecido a partir de relatos de vizinhos, conhecidos e parentes dos “Envolvidos”. Freqüentemente policiais contactam pessoas cujos números de telefone são citados nos ROs como “para recado”, parentes que não vivem na mesma casa que o desaparecido e/ou comunicante e pessoas cujo vínculo com o desaparecido não é objeto de registro. Se casos como o de Elói e Urbano, narrados no capítulo anterior, indicam que rumores e informações reportadas por comunicantes sobre possíveis desfechos de casos não são confirmadas, nem contestadas por policiais, casos como o de Gilson Filho, “visto há pouco tempo com a aparência de estar bem cuidado”, e o de Lúcia, acima citado, seguem na direção oposta. Como eles, muitos desaparecimentos são encerrados e encarados como solucionados mediante relatos que são endossados como se prescindissem de confirmação, encarados não como boatos ou dizeres imprecisos, e sim como verdades. Como me disse algumas vezes o inspetor Fernando, casos arquivados como solucionados depois de telefonemas causam a equivocada impressão de que o trabalho do SDP é “um sucesso”. São eles, da perspectiva do policial, que melhor evidenciam que o serviço de busca de paradeiros é “uma ilusão”, já que se tornam Sindicâncias Solucionadas sem que diligências além de chamadas telefônicas sejam empreendidas. Sindicâncias Solucionadas indicam que o trabalho policial de fato promove a localização de desaparecidos, estejam eles onde estiverem, o que nada mais é que uma fantasia ou, novamente, “uma ilusão”. Retomando Foucault (2006) no trecho citado no começo desse capítulo, desaparecimentos assim solucionados corroboram o ideal de que o sistema policial estatizado “é coextensivo ao corpo social inteiro, e não só pelos limites extremos que atinge, mas também pela minúcia dos detalhes de que se encarrega” (Foucault, 2006, p.176), mas ao mesmo tempo denunciam seu caráter ideal. Como afirma o inspetor Menezes, “a polícia não sobe o morro e, mesmo se subir, não encontra os corpos”. Se idealmente ela atinge todos e quaisquer corpos e territórios, na prática seu alcance é limitado. Contudo, ainda que negada na prática, não deixa de ser parte do trabalho policial a concepção de que seus agentes exercem “um controle que procura idealmente atingir o grão mais elementar, o fenômeno mais passageiro do corpo social” (Foucault, 2006, p.176), alcançando integralmente as totalidades territoriais e populacionais inscritas em suas “circunscrições”. Tal concepção consiste, afinal, em um modelo de atuação 171

ou uma ficção social que, como nos ensina Leach (1996) a respeito de modelos e ideais, pode perfeitamente integrar uma realidade social que lhe contradiga. Esse alcance ideal de totalidades populacionais e territoriais, como tornam patente casos de desaparecimento, faz-se muitas vezes por meio do que denominei delegações. Policiais atribuem responsabilidades às “famílias” de desaparecidos, por meio sobretudo de conselhos, compromissos e relações de dependência, repassando a elas tarefas para as quais são convocados. As delegações mostram com nitidez que a gestão de casos de desaparecimento, bem como a administração judicial de processos de guarda analisada por Vianna (2002), descortina “o paradoxo de um Estado que não pode fugir daquilo que também não consegue realizar” (Vianna, 2002, p.202). Afinal, a despeito de não localizar desaparecidos através de suas próprias diligências, o trabalho policial em torno de muitos desaparecimentos redunda no arquivamento de casos solucionados, independentemente de como se deu sua solução. Nada realizar além de um telefonema, portanto, não coloca em risco o modelo de atuação vigente, precisamente como modelo, em repartições policias. O caso do adolescente Sérgio, arquivado como solucionado depois que um policial do SDP falou por telefone “com a irmã da ex-esposa do pai do desaparecido” coloca em cena os meandros das delegações por meio das quais, parafraseando Vianna (2002), a polícia não foge daquilo que não consegue realizar. Conforme restou registrado, Sérgio, de 12 anos, “teria saído da casa do pai por não se dar bem com a atual madrasta, porém, não há indícios de maus tratos, tão somente incompatibilidade de relacionamento”.101 O caso foi arquivado sem que qualquer diligência tenha sido levada a efeito depois do referido telefonema, no qual a interlocutora do policial informou-lhe que Sérgio estava morando com a mãe. O registro de que “não há indício de maus tratos” entre as causas do desaparecimento do menino prestou-se a justificar a inação do policial depois do telefonema, já que “incompatibilidade de relacionamento” é, para usar os termos que tantas vezes ouvi no SDP, “problema de família”, e não “problema de polícia”. A distinção entre “maus tratos” e “tão somente incompatibilidade de relacionamento”, enfim, possibilitou tanto que o policial se eximisse de responsabilidade diante do caso, quanto o encerrasse como “um sucesso”. Se relembrarmos o caso de Linda, encontramos estratégia semelhante, empregada não pelos policiais encarregados daquele desaparecimento, mas por Wellington, companheiro da desaparecida. Durante uma briga, Wellington teria esfaqueado Linda. Nas palavras dele, contudo, naquele episódio “houve facadas”, mas não houve crime, dado que Linda “retirou a 101

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 141/08 do SDP/DH.

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queixa”. Assim como o policial encarregado do desaparecimento de Sérgio traçou uma fronteira entre “maus tratos” e “incompatibilidade de relacionamento”, Wellington fez o mesmo entre “facadas” e crimes constituídos por queixas. Ambos, a despeito de desempenharem papéis distintos diante dos desaparecimentos em que estão enredados, distinguiram duas searas e eximiram-se de responsabilidades em face de uma delas: diante de “facadas” que não foram objeto de queixa, Wellington não teria culpa; diante de “somente incompatibilidade de relacionamentos”, o policial que cuidou do caso de Sérgio não teria nenhuma incumbência. Tal estratégia indica, tanto quanto a própria separação feita no SDP entre “problemas de polícia” e “problemas de família”, que o ideal de ubiqüidade e largo alcance do trabalho policial convive, no cotidiano, com práticas de delimitação de espaços sociais restritos em que efetivamente se dá sua atuação. Espaços sociais, como afirma Bourdieu (2010, p.134), são conjuntos de relações de força em que agentes e grupos de agentes são definidos por suas posições relativas. A ilusão de que o trabalho policial alcança “tudo o que acontece” e atua permanentemente, referendada a cada caso arquivado como solucionado, se faz presente também na própria comunicação dos desaparecimentos. Como mostram o caso de Lia, uma estrangeira que desapareceu quando passava férias de verão no litoral fluminense, e o desaparecimento de Nuno, vítima de afogamento em um dia de temporal, acionar a polícia diante da necessidade de localizar desaparecidos é supor que o trabalho policial dê conta da integralidade do território sob sua jurisdição, desde as águas de seus rios até festas de Réveillon que se passem em suas praias, e de todos os corpos que nele transitem. Não obstante, acionar a polícia não impede que comunicantes reconheçam o caráter ideal desse alcance, e sigam fazendo buscas pelos desaparecidos por conta própria. Miriam, mãe de Nuno, fornece bom exemplo disso, já que desde o afogamento de seu filho passa a fazer visitas regulares ao IML-RJ.

LIA A jovem paraguaia Lia veio ao Brasil passar férias de verão. Chegou ao Rio de Janeiro dia 19 de dezembro e hospedou-se em um albergue da juventude. Durante a estadia, conversou por telefone com sua mãe algumas vezes. Em uma delas, informou que viajaria a “Paraty e/ou Angra dos Reis, possivelmente para uma das ilhas na região, para uma festa de Réveillon”. Desde então, não deu mais notícia a nenhum de seus familiares no Paraguai. A mãe de Lia procurou autoridades paraguaias, o que engendrou a mobilização do o Consulado Geral do Paraguai no Rio de Janeiro. O Consulado remeteu então um ofício ao 173

Delegado Superintendente do Departamento de Polícia Federal do Rio de Janeiro, comunicando o desaparecimento de Lia e solicitando o apoio das Autoridades Policiais locais no sentido de localizar, e, neste caso, colocar em contato com este Consulado Geral, ou prestar informações acerca do paradeiro, ou ainda informar a existência de algum registro, que possa auxiliar nas investigações em nome da nacional paraguaia LIA CRUZ.

Pesquisas foram então feitas no sistema de dados da Polícia Federal (PF). Foram encontrados apenas registros de duas entradas anteriores de Lia em território brasileiro. Em seguida, o caso foi encaminhado ao SDP, sob a seguinte justificativa: “Como NADA mais consta, e desaparecimento de pessoas é caso a ser resolvido, ainda que de estrangeiros, pela Polícia Civil, sugiro, s.m.j. [salvo melhor juízo], solicitar apoio àquela instituição”. O caso chegou ao SDP dia 11 de fevereiro de 2008. Através de telefonema para o Consulado, primeira providência tomada no Setor, a inspetora encarregada registrou que a jovem foi localizada logo depois que o Consulado comunicou seu desaparecimento à PF. Lia estava em Paraty para a festa de ano novo, exatamente como disse à sua mãe. Em março do mesmo ano o caso foi arquivado como Solucionado. 102 NUNO Dias de temporal costumam ser comemorados por crianças que moram nos bairros de Coelho Neto e Fazenda Botafogo. Diferente do que acontece em outros dias, “toda vez que chove forte é normal as crianças tomarem banho no Rio Acari”, que atravessa a região. 16 de janeiro de 2004 foi um desses dias. Choveu tão forte e tantas crianças foram “pular e mergulhar nas águas do rio” que até Nuno, que “não tinha o costume de ir tomar banho no Acari, pois ele não sabia nadar”, acompanhou seus amigos e vizinhos na brincadeira. Nuno é filho de Miriam e contava, naquela data, 15 anos de idade. Alguns adultos assistiam as crianças brincando no rio e testemunharam quando as brincadeiras acabaram ganhando ares de tragédia. O volume das águas subiu rapidamente e, sem que conseguissem controlar seus movimentos, três meninos foram levados pela correnteza. Um deles era Nuno. Nuno foi arrastado pelas correntezas do rio diante de Regina, amiga e vizinha de sua mãe, e de um vizinho deles de nome César. Regina “ficou com a roupa da vítima nas mãos” enquanto ele sumia nas águas do rio. César tentou acudir o menino, “tendo o mesmo entrado no rio para procurar a vítima, mas não conseguiu encontrá-la”. Desde então, Nuno não foi mais visto. Um dos outros meninos que, como Nuno, foram levados pelas correntezas, foi encontrado morto e teve seu óbito registrado em cartório.

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 022/08 do SDP/DH.

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Miriam, mãe de Nuno, fez “várias buscas pelo corpo de bombeiros sem sucesso”, e foi algumas vezes ao IML. Dia 22 de janeiro, seis dias depois do acontecido, Miriam foi também a uma delegacia, onde foi confeccionado RO de desaparecimento. O título específico dado ao documento foi “Desaparecimento – hipótese de morte por afogamento”. Meses depois, já em abril de 2004, Miriam foi novamente à mesma DP, “atendendo convite via telefone”. Na ocasião, afirmou que seu filho continua desaparecido, e disse que “tem ido IML com freqüência para tentar localizar seu filho, mas que até o momento não conseguiu encontrá-lo”. Em agosto de 2004, o caso de Nuno foi encaminhado ao SDP. No Setor, foi arquivado como Suspenso quase quatro anos depois, em junho de 2008. Não há entre os documentos arquivados qualquer registro de pesquisas e buscas por Nuno, apenas as frases de praxe utilizadas como justificativa para suspensão de Sindicâncias no SDP: Desde a instauração do registro de desaparecimento neste SDP, foram feitas diversas pesquisas nos sistemas disponíveis para a localização do menor acima em referência. Ocorre que até a presente data não foram encontradas quaisquer referências ao menor, tão pouco foram localizadas as partes para novas informações. Face o informado, considerando a necessidade de maior agilização nas demais Sindicâncias ora em andamento; considerando que todas as pesquisas foram devidamente atualizadas sem indícios do menor ou de seus familiares, solicito SUSPENSÃO da Sindicância até que hajam novos fatos para prosseguimento ou manifestação das partes.103

Embora comunicantes reportem desaparecimentos supondo (e, ao mesmo tempo, reconhecendo-lhe o caráter ideal) que o trabalho policial alcance “tudo o que acontece”, as diligências empreendidas por policiais efetivamente dirigem-se não só a espaços sociais delimitados por estratégias como a destacada do caso de Sérgio, mas também a espaços territoriais igualmente restritos. É para essa restrição que aponta o inspetor Menezes, ao afirmar que “a polícia não sobe o morro”. Não obstante, com essa frase Menezes aponta também para os inúmeros “fatos” que não são reportados à polícia, explicitando que se “a polícia não sobe o morro”, por outro lado moradores do “morro” não relatam à polícia muitos dos “fatos” em que se envolvem ao longo de suas vidas. A remessa de Ofícios descrita no capítulo anterior explicita que policiais procuram desaparecidos exclusivamente em necrotérios, hospitais, carceragens, penitenciárias e alguns órgãos e serviços assistenciais - territórios institucionais, portanto. O fato da busca por desaparecidos direcionar-se a tais territórios institucionais revela não só a limitação do alcance do trabalho policial, como também sua intermitência. Como os checkpoints104 103

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 432/04 do SDP/DH. A partir de etnografia em Colombo, cidade do Sri Lanka, Jeganathan busca constituir o checkpoint como objeto antropológico especialmente revelador de práticas de assujeitamento (subjection) vigentes em territórios 104

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analisados por Jeganathan (2004) ou como os postos da Polícia Federal que registraram as entradas de Lia em território brasileiro, hospitais públicos, penitenciárias e o IML freqüentado pela mãe de Nuno são postos em que fluxos de pessoas e corpos são interrompidos e cada um deles é identificado e registrado. Desaparecidos são localizados por policiais se e quando são objeto de identificação e registro em postos institucionais como esses, e somente nesses casos, muito embora a comunicação dos desaparecimentos em delegacias alimente o ideal de que o trabalho policial é permanente, ubíquo e atuante sobre as “coisas de todo instante” (Foucault, 2006, p.176). Alguns casos são especialmente valiosos para refletirmos sobre essa questão, por serem protagonizados por pessoas cujas trajetórias de vida, e não apenas seus desaparecimentos, passam ao largo de espaços institucionais como os checados por policiais. São casos em que os desaparecidos são descritos como errantes e têm seu modo de vida apresentado em registros como “vive vagando pela cidade”, “vaga pelas ruas”, “fica na rua”, “está sempre na rua”, “é visto perambulando pelo Centro” e “vive na mendicância”, entre outros. São casos, enfim, cujos protagonistas não se encontram situados em unidades de localização como “famílias”, “empregos” e/ou casas, não porque estão desaparecidos, e sim porque vivem desvinculados, mais ou menos permanentemente. 105 Casos como esses se estendem por um espectro de desvinculações, tendo como protagonistas desde adolescentes que escapam de suas casas e de instituições de acolhimento e passam períodos de tempo “nas ruas”, como Gilson Filho e Lúcia, até adultos que vivem relativamente isolados, como vimos no caso de Silvio, que “vagava pelas ruas”, “andava pela cidade numa bicicleta velha” e tinha um “apartamento cheio de entulho” onde não foi localizado. O caso de Pedro é um dos desaparecimentos arquivados no SDP que se inscreve nesse espectro de desvinculações e, como tal, é especialmente revelador do caráter ideal do alcance ilimitado e supostamente permanente do trabalho policial. Em agosto de 2004, Laura, esposa de Pedro, procurou uma delegacia para relatar que “em agosto de 2002 Pedro começou a estatais. Em Colombo, checkpoints marcam espaços territoriais encarados como possíveis alvos de bombas, circunscrevendo-os. A partir dos checkpoints de Colombo, o autor assim define esse objeto antropológico: “At its most basic and ordinary, a checkpoint is staffed by low-ranking soldiers, men or women, who stop the flow of traffic, usually vehicular but quite often pedestrian, to ask questions of those who pass by. The questions turn around matters of identity.” (Jeganathan, 2004, p.69) 105 Vale ressaltar que a desvinculação característica da vida desses desaparecidos, ainda que registrada como duradoura, necessariamente não é absoluta: primeiro, pelo fato fundamental de que seus desaparecimentos foram comunicados em delegacias de polícia por alguém que os conhecia; segundo, porque como sugere Araújo (2000) em trabalho sobre pessoas que moram nas ruas ou vivem delas, é comum, especialmente quanto a crianças e adolescentes, que contatos com familiares sejam feitos com certa regularidade; e terceiro, mas não menos importante, porque em muitos municípios brasileiros é possível detectar “um elo de ligação entre as populações de rua e a cidade oficial, que é simbolicamente expressivo: a prática de recolhimento de materiais do lixo, notadamente latas de alumínio, que servem de fonte de renda.” (Bursztyn, 2000, p.25)

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perambular por sua vontade por bairros e ruas da Ilha do Governador, sem que se tenha notícias sobre seu atual paradeiro”. 106 Enquanto era avistado por Laura, antigos vizinhos e/ou conhecidos em suas perambulações, Pedro não foi objeto de registros de desaparecimento. Quando deixou de ser visto por bairros e ruas da Ilha, sua esposa procurou a polícia. A rotina cuja ruptura constitui o desaparecimento de Pedro, nesse sentido, era uma rotina de perambulação. Como em outros desaparecimentos protagonizados por pessoas que vagam pela cidade, é difícil imaginar interseções entre a rotina de perambulação de Pedro, mesmo antes que ele fosse registrado como desaparecido, e os espaços institucionais comumente consultados por policiais diante de casos de desaparecimento. A localização de desaparecidos como Pedro, Gilson Filho, Sílvio e, conforme caso narrado a seguir, Vicente, parece impossível se contarmos apenas com meios investigativos como a emissão de Ofícios realizada de praxe no SDP. Afinal, suas perambulações, seu modo de vida errante e seu constante vagar desafiam a procura voltada apenas a espaços institucionais como barreiras policiais e checkpoints (Jeganathan, 2004). Não obstante, ainda que permaneçam desaparecidas, essas pessoas são objeto de outra ordem de localização. Como deixa nítido o caso de Vicente, andarilhos e pessoas que escapam a unidades de localização como “famílias” e “empregos”, e dificilmente são registrados nos espaços institucionais checados por policiais, aparecem nos registros ocupando uma posição peculiar no espaço social em que são inscritos no curso de seus desaparecimentos.

VICENTE Nascido em 1934, Vicente é lavrador e mora na Serra das Araras, mais precisamente na “pista de subida da Rodovia Presidente Dutra, km 221”. Foi casado com Maria por cerca de dez anos, e com ela criou três filhos: José Luiz, André Luiz e Joel. Estão separados há mais de vinte anos, mas Maria segue freqüentando a casa de Vicente “a fim de visitá-lo e a seu filho de criação José Luiz”. José Luiz mora com Vicente e vende frutas em uma barraca na rodovia. Em meados de fevereiro de 2005, José foi à DP de Piraí e relatou Que, desde que nasceu foi criado por seu padrasto, VICENTE DOS SANTOS; que, sempre manteve um bom relacionamento com o mesmo; que, há cerca de dois meses, seu padrasto vem se comportando de maneira estranha, sai de casa, fica perambulando pelas ruas, retornando cerca de dois ou três dias depois; que, o mesmo já apresentou este problema antes, tendo inclusive sido levado ao médico pelo declarante, no entanto, nada de errado foi constatado; que, há cerca de dezoito dias, seu padrasto saiu novamente de casa, porém, desta vez não mais retornou.

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 326/04 do SDP/DH.

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José Luiz relatou ainda que dois primos seus, João e Manoel, foram as últimas pessoas que avistaram Vicente. João e Manoel trabalham no posto da concessionária responsável pela manutenção da rodovia onde Vicente mora, e teriam visto seu tio na região de Arrozal. José Luiz descreveu as roupas que Vicente vestia quando foi visto por João e Manoel e detalhou algumas de suas características físicas. Por fim, afirmou que “seu padrasto não bebe nem fuma; que seu padrasto não freqüentava casa de parentes ou amigos; que, o mesmo vinha apresentando também problemas de memória. E mais não disse nem lhe foi perguntado”. O inspetor que ouviu os relatos de José Luiz produziu RO de desaparecimento em nome de Vicente. No documento, registrou como data do desaparecimento um intervalo de tempo encerrado pelo dia em que José Luiz esteve na DP; já como local do fato, registrou as mesmas indicações geográficas anotadas como sendo o endereço da casa de Vicente. Logo após confeccionar o RO, o inspetor emitiu quatro Mandados de Intimação. Através deles, convidou quatro pessoas para “prestar declarações no procedimento investigatório” sobre o desaparecimento de Vicente: João e Manoel, sobrinhos do lavrador, sua ex-mulher Maria, e seu filho André. Dos quatro, apenas Maria e André compareceram à DP. A partir das falas de Maria, o inspetor registrou Que há um ano VICENTE passou a apresentar problemas de memória e constantemente saía de casa, ficava perambulando pelas ruas, retornando para casa dois ou três dias depois; que, o mesmo já não reconhecia as pessoas, inclusive a declarante; que, há cerca de trinta dias, VICENTE saiu de casa e não mais retornou, estando seu paradeiro incerto e não sabido; que, quando do desaparecimento de VICENTE, também sumiram todos os seus documentos pessoais, inclusive os documentos do sítio que lhe pertence.

Também a partir das falas de André foram produzidos registros sobre o que vinha acontecendo com Vicente e poderia justificar seu desaparecimento: “problemas de memória”, “que esquece das coisas que fala”, “fica desaparecido por cerca de três ou quatro dias”. Um mês depois, o caso foi encaminhado ao SDP. Há apenas um registro de pesquisas realizadas no Setor, manuscrito em pequeno papel grampeado na capa da Sindicância. Segundo o manuscrito, em junho de 2005 foi feita pesquisa no sistema de identificação do DETRAN-RJ, órgão que atualmente emite documentos de identificação civil no Estado. Os resultados da pesquisa foram traduzidos por um curto “não consta nada”. Em janeiro de 2009, quase quatro anos depois da efetuação do RO de desaparecimento, a Sindicância foi suspensa, sob a justificativa de que “até a presente data nas pesquisas realizadas não foram encontrados registros em nome do cidadão desaparecido; bem como não há dados suficientes para novas investigações”, e também “em função do tempo decorrido desde sua instauração”.107

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 189/05 do SDP/DH.

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Apesar de “nada de errado” ter sido constatado pelo médico a que Vicente foi levado quando começou a perambular, sua ex-mulher e seus filhos sustentam que suas andanças consistiam em “uma maneira estranha” de se comportar. Quando uma dessas estranhas andanças durou, diferente do hábito, não dois ou três, mas dezoito dias, foi reportada à polícia como caso de desaparecimento. Os documentos do caso registram não apenas o esquisito hábito de Vicente, mas que “o mesmo vinha apresentando também problemas de memória” e, ainda, que com ele “sumiram todos os seus documentos pessoais, inclusive os documentos do sítio que lhe pertence”. Retratam o desaparecido, portanto, como alguém que vinha passando por problemas e vagando, desprovido de documentos de identificação, por não se sabe onde. Até os papéis oficiais que comprovam que o sítio “que lhe pertence” de fato é propriedade sua desapareceram, reforçando a imagem de Vicente como andarilho desgarrado, despossuído e de identificação improvável ou impossível. A busca de dados sobre ele no sistema de registros do DETRAN-RJ, cujo resultado negativo restou manuscrito entre os documentos do caso, reforçou ainda mais tal imagem. Nesse retrato feito a partir de algumas “declarações” e um “nada consta”, Vicente é situado em uma posição específica, constituída por certo conjunto de faltas: perdeu vínculos, inclusive documentais, com seu sítio, espaço territorial que habitava; perdeu a memória, e por isso não reconhecia pessoas, nem mesmo sua ex-mulher, e “não freqüentava casa de parentes ou amigos”, vivendo como que desprovido de relações e laços sociais; por fim, e não menos importante, “sumiram todos os seus documentos pessoais”, bens fundamentais que, como afirmado nos capítulos anteriores, poderiam garantir-lhe o usufruto de bens e direitos e, ao mesmo tempo, permitir sua localização. Destacar essa posição em que Vicente é situado ilumina e dá sentido aos artefatos da gestão dos desaparecimentos destacados ao longo deste capítulo – os conselhos, compromissos, reputações, relações de dependência e o ideal de controle de corpos e territórios engendrados pelo trabalho policial. Isto porque o lugar de faltas em que Vicente é posicionado sugere que tais artefatos precipitam-se da rotina burocrática dos casos à medida que cada procedimento constitutivo dela orienta-se por prescrições de ordem moral ou, para evocar mais uma vez Foucault, agora em sua obra sobre a história da loucura, certa “coação moral” (Foucault, 2005a, p.75). Ao apresentar o que denomina período da grande internação, em que casas de internamento foram criadas como destinos ideais daqueles que perturbavam a ordem das cidades por viverem na pobreza, na ociosidade e na loucura, Foucault (2005) 179

demonstra que procedimentos administrativos como os previstos nos regulamentos daquelas instituições dão lugar a claras prescrições e proscrições de ordem moral. 108 Guardadas as devidas proporções, nos registros, trâmites e “nada constas” constitutivos de casos de desaparecimento também grassam prescrições de ordem moral – prescrições estas a que Vicente fugira em suas andanças, na perda de seus documentos e em seu viver desvinculado de relações. Em outros termos, nos trâmites a que o inspetor Carlos Ernesto denomina “só procedimentos administrativos” ao falar do dia-a-dia do SDP é possível entrever ditames morais determinantes da gestão dos casos de desaparecimento. Na Europa do século XVIII descrita por Foucault (2005), hospitais e centros de internamento funcionaram como dispositivos garantidores de uma ordem em que eram proscritas a pobreza e a mendicância. Mediante sua criação, o pobre, o mendigo e “o desempregado não é mais escorraçado ou punido; toma-se conta dele, às custas da nação mas também de sua liberdade individual” (Foucault, 2005a, p.65), condenando-lhe à coação física e moral do internamento e contendo seus movimentos em prol do saneamento e da manutenção da ordem. A aplicação do internamento para o louco é parte desse processo: Se o louco aparecia de modo familiar na paisagem humana da Idade Média, era como que vindo de um outro mundo. Agora, ele vai destacar-se sobre um fundo formado por um problema de “polícia”, referente à ordem dos indivíduos na cidade. Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar; agora, será excluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres, os miseráveis, os vagabundos. A hospitalidade que o acolhe se tornará, num novo equívoco, a medida de saneamento que o põe fora do caminho. De fato, ele continua a vagar, porém não mais no caminho de uma estranha peregrinação: ele perturba a ordem do espaço social. Despojada dos direitos da miséria e de sua glória, a loucura, com a pobreza e a ociosidade, doravante surge, de modo seco, na dialética imanente dos Estados. (Foucault, 2005a, p.63)

Esse trecho da obra de Foucault é especialmente valioso para a compreensão das prescrições de ordem moral que perpassam a gestão de casos de desaparecimento, à medida que explicita que a movimentação de loucos, pobres, vagabundos e miseráveis perturba a ordem resguardada por sistemas policiais estatizados desde seus primórdios. Mais uma vez observando as diferenças de escopo e escala, os registros constitutivos de casos de 108

Para citar o autor: “Fenômeno importante, essa invenção de um lugar de coação onde a moral grassa através de uma disposição administrativa. Pela primeira vez, instauram-se estabelecimentos de moralidade nos quais ocorre uma surpreendente síntese entre obrigação moral e lei civil. A ordem dos estados não sofre mais com a desordem dos corações. Por certo, não é a primeira vez na cultura européia que a falta moral, mesmo em sua forma mais privada, assume aspecto de atentado contra as leis escritas ou não escritas da cidade.” (Foucault, 2005, p.75)

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desaparecimento apontam um panorama semelhante. O fato do desaparecimento não ser crime e não possuir definição jurídica não impede que sua gestão prescreva comportamentos e proscreva formas de viver que perturbem a ordem que o trabalho policial deve resguardar. Como o caso de Vicente torna nítido, na sutil (des)qualificação de suas andanças e do próprio hábito da perambulação, e na importância atribuída à posse dos bens fundamentais que são os documentos e registros oficiais, podemos entrever a prescrição, a um só tempo, de duas práticas: a identificação e a sedentarização. A identificação deve ser efetuada por procedimentos como a emissão de RG, como vimos no caso de Graziele, ou de documentos como os que desapareceram junto com Vicente, que garantem o registro oficial da identidade e das propriedades do cidadão e de tudo o que pode ser obtido a partir deles - desde direitos, benefícios e proteção, até controles e vigilância. Já a sedentarização, como sugere o desaparecimento de Vicente, implica a contenção e controle da mobilidade e do isolamento, proscrevendo tanto perambulações e andanças no espaço, quanto desvinculações de círculos sociais e rupturas de laços e relações. Fundamentais na busca do ideal de plena legibilidade de territórios e populações, processos e técnicas de identificação e sedentarização são dispositivos centrais na perene constituição dos Estados modernos, como apontam, cada a um à sua maneira, Souza Lima (1995; 2002), Scott (1998), Caplan & Torpey (2001) e Das & Poole (2004). Desaparecimentos de pessoa descortinam a conformação moral e a adesão que tais processos e técnicas impõem, reveladores que são de “um dos poderes principais do Estado, o de produzir e impor (...) as categorias de pensamento que utilizamos espontaneamente a todas as coisas do mundo, e ao próprio Estado.” (Bourdieu, 2010, p.91). Afinal, se por um lado tais processo e técnicas visam à documentação oficial e à fixação espacial e social de pessoas e populações, facilitando que sejam propriamente administradas, contabilizadas e controladas, por outro também fazem da fixação e da documentação formas de vida corretas e apropriadas. As estranhas perambulações de Vicente, que indicam haver “algo de errado” com o lavrador, ou as idas e vindas de Gilson Filho, tentativamente interrompidas por seu abrigamento, pelo avesso revelam que adequadas são existências e modos de vida documentados, fixados e, para usar o termo que aparece no caso de Humberto, “estáveis”. Vidas errantes como a de Vicente e de Gilson Filho revelam, enfim, regras que supostamente transgridem, como todo comportamento construído socialmente como desviante. (Becker, 2008). Remetem, assim, aos autos judiciais analisados por Vianna (2002), à medida que apontam para o sentido de

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domesticação de comportamentos e relações embutido em processos que visam a fixar sujeitos territorial e socialmente. Reconhecer que identificação e sedentarização são dispositivos constitutivos da racionalidade estatal e, como tais, requerem e impõem adesão e conformação moral permite notar que são eles que conferem sentido aos compromissos através dos quais comunicantes garantem que providenciarão documentos para desaparecidos e, ainda, aos conselhos de policiais para que, entre outras coisas, separações tornem-se divórcios “no papel”, como vimos no caso de Antônio. No mesmo sentido, são tais dispositivos que possibilitam que descrições de vínculos estáveis com círculos sociais e com o mundo do trabalho sirvam à construção de boas reputações, como vimos no caso de Humberto, e que relatos sobre laços sociais frouxos prestem-se a construir más reputações, como indica o caso de Linda, que “estava desgostosa da vida, com vontade de sumir”. Identificação e sedentarização tornam compreensíveis os artefatos da gestão dos casos de desaparecimento e vários de seus elementos e enredos: desde o arrependimento de Cinira, que acuada afirmou na delegacia que “quando sair para passear e demorar um pouco ligará para alguém da sua família”; passando pela dependência de Nina em relação à mãe, que garante que a mobilidade da filha restrinja-se a itinerários entre casa, Igreja e padaria; até chegarmos à medida de abrigamento aplicada a Gilson Filho, que tantas vezes deixou a casa da mãe para viver em endereços incertos. Ademais, o peso moral da identificação e da sedentarização, que proscrevem vidas errantes e estabelecem como corretas e adequadas existências fixadas e documentadas, torna compreensíveis os sentidos pejorativos por vezes atribuídos aos termos desaparecimento e desaparecer. Afinal, é apenas em contraste com eles que faz sentido que uma comunicante de relate o caso de seu marido afirmando, como alguém que se defende de uma acusação silenciosa, que ele “nunca fez algo do tipo, sendo homem de compromisso e seriedade” 109; ou, como vimos no caso de Arlete, que a mãe da desaparecida relate a “surra” que deu na filha em seu retorno para casa, e em seguida firme compromisso de providenciar o RG da menina. Em suma, é somente em razão da prescrição moral da existência identificada e sedentarizada que faz sentido que casos de desaparecimento decorrentes de decisões dos desaparecidos sejam freqüentemente tratados como leviandades e irresponsabilidades. Importa ressaltar, contudo, que casos de desaparecimento explicitam também que a prescrição da existência fixada e documentada convive, na prática, com claras contestações da possibilidade de sua real efetivação. Assim como o ideal do alcance de totalidades de corpos e 109

Os documentos relativos a esse caso, já citado anteriormente, compõem a Sindicância 202/05 do SDP/DH.

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territórios pelo trabalho policial tem lugar no cotidiano de delegacias precisamente como modelo, a imposição da identificação e da sedentarização também se faz presente entre policiais e “Envolvidos” em desaparecimentos enquanto uma normativa, um dever ser, enfim, um norte que, na prática, permanece válido apenas mediante certas operações e estratégias de flexibilização. Nesse sentido, alguns casos enredam pessoas documentadas cujos dados registrados oficialmente não têm valor senão nos próprios papéis em que foram redigidos. Basta lembrarmos o caso de Álvaro, cujo nome está firmado no RG de sua filha Valéria a despeito dos mais de trinta anos passados desde a última vez que os dois se encontraram. Ao mesmo tempo, outros casos são protagonizados por pessoas cuja fixidez é supostamente garantida por dizeres de terceiros, como vimos no desaparecimento de Lúcia, que, segundo uma vizinha, havia voltado para a casa de sua mãe, onde “estava tudo bem”. Casos como de Lúcia e Álvaro revelam, de forma tão sutil quanto firme, que o empreendimento estatal de sedentarizar e identificar os membros de uma população efetiva-se muitas vezes mediante a oficialização de ficções e a flexibilização de suas próprias determinações. Tais operações não colocam em xeque a legitimidade daquele empreendimento. Ao contrário, reproduzem um Estado-como-idéia (Abrams, 1977) representado como entidade capaz de mapear, identificar, codificar e contabilizar totalidades territoriais e populacionais de modo pleno e padronizado. Cotejado com os mais de trinta anos que passaram sem saber um do outro, o vínculo entre Valéria e Álvaro registrado no RG dela e nos bancos de dados acessados por policiais é, em certo plano, uma ficção. Valéria não conhecia o pai cujo nome pode ser lido em sua carteira de identidade nem mesmo por fotografia, o que surpreendeu os agentes de polícia que, atendendo ao pedido dela, entregaram-lhe a 3X4 anexada ao caso. Ao mesmo tempo, comparada a inescapáveis exigências de documentos e registros oficiais para o desembaraço de trâmites legais e administrativos, como os atestados de vida analisados por Reis (1998), os dizeres de uma vizinha que afirma estar “tudo bem” serem suficientes para que se dê por solucionado o desaparecimento da adolescente Lúcia indica o quão flexível pode ser, em determinadas situações, a tantas vezes evocada força inflexível e desumanizadora da burocracia (Herzfeld, 1992). Se pensões só podem ser recebidas em face de atestados documentais de que as pensionistas estão vivas (Reis, 1998), seria plausível supor que documentos atestando a volta de Lúcia fossem exigidos, e que dizeres de vizinhos fossem encarados como rumores, desprovidos de validade para determinar o encerramento do caso. Tal suposição aparece em muitos casos arquivados no SDP, entre eles o desaparecimento de Antônio. Comunicante do 183

caso, ao retornar ao SDP para notificar que havia encontrado Antônio “descansando da vida” em uma cidade mineira, Maria questionou ao inspetor Fernando se não seria necessário mostrar-lhe documentos do desaparecido para comprovar que ele havia sido localizado. Com tal pergunta, explicitou a possibilidade de que desaparecimentos sejam dados por solucionados sem que desaparecidos tenham de fato sido localizados, e deu voz à expectativa de que documentos comprobatórios fossem exigidos para encerrar Sindicâncias. Os enredos dos desaparecimentos de Antônio, Lúcia, Álvaro e tantos outros desaparecidos que povoam as páginas desta tese indicam que a fluidez e a dinâmica da vida social escapam às técnicas e procedimentos administrativos que miram a identificação e a sedentarização de membros de uma população, acarretando-lhes o risco da oficialização de ficções e, por vezes, implicando a flexibilização de ditames administrativos estruturantes do chamado campo burocrático (Bourdieu, 1996). Ao serem encerradas por dizeres que mais se aproximam de boatos, ao prescindirem de documentações comprobatórias e ao revelarem a disjunção entre informações oficializadas e relações vividas, tramas de desaparecimento não só põem em questão a alegada inflexibilidade do mundo da burocracia, como também evidenciam que A visão sociológica não pode ignorar a distância entre a norma oficial, tal como enunciada no direito administrativo, e a realidade da prática administrativa, com todas as lacunas em relação à obrigação de desinteresse, todos os casos de “utilização privada do serviço público” (desvio de bens ou serviços públicos, corrupção ou tráfico de influência etc.) ou, de modo mais perverso, todos os “jeitinhos”, tolerâncias administrativas, delongas, tráfico de cargos, que consistem em tirar proveito da não aplicação, ou da transgressão, do direito. Mas ela tampouco pode fechar os olhos para os efeitos da regra que exige que os agentes sacrifiquem seus interesses privados às obrigações inscritas em sua função (“o funcionário deve dedicarse à sua função”) ou, de modo mais realista, aos efeitos do interesse pelo desinteresse e por todas as formas de “hipocrisia piedosa” que a lógica paradoxal do campo burocrático pode estimular. (Bourdieu, 1996, p.123-4)

A flexibilidade de padrões e regulamentos administrativos que os casos de desaparecimento expõem não se traduz em processos passíveis de enquadramento nos grandiloqüentes temas do “desvio de bens”, da “corrupção” ou do “tráfico de influência”. Ao mesmo tempo, tampouco pode ser inscrita entre os “jeitinhos” mais comumente denunciados e propalados no Brasil, como o rito de autoridade condensado no “sabe com quem está falando?”, analisado por DaMatta (1997). Para o autor, essa expressão traduz “uma tentativa de transformação drástica, do universo da universalidade legal para o mundo das relações concretas, pessoais e biográficas” (DaMatta, 1997, p.219). Trata-se, assim, de uma demanda 184

ritualizada pela flexibilização de normas, que tem como finalidade personalizar procedimentos administrativos e legais e relegar a universalidade de decretos e regulamentos a um plano inferior, onde estariam situados indivíduos anônimos. Esse rito de autoridade constrói, à guisa de reconhecer, uma suposta importância e superioridade daquele que busca escapar a ditames legais e administrativos universais. A flexibilidade de ditames administrativos que se pode vislumbrar

nos

desaparecimentos aproxima-se menos da idéia de um cidadão ou servidor público que tira proveito da não aplicação de regras, e mais do “interesse pelo desinteresse” de que fala Bourdieu (1996, p. 124). Ao contrário dos efeitos pretendidos por ritos de autoridade, essa flexibilidade constrói a desimportância e

a inferioridade dos “Envolvidos” em

desaparecimentos e dos próprios casos que os enredam. Prescindir de documentos, encerrar casos a partir de falas de terceiros e oficializar ficções, nos desaparecimentos, são operações que apontam não para a adequação de padrões administrativos à suposta superioridade das pessoas envolvidas, e sim para o oposto disso. Afinal, a possibilidade de que dizeres da vizinha da mãe de Lúcia sejam suficientes para que o caso da adolescente seja dado por solucionado, ou a resposta negativa do inspetor Fernando para a indagação de Maria, como vimos no desaparecimento de Antônio, indicam que pouco importa que a localização de desaparecidos faça-se a partir de relatos de terceiros ou sem comprovações documentais. Desde que os casos sejam dados por concluídos e literalmente encerrados em arquivos policiais, a forma como foram executados os “só procedimentos administrativos” que lhes conduziram a seu desfecho são irrelevantes ou indiferentes. Conforme demonstra Lugones (2009), lassidão, precariedade e fragmentação de atuações vistas como pouco decisivas podem funcionar não como dificuldades, mas como condições de possibilidade da eficácia de determinadas práticas administrativas. Características dos tribunais pesquisados pela autora vistas por suas funcionárias como obstáculos, como o quadro de pessoal insuficiente, a grande carga de trabalho e o caráter fragmentário de sua atuação, revelam-se na etnografia da autora “como coadjuvantes para poder administrar e lidar com as situações, geralmente dramáticas, que se processam” (Lugones, 2009, p.16) naquelas instâncias de administração judicial de vidas de crianças e adolescentes sem conflito com a lei penal. De modo semelhante, a flexibilidade, indiferença e irrelevância atribuídas às formas através das quais desaparecidos são ou não localizados funcionam como condições de possibilidade para que muitos casos sejam solucionados, e para que o serviço de descoberta de 185

paradeiros feito no SDP seja por vezes encarado como “um sucesso”, como diz Fernando. Afinal, caso a vizinha da mãe de Lúcia não tivesse dito ao policial que “estava tudo bem” com a menina, ou caso essa informação não tivesse sido considerada válida pelo agente de polícia, o desaparecimento da adolescente integraria o amplo conjunto de casos não solucionados que se acumulam nas gavetas, armários e mesas do Setor. Nesse sentido, ainda que os arquivos do SDP guardem registros de casos nunca solucionados, ao mesmo tempo diversos desaparecimentos ali engavetados são ocorrências solucionadas, indicativas do relativo “sucesso” da descoberta de paradeiros feita pela polícia. É preciso destacar, não obstante, que a solução de muitas dessas ocorrências fundamenta-se em rumores e dizeres de terceiros, na oficialização de ficções e em exercícios cotidianos de produção da irrelevância tanto dos procedimentos que lhes dão desfecho, quanto das pessoas neles enredadas. Ademais, importa lembrar que o relativo “sucesso” de algumas investigações inscreve-se no marco mais amplo da também relativa inferioridade atribuída tanto ao SDP no interior da Polícia Civil, quanto ao próprio desaparecimento no abrangente conjunto de “fatos” registrados, investigados e arquivados rotineiramente em delegacias. Do ponto de vista de policiais, como vimos nos capítulos anteriores, lidar com casos de desaparecimento é “só preencher papel” e acumular registros em arquivos de abertura fácil a quem quer que se interesse, e não deveriam sequer estar entre suas atribuições profissionais. “Não é serviço nosso, mas a gente acaba fazendo”, como diz a inspetora Telma. Enquanto a gestão de ocorrências de desaparecimento implica a produção cotidiana da irrelevância e é considerada trabalho menor no universo de tarefas a que se dedicam policiais, a construção do desaparecimento como “problema social” tem por finalidade a produção da relevância, do reconhecimento e da visibilidade. Gestores de políticas públicas, conselheiros tutelares e mães de desaparecidos que integram ONGs, entre outros agentes sociais, dedicam parte de seu tempo a clamar pela inserção do desaparecimento na agenda pública e pelo reconhecimento de sua gravidade. A seguir (capítulo 4), analiso embates firmados entre alguns desses agentes em eventos da Rede Nacional para Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), de modo a discutir como o desaparecimento de pessoas é construído como “problema social” no Brasil, mesmo em face da irrelevância atribuída a casos particulares registrados em delegacias.

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Capítulo 4 É o que me cumpre informar: Um problema social e seus embates

Filho único de Lindalva, Maurício já fugiu algumas vezes da casa em que mora com a mãe e o avô, em Barra Mansa. Diante de cada fuga, Lindalva sai em busca do garoto sozinha, com seu pai ou com funcionários de Conselhos Tutelares (CT). Recorrer aos Conselhos de Barra Mansa e de cidades próximas é prática tão comum para Lindalva quanto o é, para Maurício, fugir de casa. A relação entre a mãe do adolescente, ele e os Conselhos por que já passaram, contudo, é mais complexa do que faz supor o fato de Lindalva buscar auxílio diante das fugas do menino. Documentos sobre Maurício produzidos no Conselho de Resende destacam “a negligência” de Lindalva como mãe, afirmam que a criação que ela deu ao garoto teve conseqüências nefastas e registram que ele é “vítima de exploração ao trabalho por sua genitora”. Se Lindalva busca ajuda em CTs e se funcionários dessas instituições efetivamente a ajudam a procurar Maurício, ao mesmo tempo a mãe do adolescente é objeto de juízos negativos, acusações e desconfiança por parte desses mesmos funcionários. Uma das fugas de Maurício levou Lindalva não apenas ao CT de Barra Mansa, como também ao de Resende e a uma delegacia de polícia. A fuga ocorreu depois que mãe e filho foram ao CT por razões que não ficaram registradas em documentos policiais, e deu origem ao caso de desaparecimento hoje arquivado no SDP. No relatório final produzido sobre o caso, restou registrado que aquele não era um caso de desaparecimento. MAURÍCIO Aos 12 anos de idade, Maurício já contava 4 anos de atendimento pelo Conselho Tutelar de Barra Mansa. O menino já havia fugido de casa algumas vezes, mas sua mãe Lindalva, seu avô Nilo e/ou funcionários do próprio Conselho sempre o encontraram. Como parte dessa história de idas, vindas e busca de auxílio no Conselho, em setembro de 2006 sua mãe foi à delegacia de polícia e relatou que, na manhã do dia 18, apresentou seu filho Maurício no Conselho Tutelar desta cidade, e após ele sair, não retornou mais para casa; que seu filho tem doze anos e já desapareceu diversas vezes; que sempre encontrou seu filho na rua e o levou pra casa, porém, até o momento não o encontrou; que já procurou em diversos locais.

Meses depois, Lindalva retornou à delegacia, levando retrato e uma cópia da certidão 187

de nascimento de seu filho. Informo que no período que transcorreu entre sua primeira ida à DP e aquele dia, ficou sabendo por intermédio de um vizinho que Maurício “teria sido visto na cidade de Resende”. Assim que ouviu a notícia, Lindalva foi até Resende e “efetuou buscas durante um dia inteiro, mas não encontrou seu filho”. Como não poderia continuar naquela cidade, achou por bem ir ao Conselho Tutelar de Resende e comunicar o fato também àquela repartição. A despeito dessas providências, Lindalva concluiu as declarações que prestou na delegacia afirmando “que até o momento seu filho não retornou e não sabe informar onde ele possa ser encontrado”. Após registrar as declarações da mãe de Maurício, o inspetor que cuidava do caso enviou cópias dos documentos para as delegacias de Resende e de Itatiaia e para o SDP. Além disso, solicitou informações sobre o garoto ao Conselho Tutelar de Resende. A resposta, assinada por três conselheiros e abaixo transcrita integralmente, afirma que Maurício tinha um “vício” peculiar, diretamente derivado de sua criação: Prezado Senhor, Sirvo no presente para informar-lhe que o adolescente Maurício Rodrigues é atendido por este Conselho Tutelar, desde 16/02/1998, sendo vítima de exploração ao trabalho por sua genitora. Com essa criação o adolescente adquiriu vício de rua. Já foi abrigado no Programa Casa da Acolhida, mas não aceitou as regras de convivência e evadiu. Aproveito o ensejo para destacar a negligência dos responsáveis nesses anos de vida do garoto Maurício. Atualmente, Maurício não aceita nem a nossa abordagem, fugindo assim que enxerga nosso veículo.

Cópias da resposta do CT foram remetidas às três repartições policiais anteriormente contactadas pelo inspetor da DP de Barra Mansa: as delegacias de Resende e Itatiaia, e o SDP. No SDP, o conteúdo do documento foi utilizado como justificativa para o arquivamento do caso, efetuado em julho de 2007, sem que qualquer diligência fosse executada por agentes do Setor. Segundo o policial do SDP, De acordo com informação do Conselho Tutelar, o menor registra várias passagens naquele programa, entretanto, opta pela evasão, permanecendo nas ruas, fugindo das abordagens daquele Conselho Tutelar. Assim informado solicito o encerramento das investigações, ressaltando que não se trata de desaparecimento de menor, estando, portanto, a sindicância devidamente solucionada.110

A multifacetada relação entre a mãe de Maurício, o adolescente e as repartições que produziram documentos sobre ambos – a DP, o SDP e os CTs de Barra Mansa e Resende – condensa elementos centrais não só da gestão do desaparecimento do garoto como ocorrência policial, mas também da forma como o desaparecimento de pessoas é construído, no plano da 110

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 086/07 do SDP/DH.

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generalidade política, como uma causa em torno da qual diversos agentes sociais se reúnem, se comprometem e disputam (Boltanski, 1993). Tanto no caso de Maurício, quanto na denúncia de um só “problema social” que abarcaria múltiplos casos tão singulares quanto ele, vemos a mãe que pede ajuda a instituições para controlar ou coibir comportamentos de seu filho; instituições que, diante dessas solicitações, tanto auxiliam a mãe, quanto dela desconfiam e acusam de negligência e violação de direitos; e, ainda, a repartição policial que se exime de responsabilidades diante de uma ocorrência que, do ponto de vista de policiais, “não se trata de desaparecimento”. Como objeto de pronunciamentos públicos, esses elementos do caso de Maurício aparecem também em eventos voltados para debates sobre o desaparecimento de pessoas no Brasil. Ainda que não sejam delimitados por paredes, arquivos, mesas e balcões de atendimento como delegacias e sedes de Conselhos Tutelares, eventos públicos dedicados ao desaparecimento de pessoas são, tanto quanto essas repartições, espaços de encontro entre agentes sociais. Nesses espaços, porém, não são feitas comunicações individualizadas de casos já ocorridos, como acontece em delegacias. Antes, neles têm lugar embates entre agentes que pretendem principalmente prevenir casos que ainda não ocorreram, e que disputam o poder de definir o desaparecimento de pessoas desde uma perspectiva generalizante. Tais agentes posicionam-se prospectivamente, e buscam o reconhecimento e a mobilização engendrados pelo exercício do que Bourdieu (2010) denomina poder simbólico: poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (Bourdieu, 2010, p.14)

Em eventos públicos dedicados ao desaparecimento de pessoas, fala-se em “denúncias” e “vítimas”, empregando-se sem melindre o vocabulário que, em delegacias, ou não é utilizado diante dos casos, ou o é com hesitação. Não que se fale em “denúncias” e “vítimas” no intuito de tratar desaparecimento como crime. Antes, emprega-se tal vocabulário para efetuar a passagem do plano dos casos e sofrimentos particulares para o patamar da generalidade política (Boltanski, 1993), onde responsabilidades, interesses e demandas tendem a ser formuladas como “problemas”. (Inda, 2005). Nesses eventos, que podem ser caracterizados como espaços argumentativos, casos particulares de desaparecimento não aparecem senão como consubstanciações do fenômeno geral que os transcende: o singular 189

“problema” do desaparecimento de pessoas, passível de prevenção e enfrentamento. Essa conversão dos casos em manifestações de um “problema” mais amplo não depende da evocação e narração de um conjunto amplo e variado de desaparecimentos particulares, mas sim da denúncia de múltiplas ausências, como descrevo mais adiante. Nesse sentido, como também descrevo adiante, casos particulares são raras vezes evocados em tais eventos, e apenas por um grupo específico de agentes. Mais do que isso, casos particulares são de certo modo incongruentes com as denúncias e posicionamentos assumidos pelos participantes de eventos públicos sobre desaparecimento de pessoas. Enquanto desaparecimentos registrados em DPs são construídos como ocorrências menores, que percorrem rotinas burocráticas estendidas por variados períodos de tempo, o “problema” do desaparecimento é tratado em eventos públicos como questão grave, de inegável relevância e urgência. Ademais, enquanto casos particulares registrados em delegacias são objeto de parcos registros imprecisos, procedimentos padronizados e investigações feitas a partir de hipóteses restritas, o “problema” do desaparecimento é alvo de debates acalorados, posicionamentos precisos e diagnósticos amplos, supostamente fundamentados em estatísticas. Tais contrastes não impedem, contudo, que o desaparecimento de pessoas seja construído como “problema social” que se manifesta justamente em múltiplos casos particulares como, por exemplo, o de Maurício. Considerando esses contrastes e colocando-os em relevo, no presente capítulo busco descrever como se dá esse processo. Se, nos capítulos anteriores, me detive sobre as rotinas e artefatos por meio dos quais casos plurais são formulados como ocorrências policiais, agora busco analisar como o desaparecimento de pessoas é construído como singular “problema social”, a despeito da heterogeneidade e da desimportância daqueles casos plurais. Faço isso analisando as tomadas de posição de membros da Rede Nacional para Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP) diante uns dos outros, assumidas e debatidas em eventos públicos promovidos pelo comitê gestor da ReDESAP. 111 O comitê gestor é um seleto grupo de membros da ReDESAP que se reúne periodicamente e, entre outras atribuições, organiza os eventos a que me refiro. Tratar o desaparecimento como “problema” é ponto indisputado entre membros da ReDESAP, que a ela se referem como “a rede” ou “nossa rede”. Os encontros da rede aproximam-se das reuniões analisadas por Comerford (1999), por sua importância na 111

No Anexo IV estão listados os encontros da ReDESAP de que participei. Analiso a tomada de posição dos atores neles presentes a partir não só de minhas anotações, feitas ao longo dos encontros, mas também das atas ou relatórios de alguns deles a que tive acesso. No Anexo indico os encontros cujas atas ou relatórios consultei.

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construção não só do desaparecimento como “problema” a ser combatido, mas também da própria rede como espaço de sociabilidade. 112 Os termos usados pelos membros da rede para designar suas reuniões são, alternadamente, evento, encontro e, também, reunião – este último mais comumente utilizado em referências aos encontros do comitê gestor, e os primeiros a encontros abertos a outros membros e não-membros. Seguindo esses usos, opto por utilizar o termo encontro para designar eventos abertos, e reunião para os encontros reservados aos membros do comitê gestor da rede. Como já apontado, a ReDESAP é composta por 47 instituições, e meu primeiro contato com seus membros se deu no II Encontro Nacional da ReDESAP, realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2008.113 De seus 47 componentes, 33 são instituições policiais, 2 são instituições do judiciário, 4 são órgãos e/ou programas governamentais, 7 são ONGs e 1 é um projeto desenvolvido em universidade. Das 33 instituições policiais, 5 são delegacias e/ou serviços especializados em casos de desaparecimento. Destas 5, 1 lida somente com desaparecimentos de crianças e adolescentes. Quanto às instituições judiciárias, compõem a rede 1 Defensoria Pública e 1 Vara da Infância, da Juventude e do Idoso. Já quanto aos 4 órgãos governamentais, integram a rede a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que também a coordena, e 3 secretarias e/ou programas estaduais de assistência social. Dos programas estaduais, 1 lida especificamente com desaparecimentos de crianças e adolescentes. Finalmente, quanto às 7 ONGs que compõem a ReDESAP, 3 foram fundadas por mães de pessoas desaparecidas e dedicam-se a reunir e auxiliar familiares de desaparecidos, 1 é dedicada à promoção dos direitos das mulheres e 3 são voltada para a promoção dos diretos das crianças e dos adolescentes. O Quadro 4 sistematiza esses números, destacando a quantidade de instituições que integram a rede e são especializadas no desaparecimento de pessoas - isto é, dedicam-se exclusivamente a investigar casos particulares, como algumas delegacias; a atender familiares de desaparecidos, como programas governamentais de assistência social; e/ou a prevenir o “problema” de modo mais geral, como algumas ONGs integrantes da rede. O destaque é feito dentro dos grupos de instituições acima distinguidos: policiais, judiciárias, governamentais e

112

Ao etnografar formas de sociabilidade e ação coletiva em organizações camponesas, Comerford revela que as “reuniões” características dessas organizações “criam um espaço de sociabilidade que contribui para a consolidação de redes de relações que atravessam a estrutura formal das organizações, estabelecem alguns dos parâmetros e mecanismos para as disputas pelo poder nos seios dessas organizações, possuem uma dimensão de construção ritualizada de símbolos coletivos e colocam em ação múltiplas concepções ou representações relativas à natureza das organizações de trabalhadores e ao papel de seus dirigentes e membros, bem como sobre a natureza da própria categoria que essas organizações se propõem a representar.” (Comerford, 1999, p.47) 113 No Anexo III encontra-se a lista das 47 instituições que integram a ReDESAP.

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não-governamentais, além do projeto desenvolvido em universidade. Importa ressalvar, contudo, que há trânsitos e fronteiras permeáveis entre esses grupos. A ReDESAP conta, por exemplo, com ONGs que desenvolvem projetos em convênio ou parceria com órgãos governamentais, e o projeto desenvolvido por universidade é realizado, em parte, dentro de uma repartição policial. O Quadro é útil, não obstante, por revelar que poucas instituições que compõem a rede são voltadas especificamente para o “problema social” em cuja construção estão engajadas.

Instituições

Total

Especializadas em desaparecimento de pessoas 5 0 1 3

33 Policiais 2 Judiciárias 4 Governamentais 7 Nãogovernamentais 1 1 Universidade Total 47 10 Quadro 4: Alguns números da ReDESAP

Os encontros promovidos pela rede não contam apenas com servidores e funcionários das instituições que a integram. Com exceção das reuniões do comitê gestor, são abertos ao público, como indica minha própria participação no II Encontro Nacional, e contam com policiais, gestores governamentais, familiares de desaparecidos, conselheiros tutelares, conselheiros dos direitos da criança e do adolescente, pesquisadores e funcionários de instituições que não estão oficialmente listadas como membros da rede. O SDP, por exemplo, não integra a ReDESAP. Contudo, encontrei policiais do Setor tanto nos dois encontros ocorridos no Rio de Janeiro, quanto no III Encontro Nacional da rede, em Boa Vista, além de ter participado de uma reunião do comitê gestor, à qual me refiro a seguir, que contou também com a participação do inspetor Fernando. Em linhas gerais, os encontros são organizados em mesas e painés com temas e títulos pré-estabelecidos, distribuídos ao longo de um, dois ou três dias. Mesas e painéis reúnem em média três representantes de instituições que lidam, mais ou menos diretamente, com desaparecimento de pessoas e fenômenos entendidos como correlatos. Os nomes das instituições e de seus representantes chamados a falar nas mesas e painéis são escolhidos e convidados pelo comitê gestor da ReDESAP, que organiza e promove os encontros. Cabe a 192

esses convidados fazer seus pronunciamentos e, usualmente, responder a perguntas feitas pelo público mais amplo – isto é, pelos freqüentadores dos eventos que não proferem falas programadas a convite do comitê gestor da rede, mas têm oportunidade de se pronunciar e se dirigir aos demais participantes após cada mesa. Intervalos, coffee-breaks e almoços costumam acontecer nos próprios centros de convenção ou salas de reunião de hotéis que dão lugar aos encontros, constituindo momentos de sociabilidade em que participantes podem se reunir independentemente da separação, acima referida, entre representantes de instituições que falam a convite do comitê gestor, e público. Já reuniões do comitê acontecem, normalmente, em uma sala da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), em Brasília, e não são freqüentadas senão pelos membros do grupo. Excepcionalmente, se o comitê está reunido em outra cidade que não Brasília em função de algum encontro da rede, seus membros se reúnem em espaços diferentes. Outros servidores públicos, funcionários de ONGs ou pesquisadores que não integram o comitê comparecem a essas reuniões apenas mediante convites expressos e específicos.

4.1 Outras portas que se abrem Na tarde de 23 de junho de 2009, quase seis meses depois do II Encontro Nacional da ReDESAP, recebi telefonema de Ciro, o gestor governamental cuja fala recuperei no primeiro capítulo. Ciro é antropólogo e ocupava naquela época cargo de coordenação na Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA) da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), acumulando, entre outras, a função de coordenar e articular membros e iniciativas da ReDESAP. Ciro esteve à frente do II Encontro Nacional da rede e durante o evento conversamos bastante sobre a pesquisa que, naquele momento, eu iniciava. Demonstrando interesse pelo escopo do meu trabalho e por contribuições que talvez ele pudesse dar à rede, Ciro não só me fez perguntas sobre o trabalho de campo no SDP, como também teceu comentários sobre a trajetória e algumas conclusões de sua própria pesquisa de doutoramento, que teve como foco crianças e adolescentes que fogem de casa. Quando me telefonou, em junho de 2009, Ciro desejava saber se eu ainda conduzia pesquisa sobre desaparecimento e, em caso positivo, se poderia integrar a reunião que ocorreria dali a uma semana, em Brasília, entre os membros do comitê gestor da ReDESAP e uma equipe da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). A pauta da reunião 193

girava em torno do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, iniciativa que, como comentarei no próximo capítulo, é vista pelos membros da rede como prioritária para o enfrentamento do desaparecimento de pessoas no Brasil. Segundo Ciro, o comitê que participaria da reunião contava apenas com profissionais que lidam com desaparecimento de crianças e adolescentes, embora o Cadastro em pauta pretendesse englobar também casos de adultos e idosos. Aí residia a razão de seu convite: Ciro se lembrava que minha pesquisa não tinha como foco casos de crianças e adolescentes, e acreditava na possibilidade do trabalho de campo no SDP auxiliar nos debates sobre a inclusão de casos de adultos no Cadastro. Afirmei então que seguia na pesquisa e sim, poderia comparecer à reunião. Ele em seguida me perguntou se eu poderia indicar alguém que trabalhasse com desaparecimento de adultos no Rio de Janeiro para também comparecer à reunião, ao que respondi sugerindo o nome do inspetor Fernando. A viagem que faríamos a Brasília seria financiada pela SENASP, órgão responsável pela produção técnica e tecnológica do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. Embora a SEDH estivesse à frente do projeto de criação do Cadastro, como órgão coordenador da ReDESAP, a responsabilidade pela produção do software que lhe daria base seria da SENASP. No decorrer do preenchimento de formulários necessários para viabilizar a compra de nossas passagens, chegamos a um impasse: a ida de Fernando a Brasília ficou acertada sem maiores problemas, mas a minha não. Por não ser servidora pública e, nas palavras da assistente de Ciro, “por não ter nenhum vínculo com a administração pública, nem mesmo do estado do Rio”, minha passagem não poderia ser custeada pela SENASP. Para contornar o impasse decidi arcar com a viagem, e assim participei, dia 3 de julho de 2009, da primeira de muitas reuniões do comitê gestor da ReDESAP em que estive presente naquele ano e em 2010. A partir da segunda reunião, não precisei mais custear minhas viagens, dando-me conta de que uma questão de tempo poderia anular o fato de eu não ser servidora pública: se minhas idas à Brasília ou a outras cidades para participar de reuniões do comitê gestor da rede fossem marcadas com antecedência, a própria SEDH poderia financiá-las sem qualquer problema e sem exigências além da prestação de contas posterior às viagens. 114 Já o inspetor Fernando não foi mais convidado a participar de outras reuniões do comitê gestor da rede. O comitê gestor da ReDESAP foi formado ao final do II Encontro Nacional, com o propósito de se reunir periodicamente, levar adiante as iniciativas e propostas dos membros da rede e, principalmente, delinear uma plataforma mínima para o Cadastro Nacional de Pessoas 114

No Anexo IV estão relacionadas também as formas de financiamento em que se deu minha participação em cada evento.

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Desaparecidas. A reunião para que Ciro me convidou foi o segundo encontro do grupo, composto então por oito pessoas: Ciro e sua assistente direta, ambos gestores da SEDH; Cecília, mãe de uma adolescente desaparecida e fundadora de uma associação de familiares de desaparecidos, a quem fiz referência no capítulo 2; Vera, conselheira tutelar e membro do Fórum Colegiado Nacional de Conselhos Tutelares (FCNCT); Luciana, Julio e Lauro, delegados de Polícia Civil que estão à frente de delegacias especializadas em crimes contra crianças e adolescentes em três diferentes estados brasileiros; e, por fim, Gustavo, gerente de um serviço de SOS Crianças Desaparecidas. No final de 2009, Ciro e sua assistente deixaram a SEDH e outro gestor assumiu a coordenação da rede. Os demais integrantes do comitê, contudo, permaneceram e seguem os mesmos ainda hoje. O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas pretende ser um banco de dados em que todo desaparecimento reportado à polícia será registrado, sem distinção entre crianças, adolescentes, adultos ou idosos. Depois de consolidado, deve permitir a produção de estatísticas precisas sobre o desaparecimento de pessoas no Brasil, servindo à criação de políticas públicas eficazes no combate ao “problema”, além de configurar uma base de consulta, à qual instituições que tenham notícias sobre pessoa possivelmente dadas por desaparecidas possam verificar essa possibilidade e, em caso positivo, dar solução aos casos. As instituições que terão acesso ao Cadastro são as 47 integrantes da ReDESAP, além de todos os órgãos de polícia e justiça que têm acesso à Rede Infoseg, sistema que abrigará o Cadastro. Um embrião do Cadastro foi colocado em funcionamento assim que a ReDESAP foi criada, em 2002. Conhecida como “desaparecidos.mj”, trata-se de uma página de Internet, mantida no portal do Ministério da Justiça, em que os membros da ReDESAP podem cadastrar casos ocorridos em seus estados, mediante o uso de senhas autorizadas. 115 A página, entretanto, nunca foi atualizada sistematicamente. Espera-se que o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas suplante a obsolescência da “desaparecidos.mj”, conquistando maior adesão dos membros da rede e constituindo uma base de dados acurada sobre casos de desaparecimento no Brasil. Na reunião em Brasília, a partir da apresentação de Ciro, fui convidada a contribuir para a feitura do Cadastro. No capítulo 5, detenho-me sobre minha participação nesse processo e sobre as expectativas dos membros da rede em relação ao Cadastro. Por ora, contudo, quero frisar que o inesperado convite para participar daquela reunião abriu-me 115

O endereço para acesso é http://www.desaparecidos.mj.gov.br.

195

caminho para integrar o comitê gestor da ReDESAP e acompanhar de perto interações não só nesse pequeno grupo, mas também entre os membros da rede como um todo. A partir daquela reunião, fui convidada a participar não só das reuniões periódicas do comitê, mas também de todos os encontros promovidos pela ReDESAP. Neles, sempre fui apresentada (e me apresentei) como pesquisadora, e algumas vezes fui chamada de “nossa pesquisadora” ou “a pesquisadora da ReDESAP”, sendo situada no lugar de especialista no tema. Não uma especialista externa, mas “nossa”, ou “da ReDESAP”. Tais expressões condensam certos “enredamentos, que são partes essenciais da urdidura estatal” (Souza Lima e Castro, p.33), que discuto no próximo capítulo. Na condição de pesquisadora, entre julho de 2009 e novembro de 2010, participei de quatro reuniões do comitê gestor, além de outros quatorze encontros promovidos pela rede, compreendidos entre o II e o III Encontro Nacional da ReDESAP. Todos estão listados no Anexo IV. Após cerca de um ano integrando o comitê gestor da rede, fui chamada a desempenhar papel distinto do que até então vinha fazendo. Em abril de 2010, o gestor que substituíra Ciro na SEDH, juntamente com o diretor de projetos de uma ONG conveniada com a Secretaria, convidaram-me a elaborar o material didático a ser utilizado no “Programa de capacitação de atores estratégicos no âmbito da ReDESAP” - curso sobre desaparecimento de pessoas que acompanharia um treinamento, a ser conduzido por equipe da SENASP, através do qual os membros da rede aprenderiam a utilizar o Cadastro Nacional de Pessoas Desparecidas. O treinamento aconteceria em seis capitais brasileiras, e meu papel seria o de preparar uma cartilha informativa sobre o desaparecimento de pessoas que orientasse uma reflexão geral sobre o tema.116 O conteúdo da cartilha seria apresentado no momento introdutório do treinamento, cujo foco principal recaía sobre o uso técnico do Cadastro. A equipe da SENASP que treinaria os membros da rede no uso do Cadastro seria composta por servidores que coordenam a Rede Infoseg e detêm conhecimento específico em Tecnologia da Informação. Entretanto, depois de pronta a cartilha, fui informada sumariamente de que a equipe da SENASP não participaria mais do “Programa de capacitação”. Com isso, os seis encontros previamente agendados foram integralmente

116

Foi produzida uma cartilha e material didático complementar para “Programa de capacitação”. Esse trabalho foi executado por equipe proposta por mim e composta pelas também antropólogas Paula Mendes Lacerda e Rita de Cássia Melo Santos. Coube a nós preparar o material e conduzir os encontros, mediando debates entre os participantes. Toda a logística e organização dos encontros, bem como a gestão do projeto como um todo, ficou a cargo da ONG conveniada com a SEDH. As cidades em que os encontros aconteceram foram determinadas pelos números de casos preenchidos na página “desaparecidos.mj”. Nesse sentido, houve cursos de capacitação nas seis capitais de estados com maior número de casos registrados no site, a despeito do fato de que não há preenchimento sistemático do mesmo por parte de membros da rede.

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dedicados à reflexão sobre o desaparecimento de pessoas a partir da cartilha, sem tratar do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. Antes programados para durar dois dias em cada cidade em que seria aplicado, o “Programa de capacitação” foi reduzido a um dia por cidade, e tornou-se basicamente um conjunto de encontros locais da rede, em que seus membros reuniram-se em capitais de suas próprias regiões e posicionaram-se diante uns dos outros e diante do tema que os congrega: o desaparecimento de pessoas. O público de cada encontro foi definido, em conjunto, por gestores da SEDH/PR e funcionários da ONG com ela conveniada, que esteve à frente do “Programa de capacitação”. Embora primordialmente composto por membros da rede, incluiu também servidores e funcionários de instituições que não a integram oficialmente. Embora não tenha cumprido seu propósito inicial, o “Programa de capacitação” teve efeitos sobre minha pesquisa e participação na ReDESAP. Conduzir os encontros de membros e não-membros da rede reunidos no Rio de Janeiro, São Paulo, Aracaju, Belém, Brasília e Goiânia permitiu-nos um contato mais próximo, em recintos menores que os auditórios e centros de convenção em que os encontros da rede costumam acontecer. O II e o III Encontro Nacional da ReDESAP, em que estive presente, aconteceram em grandes espaços, durante três dias cada um, e contaram com mais de uma centena de participantes. Consistiram em eventos com programação de mesas e palestras pré-definidas, e intervalos curtos abertos a perguntas e contribuições do público. Já o “Programa de capacitação”, realizado em salões e salas de reuniões de hotéis das capitais citadas, contaram com a média de 25 participantes por cidade. Consistiram em um dia de reflexões conjuntas conduzidas pela equipe de que fiz parte, sem mesas e palestras programadas e, portanto, com mais espaço aberto para debate. Diferentes tanto dos encontros, quanto do “Programa de capacitação”, as reuniões do comitê gestor, por sua vez, consistem em encontros entre os oito membros do grupo e, eventualmente,

algumas

presenças

extraordinárias

de

gestores

de

outros

órgãos

governamentais que não a SEDH/PR. Somando-se, o “Programa de capacitação”, os eventos maiores e as reuniões do comitê gestor da ReDESAP colocaram-me em contato com o jogo enunciativo por meio do qual agentes que lidam com desaparecimento debatem e posicionam-se diante do fenômeno, levando-me a incorporar o que vi e ouvi em todos eles aos dados que fundamentam esta tese.117 117

Para preservar as identidades daqueles que freqüentam encontros da rede, optei não só por seguir utilizando nomes fictícios, como também por não nomear encontros e cidades específicas ao longo da análise que faço, neste capítulo, de reuniões e encontros da rede. Apenas o II Encontro Nacional é nomeado em algumas

197

4.2 Uma rede e seus enlaces Tanto as reflexões de policiais, quanto os casos por eles registrados sugerem que, em delegacias, o desaparecimento é objeto de enunciados que, como as acusações de feitiçaria analisadas por Favret-Saada (1977), compõem um jogo de forças em que responsabilidades são distribuídas.118 Afirmando e registrando que desaparecimentos são “problema de família”, policiais não só sustentam que as competências necessárias para o enfrentamento do fenômeno encontram-se fora das repartições policiais, como também – e principalmente – buscam delimitar uma seara ou conjunto de “problemas” sobre o quais não deveriam intervir. Casos de desaparecimento estariam inscritos nessa seara, sendo muitas vezes delegados àqueles que lhes deram início ao procurar a polícia: comunicantes e demais “Envolvidos”, definidos por policiais como “famílias” de desaparecidos. Mas, conforme evidencia a composição da ReDESAP e o amplo público de seus encontros, policiais não são os únicos agentes a delimitar searas, questionar atribuições e delegar responsabilidades pelo

desaparecimento

de pessoas no

Brasil.

Gestores

governamentais, ONGs e associações que reúnem familiares de desaparecidos acrescentam perspectivas ao posicionamento dos policiais, muitas vezes para se contrapor a ele ou questioná-lo. Entre essas instituições, há muitas cujas atribuições e missões não giram em torno do desaparecimento de pessoas, como mostra o Quadro 4. Isso não as impede, porém, de posicionar-se quanto ao “problema” do desaparecimento e quanto às obrigações por ele geradas. Nesse sentido, se as reflexões de policiais sugerem que o desaparecimento é objeto de enunciados em que responsabilidades são distribuídas, encontros entre membros da ReDESAP seguem na mesma direção. Neles, diversos agentes sociais posicionam-se não só em relação ao fenômeno que buscam definir e sobre o qual pretendem intervir, o “problema” do desaparecimento de pessoas, mas também diante uns dos outros e em relação uns aos

passagens, por se tratar de evento já descrito anteriormente e fundamental para minha entrada em campo. (ver capítulo 1). 118 Inspiradores para se pensar embates enunciativos em torno de responsabilidades e competências, os casos de acusação de feitiço apresentados por Favret-Saada (1977) evidenciam que a feitiçaria consiste num jogo de forças no qual diferentes atores se colocam em posições relacionais, atribuindo a seus interlocutores e a terceiros posições específicas por meio de enunciados. Em cada situação particular em que este jogo de forças se delineia, ou seja, em cada caso de feitiçaria, emerge uma configuração específica em que alguém é acusado de feiticeiro, sendo visto como portador de uma capacidade extraordinária que o torna hábil a causar infortúnios em série à vida alheia. Nessa configuração, o desenfeitiçador (désorceleur) comparece como sujeito dotado de competências específicas que o facultam a interromper aquela série de infortúnios.

198

outros. Ao se posicionarem, multiplicam as forças enunciativas por meio das quais responsabilidades e competências em torno do desaparecimento são distribuídas. Narrado a seguir, o desaparecimento de Olívia, maranhense que deixou sua cidade natal para viver no Rio de Janeiro, explicita que não apenas policiais, mas um conjunto maior de agentes sociais envolve-se nos processos de atribuição e distribuição de responsabilidades pelo desaparecimento de pessoas no Brasil. Antes de seguir a reflexão sobre a ReDESAP, vale passar pelo caso da jovem, que anuncia a peça chave da construção do desaparecimento de pessoas como “problema social”: processos cruzados de responsabilização. Olívia partiu por “livre e espontânea vontade”, conforme registrado por policiais, mas antecipando-se a eventuais culpabilizações, deixou três cartas em que manifestava seu desejo de ir embora: uma endereçada a seus pais, outra destinada ao padre da igreja freqüentada por sua mãe, e, por fim, outra para a delegacia da área em que vivia.

OLÍVIA Em janeiro de 2007, depois de alguns meses fazendo economias com essa finalidade, a maranhense Olívia comprou passagem aérea e deixou Imperatriz, sua cidade natal, para vir morar no Rio de Janeiro. Olívia havia acabado de completar 20 anos de idade e era estudante universitária. Antes de partir, “deixou carta endereçada aos pais, uma também para o padre da igreja que a mãe freqüenta e uma endereçada para a delegacia da área e em todas manifestava sua livre e espontânea vontade de deixar sua casa”. Na carta deixada para seus pais, Olívia disse estar “indo embora para encontrar os amigos e viver no senhor, mas não dizia para onde estava seguindo”. Cinco dias depois da partida de Olívia, seus pais, Carmen e Anísio, compareceram ao SDP solicitando que ali fosse produzido um RO do desaparecimento de sua filha. O casal havia sido informado, ainda no Maranhão, que o Setor era especializado em casos de desaparecimento. O RO por eles solicitado foi então produzido, firmando como endereço da ocorrência o “trajeto entre o eixo Rio/Maranhão”. Carmen, mãe de Olívia, prestou longas declarações não só sobre a partida da jovem, anunciada por carta, mas também sobre as razões e as pessoas que teriam levado sua filha a deixar sua casa. Segundo Carmen, Olívia “sempre foi boa filha e muito tranqüila, mas no ano de 2005 mudou de comportamento, não queria mais sair com os pais e ficava muito tempo utilizando o computador”. Desconfiada, Carmen decidiu investigar o computador de Olívia. Descobriu então que a jovem vinha se comunicando “com membros de uma seita, que não pode precisar o nome, mas parecia ser Congregação Caminho do Senhor”. Mãe e filha conversaram sobre o assunto, mas Olívia negou que seus amigos virtuais fizessem parte de uma seita religiosa. 199

No final de 2005, Olívia surpreendeu Carmen anunciando que cinco amigos seus, vindos do Rio de Janeiro, iriam visitá-la em Imperatriz. A chegada do grupo alegrou Olívia que, segundo Carmen, estava “até então mergulhada em estado depressivo, sendo tratada com medicamentos próprios e acompanhamento psicológico”. Contudo, a visita preocupou a mãe da jovem, que notou que os quatro rapazes e a moça que foram visitar Olívia furtavam-se a responder suas perguntas, “se calavam quando ela se aproximava” e sugeriam a Olívia “abandonar tudo (escola, família) para servir a Deus, não tomar banho, não comer, afirmando que a prova maior que Olívia poderia prestar era deixar tudo para trás.” Olívia teria inclusive raspado seus antes longos cabelos por sugestão do grupo. Aqueles jovens seriam, para a mãe de Olívia, os causadores de sua partida de Imperatriz. Antes de deixar o SDP, Anísio, pai da desaparecida, recebeu uma ligação em seu celular. Tratava-se na própria Olívia, que teria ficado sabendo que Anísio e Carmen estavam no Rio de Janeiro. A jovem teria afirmado, no telefonema, que também compareceria à repartição, mas gostaria de ser ouvida sozinha. Poucas horas depois, sem a presença de Carmen e Anísio, chegou ao Setor e prestou declarações que assim restaram registradas: Que declara que está bem física e emocionalmente, não fazendo uso de qualquer medicamento; que manifesta sua vontade de não seguir de volta com seus pais para o estado do Maranhão, embora não possa afirmar que vá permanecer no Rio de Janeiro.

Perguntada sobre o local onde estava hospedada e com quem estaria convivendo no Rio de Janeiro, Olívia “se negou a responder dizendo apenas que não queria falar sobre nada disso”. Em seguida, contudo, forneceu um número de telefone fixo em que poderia ser encontrada na cidade, pedindo “que o número não seja fornecido aos seus pais”. Dias depois, o caso foi arquivado no SDP como Sindicância Solucionada. 119

Embora grande parte dos participantes mais freqüentes de encontros da ReDESAP se conheça, principalmente no tocante aos membros oficiais, tanto as maneiras de se pronunciar acerca do desaparecimento, quanto a concepção do fenômeno sustentada por cada um deles são bastante divergentes. Entre queixas e responsabilizações cruzadas, três grandes frentes de debate aglutinam tais divergências: as questões apontadas como causas do desaparecimento, as maneiras como o “problema” deve ser combatido e, por fim, a relação que se deve estabelecer entre os agentes envolvidos com a questão. Percepções similares quanto a essas frentes de debate são compartilhadas por agentes que se apresentam de maneira semelhante tanto na formulação de suas falas, quanto em suas apresentações de si e dos organismos que 119

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 018/07 do SDP/DH.

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representam. Nesse sentido, a circulação de enunciados em encontros da rede engendra a distinção entre posições e desdobra-se na formação de grupos que sustentam perspectivas específicas sobre o desaparecimento de pessoas e sobre as formas por meio das quais ele deve ser enfrentado. O jogo de forças estabelecido e atualizado a cada evento da ReDESAP, portanto, confirma que um dos efeitos de discursos acerca de situações de sofrimento e de ações destinadas a combatê-las é a constituição de unidades e “pessoas coletivas” (Boltanski, 1993, p.87). São três os grupos formados entre membros e não-membros da rede que freqüentam seus encontros: primeiro, o grupo dos funcionários de órgãos governamentais, instituições de assistência social e Conselhos Tutelares e servidores do judiciário; segundo, o grupo das mães de desaparecidos; e terceiro, o grupo dos policiais. No interior dos três grupos citados, sem dúvida há posições dissidentes, algumas das quais são eventualmente explicitadas. Contudo, considerando-se as três frentes de debate referidas, posições dissidentes não impedem que tais grupos possam ser identificados como unidades que se delimitam no decorrer dos encontros. Mais adiante, busco descrever a tessitura do jogo de forças que se estabelece entre esses grupos e, ao mesmo tempo, os estabelece enquanto grupos. Vale destacar, não obstante, que destoam desse processo de formação de unidades dois conjuntos de agentes presentes nos eventos: pesquisadores, como eu, e funcionários de ONGs que não as fundadas por mães de desaparecidos. Os últimos são invariavelmente convidados a apresentar os projetos que desenvolvem, a que Ciro e outros gestores costumam intitular “boas práticas” 120. Essa forma de participação os coloca à parte de embates e da formação de grupos nos encontros. Quanto à posição de pesquisadores, no próximo capítulo teço considerações acerca de sua singularidade, a partir da minha própria presença e crescente participação na ReDESAP. Antes de me deter sobre a diferenciação entre os grupos mencionados, é necessário destacar o denominador comum que dá base ao jogo de forças estabelecido entre eles. Membros e não-membros da ReDESAP que freqüentam, se pronunciam e debatem nos encontros promovidos pelo comitê gestor da rede, afinal, costumam ser os mesmos, destacando-se aqueles que compõem o comitê. Além de referirem-se uns aos outros e tratarem-se de forma próxima, esses agentes partilham de alguns pressupostos acerca do desaparecimento de pessoas. Ainda que se posicionem uns em relação aos outros de forma 120

Participei das reuniões do comitê gestor em que foi definida a programação do III Encontro Nacional da ReDESAP. Nelas, pude compreender que o jargão “boas práticas” é usado correntemente entre gestores governamentais para classificar projetos e programas desenvolvidos sobretudo por ONGs, muitas em parceira ou convênio com órgãos governamentais, vistos como bem sucedidos. Tanto no II, quanto no III Encontro Nacional da rede houve mesas dedicadas à apresentação de “boas práticas”.

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distinta, e mesmo que apresentem abordagens divergentes quanto às causas e maneiras de enfrentar o fenômeno, representantes de variados órgãos governamentais, associações de familiares de desaparecidos e repartições policiais não apenas concordam, como são muitas vezes redundantes no tocante a algumas questões. O desaparecimento comparece reiteradamente nas falas desses agentes como fenômeno pouco conhecido e que não pode prescindir de encontros como os promovidos pelo comitê gestor da ReDESAP. De reuniões, cursos de capacitação e encontros nacionais dependeriam o reconhecimento da gravidade do fenômeno e, ainda, a conscientização de toda a população quanto à importância de registrar e divulgar casos em todo o Brasil. Nas mais variadas ocasiões, participantes dos encontros repisam esse ponto e chamam a atenção uns dos outros para a necessidade de “visibilizar o problema do desaparecimento”, como costuma dizer Cecília. Para ela e tantos outros membros e não membros da rede que freqüentam seus eventos, o desaparecimento não dispõe de atenção e espaço na agenda pública que façam jus à sua relevância. Em uma de suas frases lapidares, Cecília expressa isso afirmando que “o desaparecimento é uma questão invisível, mas que não pode ser silenciosa”. Casos célebres são freqüentemente mencionados nos encontros, e têm enfatizados, ao mesmo tempo, tanto seu caráter representativo (de todo um universo de casos que acontecem diariamente), quanto sua excepcionalidade (em função da divulgação que tiveram, destoante em relação à invisibilidade do fenômeno).121 A recorrência de referências a um mesmo repertório de casos sugere que certos desaparecimentos, aos quais foi conferido amplo espaço de divulgação em diferentes meios de comunicação, compõem uma fonte comum que alimenta imaginações e sustenta enunciados acerca do fenômeno (Boltanski, 1993, p.103), ainda que tais enunciados sigam em direções divergentes. Os casos costumam ser evocados a partir dos nomes dos desaparecidos que os protagonizaram, e não são objeto de narrativas ou descrições, já que seus enredos e detalhes são supostamente conhecidos por todos.

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Os casos mais freqüentemente citados como objeto de ampla divulgação e repercussão são “o caso Madeleine”, “o caso Carlinhos” e “o caso Pedrinho”, além do “caso Guilherme”. Referi-me aos dois primeiros, respectivamente, nos capítulos 1 e 2. “O caso Pedrinho”, ainda não mencionado, é como costuma ser designada a história do garoto que, ainda recém-nascido, foi levado da maternidade em 21 de janeiro de 1986, em Brasília, Distrito Federal, por uma mulher que o registrou como seu filho e o criou em Goiânia. Em 2003, a mulher que criou o garoto foi julgada e condenada pelo crime de seqüestro de Pedrinho. Já o “caso Guilherme” é o desaparecimento do menino Guilherme Caramês, ocorrido dia 17 de junho de 1991. Guilherme andava de bicicleta em frente à casa em que vivia com os pais e desapareceu, aos 8 anos de idade, em Curitiba, Paraná. Nenhum indício do que possa ter acontecido ao menino (e à sua bicicleta) foi encontrado. A mãe de Guilherme é conhecida na ReDESAP como pioneira na luta pela visibilização do “problema” do desaparecimento. Ao longo da tese, opto por me referir aos casos que encontrei nos arquivos do SDP como “o caso de Álvaro”, e não “caso Álvaro”, para marcar diferença entre eles e os desaparecimentos que compõem o repertório comum evocado com freqüência em encontros da rede e conhecidos para além deles.

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Outro ponto comum que reúne os participantes dos encontros é o uso indiferenciado das combinações de palavras “famílias de desaparecidos” e “mães de desaparecidos”. Chamando atenção para a dor dessas “famílias” e para a angústia da espera por elas vivenciada, agentes especificam esses sentimentos como experiências de mães, e tratam o desaparecimento como causa de sofrimentos e dores infindáveis enfrentadas por mães. No mesmo sentido, apresentam-no como “problema” que se estende no tempo e tem como desdobramento a falta de desfecho, a falta de notícias e a falta de informações sobre o paradeiro de um filho ou filha. Tais idéias são comumente sintetizadas com expressões como “o luto das mães de desaparecidos”, “um tipo de luto” e “morte inconclusa”.122 Assim como os casos célebres que compõem o imaginário coletivo acerca do desaparecimento prescindem de descrições e narrativas, o destaque conferido às mães de desaparecidos também não é objeto de explicitações ou questionamentos em eventos da ReDESAP. Mães apresentam-se e são apresentadas como porta-vozes naturais das “famílias de desaparecidos”, que não só as representam, mas também as personificam. Nesse sentido, mães de desaparecidos incorporam de modo exemplar o processo de constituição do “representante” descrito por Bourdieu (1984). Para o autor, constituir um representante implica apagar as fronteiras entre o grupo representado e aquele que o representa, o que aparece claramente no uso indiferenciado dos coletivos “mães de desaparecidos” e “famílias de desaparecidos”, recorrente em eventos da ReDESAP. Ademais, no caso das mães de desaparecidos, sua constituição como representantes e personificações de “famílias de desaparecidos” desdobra-se também no relativo apagamento de outros membros de casas, grupos familiares e parentelas, ausentes nos eventos da rede tanto fisicamente, quanto como objeto de evocações e pronunciamentos. Raras vezes são feitas menções a pais e irmãos de desaparecidos, e freqüentemente mães enfatizam que seus filhos ou filhas desaparecidos não tinham namorados. Em minha primeira interação com membros da rede, no II Encontro Nacional, tomei contato com a eficácia desse apagamento ao indagar a uma das mães presentes, fundadora de associação que integra a rede: “E o pai de seu filho, também participa desses eventos?”. Antes mesmo que ela tivesse chance de me responder, um policial nos interrompeu e me interrogou, de modo taxativo: “Alguém tem que trabalhar enquanto isso, você não acha?”. Depois dessa afirmação, que parecia tanto retirar “o pai de desaparecido” de cena, quanto justificar sua ausência em eventos como os promovidos pela ReDESAP, nem a mãe, nem o policial, nem eu demos prosseguimento à conversa. 122

Expressões semelhantes aparecem no trabalho de Catela (2001) sobre as famílias de desaparecidos políticos argentinos, e são o mote do trabalho de Oliveira (2008).

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Além da dita invisibilidade do fenômeno, da mesma coleção de casos célebres evocados com freqüência, e do protagonismo naturalizado das mães de desaparecidos, dois outros pontos, por fim, são objeto de consenso e repetição entre participantes de eventos da ReDESAP. Recorrendo às duplas de termos Estado/poder público, polícia/delegacias, e famílias/mães, os agentes que freqüentam os eventos enfatizam que o desaparecimento só pode ser enfrentado adequadamente se as forças dessas entidades forem reunidas. Embora a elas sejam atribuídas responsabilidades e competências divergentes, há convergência na visão geral de que é entre elas que se divide o encargo do enfrentamento do desaparecimento de pessoas. Por fim, há ainda convergência quanto ao que seria o maior obstáculo ao combate do desaparecimento de pessoas: a falta de leis e instrumentos jurídicos que tratem especificamente do fenômeno. A falta de normativas legais que definam o que é desaparecimento e determinem como ele deve ser gerido é evocada como algo que precisa ser transformado o quanto antes. Ecoando a posição de policiais como Carlos Ernesto, para quem o desaparecimento é objeto “só” de procedimentos administrativos, membros e não-membros da rede reunidos em seus encontros sustentam que falta respaldo legal para que se compreenda o que é o fenômeno e para que se estabeleça formas de saná-lo. Em suma, membros e não-membros da ReDESAP sustentam que a inexistência de leis que regulem a gestão e o combate do desaparecimento no Brasil é uma ausência primordial a ser enfrentada. A falta de amparo legal para a própria ReDESAP é algumas vezes apresentada como exemplar dessa ausência primordial. A rede foi fundada em 2002, mas legalmente instituída em 2011, pela Portaria n. 1.520, de 5 de agosto deste ano. A Portaria é, portanto, posterior aos três encontros nacionais já promovidos pela rede, às dezenas de eventos locais ocorridos até então e a outros tantas reuniões de seu comitê gestor. Esse fato não indica, para os participantes dos eventos, que iniciativas e avanços podem prescindir de instrumentos legais. Ao contrário, para eles encontra-se aí evidência da necessidade de se agilizar processos de formulação e instituição de aparatos jurídicos que auxiliem o combate do “problema” do desaparecimento de pessoas. “Nossas crianças estão desaparecidas e quem está perdido somos nós. Não temos diretrizes e não estamos efetivando nem a legislação que já temos”. Com essas palavras, um desembargador presente no II Encontro Nacional da rede explicitou o que é dito reiteradamente sobre a falta de aparatos legais específicos, agregando a ela o fato de que a legislação existente não é plenamente cumprida. A “legislação que já temos” a que ele se 204

referiu consiste, por um lado, na lei que determina que a busca por crianças e adolescentes desaparecidos deve ser iniciada imediatamente após sua comunicação, e do que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê em seu Artigo 27: São linhas de ação da política de atendimento [dos direitos da criança e do adolescente]: I – políticas sociais básicas; II – políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem; III – serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso crueldade, opressão; IV – serviço de identificação e localização de pais, responsável, criança ou adolescente desaparecido; (...) (BRASIL, 1990)

A ausência de serviços especializados em “identificação e localização” de desaparecidos é freqüentemente evocada por meio de formulações como a do desembargador citado – isto é, como evidência de que a parca legislação que trata diretamente do desaparecimento não é cumprida. Se, por um lado, é consenso em encontros da rede a urgente necessidade de se combater a falta de legislação específica sobre desaparecimento, por outro também o é a necessidade de efetivar o que já está previsto em lei, ainda que tal lei abarque apenas casos envolvendo crianças e adolescentes. As referências ao desaparecimento feitas pelos participantes dos encontros da ReDESAP, tanto em momentos mais formais das reuniões, quanto em intervalos, almoços e entreatos menos modulados, carregam consigo certo ar de certeza. Os termos desaparecimento e desaparecidos são empregados como categorias auto-evidentes, que prescindem de maiores explicações. Nas mais variadas situações de interação, policiais, gestores e membros de ONGs e associações de familiares de desaparecidos apresentam-se e dialogam como se operassem a partir da mesma concepção do que é o desaparecimento de pessoas, tanto que se eximem de explicitar o conteúdo dessa concepção. Minha indagação sobre o que é o desaparecimento, respondida por Cecília e comentada no começo do segundo capítulo, foi uma das poucas ocasiões que presenciei a explicitação de uma possível definição do fenômeno. Não obstante, a cada reunião e evento da rede descortina-se a olhos vistos a circulação de diferentes abordagens e definições de desaparecimento.

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4.3 Uma rede e seus nós Como mencionado acima, as divergências estabelecidas entre membros da rede inscrevem-se em três frentes principais: causas apontadas como raízes do desaparecimento, maneiras como o “problema” deve ser combatido e, por fim, concepções sobre as relações estabelecidas entre os agentes envolvidos com a questão. Tais divergências revelam a distinção entre os três grupos de agentes, ou as três pessoas coletivas (Boltanski, 1993) que sustentam abordagens específicas e divergentes do desaparecimento de pessoas: os já mencionados grupos dos gestores, das mães de desaparecidos e dos policiais. A seguir, apresento as posições de cada grupo separadamente, começando pelos gestores, passando pelas mães e, finalmente, chegando aos policiais que freqüentam encontros da ReDESAP. Ao longo da descrição de cada grupo, narro, no mesmo formato que utilizei até aqui, alguns desaparecimentos cujos enredos iluminam, respectivamente, elementos das falas de gestores, mães e policiais presentes nos eventos. Contudo, opto por não destacar explicitamente tais elementos, nem produzir narrativamente conexões diretas entre os casos narrados e as posições dos membros da ReDESAP que descrevo. Com o intuito de, mais uma vez, espelhar formalmente no texto algo com que me deparei no decurso da pesquisa, faço isso porque casos particulares não são parte constitutiva dos enunciados de membros da ReDESAP que se encontram e se pronunciam nos eventos, a não ser no tocante às mães de desaparecidos, que, invariavelmente, narram os desaparecimentos de seus próprios filhos. Ainda que gestores e policiais eventualmente façam referência ao mesmo conjunto de desaparecimentos célebres, raramente constroem suas falas a partir deles ou de quaisquer outros casos particulares. Suas posições são construídas e afirmadas em enunciados gerais sobre o “problema” do desaparecimento, e não a partir de casos específicos. Sendo assim, se os poucos casos narrados nas três próximas partes do capítulo aparecem relativamente soltos do texto, isso pretende refletir, por um lado, a presença incidental de casos particulares nos encontros da rede e, por outro, a clara incongruência entre a desimportância atribuída aos casos em repartições policiais e a reiterada relevância do “problema” construído em eventos públicos. Vejamos então as perspectivas de gestores (parte 4.3.1), de mães de desaparecidos (parte 4.3.2) e de policiais (parte 4.3.3) acerca do “problema social” que os congrega e, ao mesmo tempo, os separa. A partir da descrição de tais perspectivas, busco demonstrar que o

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desaparecimento de pessoas é construído como “problema social” no peculiar embate que esses agentes estabelecem entre si.

4.3.1 Há famílias desestruturadas em todas as classes sociais Representando órgãos e programas nacionais, estaduais e municipais de diferentes ministérios e secretarias, gestores de políticas públicas das áreas de Direitos Humanos, Assistência Social, Segurança Pública e Relações Internacionais compartilham não só a mesma abordagem quanto a causas e formas de combater o desaparecimento, mas também a mesma forma de se apresentar diante de outros participantes de encontros da rede. Somam-se a eles, compartilhando a mesma abordagem, servidores de órgãos do judiciário e conselheiros tutelares e dos direitos da criança e do adolescente que participam de encontros da ReDESAP. Recorrendo ao mesmo número e estatística, suas falas colocam-se como diagnósticos do “problema”, avaliações do que deve ser feito para preveni-lo e, por fim, alertas. Consistem, nos termos de Boltanski (1993), em “enunciados de saberes”, caracterizados por suprimir singularidades em prol da produção de afirmações categóricas e supostamente verificáveis. De forma sucinta, os enunciados dos gestores apresentam o “problema” como conseqüência de conflitos e violência intrafamiliar, afirmam que para prevenir desaparecimentos é preciso investir na “família” e, finalmente, advertem os demais membros da rede de que é preciso não culpabilizar “famílias” por casos de desaparecimento. JOAQUIM No dia 4 de abril de 2005, a copeira Jandira foi à delegacia próxima de seu trabalho notificar à polícia que seu filho Joaquim, de 11 anos, havia fugido de casa no dia anterior. Segundo Jandira, há algum tempo Joaquim vinha se ausentando também da escola. Em suas declarações, Jandira disse ainda que já foi ao Conselho Tutelar e narrou o fato, que suspeita que o mesmo esteja usando drogas, que o mesmo foi visto em vários sinais pedindo dinheiro, após fazer malabarismo com bolinhas, que deixa uma foto do menor Joaquim.

As declarações de Jandira deram origem ao RO de “Desaparecimento” em nome de Joaquim, que depois de encerrado foi encaminhado a outra delegacia, próxima da casa de Jandira e Joaquim. Como o endereço registrado como “local do fato” correspondia à residência deles, a delegacia responsável seria a daquela circunscrição. A delegacia que recebeu o caso, 207

porém, não chegou a investigá-lo. Dia 28 de abril, o RO foi encaminhado ao SDP/DH. Já em agosto de 2005, o inspetor do SDP encarregado do caso remeteu alguns ofícios para órgãos da polícia, da justiça e de assistência social. Solicitando informações que por ventura auxiliassem na busca pelo paradeiro de Joaquim, foram contactadas a Fundação para Infância e Adolescência (FIA) da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, as 1ª e 2ª Varas da Infância e Juventude, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), o Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase), o IML e a Santa Casa de Misericórdia. Todos esses órgãos, contudo, responderam negativamente ao ofício do SDP. Em junho de 2008, o caso de Joaquim foi arquivado como Sindicância Suspensa.123

Colocando-se no plano da generalidade política, gestores recorrem reiteradamente ao mesmo conjunto de dados estatísticos sobre desaparecimentos e raríssimas vezes narram casos particulares como, por exemplo, o de Joaquim. Segundo números evocados por gestores em diferentes ocasiões, sempre sem citação de fontes, 40 mil crianças e adolescentes desaparecem anualmente no Brasil. Desse total, cerca de 75% dos casos consistem em fugas de menores que sofrem violência e castigos físicos dentro de suas casas e, por isso, preferem viver nas ruas e/ou em abrigos públicos. Esse entendimento é de tal forma consolidado entre gestores que muitos utilizam indiferenciadamente os termos desaparecimento e fuga, tratando-os como equivalentes. Contudo, para os gestores aquela cifra não significa que “famílias” sejam culpabilizáveis pelos desaparecimentos. Antes, para eles “famílias” são as maiores vítimas desse fenômeno, que sobre elas incide causando angústia, dor e traumas diversos. Para que se compreenda o papel das “famílias”, apresentadas em muitas de suas falas como instâncias produtoras de desaparecimentos (Oliveira, 2007), gestores afirmam ser necessário refletir sobre a atual “crise da família” e, ainda, sobre “o fim da comunidade e o crescente individualismo que caracteriza a sociedade”. O movimento percorrido em enunciados desse tipo visa a substituir a responsabilização de unidades familiares específicas pela vitimização generalizada destas unidades. Para os gestores, enfrentar o desaparecimento de pessoas de modo eficaz depende de admitirmos que “famílias” são as unidades mais afetadas pelo irrestrito processo de desestruturação de relações e vínculos por que a sociedade contemporânea estaria passando. Nas palavras do desembargador supracitado, em função desse amplo e abstrato processo de desestruturação de laços, “mesmo que ela represente o 123

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 182/05 do SDP/DH.

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espaço de maior segurança e proteção, é na família que encontramos os maiores indícios de violência silenciosa.” Esforçando-se por deslocar responsabilidades atribuídas diretamente às “famílias”, gestores sustentam que as raízes do desaparecimento residem no atual “descuido de relações e crescente individualismo”, que tem acompanhado o “fim da família extensa e das redes comunitárias” e “o predomínio da família monoparental chefiada por mulheres”, que faria recair sobre os ombros de mães solteiras o dever do cuidado e da disciplina de seus filhos. Esse quadro comporia um cenário mais que propício a relações familiares tensas e violentas e, portanto, responderia como causa fundamental dos desaparecimentos. Nesse cenário, alguns personagens ganham contornos claros: o pai ausente, a mãe sobrecarregada que chefia a família e é violenta com sua prole e, por fim, o filho que deseja fugir. O filho que deseja fugir seria encarnado pelas 40.000 crianças e adolescentes que desaparecem anualmente no Brasil. Para os gestores, compreender o largo processo de desintegração por que estariam passando as “famílias” nos dias atuais é imprescindível para que todos aqueles que lidam com o “problema” do desaparecimento não culpabilizem diretamente “famílias” específicas pelos casos por que passaram. Caberia a eles, ao contrário, identificar além destas unidades o perverso agente perpetrador de desaparecimentos e, assim, indignar-se diante dele: o fenômeno da “violência intrafamiliar”. Essa modalidade de violência tem lugar no referido cenário de “fim da família extensa e das redes comunitárias”, é protagonizada pelos personagens acima mencionados, e caracteriza o Brasil propriamente contemporâneo. Nesse sentido, estaria ausente de certo passado ideal, em que não havia “descuido de relações e crescente individualismo”. Assim entendido o desaparecimento, fundamentalmente as formas de prevenção a serem adotadas devem ser dirigidas às “famílias” e às “comunidades”. Em função disso, muitos gestores descrevem os limites e possibilidades abertos por serviços públicos de assistência social, políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes “em situação de risco” e “em situação de rua”, e, principalmente, pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC). 124 Citando o Plano, políticas e serviços públicos diversos, gestores frisam que “é preciso que haja maior integração das políticas sociais para que

124

Instituído em 2006, o plano é apresentado como “um marco nas políticas públicas no Brasil, ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A manutenção dos vínculos familiares e comunitários – fundamentais para a estruturação das crianças e adolescentes como sujeitos e cidadãos – está diretamente relacionada ao investimento nas políticas públicas de atenção à família.” (BRASIL, 2006, p.17)

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famílias sejam assistidas. Antes de culpabilizar a família, é preciso responsabilizar o Estado”, como diz uma gestora da SEDH/PR. Ademais, gestores defendem que “boas práticas” desenvolvidas por ONGs devem ser valorizadas e estendidas, e reafirmam a necessidade de se fornecer atendimento psicológico e programas de reintegração de crianças e adolescentes a suas “famílias”, como fazem muitas iniciativas do chamado Terceiro Setor. Tornando possível essa reintegração, abrigos e outras medidas temporárias de acolhimento seriam de fato temporárias, já que as “famílias” estariam melhor preparadas para receber e proteger seus filhos, prevenindo novas fugas ou desaparecimentos. Gestores defendem que é preciso dar atenção às “famílias” sobretudo porque “as mães perdem seus referenciais, seus empregos e nem podem contar com seus companheiros quando seus filhos desaparecem”, como afirma Ciro. Chamando atenção para sua força, gestores freqüentemente referem-se e incensam as mães que fundaram ONGs e associações que integram a rede como, por exemplo, Cecília. Nessas referências, ecoam trabalhos como os de Araújo (2007) e Nobre (2005), dizendo que muitas mães só reencontram sentido para viver ao se reunir, mobilizar e integrar ONGs e associações. Ainda que o alvo fundamental de ações de prevenção deva ser “a família”, para gestores que participam dos encontros da rede é preciso, também, “capacitar aqueles que recebem as denúncias: nossos policiais”. Treinando a polícia e conscientizando seus funcionários quanto à gravidade do “problema”, seria possível estabelecer as bases para “o atendimento adequado das famílias” e reverter o fato de que atualmente muitos casos não são objeto de registros policiais. Além disso, seria necessário que a polícia compartilhasse com Conselhos Tutelares as ações de busca e localização de desaparecidos, já que a maior parte dos casos não envolve crimes ou suspeitas de crime. Em convergência com o que afirmam inspetores do SDP, a ausência de componentes criminais justificaria, também para os gestores, que outros órgãos assumissem responsabilidades que estariam equivocadamente sendo atribuídas a repartições policiais. Ainda que seja necessário que toda “família” dirija-se à delegacia para comunicar o desaparecimento, a polícia não deve monopolizar a gestão dos casos, cabendo a conselheiros tutelares se fazer mais presentes. Por fim, gestores afirmam repetida e enfaticamente que para combater as causas do desaparecimento é preciso dissociá-lo do fenômeno da pobreza. Para eles, castigos físicos e psicológicos, entre outras formas de “violência familiar”, não ocorrem apenas nas camadas pobres da sociedade. Por conseguinte, desaparecimentos também não se confinariam em tais porções da população. Esse entendimento foi condensado em frase marcante proferida na 210

Mesa de abertura do primeiro evento da rede de que participei – o II Encontro Nacional, no Rio de Janeiro: “há famílias desestruturadas em todas as classes sociais”. Ciro, o gestor que me abriu portas para seguir participando de encontros da rede, fez essa afirmação em meio a suas falas sobre fugas do lar, às quais fiz menção primeiro capítulo. Em suma, a perspectiva dos gestores é a de que, na contemporaneidade, não se pode contar com “famílias” que protejam crianças e adolescentes. Vítimas de processos que as transcendem, “famílias” em que há violência, castigos físicos e relações conflituosas, ao não proteger suas crianças e adolescentes, provocam suas fugas de casa. São tais fugas que constituem, do ponto de vista dos gestores, casos de desaparecimento. Essa situação é ainda agravada pela inexistência de serviços de assistência social adequados e repartições policiais com profissionais preparados para lidar com casos de fuga. Para os gestores, é na ausência dessa “família que protege” e de profissionais que a auxiliem que cresce, em número e gravidade, o “problema” do desaparecimento de pessoas no Brasil.

4.3.2 Minha família se desestruturou depois que minha filha desapareceu RAQUEL Em meados da década de 1990, Cláudia e Francisco, mineiros de Divinópolis, migraram para a região serrana do Rio de Janeiro trazendo consigo seus quatro filhos: Raquel, Rita, Felipe e a caçula Taís. Estabeleceram-se em Penedo, onde Cláudia começou a trabalhar como empregada doméstica e Francisco seguiu exercendo seu ofício de eletricista. Em 2004, o casal se separou e Francisco mudou-se para Mauá, levando consigo os três filhos mais velhos. Apenas Taís permaneceu em Penedo, morando na casa da mãe. Em 2006, Raquel, filha primogênita do casal, voltou a viver com a mãe em Penedo. Passados alguns meses da mudança residencial, Cláudia notou uma “mudança de comportamento” na filha, que “começou a dormir muito durante o dia, coisa que não fazia antes”. Tentando compreender o que se passava a sua filha, Cláudia descobriu que Raquel “fugia de casa pela janela enquanto a família dormia e passava noites fora”.

Dia

24

de

janeiro de 2007, dias antes de completar 17 anos, Raquel saiu de casa deixando o seguinte bilhete para Cláudia: Mãe, primeira coisa: eu te amo muito, por isso saí de casa. Não quero que a senhora sofra por minha causa e sei que eu não sou uma boa filha, sei que nunca a senhora vai gostar de mim como gosta do Felipe e da Taís, mas não tem problema, eu não mereço mesmo. Mãe, mas eu amo muito a senhora e meus irmãos, quero que vocês sejam muito felizes, de coração. Queria muito

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que meus irmãos gostassem de mim, eu sei que eles não gostam porque eu moro com a senhora e eles não. Mãe, se um dia a senhora estiver triste, lembre-se de mim. Mãe, não se preocupe comigo logo a senhora vai ter notícias minhas, não fui muito longe, fui para Resende, não fui pra casa de parentes, a senhora sabe que eu não gosto de ir para casa de parentes. Estou num lugar que pode mudar minha vida e de todo mundo. Mãe, por favor, diga pra minha avó e avô, tio, primos, todos, que amo muito eles e muito obrigada por tudo que eles fizeram por mim. Mãe, me desculpe pelas vergonhas que eu fiz a senhora passar na escola e em todos os lugares, talvez a senhora já tenha esquecido, mas eu não, eu nunca vou esquecer. Mãe, se a senhora vir meu pai fale pra ele que eu amo ele também. Mãe e Deus perdoem por tudo e obrigado por tudo, um dia a senhora vai lembrar de mim como sua filha. Mãe, não deixa a Taís entrar na vida como eu entrei. Só hoje sei como é ruim, me arrependo muito mesmo, talvez nada disso ia acontecer. Mãe, um enorme beijo e um abraço pra você e pra todos de sua filha.

Depois de ler o bilhete, Cláudia procurou Raquel pelas ruas do bairro onde moram e em casas de vizinhos. Telefonou ainda para o pai da garota, mas em nenhuma dessas buscas a encontrou. Dois dias depois, foi ao CT de Itatiaia, de onde foi encaminhada para uma delegacia, relatou o ocorrido e entregou o bilhete ao policial que a atendeu. Foi então produzido um RO de desaparecimento em nome de Raquel, em que ficou registrado Que sua filha nunca foi rebelde ou a desrespeitou, sendo a mudança notada pois ela começou a dormir muito durante o dia, coisa que não fazia antes. Informa também que a menina não tinha namorado e que a declarante não havia proibido nenhum namoro dela. Que sua filha não possui tatuagens ou piercings, não tendo também sinais característicos. Que ela é alta, bonita, tem cabelos ondulados de cor castanho claro e olhos verdes. Que ontem por volta de 21hs, Raquel ligou para o telefone residencial de sua irmã e disse não poder dizer onde se encontrava.

Passados cerca de dois meses, a conselheira tutelar que encaminhara Cláudia à delegacia foi, ela mesma, àquela repartição policial. Afirmou estar ali atendendo a uma convocação, e relatou que “foram feitas diversas diligências pelo CT visando à localização da menina, porém estas resultaram infrutíferas”. Em maio de 2005 o policial encarregado do caso redigiu relatório a respeito do desaparecimento de Raquel, no qual solicitou seu encaminhamento para o SDP “para prosseguir nas investigações” e registrou que Nas investigações realizadas por este sindicante foi apurado que a adolescente de vez em quando liga para a família, sempre para telefones convencionais, que não possuem identificadores de chamadas. Nestas ligações ela diz estar bem e que é para não se preocuparem, porém, informando ora estar residindo perto, sem citar o local, ora estar no Rio de Janeiro, nunca dando seu verdadeiro paradeiro.

No SDP, os mesmos telefonemas apresentados pelo policial da DP tanto como indícios de que a adolescente estaria bem, quanto como dados insuficientes para determinar seu 212

paradeiro, foram encarados não como razões para que as investigações prosseguissem, mas como motivos para seu arquivamento. No relatório produzido no Setor, foi registrado que Segundo informação de Amélia, tia da menor, sua sobrinha está morando no Rio com o namorado, cujo nome não informa; entretanto a mãe da menor já aceitou a fuga da filha e seu relacionamento, aguardando que com o tempo esta volte a visitá-la pessoalmente, haja vista que a menor apenas telefona esporadicamente para dar notícias. Assim informado solicito o encerramento das investigações, haja vista a Sindicância se encontrar SOLUCIONADA. 125

Embora apenas uma delas componha o comitê gestor da rede, três mães de pessoas desaparecidas fazem-se ouvir repetidas vezes nos encontros da ReDESAP. Cecília, Maria e Flávia fundaram as três ONGs dedicadas exclusivamente ao desaparecimento de pessoas que compõem a rede. As organizações fundadas por elas têm como missão prestar assistência a familiares de desaparecidos, localizar desaparecidos e/ou atuar na prevenção de novos casos. As três são conhecidas de muitos membros e não-membros da rede que freqüentam os encontros, e são por eles citadas reiteradamente não só através de referências a seus nomes e/ou aos nomes das ONGs que fundaram, mas também por meio de citações dos nomes de seus filhos desaparecidos. Em 1996, Cecília e Maria fundaram, juntas, a ONG que hoje é presidida por Cecília. Em 2005, Maria deixou a ONG e fundou uma segunda organização, na mesma cidade. Já Flávia é conhecida entre os membros da rede como a pioneira no enfrentamento de desaparecimento de crianças e adolescentes. Flávia não só fundou uma organização para assistir famílias e promover medidas de prevenção do desaparecimento de crianças e adolescentes, em funcionamento desde 1991, como também seguiu carreira política, tendo sido eleita vereadora e deputada estadual. Embora Cecília, Maria e Flávia tenham lugar de destaque na ReDESAP, outras mães, criadoras e integrantes de associações e ONGs que não as fundadas pelas três, também participam e se pronunciam nos encontros. Com raras exceções, mães de desaparecidos iniciam seus pronunciamentos narrando os desaparecimentos de seus filhos. Essas narrativas são compostas tanto por alusões às suas relações com os desaparecidos, quanto por descrições de suas interações com policiais e, em alguns casos, funcionários de outras repartições públicas a que reportaram os casos. Nessas narrativas, as mães informam, invariavelmente, os anos, meses e dias que se passaram desde que seus filhos desapareceram, como chamei atenção, referindo-me especificamente à Cecília, na abertura do capítulo 2. 125

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 122/07 do SDP/DH.

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Em suas colocações, diferente dos gestores, as mães não destacam números e estatísticas, nem apresentam diagnósticos acerca do desaparecimento. Emitindo “enunciados de opinião”, e não “enunciados de saberes” (Boltanski, 1993), seu relatos são construídos na primeira pessoa (ora do singular, ora do plural) e apresentam suas trajetórias como mães, como parte de famílias vitimadas pelo mesmo infortúnio e, a partir daí, como fundadoras de instituições que buscam suprir a falta de assistência que cada uma delas enfrentou ao vivenciar o desaparecimento de um filho.126 Fazendo uso do que Boltanski (1993) designa “estilo emotivo”, as mães inscrevem-se em seus enunciados, tornando-se elas próprias objeto de suas falas, e afirmam que a razão inicial de seu engajamento na causa do desaparecimento reside em suas experiências pessoais de sofrimento. Contudo, repetidas vezes sustentam que seguem mobilizadas não mais em função de suas próprias experiências, e sim em nome de outras mães de desaparecidos. Como afirmou Cecília em uma das reuniões do comitê gestor, “Eu não estou aqui porque sou boazinha, não. Estou aqui porque sei a dor que é ter um filho desaparecido e não quero que outras mães sintam o que eu senti.” Com falas como essa, as mães transportam suas experiências de sofrimento para o amplo espaço de debate propiciado pela rede, generalizando suas emoções, expectativas e posições diante dos desaparecimentos específicos de seus filhos para tratar do desaparecimento de pessoas no Brasil. Nesse sentido, referem-se a suas trajetórias tanto como fundamentais para a apresentação de si, quanto como representativas de uma coletividade: as mães de pessoas desaparecidas. Cecília, ao se apresentar no II Encontro Nacional da rede, sintetizou seu papel diante da causa pela qual luta e diante das mães de pessoas desaparecidas dizendo: “Eu descobri que vim lutar não só por mim, mas por todas as mães, porque me sinto mãe de cada uma delas.” Cecília refere-se às mães de desaparecidos atendidas pela ONG que fundou e dirige como “minhas mães” e “minhas mãezinhas”. Reconhecida não só por sua já longeva atuação à frente da ONG, mas também por “falar bem” e “falar bonito” (cf. Comerford, 1999, p.93) e proferir palestras sempre comovidas e comoventes, Cecília cumpre papel de porta-voz autorizada das mães de pessoas de desaparecidas. Colocando-se como representante desse grupo, portanto, o institui “pela operação de magia que é inerente a todo o ato de nomeação.” (Bourdieu, 2010, p.159) As mães protagonizam momentos diferentes das palestras e mesas de debate características dos encontros da rede, e são tratadas com certa distinção. A homenagem de 126

“Enunciados de opinião” carregam afirmações originais, derivadas de experiências singulares, e emitem julgamentos indissociáveis do sujeito da enunciação e de sua perspectiva. (Boltanski, 1993, p.87).

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aniversário prestada a Cecília (capítulo 2) é um exemplo. Outra cena semelhante aconteceu em um dos intervalos entre as mesas programadas para o II Encontro Nacional da ReDESAP, quando as três mães acima referidas foram homenageadas, reunidas ainda a outras seis que participavam do evento. Inesperadamente, uma senhora, amiga pessoal de Flávia e funcionária da ONG por ela fundada, pediu o microfone aos organizadores do evento e recitou uma poesia de sua autoria escrita em homenagem à Flávia e dedicada a todas as mães presentes. Intitulada “Uma frágil mulher de aço”, a poesia foi lida enquanto nove mães de desaparecidos postaram-se, de pé e de mãos dadas, de frente para o público. Ao final da leitura, a autora da poesia chamou atenção para palestrantes que se ausentaram do evento, embora estivessem listados na programação, e deixou no ar uma dupla indagação: “Onde estão nossos governantes? Onde estão nossas crianças?”. Essas interrogações parecem condensar a perspectiva das mães atuantes na rede acerca do desaparecimento de pessoas. Por falta da assistência que lhes deveria ser prestada por “governantes” ou pelo “Estado” e, também, por falta de uma atuação sensível e adequada por parte da “polícia”, as mães e suas “famílias” se desestruturam ao vivenciar o desaparecimento de um de seus membros. Em suma, as mães identificam a omissão de agentes responsáveis por assistir “famílias” de pessoas desaparecidas como principal causa do fenômeno. Contrapondo-se à perspectiva dos gestores, afirmam reiteradamente que “o desaparecimento não acontece porque a família é desestruturada”. Invertendo os termos da equação enunciada por eles, relatam que seus casamentos foram devastados, outros filhos foram afetados e suas contas bancárias acabaram “zeradas” em função do desaparecimento de seus filhos. Enfatizando que sempre foram “boas mães” e provedoras de “bens de cuidado” (Vianna, 2006) no limite do possível, situam o desaparecimento de seus filhos como pontos de inflexão em suas vidas, que as fizeram sair de uma rota de vida familiar plena, para um tortuoso caminho de faltas e sofrimento. Afirmam que suas vidas perderam sentido quando seus filhos desapareceram, e narram experiências pessoais de divórcio, perda de emprego, dívidas contraídas para pagar detetives particulares e noites consumidas com angústia. Indo ao encontro de uma das afirmações repetidas por gestores, relatam que tentam reencontrar esse “sentido” reunindo-se em organizações e tentando suprir a carência de assistência vivida por outras mães. Citam, nesse sentido, exemplos de estratégias por elas desenvolvidas para enfrentar a “negligência do poder público” como, por exemplo, a chamada “Mãe da Vez”. Atribuindo o estatuto de programa assistencial à prática de circulação de crianças (cf. Fonseca, 2006), a “Mãe da Vez” é uma 215

rede de cuidados idealizada pela associação fundada por Maria, em que uma das mães fica responsável por várias crianças de sua vizinhança quando as outras precisam se ausentar. Afirmam, enfim, que “juntas vamos guardar nossas crianças”, como diz Maria, mas que pra isso é também necessário o engajamento do “Estado”. Ainda nas palavras de Maria, para as mães “não importa se a criança fugiu de casa, o Estado tem que se responsabilizar. Eu pergunto há 13 anos para o Estado onde está minha filha. O Estado me deve a minha filha.” A ausência desse “Estado” devedor de que fala Maria manifesta-se, do ponto de vista das mães, sobretudo na já mencionada inexistência de legislação pertinente que regule a gestão e o enfrentamento de casos, de tecnologia (sistemas de informação, bancos de DNA e sistemas de envelhecimento de fotografias são por elas vistos como essenciais) e de serviços de assistência social de qualidade. A ela soma-se, ainda, outra ausência de que as mães queixam-se enfaticamente: a falta de sensibilidade, conhecimento e capacidade para lidar com casos de desaparecimento característica da “polícia” ou das “delegacias”. Assim como os policiais do SDP, mães evocam o “Estado” como instrumento retórico que lhes permite explicar e lidar com a humilhação e a indiferença que afirmam ter sofrido por ocasião de encontros com policiais. (Herzfeld, 1992). No caso das mães, humilhação e indiferença são apenas dois dos vários sentimentos elencados em suas denúncias daquelas ausências. Cecília costuma narrar o atendimento que recebeu quando sua filha desapareceu, sublinhando que o policial que a recebeu afirmou que sua filha “deveria estar num motel aproveitando o sábado com o namoradinho”. Cecília diz ter “perdido a cabeça” diante da frase do policial e saído da delegacia sem registrar o caso. Outras mães a acompanham nesse relato, sobretudo as que têm filhas desaparecidas, relatando insinuações e insultos feitos por policiais, que lhes disseram que suas filhas deveriam ser prostitutas ou “meninas fáceis”, como fala Maria. Se casos como o de Raquel, que saiu de casa depois de “entrar na vida”, são registrados em repartições policiais, em eventos da ReDESAP mães de desaparecidos negam que esse possa ter sido o destino de suas filhas desaparecidas, e demonstram indignação pelo fato de policiais aventarem tal possibilidade. As mães freqüentemente narram cenas de maus tratos, preconceito, negligência e desconfiança que vivenciaram nas delegacias a que se dirigiram para reportar o desaparecimento de seus filhos. Afirmam que policiais demonstraram desconhecimento quanto ao tema e, por vezes, ofensivamente associaram seus filhos e filhas não só a redes de prostituição, como também a diversas suspeitas de crime. Tais afirmações permitem compreender a defesa de um “atendimento adequado” em delegacias feita por muitos 216

gestores: trata-se não apenas de uma escuta cuidadosa e receptiva por parte de policiais que assumam responsabilidades diante dos casos, mas também de empatia e reconhecimento da dor causada pelo desaparecimento de um filho que não deve ser alvo de quaisquer suspeitas.

CLARA Dia 16 de janeiro de 2008, a professora aposentada Ivana foi, em companhia de seu filho Leandro, à delegacia do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro (DAIRJ). Na repartição, a professora solicitou o registro de desaparecimento de sua filha Clara, de 15 anos. A partir das falas de Ivana, o policial que a atendeu registrou que no dia 15/01/2008, por volta das 15:25hs, no check in da Cia Aérea, sua filha desapareceu; fato este que ocorreu na ocasião em que a menor ia embarcar pela Cia Aérea no vôo 1892 trajeto Rio/Porto Alegre; que a declarante Ivana, mãe adotiva da menor, e o irmão de Clara, Leandro, acompanharam Clara até o check in da Cia Aérea e entregaram a menor aos cuidados da funcionária DILMA e depois disso não tiveram mais contato com a menor; que a menor não chegou a Porto Alegre, e diante do fato estiveram no Aeroporto no dia de hoje para saber junto a Cia Aérea se a menor havia embarcado; pois a menor não tinha documentação, e também disse que a menor teria ligado para casa e falado com os pais e solicitara a documentação e depois teria remarcado a passagem e no horário marcado não apareceu. E mais não disse.

Depois de fazer esses registros, o policial que atendeu Ivana pesquisou a base de dados que reúne registros de ocorrência feitos em delegacias informatizadas. Encontrou então outro RO de desaparecimento em nome de Clara, feito na 12ª DP, em Copacabana. Dia 29 de dezembro, menos de um mês antes da viagem que faria a Porto Alegre, a adolescente “saiu de sua residência com destino ignorado”, conforme aparece registrado no documento. Foi Ivana quem solicitou o RO em dezembro, assim como fez em janeiro. Dia 25 de fevereiro, o policial da DAIRJ que registrara o segundo desaparecimento de Clara redigiu novo documento a respeito do caso - um relatório destinado à apreciação do delegado. Revestindo de suspeita os “Envolvidos” no caso, relatou que até o presente momento a comunicante do fato Sra. Ivana não entrou em contato com esta DAIRJ para informar se sua filha adotiva havia sido encontrada; este sindicante há mais ou menos 10 dias atrás entrou em contato por telefone com a Sra. Ivana, sendo informado pela mesma que até o momento da ligação sua filha não havia aparecido, sendo informado ainda que o seu advogado entraria em contato com este sindicante, e até o momento não o fez; Estranhou-me o fato que no momento da ligação quem atendeu foi uma menina, aparentando pela sua voz ter a idade da desaparecida, e quando a Sra. Ivana veio ao telefone, a primeira coisa que ela falou foi que seu advogado já estava tratando do caso para processar a Cia Aérea, afirmando que sua filha adotiva não havia aparecido ainda, sem perguntar ou mostrar preocupação se este sindicante havia apurado algum fato que pudesse esclarecer o desaparecimento.

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No mês seguinte, o policial intimou Ivana a comparecer novamente à DAIRJ, o que aconteceu dia 20 de março. Nessa data, a mãe de Clara afirmou que sua filha não havia retornado para casa, mas havia feito breve contato pelo telefone. A ligação teria ocorrido dia 4 de março, data de aniversário de Clara, e nela a adolescente “disse que estava mais ou menos, e indagada onde estava, disse que não poderia falar”. Depois dessa chamada telefônica, Clara não “entrou mais em contato com Ivana e nenhum de seus familiares”. Poucos dias depois, o caso de Clara foi encaminhado ao SDP. Uma cópia do RO produzido na 12ª DP em dezembro de 2007 foi incluída na remessa de documentos. Dois meses depois de ser recebido no Setor, o caso foi arquivado como Sindicância Solucionada. No relatório final que produziu, o policial que cuidou e arquivou o caso no SDP assim justificou o encerramento das investigações: Trata-se a comunicante de senhora de idade avançada, a qual mantém oito filhos adotivos, e segundo a própria, alguns outros agregados, em seu apartamento em Copacabana, estando alguns deles vivendo atualmente no exterior. Um deles, ANDRÉ, informou que cerca de um mês após fuga da irmã adotiva, esta telefonou a cobrar dizendo que estava na Rodoviária Novo Rio, embarcando para Salvador, Bahia, pela empresa Asa Branca. Foi solicitado cópia da conta de telefone, de forma a apurar o exato dia da ligação, e conseqüentemente diligenciar na empresa e nos vídeos de segurança do terminal rodoviário a veracidade dos fatos. Ocorre que não houve interesse dos familiares no que foi solicitado. Nova ligação foi efetuada por ANDRÉ o qual informou que CLARA mantém contatos regulares, por telefone, afirmando que se encontra na BAHIA com amigos, não precisando quando ou se pretende regressar ao lar adotivo. Face o informado, considerando não se tratar de assunto de atribuição deste SDP, solicito o encerramento das investigações, haja vista que no que se refere ao desaparecimento da menor, a Sindicância está solucionada.127

Encontros da ReDESAP servem às mães como instâncias em que compartilham e denunciam a inadequação do atendimento que receberam em repartições policiais quando do desaparecimento de seus filhos. Muitas relatam ter sido orientadas a retornar às delegacias 24 e/ou 48 horas depois da constatação do desaparecimento, sustentando que de fato se faz presente entre policiais o chamado “mito das 24/48 horas”. Segundo as mães, esse mito evidencia a desconfiança com que foram e são recebidas em delegacias, onde “sempre pensam que nossos filhos saíram de casa por motivos ruins ou por nossa culpa, e que não voltam porque não querem”, como afirma Maria. Seus enunciados, transitando entre descrições de experiências particulares e generalizações e acusações amplas, apresentam suas percepções de que a polícia não só não acredita no que elas e outros familiares dizem, envoltos que são no cenário de desconfiança a 127

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 084/08 do SDP/DH.

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que me referi anteriormente, como também escolhe não agir diante dos desaparecimentos de seus filhos. Neste sentido, as mães denunciam que a imposição da espera de 48 horas é um recurso de que policiais lançam mão para se isentar de responsabilidade ou, ao menos, adiar o quanto possível sua atuação. Se o intervalo temporal entre prestações e contraprestações condensa o caráter tão generoso quanto obrigatório da reciprocidade (Bourdieu, 1996b), a espera das 48 horas condensaria, para as mães de desaparecidos, o caráter tão indiferente quanto obrigatório da atuação de policiais diante de suas demandas. Ao denunciar a vigência do “mito das 48 horas”, portanto, as mães apontam para a inação e o desrespeito a elas (contra-)prestados pela polícia quando dirigiram-se a delegacias para prestar a comunicação do desaparecimento de seus filhos. Para as mães, é importante que o registro seja feito o mais próximo possível da data e hora firmadas como marcos temporais do desaparecimento, não apenas pela importância de se iniciar investigações o quanto antes, mas também pelo fato de que documentos são bens fundamentais, como tenho chamado atenção. Retomando mais uma vez a expressão cunhada por Vianna (2002), providenciar o documento que registra o caso de seus filhos é, para as mães, fornecer-lhes um “bem de cuidado” e deixar registrado, na forma de datas e horários, que elas são “boas mães” não só enquanto têm seus filhos próximos de si, mas também diante de seus desaparecimentos. Maria, por exemplo, costuma narrar sua experiência de atendimento em delegacia destacando que sua filha desapareceu dia 12 de novembro e em poucas horas ela, Maria, compareceu à DP para comunicar o “fato”. Entretanto, a ocorrência só foi registrada dia 18 de novembro, depois de algumas idas e vindas entre a DP e sua casa, o que gerou um RO com data seis dias posterior a data do desaparecimento. Para Maria, “ficou parecendo que eu não me importei com o desaparecimento da minha filha e isso não é verdade, senão eu não estaria lutando por ela há tantos anos.” A partir também de sua experiência na delegacia em que comunicou o desaparecimento de seu filho, ocorrido há mais de 20 anos, foi Flávia quem elaborou o que hoje é o texto da lei federal chamada pelos membros da rede de “Lei da Busca Imediata”, que instituiu que A investigação do desaparecimento de crianças ou adolescentes será realizada imediatamente após notificação aos órgãos competentes, que deverão comunicar o fato aos portos, aeroportos, Polícia Rodoviária e companhias de

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transporte interestaduais e internacionais, fornecendo-lhes todos os dados necessários à identificação do desaparecido. (BRASIL, 2005)128

O “tempo” é apresentado pelas mães como um dos grandes inimigos de todos aqueles que buscam desaparecidos. Os efeitos do “mito das 24/48 horas”, assim como da desconfiança e da falta de dedicação de policiais às investigações de desaparecimentos, seriam agravados pela passagem do tempo. Em diferentes reuniões da rede, presenciei mães interpelando policiais e indagando-lhes “o que acontece com as investigações dos casos com a passagem dos anos?”. Perguntas como essa revelam o descompasso entre temporalidades inerente a encontros entre cidadãos e funcionários de repartições burocráticas (Herzfeld, 1992), experimentado com apreensão pelas mães. Como nos adverte Das (2007), encontros burocráticos não apenas reúnem temporalidades distintas, como fazem com que o tempo da burocracia incida sobre o tempo da dor pessoal, gerando efeitos como a apreensão experimentada pelas mães de desaparecidos. Depositando esperanças no desenvolvimento de tecnologias, as mães também interrogam policiais quanto à disponibilidade, em delegacias de diferentes localidades, de sistemas de envelhecimento de fotografias que permitam divulgar fotos de seus filhos que os retratem não como eram quando desapareceram, mas como seriam em qualquer momento presente. Além disso, mães os indagam também quanto à possibilidade de contarem com bancos de DNA que permitam cruzar dados genéticos entre elas e pessoas encontradas pela polícia, vivas ou não, que possam ser seus filhos desaparecidos.129

128

Como já mencionado, trata-se da Lei 11.259/2005, que foi incorporada ao Artigo 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990). 129 Em Curitiba/Paraná, há uma delegacia especializada em desaparecimento de crianças e adolescentes, o Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), onde um software que permite a simulação do envelhecimento é utilizado para alterar fotografias de desaparecidos e facilitar buscas tempos depois dos desaparecimentos. Já a cidade de São Paulo conta com o projeto Caminho de Volta, em funcionamento na 2ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). O Caminho de Volta foi desenvolvido e é mantido pela Faculdade de Medicina da USP, mais especificamente por seu Centro de Ciências Forenses (CenCiFor) do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho. O projeto “foi desenhado de forma a atender quatro eixos principais no enfrentamento do desaparecimento infanto-juvenil brasileiro: (a) Banco de DNA dos pais e/ou irmãos de crianças e adolescentes desaparecidos (Banco Referência) que permitirá a rápida e ágil avaliação de vínculo genético daqueles que forem localizados (Banco Questionável). (...); (b) Identificação das causas do desaparecimento de crianças e adolescentes por meio da análise da organização familiar a que pertencem, uma vez que a negligência, a violência doméstica, o abuso sexual intrafamiliar, a adição (consumo de drogas ou substâncias psicoativas), a miserabilidade, atos infracionais e contravenção podem ser aspectos facilitadores para a ocorrência de fugas de lares, extorsão mediante seqüestro e subtração de incapazes. (...); (c) Suporte psicossocial às famílias de crianças e adolescentes desaparecidos com intuito de diagnosticar sua dinâmica familiar, acompanhar a família no decorrer do processo de busca, e participar da solução final do caso. (...); (d) Capacitação de profissionais envolvidos no sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente.” (Gattás & Figaro-Garcia, 2007, p.19-20) Tanto o Sicride, quanto o Caminho de Volta são membros da ReDESAP e invariavelmente relatos de policias, médicos e psicólogos que neles trabalham suscitam perguntas por parte de outros membros que desejam dispor de suas tecnologias. Até o momento, nenhum outro membro da rede tem nem o software para envelhecimento de imagens, nem bancos de DNA.

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Outra questão de “tempo” a que as mães se referem com freqüência são os curtos períodos que delegados e outros policiais passam lotados na mesma repartição, o que faz com que os casos de seus filhos “passem de mão em mão”. A mudança freqüente no quadro de pessoal das delegacias, da perspectiva delas, dificulta ainda mais que policiais engajem-se nas investigações. Conforme relata Flávia, teve um delegado que assumiu o caso do meu filho, não passou um mês e ele estava saindo da delegacia. Foi muito pouco tempo. Eu consegui me eleger vereadora e deputada no meu estado e consegui que se mantivesse uma delegada por quatro anos na delegacia. Assim que acabou meu mandato, tiraram ela.

Enfim, confirmando o que salientam policiais do SDP, as mães sentem que há desconfiança por parte da polícia diante de suas narrativas. Se, conforme me disseram no Setor, “famílias mentem”, na percepção das mães é exatamente essa premissa que orienta policiais no atendimento rotineiro a todos aqueles que se dirigem a delegacias com o intuito de reportar desaparecimentos. Tal desconfiança levaria policiais a sequer iniciar as investigações, “muito menos levar a sério que existe tráfico de órgãos e tráfico de pessoas no Brasil”, fenômenos que, na formulação de Sônia, mãe de desaparecido e fundadora de uma ONG que não integra a rede, seriam as causas de muitos desaparecimentos. Para as mães de desaparecidos e fundadoras de instituições, o desaparecimento não deriva da falta de uma “família que protege” os seus, como afirmam gestores, e sim é a causa da desestrutura de grupos familiares. As causas do fenômeno residiriam em outros fenômenos, igualmente complexos e de imprescindível combate, como o tráfico de seres humanos, o tráfico de órgãos e, ainda, a falta de serviços públicos de assistência social que forneçam apoio e proteção a “famílias” e as permitam manter-se “unidas”. Para as mães, em suma, o desaparecimento é um “problema” de que são vítimas, que lhes causa sofrimento continuado e que evidencia a ausência do “Estado” nas vidas daqueles que necessitam de assistência tanto para cuidar, quanto para localizar seus filhos. Não obstante, o sofrimento que o fenômeno causa é ainda agravado pela maneira como policiais agem diante delas e de seus relatos. De seu ponto de vista, para caracterizar a atuação da “polícia” diante do fenômeno do desaparecimento, melhor seria falar em omissão, inação e indiferença. Sintetizando essa indiferença e explicitando práticas por meio das quais policiais realizam o que venho chamando de delegações, Sônia fez a seguinte afirmação em um dos encontros da rede de que participou: “quando a gente vai dar queixa que uma criança desapareceu, a gente quer resposta. Mas aí eles ligam pra minha casa para saber se ela 221

apareceu!” Nota-se, nessa formulação, o trânsito entre as mães, coletividade que Sônia evoca e representa (“a gente vai dar queixa”), e sua experiência singular de interação com outra coletividade: a polícia (“eles ligam pra minha casa pra saber se ela apareceu”). Vejamos então a posição de policiais em encontros da ReDESAP.

4.3.3 Não temos a estrutura necessária Representando delegacias e setores da Polícia Civil de diferentes unidades da federação, delegados e inspetores de polícia constituem a maioria dos participantes dos encontros e reuniões da rede. O fato de muitos policiais comparecerem aos encontros vestidos com camisetas indicativas da Polícia Civil de seus estados torna isso facilmente perceptível. Contudo, em encontros de maior proporção promovidos pela rede, como o II e o III Encontros Nacionais, poucos policiais proferem falas programadas e integram mesas oficiais. Sua participação se dá, como pude constatar acompanhando Fernando, principalmente como debatedores de pronunciamentos feitos por outrem e em contatos mais próximos entre si, firmados nos intervalos e entreatos dos encontros, em que dialogam e trocam experiências. Enquanto gestores fazem diagnósticos eloqüentes e emitem enunciados categóricos sobre o desaparecimento, e enquanto mães de desaparecidos narram suas comoventes experiências de sofrimento face aos casos de seus filhos, policiais ocupam uma peculiar posição de recuo e defesa nos encontros. As falas de policiais são, em geral, mais curtas e diretas que os relatos pessoais das mães e que as afirmações categóricas dos gestores. O mote central de seus pronunciamentos e participações em debates é o reconhecimento de que é preciso modificar a maneira como agentes e repartições policiais lidam com o desaparecimento, sobretudo em função dos relatos de atendimentos frustrantes e desrespeitosos feitos pelas mães ao se referirem a delegacias. Afirmam repetidas vezes que a troca de experiências entre policiais de estados diferentes é fundamental para que medidas bem sucedidas possam ser adotadas em outras localidades. Em convergência com alguns relatos de inspetores do SDP, nos encontros da rede policiais colocam-se na posição de espectadores sensibilizados diante do sofrimento experimentado por mães e familiares de desaparecidos, mas impotentes. Como afirma a delegada que integra o comitê gestor, “não podemos, nem queremos tirar o corpo fora, mas temos que admitir que não estamos no nível em que deveríamos”.

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Muitas vezes restringindo-se a responder às mães e, em algumas ocasiões, pedindolhes expressamente desculpas pelos episódios por elas vividos em delegacias, de forma sintética os policiais a um só tempo responsabilizam-se e eximem-se de responsabilidades pela forma como lidam com casos de desaparecimento. Também recorrendo ao “estilo emotivo” (Boltanski, 1993), colocam-se como objeto de suas próprias enunciações. Afirmando que em geral não sabem como lidar com o fenômeno, desconhecem suas causas e não são treinados para enfrentar as suscetibilidades das “famílias” de desaparecidos, sustentam que o obstáculo central a ser superado é a ausência do tema nos cursos de formação oferecidos pelas Academias de Polícia e a inexistência de modelos de investigação de casos de desaparecimento. Nas palavras proferidas no II Encontro Nacional por outro delegado integrante do comitê gestor, “a gente vem aqui de público fazer um mea culpa diante das mães, mas de fato a maior parte dos policiais não sabe como lidar com o desaparecimento.” De modo análogo aos gestores, que apontam o fenômeno da “violência familiar” como causa geral de desaparecimentos que recai sobre “famílias” particulares, policiais falam de uma ampla falta de conhecimento e meios de investigação como característica geral da “polícia” que recai especificamente sobre cada um deles e cada repartição policial, engendrando o tratamento inadequado dos casos. Problemas nos atendimentos a familiares de desaparecidos ou nas investigações de desaparecimentos, para eles, dizem respeito não a seus desempenhos individuais como policiais, e sim a processos relativamente autônomos, sobre os quais não têm controle, e dos quais são vítimas. Do ponto de vista de delegados, inspetores e investigadores de polícia que participam dos encontros da ReDESAP, o desaparecimento é questão invisível e mal investigada por policiais em função de três ausências específicas: o tema não consta dos cursos de formação e capacitação de policiais, não é objeto de instrumentos legais adequados, e muitas delegacias não possuem os meios necessários para investigar casos com celeridade. A falta de viaturas, computadores, sistemas de informação, tecnologia e outros bens imprescindíveis ao seu trabalho, portanto, seria uma das raízes da maneira falha com que a polícia tem lidado com o desaparecimento. Nos termos de uma delegada, “não temos a estrutura necessária e estamos órfãos dentro da polícia.” 130 Enquanto as mães que fundam instituições, como diz Cecília, sentem-se mães de todas as mães que por elas procuram, policiais sentem-se órfãos diante de casos de desaparecimento. Se não prestam serviços adequados a “famílias”, portanto, isso se 130

Para uma reflexão sobre o amplo uso de metáforas de família e parentesco no que o autor denomina “retórica do Estado”, e ainda sobre o aparente paradoxo entre o emprego de tais metáforas e a convencional rejeição ao chamado “familismo”, ver Herzfeld (1992).

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deve à sua própria experiência de orfandade “dentro da polícia”: uma espécie de falta de pais metafóricos e quase demiúrgicos, que lhes devem certo tipo de provisão fundamental para que executem seu trabalho. Em suma, essa orfandade indica a ausência do que deveria necessariamente ser fornecido por outrem a eles e às repartições em que estão lotados: a soma do que chamam de “estrutura”, de “legislação adequada” e de “conhecimento”. Ecoando falas de policiais de outros estados que participam de encontros da rede, no II Encontro Nacional o inspetor Fernando denunciou a falta de “estrutura” e de “conhecimento” que incide sobre policiais e delegacias evocando o SDP e seus papéis. De pé, em um dos momentos abertos a perguntas do público, Fernando disse Acho importante também trabalhar o profissional que trabalha com pessoas desaparecidas. Eu levo problema pra casa, pro meu bolso, pros meus amigos. O profissional precisa ser capacitado, remunerado, olhado. Eu pensei até em fazer uma performance aqui: trazer a pilha de Sindicâncias que está na minha mesa e compartilhar com vocês o que é ter que investigar aqueles casos com uma equipe mínima e sem nenhuma estrutura, sem viatura, sem nem computadores pra todo mundo.

No tocante à falta de uma “legislação adequada”, a formulação de uma delegada bastante conhecida de membros da rede e sempre presente e atuante nos encontros sintetiza bem a posição dos policiais. Segundo a delegada, em face da “realidade” de seu estado a Lei da Busca Imediata é de impossível aplicação, e em face da necessidade de controlar a mobilidade de crianças e adolescentes, “o direito de ir e vir” é um obstáculo. Assim como outros policiais, a delegada sustenta que não só há pouca legislação sobre desaparecimento, como também os instrumentos legais disponíveis são inadequados. Depois de ler o texto da Lei da Busca Imediata em voz alta, disse a delegada em um dos encontros da rede: Se uma criança desaparece de madrugada, eu vou à rodoviária e procuro por quem exatamente? Como vou comunicar todos os portos se existem muitos portos clandestinos no meu estado? E como vou impedir o tráfego de adolescentes pra todo lado se a legislação concede o direito de ir e vir?

À falta de “estrutura”, “conhecimento” e “legislação adequada” deve ainda ser acrescentado, segundo os policiais, o fato de que “famílias” de pessoas que retornam às suas casas freqüentemente não notificam a volta do desaparecido. Por essa razão, muitas investigações restariam abertas, embora os casos já estejam solucionados. Este seria um indício de que, nos termos de um delegado, “as famílias fornecem informações precárias e dificultam o trabalho policial” – palavras que ecoam dizeres de inspetores do SDP. Portanto, 224

ainda que peçam desculpas às mães por atendimentos pouco respeitosos e/ou ineficazes, policiais também afirmam que parte das dificuldades de se lidar com o desaparecimento decorre da maneira como as “famílias” se aproximam da “polícia”. Se, conforme enunciam as mães, a “polícia” interage com as “famílias” de forma omissa, desrespeitosa e indiferente, para os policias tal interação se faz em mão dupla. Somando-se suas perspectivas, portanto, nota-se que o encontro entre “polícia” e “famílias” engendra o crescente distanciamento entre pessoas inscritas nesses dois grupos, instituídos como unidades facilmente diferenciáveis e tipificáveis, e perpetua estereótipos e “convenções de desdém” (Herzfeld, 1992) construídas por ambos a respeito uns dos outros e de suas condutas.131 Assim como outros participantes de eventos da ReDESAP, policiais raras vezes narram casos singulares de desaparecimento. LÍCIO E RUI Dagmar, empregada doméstica e moradora de Ricardo Albuquerque, compareceu à delegacia do bairro para comunicar o desaparecimento de seu filho Lício, de 25 anos, em novembro de 2004. Dagmar foi breve na descrição das circunstâncias do desaparecimento de Lício, tendo dito apenas que ele e seu amigo Rui “saíram de casa por volta das 1:30hs e não mais retornaram nem foram vistos, não sabendo a comunicante informar o destino tomado pelos desaparecidos.” Rui morava em Saquarema e era comum que passasse alguns dias na casa de Dagmar e Lício quando vinha ao Rio de Janeiro. O desaparecimento dos dois aconteceu em uma dessas estadias. Além de curta descrição e de dados sobre Dagmar, Lício e Rui, no RO então produzido foi também registrado que “o desaparecido I [Lício] já foi detento da Polinter”. Em março do ano seguinte, inspetores da delegacia em que o RO foi feito emitiram dois Mandados de Intimação: um destinado a Dagmar, e outro à “Residência de Familiares de Rui Nunes”, na cidade de Saquarema. Ademais, os mesmos inspetores, através de consultas em bases de dados da polícia e da justiça, confirmaram que o filho de Dagmar esteve preso. Em 2001, Lício envolveu-se no roubo de um toca-fitas e ficou detido durante seis meses, pelo crime de Receptação. Atendendo ao Mandado a ela remetido, Dagmar retornou à delegacia em abril de 2005. Ao contrário do que fizera na primeira ida àquela repartição, a mãe de Lício estendeu-se em longa descrição das circunstâncias do desaparecimento de seu filho e de Rui, e apresentou sua hipótese de

131

A circulação de estereótipos entre atores e sua mútua concepção como unidades estanques e facilmente tipificáveis é mais um traço característico de encontros burocráticos, conforme apontado por Herzfeld (1992), que se faz presente nas falas sobre o atendimento de mães e “famílias” por policiais. Nas palavras do autor, “the art of bureaucrat game-playing, whether from client to bureaucrat or the other way about, lies in essentializing one‟s own actions as logical on the strongly implied grounds that they rest on eternally valid rights or selfevidence. The other side‟s actions, by contrast, are capricious and irrational, based on personal or cultural flaws, and wrongheaded.” (Herzfeld, 1992, p.86)

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explicação e desfecho para o fato. No começo de suas declarações, disse ainda que Lício estava trabalhando no CEASA de Irajá, em companhia do padrasto de nome RIVALDO, no setor de caixotaria; que a declarante disse que seu filho nunca lhe comentou nada a respeito se estava sofrendo algum tipo de ameaça de morte; que a declarante disse que não tem conhecimento de que seu filho tivesse algum inimigo

Falando no passado não só sobre os momentos que antecederam o desaparecimento dos dois amigos, mas também sobre Rui e Lício, Dagmar relatou que os dois “eram muito amigos”, e que “seu filho era reservado, não lhe comentava nada de sua vida particular”. Descreveu Lício fisicamente e informou que ele tinha uma cicatriz e um implante de platina no antebraço direito, conseqüências de acidente de moto. Sobre a noite do desaparecimento, disse que seu filho e o amigo chegaram de Saquarema, que seu filho lhe cumprimentou e lhe abraçou; que a declarante disse que foi dormir, e que por volta das 2 horas da manhã, ao se levantar, já não mais encontrou seu filho e o amigo em casa; que desde então não soube mais nada do paradeiro de ambos.

Antes de encerrar suas declarações, Dagmar expôs com pormenores o que acreditava ter ocorrido a seu filho e a Rui depois daquela noite. Para ela, seu filho seria “um dos corpos encontrados carbonizados no dia 17/11/2004, no bairro de Guadalupe” – mesma data registrada no RO de desaparecimento de Lício e Rui como “data do fato”. Embora não tenho feito referência a nenhum desses acontecimentos quando solicitou o registro, dia 21/11/2004, Dagmar relatou que, quando soube dos três corpos carbonizados, esteve no IML e um funcionário que lhe atendeu disse que havia encontrado uma pulseira em um dos corpos que estava escrito o nome LÍCIO; que a declarante disse que seu filho usava uma pulseira com o nome dele gravado LÍCIO; que também a declarante disse, que comentou com o mesmo funcionário sobre o implante da platina no braço direito de seu filho, que o mesmo responde que o corpo já havia sido enterrado e não dava mais pra saber de tal deta lhe.

Além de narrar esse possível desfecho do caso de seu filho e Rui, Dagmar também relatou ao inspetor que a atendeu que, na noite do desaparecimento, os dois saíram de casa no carro de Lício, que também se encontrava desaparecido. Tanto quanto a hipótese de carbonização dos corpos, essa informação não esteve presente nas primeiras declarações de Dagmar, prestadas quatro dias após o desaparecimento e seis meses antes de sua segunda ida à delegacia. O caso de Lício e Rui foi encaminhado ao SDP logo após a segunda ida de Dagmar à DP. Depois de consultar sem sucesso o IML, O IFP, a Santa Casa de Misericórdia, a Polinter e o Desipe, demandando informações sobre Lício e Rui que pudessem auxiliar na busca pelo paradeiro dos dois, o inspetor do Setor que cuidou do caso solicitou seu arquivamento como Sindicância Suspensa. 132

132

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 195/05 do SDP/DH.

226

4.4 De quantas ausências é feito um problema A análise de Boltanski (1993) sobre conexões entre piedade, compaixão e engajamento revela que formas de compadecimento diante de episódios de sofrimento desempenham papel central no estabelecimento de laços sociais e políticos. Precipitando-se em “causas” pelas quais é moralmente imperativo mobilizar-se, a exibição de experiências de sofrimento engendra a modulação de enunciados, a delimitação de grupos e a identificação, em processos variados, de “vítimas”, “espectadores” e “agentes” implicados em episódios de sofrimento. (Boltanski, 1993, p.95) Casos de desaparecimento de pessoas comparecem em pronunciamentos de mães de desaparecidos como episódios causadores de sofrimento que exigem empatia, mobilização e comprometimento por parte de múltiplos agentes. O mesmo se dá em falas de gestores e policiais, a despeito da raridade com que tomam casos singulares como objeto de seus enunciados. Conforme indicam as posições desses três grupos de agentes percebidas em encontros

da

ReDESAP,

casos

particulares,

subsumidos

pelo

“problema”

do

desaparecimento, permitem identificar “vítimas” e “agentes” de sofrimento, bem como “agentes” capazes de combatê-los. Contudo, policiais, gestores e mães de desaparecidos identificam de modo bastante distinto quem são essas “vítimas” e “agentes” do sofrimento específico causado pelo desaparecimento. Distribuindo responsabilidades, gestores diagnosticam o desaparecimento como “problema” causado pela “violência intrafamiliar” e passível de combate por “famílias” que, apoiadas em redes de assistência social, protejam seus membros e evitem suas fugas de casa. Para eles, a ausência de uma “família” que proteja seus membros tem como conseqüência o desaparecimento de alguns deles. Já para mães de desaparecidos, o desaparecimento deve ser encarado como conseqüência da ausência de um “Estado” que disponibilize redes de assistência social de qualidade e serviços policiais sensíveis e competentes para prevenir e solucionar casos como os de seus filhos. Para policiais, finalmente, o fenômeno é objeto de desconhecimento e, se recebe tratamento inadequado, isso se deve à ausência de saberes e meios materiais necessários à boa investigação dos casos no interior de repartições policiais. No entrelaçamento de tantas ausências, tecido pelo embate e pelas responsabilizações cruzadas entre esses agentes, o “problema” do desaparecimento é construído como um vazio plural, no qual está inscrita também, mas não apenas, a ausência do desaparecido.

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Vale destacar que os grupos que se engajam nessas denúncias de múltiplas ausências desempenham papéis distintos na construção do desaparecimento como “problema social”. Policiais, embora sejam maioria tanto na composição, quanto nos encontros da rede, colocamse em posição defensiva e recuada, justificando o atendimento inadequado que fornecem às “famílias” e pedindo desculpas às mães de desaparecidos. Gestores, por sua vez, colocam-se em posição relativamente mais distante tanto das mães, quanto dos policiais, dedicando-se a construir diagnósticos do “problema” sem, contudo, examinar casos singulares. Sua perspectiva diagnóstica inscreve-se no plano das estatísticas e na responsabilização de certo processo de esgarçamento de relações que transcende “famílias” específicas, embora recaia principalmente sobre um tipo de arranjo: a família monoparental chefiada por mulheres. Já as mães, ao construírem seu lugar de enunciação a partir dos episódios de sofrimento que experimentaram, articulam casos singulares de desaparecimento e mau atendimento em delegacias ao patamar da generalidade política em que se situam os enunciados dos gestores. São elas que produzem a “associação entre descrição e comoção” (Boltanski, 1993, p.17) essencial para a construção de causas nas quais agentes sociais engajam-se a despeito da distância que guardam em relação a sofrimentos individuais. Nesse sentido, a forma como expressam emoções causadas pelo desaparecimento de seus filhos e pelos encontros burocráticos que o sucederam cumpre papel decisivo na produção de sua credibilidade diante de membros e não-membros da ReDESAP. Conforme mostra Bailey (1983), formas de expressar emoções em arenas políticas podem revestir sujeitos de credibilidade ou, pelo avesso, de descrédito. Em eventos da rede, o “estilo emotivo” (Boltanski, 1993) das mães lhes confere não só credibilidade, mas também distinção. Conscientes disso, algumas mães alteram seus tons de voz e modos de se apresentar quando compõem as mesas dos eventos, reservando para esses momentos suas falas mais comovidas e emocionantes. Como diz o poema escrito em homenagem a uma delas, essas “frágeis mulheres de aço” fazem pronunciamentos emocionados, trêmulos e muitas vezes chorosos, mas também expressam vozes firmes e decididas em outros momentos dos encontros da rede e, em especial, nas reuniões do comitê gestor. Esse certamente não é um dado sobre a sinceridade de seus pronunciamentos e sentimentos, e sim uma evidência da importância de seu papel na gestação do “problema” do desaparecimento. As emoções formuladas e provocadas pelas mães de desaparecidos desempenham papel decisivo na construção não só de sua credibilidade, mas principalmente da credibilidade do próprio desaparecimento de pessoas como grave “problema”, que deve ser reconhecido e 228

enfrentado como tal. Se gestores colocam mães no lugar de chefia de certo tipo de família que com freqüência produz desaparecimentos, as mães de desaparecidos não só negam esse lugar, como também ocupam posição central na construção do desaparecimento como causa. Da forma como se colocam nos encontros da rede, são elas que dão corpo à conversão dos desaparecimentos de seus filhos em manifestações particulares do “problema social” que denunciam. Alguns dizeres de Maria sintetizam bem essa conversão: “Não se trata da minha filha, da filha da Cecília ou do filho da Flávia, lá no Sul. É um problema de todos nós e da falta de vontade de quem pode nos ajudar.” Nesse processo de dar corpo ao “problema”, vinculando suas experiências ao plano da generalidade política, as mães não só relatam os casos de seus filhos, como também colocam seus próprios corpos em seus pronunciamentos. Falando e mostrando a dor que sentem, dão testemunho do mal causado não apenas a elas, mas ao tecido social como um todo. (Das, 2007, pp.59-60). Sônia, mãe de uma menina que desapareceu no Rio de Janeiro, relatou em um dos encontros da rede que todos os anos, na data de aniversário de sua filha, sente dores no útero. Já Cecília sofre de uma cardiopatia grave desde o desaparecimento de sua filha, o que já a fez ter que deixar reuniões e encontros para se consultar com o cardiologista, desculpando-se por isso em público.133 Em síntese, o vazio que constrói o desaparecimento de pessoas como “problema” não traduz apenas a falta do desaparecido em meio aos que por ele buscam. Sem dúvida, essa ausência impacta, de formas variadas, todos os “Envolvidos” em casos particulares, e em seus relatos as mães de desaparecidos detalham tal impacto. Entretanto, reuniões e encontros da ReDESAP sugerem que outras ausências fazem da falta da pessoa desaparecida a manifestação particular do “problema” do desaparecimento. A relação entre cada caso e o “problema” do desaparecimento, nesse sentido, não consiste simplesmente na dupla parte versus todo. Em vez disso, cada caso se torna parte do “problema social” mais amplo por ser encarado como conseqüência de um conjunto maior de faltas: a ausência de um “Estado” assistente, a ausência de uma “polícia” sensível e competente e, ainda, a ausência de uma “família” protetora. Como busquei mostrar nos capítulos anteriores, alguns juízos, registros e procedimentos de seleção efetuados por policiais inscrevem casos de desaparecimento em uma seara restrita, por eles delimitada como espaço social no qual não deveriam intervir: os “problemas de família”. O presente capítulo descortina que, em contraste com esse processo, a construção do desaparecimento como “problema social” depende da multiplicação das 133

Para uma reflexão sobre formas de localizar dores, no marco mais amplo da divisão genderizada do trabalho do luto, ver Das (2007).

229

searas em que todo caso se inscreve, efeito das denúncias de que se trata de “problema” decorrente da ausência tanto do “Estado”, quanto da “polícia” e da “família”. Desempenhando papéis distintos e buscando estabelecer limites rígidos de competências, gestores, mães de pessoas desaparecidas que se tornaram, também, fundadoras de ONGs, e inspetores, investigadores e delegados de polícia referem-se de forma recorrente àquelas unidades (“a polícia”, “a família” e “o Estado”), substancializando-as. Mais do que um fenômeno em função do qual indivíduos desaparecem sem deixar vestígios, fazendo sofrer suas “famílias” e demandando atenção da “polícia” e assistência do “Estado”, o desaparecimento de pessoas é construído como manifestação da ausência de atuação adequada por parte dessas três unidades. Consiste, enfim, em um “problema” que são muitos. Em resumo, a ausência do desaparecido entre pessoas que por ele procuram e em pontos do espaço em que se esperava que ele estivesse é parte de um todo constituído também, como indicam encontros da ReDESAP, por outras ausências. Aquela é objeto de comunicação em repartições policiais, ao passo que estas são objeto de pronunciamentos e debates acalorados em eventos públicos. Tomar aquela parte pelo todo é simplificar o que está em jogo na construção do desaparecimento como “problema social”, e desconsiderar denúncias de ausências irredutíveis à falta do desaparecido. Um breve registro do caso de Olívia, a maranhense que partiu de Imperatriz deixando três cartas, sintetiza bem essa idéia de simplificação. Em suas “declarações” no SDP, a mãe de Olívia fez relatos sobre a visita que os amigos cariocas de sua filha fizeram à casa da família, no Maranhão. Segundo tais relatos, os amigos de Olívia a estimularam a “abandonar tudo (escola, família) para servir a Deus”. A afirmação de que “tudo” significa escola e família, produzida pelos parênteses utilizados pelo policial que registrou o caso, é uma evidente simplificação. É difícil imaginar, afinal, que a vida de Olívia se resumisse à escola que ela freqüentava e às relações familiares que mantinha. O que os encontros da ReDESAP indicam é que semelhante lógica de simplificação faz-se presente em afirmações e suposições de que o desaparecimento resume-se à ausência do desaparecido entre pessoas e em lugares onde se esperava que ele estivesse. Assim como a escola e a família são talvez as faces mais visíveis e facilmente delimitáveis dos lugares freqüentados e das relações mantidas por Olívia, certamente mais vastas, a ausência do desaparecido talvez seja apenas a falta mais visível, delimitável e eloqüente que, somada a outras, tece o desaparecimento de pessoas como “problema social”.

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Cecília costuma enfatizar uma falta mais pontual, mas para ela não menos grave, que evidencia a ausência do “Estado” denunciada pelas mães. Conforme me escreveu na última vez que nos comunicamos por e-mail, e conforme reiteradamente fala em público, Cecília sente “muita vergonha de viver num país que tem um cadastro unificado de Veículos Roubados e não tem de Pessoas Desaparecidas”. 134 Para Cecília e outros membros da rede, entre policiais, gestores, mães de desaparecidos, servidores públicos e funcionários de diferentes instituições, uma iniciativa prioritária para o enfrentamento do desaparecimento de pessoas é a criação e o uso sistemático do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas por todos os agentes que recebam comunicações de desaparecimentos, mas primordialmente por policiais. A possibilidade de que veículos roubados sejam inscritos em sistemas de registro que facilitam sua localização em todo território nacional, como ocorre no caso de Clóvis, comparada à inexistência de bancos de dados semelhantes para pessoas desaparecidas, é uma “vergonha”, na formulação de Cecília, e um argumento recorrente utilizado por membros da ReDESAP em defesa do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.

CLÓVIS Clóvis nasceu em 1972 na Tijuca, onde ainda mora sua mãe, Manuelita. Já adulto, foi viver no Andaraí com sua companheira Jaqueline e o filho do casal, que atualmente tem 16 anos. “Clóvis mede 1,87 metro, é branco, tem olhos verdes, é magro e tem cabelo liso bem aparado e grisalho.” Na noite de 3 de junho de 2004, Clóvis disse a Jaqueline que dormiria na casa de sua mãe, onde chegou na hora do jantar. Lá, recebeu telefonema de um amigo de nome André, com quem marcou um encontro em Vila Isabel. Foi então à casa de Robson, seu “vizinho e primo de consideração”, morador da casa ao lado da de Manuelita, e tomou-lhe emprestada a motocicleta, dizendo que “iria buscar a namorada em Vila Isabel”. Depois disso, Clóvis não foi mais visto nem por Robson, nem por Jaqueline, nem por Manuelita. Segundo Manuelita, tampouco André, o amigo com quem Clóvis teria saído, retornou para casa, e a moto de Robson não foi devolvida, nem encontrada por ninguém. Diante disso,

134

Correspondência pessoal, de 11 de fevereiro de 2011. Vale esclarecer que ainda tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 207/2011, que cria o “Cadastro Nacional de Veículos Roubados” no Brasil. O PL 207/2011 é idêntico ao PL 3292/2008, que chegou a ser aprovado pelas Comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, de Viação e Transportes, e de Finanças e Tributação, mas foi arquivado ao final da última legislatura. O Cadastro vai reunir informações sobre veículos cujo furto ou roubo tenha sido registrado em órgãos estaduais de Segurança Pública e em seus respectivos Sistemas de Roubos e Furtos de Veículos. A Polícia Rodoviária Federal dispõe, não obstante, do “Sistema Alerta”, que visa à divulgação de furtos e roubos de veículos nas primeiras 72hs passadas desde a ocorrência. Qualquer cidadão pode registrar um furto ou roubo no “Sistema Alerta”, pela internet ou pelo telefone.

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Manuelita foi à DP da Tijuca, em companhia de sua nora Jaqueline. Foi então confeccionado RO de desaparecimento em nome de Clóvis, e a motocicleta de Robson foi incluída no Sistema de Roubos e Furtos de Veículos do estado do Rio de Janeiro. Dois dias depois, Robson, proprietário da moto, foi à mesma DP e relatou que O irmão de Clóvis, Anderson, investigando aonde estaria o irmão, descobriu a moto no Morro dos Macacos, em Vila Isabel. Não foi capaz de descobrir o paradeiro de Clóvis. Acreditam que ele foi morto por bandidos dos Macacos. A moto encontra-se em perfeito estado. E nada mais disse.

Em seguida, o registro da motocicleta foi retirado do Sistema de Roubos e Furtos, e o caso de Clóvis, encaminhado para o SDP. Na justificativa dada para o encaminhamento, a suspeita de que Clóvis teria sido morto no Morro dos Macacos foi ratificada pelo inspetor até então responsável pelo caso e rubricada pela delegada titular da DP: Até o presente momento, apesar dos esforços desse GI [Grupo de Investigação], não foi possível localizar o nacional ou seu eventual cadáver. Informo que pelas investigações acredito que o mesmo tenha falecido, mas não foi possível a comprovação desse fato até o presente momento. Face o exposto e em cumprimento à Resolução 513/91, sugiro a imediata remessa do feito para o SDP da DH, uma especializada, a qual certamente terá maiores condições e facilidades para elucidar o fato.

O caso chegou ao SDP em julho de 2004. Em abril do ano seguinte, ofícios solicitando “que seja informado a este SDP, com a maior brevidade possível, o que consta registrado nos arquivos desse órgão-instituição” foram enviados a sete destinos: o IML, o IFP, o DESIPE, a POLINTER, a Santa Casa de Misericórdia e os hospitais Salgado Filho e Souza Aguiar. Todas as instituições responderam aos ofícios com “nada constas”. Em dezembro de 2005, finalmente, o caso foi arquivado como Sindicância Suspensa.135

Depois de algumas reuniões entre o comitê gestor da ReDESAP e a equipe da SENASP responsável pela formulação do software, entre elas a que deu início à minha participação mais ativa na rede, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas foi lançado oficialmente dia 26 de fevereiro de 2010, na Sala de Retratos no Ministério da Justiça. 136 No lançamento pronunciaram-se o Secretário Nacional de Segurança Pública, um assessor do Ministro da Justiça, o coordenador da Rede Infoseg, a Subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da SEDH/PR e a deputada federal que redigiu o Projeto de Lei 135

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 303/04 do SDP/DH. A Lei 12.127 de 17 de dezembro de 2009, que cria o Cadastro juridicamente, foi sancionada em dezembro de 2009 pelo Presidente da República. O período em que tramitou no Congresso Nacional em forma de Projeto de Lei foi utilizado pela equipe da SENASP para desenvolver o programa necessário e realizar reuniões com gestores da SEDH e o comitê gestor da ReDESAP. Desse modo, pouco mais de dois meses separaram a data em que a Lei foi sancionada e a solenidade de lançamento do Cadastro por ela criado. 136

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que confere respaldo legal ao Cadastro, que em uníssono sublinharam sua importância para o enfrentamento do desaparecimento. No impresso distribuído a todos os presentes, lê-se que A ferramenta foi desenvolvida para acumular dados de desaparecimentos de crianças, adolescentes, idosos e pessoas em geral no Brasil. Com isso, espera-se a formação de uma rede nacional de investigação e acompanhamento desse fato, envolvendo órgãos de Segurança Pública, conselhos tutelares, entidades civis organizadas e unidades de assistência social e de direitos humanos. (...) O Cadastro Nacional tem entre seus objetivos definir uma política pública especial para o tratamento do tema, não considerando o fato como crime. A iniciativa passará a envolver, além das polícias, a rede de mobilização social. (SEDH, s/d)

A seguir (capítulo 5), detenho-me sobre o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas e, a partir das controvérsias geradas em torno dele, discuto questões de responsabilidade implicadas em sua formulação. Reflito, ainda, sobre aspectos da minha participação em reuniões da rede, sobretudo as dedicadas ao Cadastro. Além disso, discuto os limites de tipologias e classificações de casos de desaparecimento, remetendo ao quadro de casos apresentado anteriormente (capítulo 2), e retomo a discussão sobre a importância dos documentos no Brasil, presente em diferentes momentos dos capítulos anteriores.

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Capítulo 5 Isso é coisa do destino: Algumas formas escorregadias de classificação

DOMINGOS Dia 9 de março de 2009, a enfermeira Clara, de 56 anos, dirigiu-se à delegacia mais próxima de sua casa, no bairro da Abolição, para comunicar o desaparecimento de Domingos, seu único sobrinho. Segundo a enfermeira, na tarde de 15 de fevereiro, Domingos saiu da casa em que vivia, no bairro Engenho da Rainha, “sem destino certo”. Ele estava passando por “problemas emocionais”, e foi visto pela última vez no município de Belford Roxo, na casa de um primo a quem costumava visitar. Domingos tinha, na ocasião, 36 anos. Era solteiro e estava desempregado. Antes de ir à DP, Clara fez contato com amigos dele “e procurou por Domingos em diversos hospitais, abrigos e necrotérios, mas não teve êxito em encontrá-lo.” Ao solicitar o registro do desaparecimento, entregou à polícia um retrato do sobrinho. A fotografia foi anexada ao RO, assim como o foram outros documentos posteriormente produzidos acerca do desaparecimento. Esse conjunto de papéis compôs uma VPI que permaneceu por cerca de um mês na DP e, em seguida, foi encaminhada ao SDP, onde passou a integrar Sindicância. Dia 11 de junho de 2009, passados três meses da comunicação do desaparecimento, Clara compareceu ao SDP. Informou a um dos cinco inspetores que trabalham no Setor que o paradeiro de seu sobrinho já era conhecido, e disse estar ali “para oficializar o fato”. Em 27 de março, Clara recebeu telefonema de uma conhecida informando que Domingos estava internado em um abrigo e vinha sendo atendido em um centro psiquiátrico. Em suas declarações, esclareceu que ele “desapareceu porque se encontrava deprimido, por ter sido demitido, após trabalhar mais de 10 anos em uma universidade particular”. Prestadas essas informações, Clara solicitou ao inspetor que lhe devolvesse a fotografia de Domingos anexada aos registros, “por ser pertencente a um álbum de família.” Dias depois, sem a fotografia, o caso foi arquivado no SDP.137

O vaivém do retrato de Domingos entre seu pequeno arquivo original, o “álbum de família”, e as gavetas de arquivo de uma repartição policial, coloca em questão a distinção, tantas vezes evocada no SDP, entre o que seriam “problemas de família” e “problemas de polícia”. Elementos de seu desaparecimento, a fotografia, a demissão e a depressão de 137

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 018/08 do SDP/DH.

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Domingos são parte tanto das memórias e do “álbum de família” de sua tia Clara, quanto das “declarações” por ela prestadas na DP a que recorreu quando o sobrinho saiu “sem destino certo”. O caso de Domingos, nesse sentido, não só pode ser inscrito tanto entre “problemas de família”, quanto entre “problemas de polícia”, como também coloca em xeque a separação entre essas searas e a determinação de uma curta rota unidirecional que sai das “famílias” e chega à “polícia”. Ainda que policiais esforcem-se por distinguir aquelas searas, as idas e vindas do retrato sugerem o quão frágeis são as fronteiras por eles delimitadas, e tornam aparente que enredos de desaparecimento excedem seus registros documentais, vão e vêm entre “famílias” e “polícia”, e seguem seu desenrolar mesmo depois de arquivados em delegacias. Não foi sem razão, afinal, que Clara buscou restituir seu “álbum de família” e dele apagar o rastro de vazio deixado pelo já solucionado desaparecimento de Domingos. Como as posições de participantes de eventos da ReDESAP descritas anteriormente (capítulo 4) descortinam, unidades como “a família”, “a polícia” e “o Estado” são substancializadas em jogos de força nos quais responsabilidades são distribuídas. Mais do que tomá-las como dados predeterminados, portanto, cabe encará-las como constructos retóricos, buscando compreender os sentidos de sua delimitação e evocação. Se casos de desaparecimento, como indica o retrato de Domingos, transitam entre universos supostamente compreendidos por esses termos, importa perguntar a que se presta sua separação. Na construção dos casos como ocorrências policiais (capítulos 2 e 3), a delimitação do que seriam “problemas de família” permite a policiais desresponsabilizarem-se diante dos desaparecimentos sem, contudo, deixar de registrá-los e arquivá-los. Situando desaparecidos e demais “Envolvidos” nos desaparecimentos em posição de inferioridade, e construindo a desimportância dos próprios casos que os enredam, policiais lidam com desaparecimentos cotidianamente, fazendo aquilo que, também cotidianamente, afirmam que não deveriam fazer. Ainda que o façam por meio de delegações, devolvendo às “famílias” as solicitações por elas levadas a delegacias, policiais não deixam de atuar nos casos de desaparecimento. Não obstante, muitas vezes atuam negando não só suas obrigações diante deles, mas também o próprio título que lhes é dado. Não que busquem alterar o título e o destino de ocorrências que, como vimos nos casos de Urbano e Elói, contêm relatos de assassinato e carbonização de cadáveres. Antes, negam o título de alguns casos para encerrá-los e arquivá-los como desaparecimentos, a despeito de contestarem essa classificação. O caso de Daniela, por exemplo, foi suspenso e arquivado porque nas palavras do policial encarregado “o fato em questão não trata de desaparecimento, uma vez que deve ter havido algum problema familiar”. 235

Afirmações como essa trazem em si, implicitamente, duas outras: primeiro, que há um tipo de acontecimento que merece o título de desaparecimento e cuja investigação caberia à polícia; segundo, que os casos que chegam às delegacias diariamente, como o de Daniela, não se enquadram nesse tipo e, portanto, não demandam trabalho policial. Já na construção do desaparecimento como problema social (capítulo 4), o emprego dos termos “família”, “polícia” e “Estado” permite que grupos que se constituem em eventos da ReDESAP agreguem outras faltas, passíveis de denúncia, à falta do desaparecido entre aqueles que comunicam seus desaparecimentos em delegacias. Desaparecimentos acontecem, conforme enunciados que circulam nos eventos da rede, porque não se pode contar com “famílias” protetoras, nem com um “Estado” assistente, nem, tampouco, com uma “polícia” sensível e competente. Projetando um cenário imaginário e estático de absoluta coesão social e moral, agentes que participam de eventos da rede afirmam, mais ou menos implicitamente, que caso essas três entidades se fizessem adequadamente presentes, pessoas também se fariam sempre presentes em espaços geográficos e sociais com os quais construíram vínculos ao longo de suas vidas. Desse modo, tanto na construção do desaparecimento como singular problema social, quanto na formulação de casos plurais como ocorrências policiais, evocar a “família”, a “polícia” e o “Estado” significa delimitar unidades e a elas associar capacidades e obrigações de ordenação, controle e intervenção no mundo social ou, por outro lado, isentálas de responsabilidades quanto à gestão e prevenção do desaparecimento de pessoas. O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, iniciativa que congrega agentes envolvidos com desaparecimento de pessoas e foi formulada, em conjunto, pelo comitê gestor da ReDESAP e uma equipe da SENASP, também coloca em cena processos de atribuição e isenção de responsabilidades. Contudo, em torno do Cadastro as unidades às quais são associadas obrigações em relação ao desaparecimento correspondem a recortes de áreas temáticas da administração pública: as searas da segurança pública, da assistência social e dos direitos humanos. Antes mesmo que fosse lançado e até o presente momento, quando ainda não está em pleno funcionamento, o Cadastro é alvo de duas dúvidas centrais: A quem deve caber sua gestão? Que instituições poderão preenchê-lo e consultá-lo? Tais interrogações suscitam debates sobre a natureza do desaparecimento de pessoas que, por um lado, remetem a reflexões de policiais do SDP, mas, por outro, delas se diferenciam. Enquanto no SDP evoca-se a oposição “problemas de família” versus “problemas de polícia”, entre os agentes dedicados ao Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas paira a seguinte pergunta: o desaparecimento, afinal, é questão de segurança pública ou de assistência social? 236

Em linhas gerais, a equipe dedicada ao Cadastro responde a essa indagação sustentando que é possível e premente distinguir, no heterogêneo universo dos desaparecimentos, casos que são “questão de segurança pública” e casos que são “questão de assistência social”. Compreendendo ambos os tipos, o problema do desaparecimento é, a um só tempo, questão tanto de segurança, quanto de assistência. O crucial, para esses agentes, é discernir quais casos inscrevem-se na primeira seara, e quais, na última. Nesse sentido, a plataforma de dados em que consiste o Cadastro demanda que todo desaparecimento nele registrado seja classificado no próprio ato do registro. Se nas repartições policiais os casos são intitulados, indiferenciadamente, “Fato atípico – Desaparecimento (Outros)”, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas apresenta um leque de possibilidades de especificação desse título comum. Todos os casos são registrados como desaparecimentos, como se desaparecimento fosse um gênero de acontecimento, mas é necessário determinar a espécie de desaparecimento em que cada caso consiste. Às espécies constitutivas desse leque são associadas, de modo excludente, instituições que devem responsabilizar-se por cada caso: ou instituições de segurança pública, ou instituições de assistência social. Apoiando-me em reuniões dedicadas à formulação do Cadastro, no presente capítulo reflito sobre as (im)possibilidades e os efeitos da classificação de casos de desaparecimento como a proposta pelo Cadastro. A partir dessa reflexão, discuto alguns aspectos e dilemas da minha crescente participação na ReDESAP. Se o etnógrafo deve responder a seu campo de estudo, sendo o próprio texto etnográfico uma modalidade de resposta (Riles, 2006, p.24), minha relação com membros da rede e participação na formulação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas demandou respostas de outra ordem, sobre as quais teço algumas considerações. Como nos adverte Pacheco de Oliveira (2004), paira em nosso campo disciplinar certa “crítica latente a uma postura ativa e militante registrada em estudos antropológicos que focalizam as políticas públicas” (2004, p. 17). Enfrentá-la demanda, por um lado, compreender a pluralidade característica do fazer etnográfico; por outro, reconhecer a dimensão política intrínseca a esse fazer, sempre dialógico e situacional. Instada por essa advertência, e sem qualquer pretensão de esgotar a questão, pondero a respeito das trocas e expectativas (minhas e de meus interlocutores) implicadas na singular situação etnográfica forjada por minha presença na ReDESAP.

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5.1 Sem destino certo Desde o primeiro evento da rede em que estive presente, o II Encontro Nacional, ouvi pronunciamentos entusiasmados sobre o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. Congregando os grupos dos gestores, das mães de pessoas desaparecidas e dos policiais, além de outros participantes dos eventos da ReDESAP, a necessidade de implementar o Cadastro, superando o obsoleto website “desaparecidos.mj” e oferecendo uma ferramenta nacional para registros e consultas de casos de desaparecimento, comparece em falas de membros e não membros da rede como uma urgência indisputada. O Cadastro funcionaria como checkpoint (Jeganathan, 2004), ao qual instituições autorizadas necessariamente recorreriam para divulgar casos e averiguar registros. Diferente de outros checkpoints como os que policiais do SDP investigam por meio de Ofícios, a exemplo dos arquivos de IMLs e de hospitais públicos, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas reuniria somente dados sobre pessoas desaparecidas, tendo escopo limitado, mas englobaria registros de casos ocorridos em todo território nacional, o que é visto na ReDESAP como seu maior ganho. A ferramenta tão desejada por membros e não-membros da rede não visa a desencadear processos de busca de desaparecidos ou atendimento de comunicantes. Antes, pretende constituir um banco centralizado de informações sobre casos que, por um lado, permitirá a checagem de registros feitos em diferentes unidades da federação, e, por outro, será a primeira base de dados nacional sobre desaparecimento de pessoas, a partir da qual estatísticas e estimativas serão produzidas. Superando ou, para usar o termo de Souza Lima (1995) e Scott, Theranian & Mathias (2002), conquistando os parcos, dispersos e fragmentados conjuntos de dados sobre desaparecimento disponíveis no Brasil, espera-se que o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas seja capaz de promover o tipo de unificação de que fala Bourdieu (1996a) a respeito do poder de Estado: O Estado concentra a informação, que analisa e redistribui. Realiza, sobretudo, uma unificação teórica. Situando-se do ponto de vista do todo, da sociedade em seu conjunto, ele é o responsável por todas as operações de totalização, especialmente pelo recenseamento e pela estatística ou pela contabilidade nacional, pela objetivação, por meio da cartografia (...), e de codificação, como unificação cognitiva que implica a centralização e a monopolização em proveito dos amanuenses ou dos letrados. (Bourdieu, 1996a, p.105)

Policiais e mães de desaparecidos costumam destacar a relevância da possibilidade de checagem de casos registrados em todo o país, enfatizando que pessoas desaparecidas podem 238

facilmente ter se dirigido ou sido levadas a regiões distantes dos locais de onde saíram. Acreditam, nesse sentido, que a unificação a ser promovida pelo Cadastro garantirá que a integralidade territorial do país seja capturada e diretamente traduzida em registros de casos de desaparecimento ocorridos em quaisquer localidades. Gestores, por sua vez, costumam enfatizar que o grande ganho a ser propiciado pelo Cadastro é a produção, a médio e longo prazo, de números e estatísticas confiáveis sobre o fenômeno. Estatísticas acuradas, para os gestores, são imprescindíveis para que políticas públicas que previnam e combatam o problema do desaparecimento sejam bem delineadas e direcionadas. Tanto a ênfase no alcance nacional da ferramenta, quanto o destaque da possibilidade dos dados nela registrados converterem-se em números, porcentagens e políticas públicas eficazes no enfrentamento do problema, aproximam o Cadastro de outras técnicas e procedimentos estatizados de identificação, cadastramento e representação de pessoas, populações e territórios, como por exemplo recenseamentos demográficos e plotagens cartográficas. Como chama atenção Souza Lima (1998), a propósito da identificação de terras indígenas no Brasil, tais técnicas e procedimentos inscrevem dados, propriedades e populações em sistemas apreensíveis apenas em largas escalas, que escapam aos indivíduos e fabricam, à guisa de representar, a totalidade do território e da população nacionais. Os produtos dessas técnicas, entre mapas, censos e cadastros como o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, são encarados como representações puras e isentas da realidade. Em paralelo à defesa unânime do Cadastro, independente das ênfases de elementos distintos feitas por diferentes agentes, também desde o II Encontro Nacional tomei contato com a dúvida compartilhada pelos membros e não membros da ReDESAP presentes em seus eventos: a gestão da ferramenta deveria ficar a cargo da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), coordenadora da ReDESAP, ou no Ministério da Justiça (MJ), em cujo organograma está inscrita a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP)? Como afirmado no capítulo anterior, o software que dará base à ferramenta foi desenvolvido por equipe da SENASP responsável pela Rede INFOSEG, sistema que abrigará o Cadastro. A Rede INFOSEG, também mencionada anteriormente, é o sistema informatizado de integração de dados disponível, hoje, aos agentes de polícia e justiça brasileiros. Se o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas reúne esforços e desejos de membros da ReDESAP, o que justificaria sua gestão pela SEDH, ao mesmo tempo é fruto de trabalho da equipe da SENASP e é por ela melhor e mais minuciosamente conhecida, daí a controvérsia. A Figura 1 sistematiza essas informações. 239

Figura 1: Situando o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas

Não obstante, ao longo das reuniões do comitê gestor da ReDESAP e entre ele e a equipe da SENASP, pude notar que algo mais além dos órgãos e redes envolvidos na formulação do Cadastro está contido na indagação sobre sua gestão. Do ponto de vista dos membros do comitê, responsabilizar a SENASP pela administração da ferramenta significa inscrever o desaparecimento na área temática da segurança pública, e correr o risco de delegálo exclusivamente a policiais. Isso equivaleria a desconsiderar “casos de desaparecimento que não são questão de segurança, e sim de assistência social”, como diz o delegado Lauro, integrante do comitê. Do ponto de vista do delegado e dos demais membros do grupo gestor, é possível especificar casos de desaparecimento, distinguindo aqueles que são “questão de segurança pública” dos que são “questão de assistência social”. Os primeiros caberiam à polícia; os últimos demandariam atuação de conselheiros tutelares e assistentes sociais. Partindo da premissa de que o conjunto total de casos engloba ambos os tipos, os integrantes do comitê defendem que a gestão do Cadastro não seja delegada à SENASP, e sim à SEDH/PR – órgão governamental máximo de promoção e defesa dos direitos humanos no Brasil. Ao fazê-lo, parecem afirmar que a área dos direitos humanos, circunscrição da SEDH/PR, é vasta e englobante, capaz de acomodar demandas, políticas e “questões” as mais variadas, ao passo que a área da segurança pública, circunscrição da SENASP, não o é. Confirmam, nesse sentido, que “os direitos humanos em sua forma abstrata e 240

descontextualizada pouco significam” (Fonseca e Cardarello, 2009, p.220), e que seus usos e traduções práticas respondem a relações de poder, interesses e contextos históricos específicos. Além de defender que a gestão da ferramenta fique a cargo da SEDH/PR, para garantir que o Cadastro não engendre a inscrição automática e equivocada de todo caso de desaparecimento na área da segurança pública, o comitê gestor da ReDESAP defende, desde suas primeiras reuniões com a equipe da SENASP, que o registro e a checagem de casos na ferramenta sejam feitos não apenas por policiais, mas também por outros agentes que lidam com desaparecimentos. Embora o Cadastro esteja abrigado na Rede INFOSEG, acessada exclusivamente por agentes de polícia e justiça, a demanda do comitê é que conselheiros tutelares, servidores de órgãos de assistência social e direitos humanos e funcionários de ONGs também possam manuseá-lo. Essa demanda foi acatada pela equipe da SENASP, guardados os seguintes procedimentos: servidores e funcionários de instituições não-policiais precisariam de autorização expressa para acessar o Cadastro, e seu acesso seria apenas ao Cadastro, e não à Rede INFOSEG como um todo; tal autorização ficaria a cargo da SEDH, que manteria sempre atualizada a lista das instituições com acesso à ferramenta. Assim, os usuários autorizados a registrar e checar casos no Cadastro, ao todo, seriam servidores de órgãos de polícia e justiça que acessam a Rede INFOSEG, e também servidores e funcionários de instituições governamentais e não-governamentais cadastradas pela SEDH. Não obstante, outra demanda foi colocada pelo comitê gestor da rede para a equipe da SENASP: a necessidade de se manter “um canal de comunicação de casos aberto ao cidadão”, como formula uma gestora da SEDH/PR. “O cidadão”, nesse caso, é alguém que, como ouvi da assistente de Ciro, não possui vínculo (de servidor) com a administração pública, nem é funcionário de qualquer das instituições, governamentais e não-governamentais, autorizadas pela SEDH/PR a manusear o Cadastro. Para gestores da Secretaria, tão importante quanto instituir o Cadastro é permitir que “o cidadão” possa ser por ele beneficiado. Diante dessa demanda, tantas vezes repisada por gestores da SEDH/PR, ficou decidido que o website “desaparecidos.mj” continuará ativo e aberto a qualquer pessoa que deseje reportar um desaparecimento, a despeito do fato de que desde seu lançamento, em 2002, ele nunca foi sistematicamente preenchido. Para que casos registrados no website passem a constar no Cadastro Nacional, será necessário que alguma das instituições cadastradas pela SEDH/PR ou algum órgão com acesso à Rede INFOSEG os valide. Em outras palavras, é imprescindível que a veracidade do caso seja atestada por alguém com vínculo com a administração pública, 241

o que traz para o Cadastro a lógica cartorial (Paes, 2008) (Miranda et al, 2010) vigente em delegacias, discutida anteriormente (capítulo 2). Até a última reunião do comitê gestor em que estive presente, em maio de 2010, não haviam sido tomadas quaisquer decisões sobre esse processo de validação. Independente da questão da validação, e apesar do objetivo expresso do comitê gestor de que desaparecimentos não sejam vistos somente como “questão de segurança pública”, uma decisão atribuindo papel primordial à polícia foi tomada ao longo das reuniões em torno do Cadastro: tanto casos registrados pelo “cidadão” no website, quanto aqueles inseridos por instituições autorizadas no Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas deveriam, necessariamente, ser antes registrados em delegacias. Nesse sentido, foi reiteradamente frisado nas reuniões, tanto por membros do comitê gestor, quanto pela equipe da SENASP, que registros no website e no Cadastro não substituem nem anulam a importância do Registro de Ocorrência feito em DPs. Ao contrário, o Registro de Ocorrência é condição para a inclusão de casos em ambas as ferramentas. Isto é, tanto quanto a equipe da SENASP, os membros do comitê gestor defendem a inescapável relevância do registro feito em repartições policiais para todo e qualquer caso de desaparecimento. Ao fazê-lo, porém, fortalecem a possibilidade que mais temem: que desaparecimentos sejam encarados exclusivamente como “questão de segurança pública”. Para contornar essa possibilidade, além de buscar assegurar acesso ao Cadastro para servidores e funcionários de instituições não-policiais, os membros do comitê gestor da rede dedicaram grande parte do tempo de suas reuniões a especificar tipos de desaparecimento, distinguindo entre eles os que são “questão de assistência social” e, por oposição, os que devem ficar exclusivamente a cargo de policiais. A partir de sugestões do comitê, fundamentadas, por um lado, em preocupações comuns a seus membros, e, por outro, nas experiências particulares dos três delegados de polícia que o integram, o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, na forma como foi lançado oficialmente, demanda que cada caso nele registrado seja classificado como um de seis tipos de desaparecimento, assim explicitados no manual de uso da ferramenta:  

Desaparecimento enigmático de pessoa – Para os casos de desaparecimento onde não se tem qualquer tipo de relacionamento inicial entre circunstâncias e motivação; Afastamento/abandono do convívio familiar – Para os casos onde há relatos de desaparecimento por afastamento do núcleo familiar por diversos motivos, devendo-se relatar também casos anteriores e/ou ameaças de fuga do lar; 242

    

Evasão de custódia legal – Para casos onde a pessoa, menor ou não, deveria estar em local de custódia e deste fugiu ou evadiu; Subtração por familiares – Para os casos onde se reconhece que um dos pais ou familiar está de posse da pessoa sem o conhecimento ou consentimento do outro pai ou familiares; Cooptação para práticas criminosas – Para os casos onde há relatos ou evidências que o desaparecimento está relacionado à fuga para atividades criminosas; Seqüestro – Para os casos onde a pessoa foi subtraída contra a sua vontade e mantida em cárcere, tipificado como seqüestro; Vítimas de calamidades, intempéries e acidentes – Para os casos onde a pessoa tem circunstância de desaparecimento relacionada a calamidades ou acidentes bem como eventos da natureza ou decorrentes desses, como enchentes, desmoronamentos, outros. (MJ, 2010, p.20)

Não foram poucas as ocasiões em que membros do comitê gestor da ReDESAP referiram-se ao primeiro tipo de desaparecimento listado no Cadastro como “o verdadeiro desaparecimento”. O chamado “desaparecimento enigmático de pessoa”, único dos tipos designado a partir do termo desaparecimento, é encarado pelos integrantes do comitê como “o desaparecimento mesmo, aquele caso que precisa de polícia”, como tantas vezes ouvi Ciro dizer. Da perspectiva do comitê, o “seqüestro” e a “cooptação para práticas criminosas”, embora também demandem trabalho policial, não são “desaparecimentos mesmo”, assim como tampouco o são o “afastamento/abandono de convívio familiar”, a “evasão de local de custódia legal” e a “subtração por familiares”. Estes últimos demandam, do ponto de vista dos integrantes do comitê, serviços de assistência social, e não trabalho policial - ainda que, como todos os tipos listados no Cadastro, devam inicialmente ser comunicados em delegacias. Já “vítimas de calamidades, intempéries e acidente” compreendem casos que demanda fundamentalmente a atuação de Corpos de Bombeiros, Defesa Civil e outros servidores públicos, além de também deverem ser registrados em DPs. Ao mencionar a obrigatoriedade do registro em delegacia, o próprio manual de uso do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas indica, de modo sutil, que o chamado “desaparecimento enigmático de pessoa” é “o verdadeiro desaparecimento”, que necessita de investigação policial, ao passo que os outros cinco tipos são ocorrências registradas como desaparecimentos, mas que não demandam, ao menos não necessariamente, nem mesmo o registro em delegacia: O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas não substitui os ritos legais e tradicionalmente conhecidos como o registro da ocorrência nos órgãos policiais, mas sim complementa essas ações. A obrigatoriedade do Registro 243

de Ocorrência, especialmente nos casos de desaparecimento enigmático, permanece. (MJ, 2010, p.10)

Classificar, como nos ensina o clássico artigo de Durkheim & Mauss (2001), “não é apenas constituir grupos: é dispor estes grupos segundo relações muito especiais” (2001, p.403), que decorrem não de supostas características intrínsecas do que é classificado, mas dos princípios segundo os quais grupos são constituídos. Diante de classificações sistemáticas, é preciso nos perguntarmos sobre esses princípios, tanto quanto é necessário compreendermos os efeitos de hierarquização e totalização por eles engendrados. Atentar para essas dimensões da função classificadora em face dos tipos de desaparecimento listados no Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas torna especialmente nítida a distinção do “desaparecimento enigmático de pessoa” em relação aos demais. Esse, que encabeça a lista, é o “verdadeiro desaparecimento”, único que não pode prescindir da atuação da polícia. Conforme pude compreender nas reuniões do comitê gestor, o destaque do “verdadeiro desaparecimento” na classificação oficializada pelo Cadastro implica menos situá-lo em posição hierarquicamente superior em relação aos demais, e mais separá-lo de todos os outros. Circunscrevendo contornos tentativamente fixos que apartam “o desaparecimento mesmo, aquele caso que precisa de polícia” de acontecimentos que demandam outros tipos de serviço, membros do comitê buscam realizar algo semelhante ao que Clara, a tia de Domingos, fez no SDP: retirar o que consideram “pertencente a um álbum de família”, como o retrato do desaparecido, das repartições e responsabilidades policiais. Para os integrantes do comitê, o desaparecimento de pessoas é tanto “questão de segurança pública”, quanto “questão de assistência social”. Isso não significa, todavia, que os casos inscrevam-se nas duas searas. Ao contrário, cada caso é visto como exclusivamente uma ou outra dessas “questões”. Em suma, a separação do “desaparecimento mesmo” em relação aos demais tipos visa não a destacar como mais importantes casos que demandam atuação policial, e sim a depurar outros casos, que não necessariamente devem passar por delegacias, retirando-os de antemão da possibilidade de “precisar de polícia”. A preocupação central de Ciro, que esteve à frente da ReDESAP e do comitê gestor durante a maior parte do meu período de pesquisa, era que “famílias” de crianças e adolescentes que fogem de suas casas não tenham que passar pelo mau atendimento que enfrentam em delegacias. Para gestores como Ciro, conforme explicitei anteriormente (capítulos 1 e 4), desaparecimentos consistem em casos de fuga do lar, e “famílias” são vítimas do processo de deterioração de relações que provoca desaparecimentos. Ao dirigirem244

se a delegacias, para Ciro, “famílias” e familiares de desaparecidos arriscam-se a ser acusados e criminalizados por comportamentos de seus filhos que seriam mais bem conduzidos e geridos em outros órgãos e repartições, notadamente Conselhos Tutelares, órgãos de assistência social e serviços de SOS Crianças Desaparecidas. Essa preocupação do gestor, compartilhada por outros membros do comitê, está na base da formulação dos tipos de desaparecimento listados no Cadastro. Ocorre que a obrigatoriedade do Registro de Ocorrência para que casos, seja de que tipo forem, sejam inseridos no Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, borra as fronteiras com que os membros do comitê gestor buscam apartar o “desaparecimento verdadeiro” dos demais. Ainda que defendam que somente estes sejam necessariamente tratados por policiais, ao determinar que todos os casos inscritos no Cadastro sejam, antes, objeto de ROs, membros do comitê dificultam a consecução de seus próprios objetivos. Afinal, mesmo casos “de assistência social” passariam por repartições policiais, transitando, tal qual o retrato de Domingos, entre as searas que os tipos de desaparecimento listados no Cadastro supõem passíveis de separação. A confecção do RO é encarada no comitê gestor da rede como algo inevitável. Como costuma dizer o delegado Lauro, que já utiliza os tipos oficializados no Cadastro para classificar casos registrados na DP de que está à frente, “não adianta, a delegacia está aberta 24 horas por dia, 7 dias na semana. É na nossa porta que as pessoas vão bater e a gente tem que atender.” Para o delegado, o trabalho policial não só alcança, idealmente, a integralidade de corpos e territórios (capítulo 3) inscritos em sua “circunscrição”, como também está sempre ativo e disponível. Ecoando as primeiras palavras que ouvi do inspetor Fernando no SDP, para o delegado Lauro o traço diacrítico das delegacias de polícia em relação a outras repartições públicas é o fato de que “a porta fica aberta” o dia todo, todos os dias da semana. Em função disso, independente de se enquadrarem ou não no tipo de desaparecimento que cabe à polícia, o chamado “desaparecimento enigmático de pessoa”, todos os casos seguem e seguirão sendo reportados em delegacias. Resignando-se diante disso, o delegado defende que, ao registrarem ocorrências que não sejam de “desaparecimento mesmo”, policiais encaminhem os comunicantes a órgãos e instituições “de assistência social” a que devem ser delegados outros tipos de casos. Desse modo, defende que as rotinas percorridas por ocorrências de desaparecimento permaneçam basicamente as mesmas descritas anteriormente (capítulo 2). Afinal, de sua perspectiva, policiais devem registrar relatos, solicitações e queixas na forma de ocorrências de 245

desaparecimento, mas isso não necessariamente implica que devam responsabilizar-se por investigá-las e por prestar atendimento aos comunicantes. Com isso, o delegado sustenta que casos permaneçam sendo delegados, além de instituições como CTs e órgãos de assistência social, às próprias “famílias” de desaparecidos, como são atualmente. Diante desse quadro, a novidade proporcionada pelo Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas é que tais delegações passam a ter fundamento não só na distinção entre “problemas de família” e “problemas de polícia” efetuada por policiais, mas também nos tipos de desaparecimento discernidos e oficializados pela ferramenta.

5.2 Mas com tudo arrumado Analisando operações institucionais de classificação e produção de categorias, Douglas (2007) sustenta que classificar implica colocar aquilo que é rotulado fora da possibilidade de análise e crítica, situando-o em um plano abstrato. “Os rótulos estabilizam o fluxo da vida social e até mesmo criam, até certo ponto, as realidades a que eles se aplicam.” (Douglas, 2007, p.107). Bem representados pelo vaivém do retrato de Domingos entre o “álbum de família” e os arquivos policiais, casos de desaparecimento transitam entre searas instituídas como unidades de responsabilidade e áreas temáticas estanques e apartadas. Desse modo, a estabilização promovida por tipos de desaparecimento como “desaparecimento enigmático de pessoa” é um exercício de abstração que responde a tentativas, defendidas pelo comitê gestor da ReDESAP, de caracterizar casos particulares ou como “questão de segurança pública”, ou como “questão de assistência social”. Como toda operação institucional de classificação, contudo, essas tentativas retiram os casos de desaparecimento que enquadram exclusivamente em uma ou outra “questão” da possibilidade de análise. Não é apenas o fluxo entre unidades de responsabilidade e áreas temáticas ou “questões” supostamente apartadas que a distinção de tipos de desaparecimento estabiliza e abstrai. A própria nomeação de múltiplos relatos, comunicações e solicitações que circulam entre cidadãos e policiais como desaparecimento é, por si só, um exercício de estabilização e abstração de fluxos, sobretudo, de informação. Se abrirmos gavetas de arquivo como as do SDP, sob o título “Fato Atípico – Desaparecimento (Outros)” encontramos reputações, conselhos, compromissos, relações de dependência e exibição de controle sobre corpos e territórios formulados e encerrados no interior de pastas documentais que fazem deles artefatos constitutivos de casos de desaparecimento (capítulo 3). O conteúdo daquelas 246

gavetas, afinal, consiste em maços de papéis carregados de registros pouco precisos que só podem ser lidos como casos dotados de enredos ordenados se sobre eles debruçarmos um olhar interessado em assim construí-los. Não obstante, tudo o que ali se encontra arquivado em pastas individuais, por mais fragmentado, heterogêneo e repleto de intencionalidades que seja, recebe o único e mesmo título de desaparecimento de pessoa. Considerando essas reflexões, vejamos os desaparecimentos de Quincas e Belmiro.

QUINCAS Dona Inácia e Dona Neusa, Desculpem estar dizendo essas palavras, mas eu estou sem destino, mas sei que a minha vida vai ser um inferno saindo dessa casa, nunca encontrei duas pessoas que gostassem tanto de mim, vocês sabem que eu não sou maluco, isso é coisa do destino, peço muitas desculpas de estar saindo dessa maneira, não sei para onde vou, mas peço, por favor, guardem todos os meus documentos para mim, por favor. Quincas. Pelo menos um bilhete eu deixei pra você.

As irmãs Neusa e Inácia dividem a mesma casa, na Tijuca, e há algum tempo emprestavam a casa dos fundos de seu terreno para “o Sr. Quincas Cordeiro, que estava fazendo um tratamento psiquiátrico no Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB)”. Dia 12 de outubro de 2006, por volta do meio-dia, Neusa foi procurar pelo Sr. Quincas para convidá-lo para almoçar com ela e a irmã, mas não o encontrou. Ao entrar na casa por ele habitada, deparou-se com o bilhete acima transcrito. No dia seguinte, portando o bilhete, um cartão do IPUB em nome dele e duas fotografias do Sr. Quincas, Inácia foi à 19ª DP. Relatou a um inspetor o ocorrido no dia anterior, e o agente produziu um RO de desaparecimento. Dois meses depois, o registro, o bilhete, o cartão do IPUB e as fotografias do Sr. Quincas foram encaminhados ao SDP. Em janeiro de 2007, pouco mais de um mês depois de recebido no Setor, o caso foi arquivado como Sindicância Solucionada. Naquele mesmo mês, “foi feito contato com a Sra. Neusa, através do telefone, tendo esta informado que o procurado já retornou para casa”.138 BELMIRO Segundo a comunicante, seu marido Belmiro de Carvalho, guarda municipal e dependente químico em tratamento médico, saiu de casa em Paquetá, dia 16/03/08, sem dar notícias. Que ultimamente ele andava em crise e teria sido visto pela última vez reclamando muito da vida e dizendo que estava de saco cheio e que iria “descacetar” (sumir, desaparecer). Segundo a comunicante ele andava muito agressivo, parou de fazer barba e cabelo e de se cuidar, mas antes de sair levou sua carteira de guarda, cartões de benefícios do 138

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 004/07 do SDP/DH. O desaparecimento de Quincas foi objeto de menção no capítulo 3.

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INSS, cartão bancário e um pequeno álbum de fotos. Que veio registrar o fato a pedido da perícia da guarda municipal, já que ele teria que se apresentar para exame periódico.

Dia 19 de março de 2008, a professora de educação infantil Sílvia foi à 37ª DP, na Ilha do Governador, comunicar o desaparecimento de seu marido Belmiro, guarda municipal. Atendida por um inspetor de polícia, Sílvia relatou o que se passara a Belmiro e as razões que a levaram àquela repartição policial. De seus relatos, resultou o texto acima, integralmente transcrito da descrição da “dinâmica do fato” contida no RO de desaparecimento do guarda. Nos três meses seguintes, três mandados foram enviados para Sílvia, intimando-a a comparecer à DP para “levar fotografia do desaparecido e prestar esclarecimentos”. Sílvia, contudo, não atendeu aos mandados. Em julho de 2008, o caso foi encaminhado para o SDP. No Setor, o único registro produzido foi um relatório, no qual o inspetor encarregado do caso solicitou seu arquivamento como Sindicância Solucionada. No documento, o policial afirma que telefonou para o número registrado no RO e foi atendido por Fernanda, “sobrinha do procurado, tendo sido informado que seu tio já retornou para o lar”. Dia 3 de outubro de 2008, o caso de Belmiro foi arquivado no SDP.139

Partir da casa das pessoas que por ele tiveram mais apreço ao longo de sua vida é, para Quincas, “coisa do destino”. Por um lado, trata-se de uma sina, algo inelutável, que ele faz não por ser “maluco”, mas por não enxergar alternativa. Ele sabe que a vida será “um inferno” longe das irmãs que o abrigam, mas ainda assim decide partir. Ao mesmo tempo, para Quincas partir é também uma ingratidão, da qual ele deve se desculpar ante Neusa e Inácia e “pelo menos” notificá-las por meio de um bilhete. Já do ponto de vista de Inácia, a partida de Quincas é algo que deve ser reportado à polícia. Por isso, na delegacia, a partir da interação entre ela e o policial que a atende, o que para Quincas é “coisa do destino” e ingratidão resta registrado como desaparecimento. É sob esse título, aliás, que a sina de Quincas pode ser conhecida, hoje, por quem quer que se aventure pelos arquivos do SDP. Aos 38 anos, o guarda municipal Belmiro também decidiu partir. Diferente de Quincas, não deixou bilhete desculpando-se por isso, embora tenha anunciado suas intenções quando foi “visto pela última vez reclamando muito da vida, e dizendo que estava de saco cheio, que iria „descacetar‟”. Diferente de Inácia, Sílvia, esposa de Belmiro, não julgou que a partida do guarda devesse ser registrada em repartição policial. Entretanto, por ser servidor público, Belmiro “teria que se apresentar para exame periódico” e ausentar-se dessa obrigação certamente incidiria sobre seu vínculo (de servidor) com a administração pública municipal. 139

Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 187/08 do SDP/DH.

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Aí sim, diante da obrigação do exame a ser feito por seu marido, Sílvia decidiu dirigir-se à delegacia. Lá, assim como ocorreu à partida de Quincas, a decisão de “descacetar” tomada por Belmiro foi registrada como desaparecimento, a partir do encontro entre Sílvia e o agente de polícia. Na ocasião, o próprio termo relatado por Sílvia como tendo sido usado pelo guarda municipal, “descacetar”, foi traduzido como “sumir, desaparecer”. Ainda que o termo desaparecimento, em seu emprego como título de registros de ocorrência, busque traduzir expressões relatadas por comunicantes ou redigidas por desaparecidos, há que se ressaltar que muito se perde nessa tentativa de tradução. A força expressiva do que Quincas escreve (“isso é coisa do destino”) e do que Belmiro diz (“que estava de saco cheio e iria „descacetar‟”) parece se esvair no uso indiferenciado do termo desaparecimento face aos dois casos. Se rótulos, como afirma Douglas (2007), visam a estabilizar o fluxo da vida social, casos como o de Quincas e Belmiro explicitam algumas das torrentes de pensamentos e atos que o rótulo desparecimento parece estabilizar, sugerindo o quão vastos e dinâmicos são os fluxos por ele tentativamente capturados, e o quanto pode ser perdido nessa tentativa de captura. Se toda classificação operada por instituições implica a produção de rótulos que estabilizam fluxos (Douglas, 2007, p.105), as vastas e dinâmicas “coisas do destino” designadas indiferenciadamente como desaparecimentos não só confirmam essa premissa, como são especialmente reveladoras de sua validade. Relembrando falas de Cecília que recuperei antes (capítulo 2), “o desaparecimento é a quebra da rotina. É quando as coisas fogem do hábito, do comum”. Fugindo daquilo que, por princípio, é ordenado – a rotina – o desaparecimento pode ser definido, e assim o é por Cecília, como uma ruptura, um desmanche, enfim, uma desestabilização extraordinária da ordem. Nesse sentido, se todo rótulo tenta conter variações, fluxos e dinâmicas conferindo-lhes estabilidade, no emprego do termo desaparecimento vemos o paroxismo disso: tentativas de estabilizar, ao menos no plano lógico, o que é experimentado como ruptura, ainda que momentânea, da própria estabilidade. Mas voltemos aos desaparecimentos de Quincas e Belmiro. No bilhete que deixa para Neusa e Inácia, Quincas afirma que não sabe para onde vai, e em seguida pede que Neusa e Inácia guardem todos os seus documentos. Mesmo que ele esteja “sem destino”, quer assegurar-se do destino de seus papéis, e por isso pede que as irmãs cuidem deles. Já Belmiro, embora estivesse desleixado, deixando de “fazer barba, cabelo e de se cuidar”, fez questão de “descacetar” levando consigo sua carteira de guarda, seus cartões do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e seu cartão de banco, além de um álbum de fotografias. 249

A importância conferida aos documentos pelos dois desaparecidos no ato de suas partidas aponta o caráter estabilizador assumido não mais pelo termo desaparecimento, mas pelos documentos e papéis oficiais que circulam e atestam identidades, propriedade e direitos no contexto dos Estados-nacionais. Contrastando com a ruptura da ordem rotineira em que consiste o desaparecimento de uma pessoa, documentos em nome dela fixam-na e conferemlhe estabilidade. Estabilidade, aí, certamente não implica imobilidade. Ao contrário, comparece em muitos casos como condição para que desaparecidos que partiram “sem destino certo”, como Domingos, exerçam sua errática mobilidade. Basta lembrarmos o caso de Vicente, que vive perambulando pela rodovia onde possui sítio, e que causa especial preocupação em seus filhos e ex-mulher porque “também sumiram todos os seus documentos pessoais, inclusive os documentos do sítio que lhe pertence”. A estabilidade conferida por documentos como aqueles zelados por Quincas e Belmiro, e “sumidos” no caso de Vicente, refere-se à inscrição ordenada dos sujeitos documentados no corpo múltiplo e numerável de uma população (Foucault, 2005b, p.292) e em registros burocráticos oficiais que, como chamei atenção nos capítulos anteriores, são condição para o recebimento de benefícios e, ao mesmo tempo, funcionam como meios de controle. Em termos performativos, documentos fazem com que pessoas como Quincas e Belmiro sejam consideradas encarnações do abstrato “cidadão” de que falam gestores que participam de eventos da ReDESAP, vinculando-os a um Estado e, ao mesmo tempo, atestando a veracidade desse vínculo (Peirano, 2006a, 2006b, 2009). Documentos, ademais, possibilitam que “o cidadão” a que se referem particularize-se, inscreva-se ou, para usar os termos de Caplan & Torpey (2001), escreva-se de modo legível não só na realidade social do mundo estatizado que habitam, mas também e indissociavelmente no curso de suas próprias vidas: Although bureaucracies organize this data with scant regard for personal needs, these records also furnish people with the means, together with private papers such as letters or diaries, to “write” themselves into life and history. In this they do not just behave in accordance with the requirements of bureaucratic categories, but create themselves as “legible” subjects of their own lives. (Caplan & Torpey, 2001, p.6-7)

Estando os documentos de Quincas bem guardados na casa de Neusa e Inácia, e desde que Belmiro carregasse consigo seus cartões e sua carteira de guarda, alguma estabilidade seria mantida em suas vidas, mesmo que ambos estivessem desaparecidos para as pessoas que os abrigavam, para a mulher com que foram casados ou para a repartição pública em que 250

trabalhavam. Seus documentos garantiriam, ainda, não só certa legibilidade (Caplan & Torpey, 2001) (Das & Poole, 2004) (Scott, 1998), mas também que algo de correto seria mantido intacto no decurso de seus desaparecimentos. Mesmo que os dois tenham optado por não manter vínculos com determinados pontos do espaço e grupos de pessoas, afinal, permaneceram documentados e fixados em seus papéis. Se ao “descacetar” ou responder a “coisas do destino” Quincas e Belmiro parecem desafiar a imposição de existências sedentarizadas e identificadas, ao cuidarem de manter seguros seus documentos ambos fazem o contrário disso, sustentando e perpetuando o valor moral da sedentarização e identificação. O zelo de ambos com seus papéis oficiais evidencia, enfim, o caráter desmoralizador da ruptura de vínculos de que fala Kleinman (2006). Conforme argumenta o autor, fatos e eventos que nos desvinculam daquilo que é convencionado como importante constituem desmoralizantes “calamidades comuns” (Kleinman, 2006, p.4), e documentos, no contexto dos Estados-nacionais e, mais especificamente, no Brasil, são bens vinculantes fundamentais. Além de coletivamente considerados importantes, documentos guardam, ademais, relações empáticas de primeira grandeza com seus portadores: O documento possui uma força (ilocucionária) que transforma o indivíduo em cidadão de um determinado Estado nacional o qualifica para determinadas atividades. O vínculo entre o indivíduo e o documento que o identifica, portanto, não é apenas de representação, mas também de contigüidade/extensão. Quando o indivíduo perde sua “identidade”, essa experiência é verdadeira em vários sentidos. Há um elemento de magia nessa associação: o indivíduo torna-se cidadão por sua carteira de identidade, mas, ao se descobrir sem a carteira, ele de fato não possui mais a identidade (que é civil e pública). (Peirano, 2006a, p.34)

Considerando a força e as propriedades de papéis oficiais, vale relembrar a decisão de Clara, tia de Domingos, de solicitar a devolução do retrato de seu sobrinho que, até então, era parte de Sindicância de desaparecimento. Se documentos funcionam como dispositivos que inscrevem cidadãos na realidade social e no curso de suas próprias vidas, não é de espantar que a enfermeira tenha feito questão de retirar o retrato de Domingos do conjunto de papéis policiais a que ele estava anexado. Afinal, como descrito nos capítulos anteriores, o cenário de desconfiança que envolve comunicações e registros de desaparecimento em delegacias, bem como a inferioridade e desimportância atribuída aos casos e às pessoas neles envolvidas são, por si só, motivos suficientes para que ROs e Sindicâncias guardadas em arquivos policiais não sejam exatamente os papéis através dos quais “o cidadão” deseja escrever sua trajetória e a dos seus. Enquanto documentos como os cartões levados por Belmiro são desejáveis bens 251

garantidores de benefícios e direitos, papéis como os produzidos acerca de casos de desaparecimento são, por vezes, indesejáveis registros dos quais se deseja, o quanto antes possível, retirar fotografias e dados pessoais. Cada um à sua maneira, desaparecimentos como o de Domingos, Quincas e Belmiro apontam para a importância conferida à manutenção de vínculos e para a forma como ela se desdobra em zelo e cautela em relação a documentos. Alguns dos elementos desses casos que permitem vislumbrar essa importância são o pedido de desculpas de Quincas, que supõe que sua partida será encarada como ingratidão por Neusa e Inácia; a atenção de Belmiro em levar consigo seus cartões junto ao álbum de fotografias; o cuidado de Clara em restituir ao “álbum de família” a foto de Domingos antes anexada a indesejáveis registros policiais; e, ainda, a “depressão” vivida por Domingos depois da perda do vínculo com a universidade onde trabalhara por mais de uma década. 140 Sustentar laços e zelar por documentos é, para usar termos registrados no caso narrado a seguir, manter “tudo arrumado” mesmo em face dos vastos e dinâmicos fluxos constitutivos da vida social, que a todo tempo desafiam tentativas de estabilização e escapam a rótulos e classificações. “Descacetar” ou entregar-se a uma “coisa do destino” é desarrumar coisas e relações, o que faz com que Quincas sinta a necessidade de desculpar-se com as irmãs que o abrigavam. Mas “descacetar” ou ceder a uma “coisa do destino” zelando pela segurança de documentos pessoais é buscar assegurar que, mesmo no desarranjo provocado pelo desaparecimento, o vínculo que faz do desaparecido “o cidadão” permaneça inalterado.

ELIAS O ano de 2007 mal havia começado quando Alice, manicure de 45 anos de idade, decidiu procurar a polícia para comunicar o desaparecimento de seu irmão mais velho, Elias. Elias era vigia e vivia em uma quitinete próxima à casa de Alice, em São Pedro da Aldeia. A última vez que os irmãos se falaram foi em meados de dezembro de 2006. Preocupada com a falta de notícias, dia 4 de janeiro Alice foi à casa dele e entrou por conta própria. Encontrou a quitinete “perfeita, com tudo arrumado, inclusive com todos os documentos de Elias dentro da

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Ainda eu não vá me deter sobre esse tema, vale citar a conexão entre depressão e moralidade apresentada por Arthur Kleinman (2006). A partir de pequenas biografias, o autor reflete sobre como indivíduos constroem-se como agentes morais em circunstâncias ou condições culturais em que o que é convencionado como importante é desafiado ou desfeito em nome de outros indivíduos ou da “sociedade”. Sobre a biografia de Winthrop Cohen, ex-fuzileiro naval judeu-americano, Kleinman faz afirmações interessantes para pensarmos o desaparecimento de Domingos: “And so we have the telling, and not uncommon, paradox of a man with mental illness (depression) giving voice to powerfully disturbing insights about the danger of ordinary life and the burden of moral responsibility that a normal man could neither think or speak.” (Kleinman, 2006, p.38)

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casa”, mas sem pista de onde ele poderia estar. Procurou por Elias na casa de amigos e no trabalho, mas não o encontrou. Decidiu então ir à delegacia, onde foi feito Registro de Ocorrência de desaparecimento de Elias. Poucos dias depois de produzido, o Registro de Ocorrência foi encaminhado ao SDP. Quase um ano depois, já em novembro de 2007, o inspetor que ficou encarregado do caso tomou sua primeira providência para investigar o desaparecimento de Elias: um telefonema para Alice. Foi então informado que Elias “havia falecido e que o mesmo teria sido vítima de atropelamento em São Pedro da Aldeia/RJ”. Diante dessa informação, o inspetor telefonou para a delegacia de São Pedro da Aldeia, onde confirmou o relato de Alice e obteve um número de Registro de Ocorrência. De posse desse número, pesquisou o sistema de dados que reúne ROs feitos em todas as delegacias policiais do estado que são informatizadas. Encontrou enfim um registro em que Elias consta como vítima de “homicídio culposo provocado por atropelamento”. O acidente ocorrera dia 21 de dezembro de 2006, três dias depois que Alice falou com seu irmão pela última vez. O caso foi então arquivado no SDP, como Sindicância Solucionada. 141

Alice compareceu à DP para comunicar o desaparecimento de seu irmão depois de constatar que, embora a quitinete dele estivesse “perfeita, com tudo arrumado, inclusive com todos os documentos de Elias dentro da casa”, não havia pista de onde ele pudesse estar. Se “tudo” estava em seu lugar na residência do vigia, ele, em contraste, estava fora de lugar, não podendo ser encontrado em nenhum dos espaços onde foi procurado. Esse quadro mudou quando Alice soube que seu irmão havia morrido em conseqüência de um atropelamento acidental. A inesperada morte de Elias explicou seu desaparecimento e conferiu a ele nova posição, rearrumando a equação enigmática que conduzira Alice à DP. Mães de desaparecidos que participam de eventos da ReDESAP freqüentemente falam da dor que lhes causa a impossibilidade de rearrumar relações e coisas diante dos desaparecimentos de seus filhos e filhas. Não raro, algumas afirmam que melhor seria saber da pior notícia possível, a de que seus filhos estão mortos, a seguir sem notícia alguma. Diante da falta de informações, quartos são mantidos como eram antes dos desaparecimentos, fotografias continuam enfeitando casas e descrições são muitas vezes construídas em um incerto tempo presente, instaurado pelo sumiço de seus filhos. “Minha filha tem hoje 28 anos e é uma menina calma, sempre foi” e “Meu filho gosta muito de cavalos”, por exemplo, são sentenças que ouvi em eventos da rede sendo proferidas por mães de pessoas desaparecidas há

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Os documentos relativos a esse caso compõem a Sindicância 051/07 do SDP/DH.

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mais de quinze anos. Expressões de passados que se projetam adiante indefinidamente, frases como essas condensam propriedades da experiência traumática, que despliega una temporalidad particular en la que el pasado coexiste e incluso agobia efectivamente el presente de tal manera que su inscripción en el registro de la memória y la historia es a la vez solicitado y frustrado. (Ortega, 2008, p.33-4)

Cientistas sociais como Catela (2001b), Rodrigues (2008) e Araújo (2007a, 2007b, 2008, 2009) tentam dar conta de experiências traumáticas de ter filhos desaparecidos, verdadeiras “calamidades comuns” (Kleinman, 2006, p.4), fazendo uso da palavra “luto”, mas chamando atenção para o que há de específico no desaparecimento e que não cabe no campo semântico compreendido pelo termo “luto”. Catela (2001b), por exemplo, recorre à idéia de “morte inconclusa” para referir-se à falta de desfecho característica do desaparecimento e, assim, nuançar o “luto” vivido pelas mães de desaparecidos. Nota-se, na criação e emprego de termos como “morte inconclusa”, que se por um lado o desaparecimento é um desarranjo, uma desestabilização, uma ruptura, por outro é também um fenômeno de difícil arrumação e estabilização até mesmo quando tomado como objeto de estudo. Como vimos nos casos narrados até aqui, desaparecimentos parecem não caber nos formulários de RO em que são registrados, que exigem a impossível determinação de sua “data e hora” e “local”. Contudo, dada a desimportância atribuída a esses formulários, bem como aos casos neles registrados e às pessoas neles envolvidas, a incongruência entre os enredos de desaparecimento e os papéis disponíveis para seu registro não é objeto de explicitação ou questionamento. Ainda assim, os maços de documentos acomodados em gavetas como as do SDP exibem essa incongruência. Ademais, como indicam os casos de Quincas e Belmiro, registros de desaparecimento implicam a perda da força expressiva de muito do que comunicantes e desaparecidos relatam como elementos cruciais dos casos, subtraindo-lhes complexidade. Em sentido semelhante, desaparecimentos não são facilmente manejáveis em artigos e teses acadêmicas, como indicam não apenas as necessidades de se criar termos como “morte inconclusa” e formular estratégias estéticas como as caixas de texto que venho utilizando aqui, mas também a própria escassez de trabalhos sobre o tema. Importa destacar, porém, que se o manejo de casos e a construção tanto de registros burocráticos, quanto de textos acadêmicos sobre desaparecimentos impõem desafios, eles podem decorrer menos de uma

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suposta natureza do fenômeno que tomam por objeto, e mais de características dos próprios exercícios de registrar e narrar. Como afirma Das (2007, p.205), é importante reconhecer os desafios apresentados por certos usos da linguagem não simplesmente para destacar que ela, a linguagem, falha em face de determinados eventos e experiências que causam sofrimento. Antes, é imprescindível reconhecer as vicissitudes de atos de nomeação e narração para que possamos perceber tanto os interesses e relações de poder que os mobilizam, quanto os possíveis efeitos, planejados ou inesperados, que eles provocam. No caso da produção de narrativas em situações etnográficas, o desenrolar de debates fundamentais no campo da antropologia (cf. Clifford, 1983; Clifford & Marcus, 1986; Marcus & Fischer, 1986) explicitou a relevância desse reconhecimento, tornando-o inevitável. Afinal, tais debates trouxeram à tona a necessidade de nos perguntarmos pelo que é apagado, subtraído ou obscurecido para que deixemos os textos que produzimos bem “arrumados”, para usar o termo presente no caso de Elias.

5.3 Algumas formas eficazes de exclusão A construção de casos de desaparecimento como ocorrências policiais se faz em meio a tentativas dos agentes de polícia de reduzir o amplo escopo de seu trabalho por meio da delimitação do universo em que eles não deveriam intervir: os “problemas de família”. Processo semelhante é objeto de reflexão de Soares (1999), que, ao focar a construção da “violência doméstica” como problema social nos Estados Unidos, analisa também, como ponto de comparação, a experiência das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (DEAM) do Rio de Janeiro. As DEAMs recebem solicitações, queixas e demandas de cidadãos que, como casos de desaparecimento, não necessariamente permitem determinar vítimas e culpados, e “não se ajusta[m] ao modelo dos BOs, cujos campos referem-se somente aos delitos previstos no Código Penal”. (Soares, 1999, p.56). Policiais que nelas atuam

menosprezam o trabalho que desempenham nas DEAMs, que, no jargão policial, é uma “delegacia de papel” ou “delegacia seca”. Consideram-se diminuídos em suas carreiras quando são deslocados de outras delegacias para o atendimento de mulheres, pois acreditam que esse é apenas um trabalho de “assistentes sociais” ou “psicólogos”. Vêem-se como meros burocratas e desconsideram a singularidade das histórias que lhes são contadas, diariamente, nos balcões. “O problema disso aqui é pobreza e cachaça”, resume um policial. (Idem, ibidem, p.53)

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Para a autora, apesar da precária estrutura de que dispõem, as DEAMs são “delegacias de família” ou “delegacias comunitárias” que realizam tarefas mais amplas e variadas do que as previstas no projeto que as instituiu. Recebem, na forma de relatos, queixas e solicitações, “uma demanda que provém, basicamente, vale lembrar, das camadas mais pobres da população e não encontra resposta em outras instituições públicas (e, menos ainda, nas instituições privadas”. (Idem, ibidem, p.56). O objeto do trabalho policial realizado nas DEAMs consiste, segundo a autora, em múltiplos conflitos que não estão previstos em leis universalizantes, e que algumas vezes não são dirimidos por serem classificados, de forma semelhante aos desaparecimentos, como “questão privada” ou “problema íntimo”. Aproximam-se, nesse sentido, do que Mota (1995) designou “casos sociais”. Via trabalho de campo, Mota (1995) constata alta freqüência de “casos” em certa medida semelhantes, ainda que também heterogêneos, em meio às demandas que as camadas pobres levam às delegacias do Rio de Janeiro. A autora trata como “casos sociais” questões e conflitos que escapam às definições jurídicas utilizadas no cotidiano das delegacias, e afirma que sua afluência a essas repartições policiais reflete a carência experimentada pela população. Por falta de acesso a outros recursos institucionais, o “segmento pobre da população” levaria problemas das mais diversas naturezas às delegacias, demandando que seus funcionários exerçam funções de mediação e resolução de conflitos diante de acontecimentos desprovidos de componentes criminais. (Mota, 1995) Em sentido semelhante, e seguindo na mesma direção que Soares (1999), Muniz (1996) mostra que também nas DEAMs do Rio de Janeiro policiais são levados a atuar como mediadores e a negociar conflitos, buscando “soluções distintas daquelas oferecidas pela lógica-em-uso do mundo jurídico formal.” (Muniz, 1996, p.127) Enne, Vianna e Carrara (2002), analisando processos judiciais oriundos de inquéritos policiais instaurados nas mesmas DEAMs a que se dedicaram Muniz (1996) e Soares (1999), chamam atenção para o fato de que prestar queixa nessas delegacias é recurso utilizado por muitas mulheres como forma de restabelecer e manter, com a mediação de poderes públicos, a integridade de unidades domésticas. Para os autores, o desafio com que é preciso lidar ao analisar conflitos e dramas envolvendo laços conjugais e relações amorosas que aportam nas DEAMs, que não poderia ser mais semelhante ao desafio que a gestão de casos de desaparecimento impõe, parece ser o da demarcação, para todos os envolvidos, da fronteira entre a ação pública – que compreenderia tais conflitos como crime – e as 256

negociações semi-privadas, que os toma como rupturas temporárias da ordem familiar, a serem restauradas através da mediação dos poderes públicos. (Enne, Carrara e Vianna, 2002, p.56)

Sobre a escorregadia delimitação do que seja propriamente “violência doméstica” diante da vastidão de solicitações e queixas feitas nas DEAMs, e sobre a dicotomia público versus privado muitas vezes evocada nessas delegacias, Soares (1999) adverte-nos de algo que alcança outras classificações e se revela especialmente valioso para refletir sobre o desaparecimento de pessoas: “os esforços classificatórios, nesse campo, produzem resíduos que demandam, permanentemente, novas demarcações.” (Soares, 1999, p.38). Afinal, se policiais como os agentes do SDP esforçam-se por demarcar o que é “problema de família” e, assim, isentar-se de responsabilidade diante de certo conjunto de ocorrências, e se membros da ReDESAP acordam que é possível distinguir “o desaparecimento mesmo, aquele que precisa de polícia”, de desaparecimentos que são exclusivamente “questão de assistência social”, é certo que tais esforços produzem resíduos. Casos que não se encaixam, casos ambivalentes, casos que, como a fotografia de Domingos, transitam entre searas supostamente delimitáveis e distintas, desafiam quaisquer tentativas de produzir rótulos e estabilizações. Importa cogitar, não obstante, se esses casos que escapam não são, mais que o refugo de certos empreendimentos classificatórios, índices de suas vicissitudes e efeitos nocivos. Como busquei demonstrar no Quadro 3 (capítulo 2), mesmo a aparentemente simples tarefa de agrupar casos para fins de sistematização de material de pesquisa coloca em cena a inevitabilidade dessa produção de resíduos. No referido quadro, tentei produzir um mapa lógico que ordenasse os desaparecimentos com que tive contato a partir dos arquivos do SDP. Essa tentativa de ordenação gerou, como resíduo, o grupo a que intitulei “Outros”: conjunto de casos que não contêm registros que possibilitem enquadrá-los nos demais grupos, e que não permitem concluir nada além do fato de que um comunicante reportou à polícia, que uma pessoa desapareceu, e que policiais tomaram algumas providências administrativas inconclusivas. Casos como esses não escapam de tentativas de classificação por serem intrinsecamente mais enigmáticos que outros desaparecimentos. Antes, casos como esses sobram pela própria maneira como foram comunicados, registrados e arquivados. Nesse sentido, revelam menos sobre seus enredos e suposta complexidade, e mais sobre as suscetibilidades da própria classificação de desaparecimentos. Afinal, todo caso pode ser “Outro”, dependendo da forma como for relatado, registrado e arquivado. Em algumas reuniões em torno do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, Gustavo, gerente de programa estadual de SOS Crianças Desaparecidas e membro do comitê 257

gestor da ReDESAP, mostrou-se reticente com a lista de tipos de desaparecimento oficializada pelo Cadastro. Sua preocupação é dupla. Gustavo fica apreensivo em relação aos cidadãos que preencherão o website “desaparecidos.mj” e terão, obrigatoriamente, que enquadrar casos em tipos. Ao mesmo tempo, preocupa-se também com a possibilidade de alguns comunicantes não serem atendidos se o caso que reportarem não se encaixar naquelas seis categorias: Eu fico pensando nessas subcategorias que nós criamos. Como a população em geral, que também vai acessar o sistema antes da validação, vai usar essas classificações? E outros agentes que não nós, que estamos conhecendo o sistema de perto? Eles vão saber encaixar? Fico preocupado. No SOS [Crianças Desaparecidas] a gente faz um serviço de clínica geral, e eu acho que é assim que tem que ser. Tratamos de tudo como desaparecimento porque a mãe nos procura dizendo que é desaparecimento. Providenciamos os cartazes, preenchemos a ficha, orientamos a mãe a ir à delegacia, fazemos tudo independente do que tenha acontecido.

Durante o período que acompanhei a feitura do Cadastro em reuniões do comitê e entre o comitê e a equipe da SENASP, compartilhei das preocupações de Gustavo. Dentre todas as práticas, técnicas e procedimentos empreendidos por burocratas diariamente, nenhuma medida é mais eficiente na produção social da indiferença do que o que Herzfeld chama de “exclusão categórica”. (Herzfeld, 1992, p.93). A possibilidade de um comunicante de desaparecimento, sejam quais forem suas intencionalidades, não ser ouvido, não ter suas falas convertidas em “declarações” e não conseguir que o que ele reporta seja registrado por não se enquadrar em tipos de desaparecimento, a meu ver, consiste exatamente nesse tipo de exclusão. Como tal, permite que burocratas, entre policiais, conselheiros tutelares e demais agentes autorizados a usar o Cadastro, isentem-se de responsabilidades utilizando como justificativa a própria classificação oficializada pela ferramenta. Nas palavras de Herzfeld, “there is nothing more impassable than a bureaucrat with a taxonomy, because the bureaucrat can always claim that the taxonomy is the State”. (Herzfeld, 1992, p.115). Ademais, comunguei da posição de Gustavo por me perguntar, à luz dos trabalhos de Mota (1995), Muniz (1996), Soares (1999) e Enne, Vianna e Carrara (2002), se de fato as demandas que cidadãos levam a delegacias e que, em alguns casos, restam registradas como desaparecimentos, aportam nessas repartições apenas porque elas estão abertas 24 horas por dia e 7 dias por semana, como diz o delegado Lauro. Talvez, como o amplo leque de conflitos levados às DEAMs, as queixas, relatos e solicitações que são registradas como desaparecimentos sejam levadas às DPs porque seus comunicantes acreditam não dispor de 258

outros meios para lidar com elas. É possível, ainda, que esses comunicantes apresentem suas demandas a policiais por acreditarem no ideal de ubiqüidade e alcance total do poder policial, apesar da desconfiança com que são recebidos em delegacias, ou por apostarem na possibilidade de restaurar unidades domésticas com a mediação dos poderes públicos. De todo modo, se policiais afirmam que desaparecimentos não são “problema de polícia”, categorias como as do Cadastro ampliam e formalizam a possibilidade de exclusão e isenção de responsabilidades por parte deles, ao oficializar o entendimento de que há um “desaparecimento mesmo”, que parece nunca estar encarnado nos casos comunicados cotidianamente em DPs. Em outras palavras, as categorias do Cadastro oficializam a idéia de que há um tipo de acontecimento que é o desaparecimento “verdadeiro” e que exclui os múltiplos “problemas de família” reportados em repartições policiais. Por pensar assim, em reuniões em torno do Cadastro busquei defender que desaparecimentos são, ao mesmo tempo, “questão de segurança pública” e “questão de assistência social”, sustentando, com os termos usados pelos demais membros do comitê gestor, que melhor que especificar classificações seria ampliar o entendimento acerca do fenômeno. Em três ocasiões diferentes, fui convidada pelos demais integrantes do comitê a expor essa posição em eventos da rede. Em todas elas, a área de promoção e defesa dos direitos humanos foi apresentada, conforme apontado anteriormente, como seara da administração pública relativamente flexível, abstrata e indeterminada, capaz de acomodar múltiplas “questões” e responder a diversos interesses, relações de poder e contextos históricos. (Fonseca e Cardarello, 2009). Primeiro, fui consultada sobre a possibilidade de produzir cartilha sobre o desaparecimento de pessoas e conduzir parte dos encontros que seriam destinados, primordialmente, ao treinamento de usuários do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas em seis capitais brasileiras. A cartilha deveria inscrever o desaparecimento no marco dos direitos humanos, conforme solicitação do gestor da SEDH então à frente da ReDESAP. Os encontros aconteceram entre agosto e outubro de 2010. Segundo, fui chamada a proferir uma palestra com título pré-definido “Pessoas Desaparecidas e Direitos Humanos”, no final de abril de 2010, no “Curso de capacitação dos atores do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente para utilização do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas”. Tratava-se de um treinamento piloto, preparatório para o treinamento nas seis capitais. Por fim, fui também convidada a me pronunciar no III Encontro Nacional da ReDESAP, em

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novembro de 2011, onde integrei a mesa intitulada “Direitos Humanos, Cadastro Nacional e Aparato Normativo – Contexto Atual e Perspectivas”. Aceitar esses convites e proferir palestras, formular cartilha e conduzir encontros entre membros e não-membros da rede tanto beneficiou minha pesquisa, quanto foi útil para a ReDESAP. O fato de uma pesquisadora dedicada ao desaparecimento de pessoas integrar o comitê gestor da rede, participar da formulação de material didático para cursos de capacitação e proferir palestras sobre o tema, afinal, indicaria que o desaparecimento é uma “questão” de tal monta e gravidade que mobiliza, além de agentes que desejam combatê-lo, possíveis “especialistas” que tentam compreendê-lo. A urgência e necessidade atribuída a projetos de intervenção, como mostra Ribeiro (2002), se beneficia e amplia à medida que determinados atores e discursos são revestidos da “autoridade de especialistas na questão” (Ribeiro, 2002, p.46). Nesse sentido, o fato de membros da rede fazerem referência à minha presença entre eles designando-me “nossa pesquisadora” certamente não é gratuito. Antes, aponta para a relevância da figura do “especialista” e para a autoridade atribuída a discursos técnicos no campo da administração pública, sobretudo dadas as atuais reconfigurações de estratégias de governo que, como sustenta Rose (2007), são cada vez mais orientadas a “comunidades”. 142 No Brasil, a relevância dos “especialistas” e a autoridade atribuída a discursos técnicos são, inclusive, elementos constitutivos do crescente mercado de trabalho extra-universitário em que atuam muitos antropólogos, como discutem Souza Lima & Castro (2008) e os artigos reunidos em Silva (2008). Se, de um modo geral, a figura do “especialista” e a autoridade do discurso técnico são relevantes para a constituição de “questões”, no caso da construção do desaparecimento de pessoas como problema social isso se coloca de forma candente. Como descrevi antes (capítulo 4), membros da ReDESAP afirmam e reafirmam nos eventos dedicados ao tema que o desaparecimento de pessoas padece da falta de definições. Não surpreende, portanto, que os poucos pesquisadores dedicados ao tema recebam boa acolhida na rede, tenham espaço para proferir palestras e sejam convidados a formular cartilhas, como eu mesma fui. Nesse sentido, 142

Para Rose (2007), ainda que os temas da sociedade, da coesão e da justiça social sejam significativos na discussão política, novas linguagens têm, de modo crescente, tomado não a “sociedade” como território de pensamento e ação, mas recortes comunitários que “se extienden hasta especificar los sujetos de gobierno como indivíduos que son también, de hecho o potencialmente, sujetos de lealtades para un conjunto particular de valores comunitários, creencias y compromisos.” (Rose, 2007, p.118) Esse processo de reconfiguração de territórios de governo demanda atuação do que o autor denomina “autoridad experta”, que gerencia estratégias não-sociais de intervenção. Nas palavras de Rose, “parece como si estuviéramos asistiendo a la emergencia de un rango de racionalidades y de técnicas que tratan de gobernar sin gobernar la sociedad; gobernar a través de las elecciones reguladas hechas por actores singulares y autônomos, en el contexto de sus compromisos particulares con sus famílias y comunidades.” (Rose, 2007, p.113)

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o I Encontro Nacional da ReDESAP contou com a presença de um sociólogo que fazia, na época, pesquisa de doutorado sobre o tema (Oliveira, 2007).143 Já o II Encontro Nacional da ReDESAP, primeiro evento da rede de que participei, em dezembro de 2008, contou com a presença de uma psicóloga que havia recém-concluído sua dissertação de mestrado (Rodrigues, 2008) e chamou atenção, logo na abertura de sua fala, para duas faltas específicas: a ausência de literatura acadêmica sobre o tema e de “estudiosos especializados no desaparecimento de pessoas”. Mais de um ano depois, no III Encontro Nacional da rede, fui eu quem falou aos presentes na condição de pesquisadora, ressaltando que estava escrevendo tese de doutorado sobre o tema, e claramente ocupando o lugar de “especialista” conferido, anos antes, ao sociólogo e à psicóloga que me antecederam. O lugar do “especialista”, sempre preenchido em eventos da rede, tanto é elemento constitutivo da construção do desaparecimento como problema social, quanto parece fazer frente à falta de definições de que se queixam membros da ReDESAP. O desaparecimento, afinal, não é um crime, como tantas vezes ouvi no SDP e nos eventos da rede, e não conta com instrumentos legais que estabeleçam nem mesmo, como diz o inspetor Fernando, uma “metodologia” para investigação policial. Em delegacias, os casos não são vistos como ocorrências propriamente policiais. Ao mesmo tempo, ainda que os enredos de muitos desaparecimentos se aproximem de elementos de processos judiciais como aqueles de interdição civil (cf. capítulo 3), e mesmo que muitos ROs sejam solicitados por pessoas que desejam obter judicialmente declarações de ausência (cf. capítulo 1), o desaparecimento tampouco é visto como problema de justiça. Não obstante, como indicam as indagações que movem membros da rede envolvidos na formulação do Cadastro Nacional, o desaparecimento nem é uma clara “questão de segurança pública”, nem precisamente “de assistência social”. É nesse cenário de negativas que pesquisadores dedicados ao tema, sejam eles psicólogos, sociólogos ou antropólogos, são não só bem recebidos, como também solicitados a participar. É também nesse cenário, como indicam os títulos das mesas e palestras que fui chamada a proferir, que os direitos humanos comparecem não só como flexível seara da administração pública, mas também como uma espécie de indexador curinga, capaz de enquadrar o escorregadio “problema” do desaparecimento de pessoas. Paralelamente a tais solicitações de participação de pesquisadores, contudo, membros da ReDESAP afirmam freqüentemente que a falta de definições em torno do desaparecimento 143

O I Encontro Nacional da ReDESAP ocorreu em Brasília, em novembro de 2002. Embora eu não tenha estado presente no evento, nem tenha conseguido acesso à sua programação, soube da participação do sociólogo porque o fato está registrado nos “Agradecimentos” da tese por ele defendida anos depois. Cf. Oliveira, 2007.

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só pode ser sanada se leis forem formuladas e implementadas. Em outros termos, sustentam que a desordem e desestabilização características do desaparecimento só podem ser plenamente combatidas pela ordem estabelecida por instrumentos jurídicos, ainda que concedam espaço a possíveis contribuições de trabalhos acadêmicos e relatos de “boas práticas” desenvolvidas por instituições variadas. Evidenciam, enfim, os dois processos que Comaroff & Comaroff (2006) descrevem como característicos e especialmente visíveis no chamado mundo pós-colonial, e que Schuch (2009) sustenta haver no Brasil: “de um lado, o fetichismo da lei, expresso na reformulação de novas Constituições Federais, cortes de justiça e uso da lei para resolver questões políticas; de outro, a disseminação do discurso da violência e de uma realidade onde se descreve a ausência de lei.” (Schuch, 2009, p.52). Iluminado por essa colocação, o fetichismo da lei expresso em queixas de membros da ReDESAP quanto à falta de instrumentos legais que definam desaparecimento e regulamentem sua gestão e investigação aponta para especificidades do Brasil pós-1988. Se o Brasil dos anos que separam o golpe militar de 1964 e a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi cenário dos chamados desaparecimentos políticos, hoje tipificados internacionalmente como desaparecimentos forçados de pessoas (cf. capítulo 1), é o Brasil da chamada “Constituição Cidadã” que serve de cenário aos desaparecimentos de pessoa de que trata a ReDESAP e que venho narrando nessa tese. Nesse sentido, desaparecimentos civis, como denomina Oliveira (2007), são alvo de atenção de um Estado que se consubstancia nas novas configurações

morfológicas em se que faz a administração

pública

na

contemporaneidade, como a própria existência da ReDESAP indica. Uma administração que se faz em secretarias, comissões, conselhos e redes que reúnem, articulam e enredam órgãos governamentais, ONGs e “especialistas”, entre outros agentes, e se fundamentam nas idéias de responsabilização, legitimidade e transparência, condensadas pelo cada vez mais corrente termo governança (Teixeira e Souza Lima, 2010, p.4). Como tantas vezes ouvi de Ciro, o antropólogo e gestor da SEDH/PR, alguns membros da ReDESAP acreditam que seu grande capital é a ampla margem de participação por ela propiciada, replicada nas demandas do comitê gestor para que diversos agentes, entre eles conselheiros tutelares, funcionários de ONGs autorizadas e “o cidadão”, possam acessar o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas. Como explicitam as entusiasmadas palavras do delegado Julio, membro do comitê gestor, a participação propiciada pela rede pode converter-se em avanços no enfrentamento do desaparecimento de pessoas como, por exemplo, a efetivação da tão desejada ferramenta de registro: “Temos a Secretaria [Especial 262

de Direitos Humanos da Presidência da República], as mães [de desaparecidos], os SOS [Crianças Desaparecidas], os policiais, os conselheiros [tutelares], os estudiosos; juntos, a gente vai conseguir implementar esse Cadastro.” Se membros da ReDESAP prezam pela idéia de participação, e vêem na reunião de múltiplos agentes um de seus capitais, ao mesmo tempo parte de seus integrantes denunciam experiências de exclusão. Enquanto no plano da construção do desaparecimento de pessoas como problema social evoca-se a idéia de engajamento e inclusão, no plano da gestão cotidiana de desaparecimentos como ocorrências policiais são muitas as experiências de indiferença e exclusão enfrentadas por comunicantes e demais “Envolvidos” nos casos. Isso não significa que haja uma relação puramente paradoxal entre esses dois planos. Ao contrário, como vimos anteriormente (capítulo 4), tais experiências vividas em delegacias são formuladas como denúncias de ausências constitutivas do desaparecimento como problema social, o que as torna parte crucial da construção dessa “questão” como algo a ser urgentemente combatido. Nesse sentido, os dois planos, apartados aqui para fins de análise, são complementares, a despeito de sua aparente oposição. A complementaridade entre os planos da gestão de desaparecimentos como ocorrências policiais e da construção do desaparecimento como problema social é evidenciada, sobretudo, nos relatos de experiências de indiferença e exclusão feitos pelas mães de desaparecidos em eventos da ReDESAP. Em suas falas, muitas mães afirmam ter comparecido a delegacias para reportar os casos de seus filhos e, sem conseguir registrá-los, ter retornado para suas casas frustradas e sentindo-se desrespeitadas. O não registro de casos, bem como a postergação de muitos registros, seja por 24 ou 48hs, seja por meses a fio, são apresentados pelas mães como dolorosas experiências que ampliam e agravam o sofrimento de ter um filho desaparecido, e formuladas como denúncias da ausência de uma polícia sensível e competente. Os casos narrados e citados ao longo dessa tese, embora não tenham sido relatados em eventos públicos promovidos pela rede, também enredam experiências de indiferença e exclusão como aquelas denunciadas pelas mães de desaparecidos. Entre tantos outros, é bastante ilustrativo o caso do idoso cuja filha recebeu, na DP, um catálogo telefônico para conduzir buscas por si própria e, só depois de “esgotadas todas as possibilidades” de contatos telefônicos, conseguiu obter o RO de desaparecimento de seu pai. A própria idéia de que a polícia só deve ser procurada depois de “esgotadas todas as possibilidades”, aliás, é em si mesma uma forma apriorística de exclusão. Afinal, ainda que policiais recebam, investiguem 263

e arquivem muitos casos de desaparecimento, a forma como o fazem, tantas vezes por meio de delegações, afirmando que não deveriam fazê-lo e construindo a desimportância dos casos que registram é, ela mesma, uma modalidade eficaz de exclusão. Para Kant de Lima, Pires & Eilbaum (2008), que analisam reformas instituídas pela Constituição Federal de 1988 nas áreas de justiça criminal e segurança pública, as práticas de órgãos administrativos inscritos nessas áreas ainda se concentram em uma dimensão repressiva, apesar do que dispõem os mais recentes instrumentos legais com que podemos contar no Brasil. 144 Para os autores, embora esses dispositivos prevejam mecanismos de negociação e mediação de conflitos, o cotidiano de instituições como as delegacias de polícia é caracterizado por práticas e idéias menos participativas e conciliatórias, e mais repressivas. Sua análise, nesse sentido, suscita indagações quanto à pertinência e produtividade da ênfase de membros da ReDESAP na ausência de leis como obstáculo central para o pleno enfrentamento do desaparecimento de pessoas no Brasil. Se os mais recentes instrumentos legais de que dispomos não têm equivalência em novas práticas administrativas, que ganhos novas leis podem representar para o combate do desaparecimento de pessoas? Em todos esses elementos normativos criados nos últimos anos, é nítida a ênfase posta nas formas de administração institucional de conflitos baseadas na prevenção e na mediação, assim como no diagnóstico dos problemas e soluções e na mobilização de recursos multissetoriais (policiais, sociais, culturais) para o enfrentamento da violência e da criminalidade, em complemento às ações que envolvem estratégias de ordenamento social por meio da repressão qualificada. Contudo, o foco das práticas de segurança ainda se concentra na dimensão repressiva, que privilegia a penalização dos conflitos. As instituições policiais, vinculadas administrativamente aos governos estaduais, são as principais protagonistas desse modelo. (Kant de Lima, Pires e Eilbaum, 2008, p.157)

Segundo os autores, a instituição de dispositivos de negociação e mediação de conflitos promovida pela Constituição de 1988 não lograram êxito, entre outras razões, porque os dramas levados pelos cidadãos a delegacias de polícia e instâncias da justiça criminal ora não são reconhecidos como conflitos, ora são classificados como menores e menos importantes que os “fatos” encarados como manifestações dos grandiloqüentes temas da “criminalidade” e da “violência”. Para usar uma das expressões cunhadas no trabalho de Cardoso de Oliveira (2002), tais dramas e demandas são objeto de “atos de desconsideração”, e têm seu reconhecimento recusado na própria instância policial, que os recebe diretamente 144

Vale destacar que as (confessionais) práticas da chamada “justiça restaurativa”, analisadas por Schuch (2009), são parte dos novos dispositivos instituídos no Brasil da “Constituição Cidadã”.

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dos “comunicantes”. Assim como os trabalhos de Muniz (1996), Soares (1999) e Enne, Vianna e Carrara (2002) permitem concluir que o cotidiano das DEAMs é uma rotineira confirmação disso, é impossível não admitir que a gestão do desaparecimento de pessoas, objeto das narrativas, descrições e considerações feitas na presente tese, também o é. Como vimos, por exemplo, nos casos de Vicente, Quincas, Belmiro e Elias, muitos desaparecidos, “comunicantes” e demais “Envolvidos” em casos de desaparecimento prezam por documentos e papéis oficiais de modo a manter intacto e ativo o vínculo que faz deles “o cidadão”, mesmo em face das rupturas, desordens e desestabilizações provocadas pelo desaparecimento. Contudo, tanto a gestão de casos de desaparecimento como ocorrências policiais, quanto sua construção como problema social trazem consigo processos de exclusão e construção cotidiana da desimportância que incidem diretamente sobre esse vínculo. Afinal, tais processos particularizam, inferiorizando, o abstrato “cidadão” que todos acreditamos encarnar quando zelamos por nossos documentos e, igualmente, quando recorremos a repartições públicas, entre elas as delegacias de polícia, para solicitar serviços, reportar acontecimentos e buscar assistência.

5.4 Uma nota sobre participação O estreitamento e a consolidação das relações que mantive no comitê gestor da ReDESAP e, fora dele, com membros e não membros da rede que freqüentam seus eventos permitiu que eu melhor conhecesse as posições de agentes envolvidos com o desaparecimento de pessoas no Brasil, ao mesmo tempo em que lhes permitiu fazer uso da presença de uma pesquisadora ou, como discutido acima, “especialista” no tema. Como também já mencionado, a partir de convites e da gradativa abertura de espaços e oportunidades, proferi palestras, participei da formulação de cartilha e conduzi encontros locais. No último evento de que participei, o III Encontro Nacional da ReDESAP, em novembro de 2010, fui ainda solicitada por Sônia, mãe de adolescente desaparecida que fundou uma ONG que hoje preside, a auxiliá-la na redação de um documento que foi intitulado “Proposta da Sociedade Civil às Autoridades”. Idealizada por Sônia, a “Proposta” foi redigida para ser anexada ao documento final produzido no III Encontro Nacional da rede, a chamada “Carta de Roraima”. Assinada por representantes de cinco ONGs que estiveram presentes no evento, a “Proposta” clama pela criação de secretarias ou núcleos de atendimento e prestação de assistência a

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desaparecidos e familiares de desaparecidos. Sônia solicitou minha ajuda não para criar, mas para redigir e formatar o texto da “Proposta”, o que fiz prontamente. Participar dos eventos e iniciativas da rede e atender a solicitações como a de Sônia, convites para produzir material didático e chamados para reuniões sobre o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas foram, além de atividades valiosas em si mesmas, decisões de pesquisa cruciais para que eu seguisse tentando compreender como o desaparecimento de pessoas é gestado e gerido no Brasil. À medida que cumpri compromissos firmados com membros da ReDESAP, permeando minhas notas de campo com listas de tarefas a executar e prazos a honrar, me engajei em certo circuito de trocas que, como nos ensina Mauss (2003), evidentemente não se esgotou nas palestras proferidas, convites aceitos, “propostas” redigidas e demais coisas trocadas. Apenas estabelecendo e consolidando relações com os membros e não membros da rede que freqüentam seus eventos pude, afinal, conhecer o que busquei descrever ao longo da tese. Como ocorreu a Schuch (2009) em sua pesquisa sobre práticas de justiça voltadas a crianças e adolescentes no Brasil pós-ECA, também no meu caso “a ênfase na „participação‟, ao invés de um deslize semântico, foi, ao mesmo tempo, uma condição, um instrumento de pesquisa e um dado envolvente de campo.” (Schuch, 2009, p. 86) Vale ressaltar, não obstante, que se minha presença entre membros e não membros da ReDESAP, mais do que útil, foi condição para a consecução da pesquisa, minha participação nos eventos da rede também lhes foi útil e, em certa medida, necessária. Como nos lembra Pacheco de Oliveira (2004), Hoje em dia não há mais como pensar em pesquisas que não sejam avaliadas positivamente pelos indígenas, seja por estes concordarem com suas finalidades, seja por avaliarem que a sua utilidade sobrepuja os riscos e desconfortos de sua realização. (Pacheco de Oliveira, 2004, p.13)

Destaco a dupla utilidade de minha presença entre membros e não membros da rede não para insinuar que não tenhamos experimentado dilemas, desconfortos e riscos no decorrer de nossas interações. Ao contrário, à luz das palavras de Pacheco de Oliveira (2004), reconheço essa utilidade para melhor compreender que, em certas ocasiões, ela se sobrepôs aos sempre presentes riscos e desconfortos de ser pesquisado ou, por outro lado, ser um pesquisador crescentemente envolvido no campo pesquisado. Como me disse o inspetor Fernando logo que comecei o trabalho de campo no SDP, “ninguém gosta de ser observado em seu trabalho”. Não tenho dúvidas de que a validade dessa advertência se estende para

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muito além da sala 709 da Delegacia de Homicídios, e aponta para o potencial mal-estar constitutivo de quaisquer situações de pesquisa, notadamente pesquisas etnográficas. Experimentei alguns desconfortos no curso do trabalho de campo não porque tenha sido instada a dizer “de que lado tu estás?”, como ocorreu a Schuch (2009), e levada a refletir em termos de alianças e oposições sobre as vicissitudes de pesquisar e, indissociavelmente, participar de campos de disputas pela instituição de visões e divisões do mundo (Bourdieu, 2008, 2010). Antes, o mal-estar que mais claramente me acompanhou ao longo de toda a pesquisa foi a tensão de ter que lidar com categorias e rótulos que, como vimos com Douglas (2007), estabilizam fluxos, suspendem a possibilidade de análise e propiciam com assustadora eficácia exercícios de “exclusão categórica” (Herzfeld, 1992). Documentos, práticas e procedimentos políticos e burocráticos dificilmente acomodam perspectivas analíticas (Riles, 2006b). Nesse sentido, participar da produção de categorias fechadas de desaparecimento, ouvir repetidas vezes que os casos são “problema de família” e participar de debates sobre o desaparecimento ser “questão de assistência social” ou “questão de segurança pública”, permitiu-me tomar consciência do imenso desafio de “juntar as práticas do exercício acadêmico com as do exercício da intervenção”. (Souza Lima e Castro, 2008, p.35). Não obstante, esses mesmos exercícios de pesquisa e participação construíram uma inesperada e fugaz ponte entre essas práticas. “Ouvindo você falar eu entendi. Realmente, o desaparecimento é isso, um fenômeno.” Com esses dizeres e um largo sorriso, Sônia se aproximou de mim ao final do evento da ReDESAP em que nos conhecemos, em um hotel no Centro do Rio de Janeiro, dia 24 de agosto de 2010. Era o primeiro dos seis encontros locais promovidos pela rede que conduzi junto a outras duas antropólogas. Embora inicialmente estivesse previsto o treinamento no uso do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, como já mencionado, o evento foi inteiramente dedicado a uma reflexão sobre o desaparecimento de pessoas no marco dos direitos humanos. Ao longo do dia, discutimos o tema sob diferentes prismas e ouvimos posições de diferentes pessoas, como policiais civis, policiais militares, servidores do judiciário e funcionários de ONGs, entre outros. Em minhas falas, muitas vezes me referi ao desaparecimento como “o fenômeno do desaparecimento”, ou simplesmente “o fenômeno”, não por ter escolhido esse termo em função de critérios específicos, mas por utilizá-lo correntemente para designar os mais variados fatos sociais (Durkheim, 1978) tomados por cientistas sociais como objeto de estudo. Do ponto de vista de Sônia, porém, havia algo de especial nessa palavra. Seu sorriso indicava 267

que, para ela, o termo “fenômeno” parecia capaz não de subtrair, mas de sustentar e transmitir a força desestabilizadora, atordoante e enigmática do desaparecimento de pessoas. O que, para mim, era pouco mais que um termo chave para designar processos, relações e configurações eleitas por cientistas sociais como temas de pesquisa, para aquela mãe funcionou, ainda que por um instante fugidio, como um rótulo diferente dos rótulos de que fala Douglas (2007). Para Sônia, o termo “fenômeno” não retirava o desaparecimento da possibilidade de análise, nem lhe impunha uma artificial estabilidade. Ao contrário, era capaz de abarcar sua complexidade e seu caráter dinâmico e disruptivo. Sônia foi a única mãe de desaparecido presente no evento de agosto de 2010. Diferente dos casos narrados por outras mães que conheci em encontros e reuniões da rede, o desaparecimento de sua filha foi solucionado. A menina, que tinha 9 anos quando desapareceu, foi encontrada morta. Na mesma época, Mara, outra mãe que havia passado por situação semelhante, conheceu Sônia e as duas fundaram uma ONG a que se referem, carinhosamente, como “o movimento”. Presidido por Sônia, “o movimento” tem como missão promover ações de prevenção e combate ao rapto, seqüestro e desaparecimento de crianças. Tornando o impessoal salão em que conheci a fundadora do “movimento” um lugar especialmente familiar, também estiveram lá durante todo o dia Gustavo, o gerente de programa estadual de SOS Crianças Desaparecidas que é membro do comitê gestor da ReDESAP, e o inspetor Fernando, do SDP. Desde março de 2008, quando conheci o SDP, até aquele evento, em meados de 2010, Fernando e Gustavo tornaram-se pessoas fundamentais para minha gradual, crescente, mas sempre parcial compreensão dos processos em jogo tanto na gestão do desaparecimento como ocorrência policial, quanto em sua construção como problema social. Mais do que isso, ambos apresentaram-me idéias e posições que passei a considerar também minhas, a despeito da linha invisível e em larga medida ficcional, mas não sem efeitos e desdobramentos, que separa pesquisadores e pesquisados. Aquele evento foi a primeira ocasião em que o inspetor Fernando, com quem eu havia convivido no exíguo espaço do SDP, ouviu falas minhas a respeito do desaparecimento de pessoas em cenário distinto e carregado da solenidade de um evento público. Para meu alívio, Fernando se disse satisfeito com o evento e com minhas palavras, e feliz por constatar que eu “falo bem” sobre o tema com qual ele trabalha há tanto tempo. Como mostra a já citada etnografia de Comerford (1999), “falar bem” pode ser uma dos poucas maneiras de se adquirir espaço e trânsito em “lutas” que não são diretamente nossas. Ao mesmo tempo, porém, aquele que “fala bem” ou “fala bonito” pode ser alvo de especial desconfiança, sobretudo se fala 268

sobre determinado tema, mas não é considerado alguém diretamente atingido por ele. No caso estudado por Comerford (1999), distinções são delineadas entre aqueles que são trabalhadores e aqueles que falam sobre os trabalhadores. No meu caso, que não sou policial, como Fernando, nem mãe de desaparecido, como Sônia, nem servidora pública, como Gustavo, foi um tanto desconfortável estar exposta à avaliação e à possível desconfiança de todos eles ao mesmo tempo. Ainda que viesse participando regularmente de reuniões e encontros da rede na condição de “nossa pesquisadora”, aquele foi o primeiro evento que teve lugar no Rio de Janeiro e em que fui responsável por falar sobre desaparecimento exatamente para as pessoas cujo cotidiano e atuação constituíram as bases para meu entendimento sobre o fenômeno. Saber que Fernando ficou satisfeito com o que ouviu minorou meu desconforto. Mas ouvir de Sônia que uma das palavras que empreguei inúmeras vezes ao longo do dia aplacou alguns dos seus desconfortos foi um passo além. Seus dizeres, afinal, tornaram momentaneamente tangíveis alguns dos efeitos inauditos e imponderáveis dos sempre imbricados atos de pesquisar e participar. O desafio de lidar e participar da produção de categorias fechadas de desaparecimento e fronteiras entre supostas unidades de responsabilidade cujas obrigações seriam excludentes acompanhou toda minha trajetória de pesquisa. Em diálogos e interações com policiais, mães de desaparecidos e gestores governamentais e não-governamentais que atuam no largo campo das políticas públicas, empregar aquelas categorias e evocar unidades como “o Estado”, “a família” e “polícia” parecia-me inevitável e, ao mesmo tempo, pouco produtivo. Era como se, exatamente na condição de “nossa pesquisadora”, eu corroborasse e reforçasse o uso de rótulos que, como as formas narrativas padronizadas presentes em documentos policiais, subtraem a força expressiva daquilo que registram e congelam seu caráter desestabilizador. Em outras palavras, era como se eu alimentasse um dos componentes mais terríveis de muitos casos de desaparecimento: o confinamento de dramas e enredos complexos e variados em documentos e arquivos fechados, que situam pessoas, fotografias, bilhetes e informações em um passado empoeirado que oprime o presente (Ortega, 2007) e dificulta que coisas e relações sejam reordenadas e reconstituídas. Contra esse pano de fundo, os aparentemente triviais dizeres de Sônia foram iluminadores. Se palavras e enunciados têm efeitos performativos em certos contextos de situação, incidindo sobre determinados campos, como nos advertem, a partir de distintas matrizes disciplinares, Malinowski (1935), Austin (1962) e Bourdieu (2008), Sônia me revelou o duplo caráter desses efeitos. Enquanto minhas expectativas e desconfortos no curso 269

da pesquisa giraram em torno do poder enrijecedor de categorias e enunciados, a fundadora do “movimento” apontou a possibilidade oposta: o poder englobante e reconfortante, ainda que efêmero, de palavras e enunciados proferidos em determinados espaços autorizados. Consciente de parte de suas limitações, silêncios e imprecisões, a redação desta tese é uma aposta nessa possibilidade.

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Considerações Finais À procura de Luísa Porto

Pede-se a quem souber do paradeiro de Luísa Porto avise sua residência à Rua Santos Óleos, 48. Previna urgente solitária mãe enferma entrevada há longos anos erma de seus cuidados. Pede-se a quem avistar Luísa Porto, de 37 anos, que apareça, que escreva, que mande dizer onde está. Suplica-se ao repórter-amador, ao caixeiro, ao mata-mosquitos, ao transeunte, a qualquer do povo e da classe média, até mesmo aos senhores ricos, que tenham pena de mãe aflita e lhe restituam a filha volatilizada ou pelo menos dêem informações. É alta, magra, morena, rosto penugento, dentes alvos, sinal de nascença junto ao olho esquerdo, levemente estrábica. Vestidinho simples. Óculos. Sumida há três meses. Mãe entrevada chamando. Roga-se ao povo caritativo desta cidade que tome em consideração um caso de família digno de simpatia especial. Luísa é de bom gênio, correta, meiga, trabalhadora, religiosa. Foi fazer compras na feira da praça. Não voltou. Levava pouco dinheiro na bolsa. (Procurem Luísa.) De ordinário não se demorava. (Procurem Luísa.) Namorado isso não tinha. (Procurem. Procurem.) Faz tanta falta. Se todavia não a encontrarem nem por isso deixem de procurar com obstinação e confiança que Deus sempre recompensa 271

e talvez encontrem. Mãe, viúva pobre, não perde a esperança. Luísa ia pouco a cidade e aqui no bairro é onde melhor pode ser pesquisada. Sua melhor amiga, depois da mãe enferma, é Rita Santana, costureira, moça desimpedida. a qual não dá noticia nenhuma, limitando-se a responder: Não sei. O que não deixa de ser esquisito. Somem tantas pessoas anualmente numa cidade como o Rio de Janeiro que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada. Uma vez, em 1898, ou 9, sumiu o próprio chefe de polícia que saíra à tarde para uma volta no Largo do Rocio e até hoje. A mãe de Luísa, então jovem, leu no Diário Mercantil, ficou pasma. O jornal embrulhado na memória. Mal sabia ela que o casamento curto, a viuvez, a pobreza, a paralisia, o queixume seriam, na vida, seu lote e que sua única filha, afável posto que estrábica, se diluiria sem explicação. Pela última vez e em nome de Deus todo-poderoso e cheio de misericórdia procurem a moça, procurem essa que se chama Luísa Porto e é sem namorado. Esqueçam a luta política, ponham de lado preocupações comerciais, percam um pouco de tempo indagando, inquirindo, remexendo. Não se arrependerão. Não há gratificação maior do que o sorriso de mãe em festa e a paz íntima conseqüente às boas e desinteressadas ações, puro orvalho da alma. Não me venham dizer que Luísa suicidou-se. O santo lume da fé ardeu sempre em sua alma pertence a Deus e a Teresinha do Menino Jesus. Ela não se matou. Procurem-na. Tampouco foi vítima de desastre que a polícia ignora e os jornais não deram. Está viva para consolo de uma entrevada e triunfo geral do amor materno filial 272

e do próximo. Nada de insinuações quanto à moça casta e que não tinha, não tinha namorado. Algo de extraordinário terá acontecido, terremoto, chegada de rei. As ruas mudaram de rumo, para que demore tanto, é noite. Mas há de voltar, espontânea ou trazida por mão benigna, O olhar desviado e terno, canção. A qualquer hora do dia ou da noite quem a encontrar avise a Rua Santos Óleos. Não tem telefone. Tem uma empregada velha que apanha o recado e tomará providências. Mas se acharem que a sorte dos povos é mais importante e que não devemos atentar nas dores individuais, se fecharem ouvidos a este apelo de campainha, não faz mal, insultem a mãe de Luísa, virem a página: Deus terá compaixão da abandonada e da ausente, erguerá a enferma, e os membros perclusos já se desatam em forma de busca. Deus lhe dirá: Vai, procura tua filha, beija-a e fecha-a para sempre em teu coração. Ou talvez não seja preciso esse favor divino. A mãe de Luísa (somos pecadores) sabe-se indigna de tamanha graça. E resta a espera, que sempre é um dom. Sim, os extraviados um dia regressam ou nunca, ou pode ser, ou ontem. E de pensar realizamos. Quer apenas sua filhinha que numa tarde remota de Cachoeiro acabou de nascer e cheira a leite, a cólica, a lágrima. Já não interessa a descrição do corpo nem esta, perdoem, fotografia, disfarces de realidade mais intensa e que anúncio algum proverá. Cessem pesquisas, rádios, calai-vos· Calma de flores abrindo no canteiro azul onde desabrocham seios e uma forma de virgem intata nos tempos. E de sentir compreendemos. Já não adianta procurar 273

minha querida filha Luísa que enquanto vagueio pelas cinzas do mundo com inúteis pés fixados, enquanto sofro e sofrendo me solto e me recomponho e torno a viver e ando, está inerte gravada no centro da estrela invisível Amor. Desaparecimento de Luísa Porto, Carlos Drummond de Andrade

Poeta e burocrata, Carlos Drummond de Andrade escreveu em verso o enredo do desaparecimento de Luísa Porto, de 37 anos, alta, morena e levemente estrábica. Luísa foi fazer compras na feira da praça e, desde então, não retornou. Não levava muito dinheiro e não costumava demorar quando saía. Sua melhor amiga, a costureira Rita Santana, nada sabe sobre seu paradeiro. Do pouco que diz, só há registro da negativa “Não sei”. Aflita, a mãe, pobre, viúva e paralítica, clama pela procura da filha, através da máquina de escrever do poeta. Sabe que talvez Luísa jamais seja encontrada. Ainda assim, pede ao leitor, ao repórter-amador, ao transeunte e até mesmo aos ricos da cidade que lhe devolvam Luísa ou, pelo menos, lhe dêem informações. Cogita ainda que a própria desaparecida possa, quem sabe, voltar espontaneamente. Percorrido o poema, entretanto, substitui seus apelos pela constatação de que já não interessa a descrição do corpo, nem a alegada castidade da moça. Pode ser que Luísa não retorne nunca. Diluída no mundo sem explicação, a desaparecida ganha, finalmente, lugar inerte no amor materno, onde vive para consolo da mãe adoecida e é, ao mesmo tempo, bebê cheirando a leite, moça casta e mulher trabalhadora. O “Desaparecimento de Luísa Porto” condensa temporalidades, sustenta um enigma e soma, narrativamente, súplicas, suspeitas, reputações e tantos outros elementos constitutivos de casos de desaparecimento que, como diz em verso, acontecem anualmente numa cidade como o Rio de Janeiro. Diferente de registros policiais que os documentam, categorias formais que os classificam e textos acadêmicos que os tomam como objeto de estudo, porém, o poema ampara, simultaneamente, tanto a desimportância e relativa banalidade desses casos, quanto seu caráter extraordinário e disruptivo. Sem subtrair a força expressiva da voz da mãe, sem deixar que o desarranjo da situação se esvaia, mas também sem se furtar a insinuações, a poesia transmite tudo aquilo que é apartado, traduzido, classificado e talvez excessivamente arrumado em textos de outras naturezas que também tomam desaparecimentos como matéria. 274

Como diz o poeta, anúncio algum pode prover a intensa realidade disfarçada em descrições, retratos e registros sobre desaparecidos e desaparecimentos. A tese que ora encerro é resultado de um processo de pesquisa ao longo do qual, conforme pede a poesia, gastei certo tempo indagando, inquirindo e remexendo desaparecimentos de pessoa. O trabalho de campo e a redação do texto foram guiados pelo objetivo geral de compreender como múltiplos casos são gestados e geridos (Souza Lima, 2002) como ocorrências policiais de um mesmo tipo, e como o fenômeno do desaparecimento é construído como singular “problema social”. Para tanto, tomei como objeto de estudo outras empreitadas e iniciativas que também dedicam certo tempo a indagar, inquirir e remexer desaparecimentos, embora o façam com finalidades bastante distintas: registros e investigações policiais de casos reportados em delegacias, e eventos públicos dedicados a debates e propostas para o enfrentamento desse “problema”. A partir de trabalho de campo inicialmente realizado no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, e posteriormente estendido para eventos da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), procurei refletir sobre o que é construído como desaparecimento de pessoas e, ato contínuo, sobre as unidades de responsabilidade delimitadas e evocadas em tal construção. Nesse processo, vale destacar, deparei-me com o desafio de produzir e lidar com categorias e amarras textuais que, diferente da poesia de Drummond, classificam, codificam e ordenam as tramas, relações e desarranjos a que se referem, subtraindo-lhes muito de sua força expressiva e de seu caráter dinâmico e desestabilizador. Como muitos dos casos narrados ao longo da tese, o desaparecimento de Luísa Porto é caso de família, dor individual, acontecimento digno de simpatias pessoais. Sua solução trará como máxima recompensa a paz íntima daqueles que o desvendarem e o sorriso festivo da mãe entrevada, e não a boa sorte dos povos ou a vitória de muitos na luta política. É uma “calamidade comum” (Kleinman, 2006), cujo desfecho, acredita-se, depende da caridade do povo e de sua crença na boa reputação de Luísa. É, enfim, algo banal, página a ser facilmente virada ou ocorrência policial que pode, sumariamente, ser arquivada. Desaparecidos um dia regressam, como se estivessem ouvindo as súplicas dos que por eles esperam, e as imprecisas datas de seus sumiços são dados irrelevantes. Como vimos na Introdução, aliás, pesquisadores do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro asseguram que mais de 70% dos desaparecidos retornam para suas casas.

275

Não obstante, também como outros casos narrados aqui, em certa medida o desaparecimento de Luísa é também um emblema do inexplicável, consequência de eventos insuspeitados da magnitude de terremotos ou da inverossímil mudança de rumo de ruas e avenidas. Fato extraordinário, de impossível inteligibilidade a partir dos elementos que nos são dados a conhecer, tem a capacidade de fazer os membros atrofiados da mãe paralítica se desatarem, e deve ser tratado a qualquer hora do dia ou da noite. Uma pessoa pode, afinal, volatilizar-se, causando perplexidades que se desdobram no tempo e não têm conclusão. Não importa o quanto nós, com nossos inúteis pés fixados, por eles procuremos: desaparecidos talvez nunca regressem. Podem, inclusive, ter sido vítimas de crimes terríveis, conforme sustenta a ONG carioca Rio de Paz, e jamais ter suas mortes investigadas e seus corpos propriamente velados e pranteados. Essas duas dimensões tão bem combinadas no “Desaparecimento de Luísa Porto” sintetizam aspectos centrais do modo como o desaparecimento de pessoas é gestado e gerido, no Brasil contemporâneo, como ocorrência policial e “problema social”. Enquanto policiais que ouvem comunicações de casos particulares os encaram como “problemas de família” de somenos importância, agentes sociais engajados em debates públicos centrados no tema enfatizam sua máxima relevância e seu caráter extraordinário e desestabilizador. Desse modo, individualmente casos particulares não recebem muita atenção nas repartições em que são reportados, ao passo que o “problema social” do desaparecimento mobiliza múltiplas instituições e merece encontros e reuniões frequentados por servidores públicos, funcionários de ONGs, mães de desaparecidos e demais agentes sociais que clamam para que o fenômeno seja duplamente contido. Em conjunto, esses agentes rogam para que o desaparecimento de pessoas seja tanto delimitado por definições e instrumentos legais específicos que o tomem como conteúdo, quanto barrado e imobilizado por iniciativas de prevenção que garantam que novos casos não acontecerão. Nesse quadro, não surpreende que instâncias que os reúnem, como por exemplo a ReDESAP, concedam espaço crescente a pesquisadores que, alçados à condição de “especialistas”, produzam definições autorizadas que dêem conta do tema. Mais do que isso, nesse quadro não surpreende que o desaparecimento de pessoas, como grave “problema social”, ganhe visibilidade e importância como fenômeno quase autônomo, relativamente descolado de casos particulares. Por outros caminhos, distintos tanto do trabalho de campo que deu origem a esta tese, quando do percurso poético traçado por Drummond, Lampinen et al (2008) também apontam para o relativo descolamento entre essas duas dimensões do desaparecimento de pessoas. Há 276

alguns anos, os pesquisadores conduziram estudo sobre a eficácia de cartazes com fotografias de crianças e adolescentes desaparecidos como, por exemplo, os que ilustram as paredes do SDP. Tomaram como objeto de pesquisa posters com retratos de desaparecidos que são periodicamente colados (e renovados) nas paredes de uma mercearia de bairro, em uma cidade estadunidense. Através de questionários respondidos por consumidores da mercearia, concluíram que, diante dos posters, pessoas comovem-se e afirmam de modo resoluto que o desaparecimento é um “problema” grave e atordoante. Ao mesmo tempo, contudo, as mesmas pessoas relatam não olhar detidamente para as fotografias neles estampadas, nem memorizar as faces das crianças e adolescentes cujos desaparecimentos são por eles divulgados. Os cartazes, portanto, são eficazes para sensibilizar pessoas em relação ao “problema” do desaparecimento, mas não para auxiliar a solução de casos particulares. Como

busquei descrever ao

longo deste trabalho, casos particulares de

desaparecimento constituem-se a partir da ausência da pessoa desaparecida nos espaços geográficos e nas teias de relações às quais, do ponto de vista de ao menos uma outra pessoa, ela deveria estar vinculada. Essa ausência é objeto de comunicação e registro em delegacias de polícia, às quais comunicantes de casos se dirigem movidos por variadas combinações de intenções, interesses e sentimentos. Já o “problema social” do desaparecimento é construído, como demonstram eventos da ReDESAP, a partir da denúncia pública de múltiplas faltas que, somadas, parecem conferir àquela ausência uma importância e gravidade que lhe é rotineiramente negada em repartições policiais: as ausências de um Estado assistente e provedor, de uma polícia sensível e competente e, ainda, de uma família protetora. Mas por que a ausência da pessoa desaparecida não é, por si só, capaz de conferir importância ao “problema” do desaparecimento? O que está em jogo na produção cotidiana da irrelevância dos casos e das pessoas neles enredadas que parece amortecer seu caráter problemático? Essas interrogações sintetizam, mais e melhor que resultados e conclusões definitivas, o ponto a que a pesquisa conduzida no SDP e na ReDESAP permitiu-me chegar. Se, por um lado, há uma relativa incongruência entre a gestão de casos particulares e a gestação do “problema social” do desaparecimento, por outro há também laços de complementaridade e mútua constituição entre eles. O mais fundamental desses laços, conforme a pesquisa indicou, é o fato de que, talvez precisamente por considerar casos de desaparecimento ocorrências menores, policiais produzem registros parcos e imprecisos que alimentam, por sua própria vagueza, seu caráter enigmático. Nesse sentido, ao construírem cotidianamente a irrelevância dos casos, paradoxalmente alimentam o cunho extraordinário e 277

atordoante atribuído por outros agentes sociais ao desaparecimento de pessoas. Afinal, investigações encerradas porque não foram registrados dados suficientes para dar prosseguimento às investigações, entre outros desfechos tão kafkianos quanto sumários dados a muitos casos, perpetuam indefinidamente a aparente impossibilidade de se solucionar certos desaparecimentos. Mas algo mais parece conectar esses dois planos de forma crucial, além dos efeitos da produção cotidiana da irrelevância empreendida em repartições policiais. A grande quantidade de casos de “sucesso”, para usar um termo empregado algumas vezes pelo inspetor Fernando, é vista no SDP e em outras repartições policiais como evidência máxima de que desaparecimentos são “problemas” reversíveis, iniciados e encerrados dentro de uma unidade, que, para eles, deve ser auto-contida e auto-gerida: a “família”. Do ponto de vista de alguns agentes sociais engajados em debates sobre o tema, simbólica e pragmaticamente representados pelas mães de pessoas desaparecidas, participar de eventos dedicados ao desaparecimento e fazer pronunciamentos emocionados que conectam dores individuais a esse grave “problema social” é, em larga medida, questionar a banalidade e a desimportância atribuídas não só ao desaparecimento de um filho ou filha, mas a tudo o que, como ele, ocorre no interior de “famílias”. Em outros termos, participar de eventos como os promovidos pela ReDESAP é uma forma de clamar, como faz a mãe de Luísa Porto, para que casos, desassossegos e incompatibilidades de relacionamento supostamente vividos dentro da unidade de localização e formação moral denominada “família” sejam convertidos em “problemas” dignos de visibilidade fora dela. Ainda que não garanta a localização de desaparecidos, portanto, essa conversão parece responder a uma intensa demanda pelo reconhecimento e pela reparação de sofrimentos e dores vividas em “família” e reiteradamente delegadas e confinadas nessa unidade. Talvez seja isso, enfim, o que as mães de pessoas desaparecidas esperam ao evocar e multiplicar ausências em eventos da ReDESAP. Talvez seja isso, ademais, o que ritmadamente “pede-se”, “suplica-se” e “rogase” na poesia de Drummond. Como diz Cecília, cuja filha desapareceu aos 13 anos de idade e hoje conta ou contaria 29, “o desaparecimento é uma questão invisível, mas que não pode ser silenciosa”. Por invisível, aí, talvez possamos compreender não só a trivialidade atribuída aos casos, mas sobretudo o fato de que, para alguns agentes, entre os quais se destacam policiais, desaparecimentos compreendem tramas ordinárias e banais porque inerentes à vida em “família”. Para policiais, mas certamente não apenas para eles, “famílias” são unidades 278

constituídas por conflitos, incompatibilidades e “questões” que devem ser experimentadas, geridas e solucionadas em seu interior. Relembrando o caso de Antônio, anunciado já no Prólogo deste trabalho, dentro de “famílias” há, no mínimo, quem dê “muito trabalho”, quem prefira que o outro “evapore” e quem se mantenha casado “no papel” exclusivamente para obter benefícios financeiros. Desaparecimentos, portanto, são apenas um de vários tipos de “problemas de família”. “Problemas” como esses, para policiais, não devem ser levados a delegacias, ainda que essas repartições mantenham suas portas (quase sempre) abertas. Caso o sejam, podem e devem ser devolvidos às “famílias”, na forma, por exemplo, de conselhos e compromissos. Nesse processo, porém, não só querelas conjugais e interesses financeiros como os presentes no caso de Antônio, mas também tramas que têm como desfecho mortes violentas, destruição de cadáveres e outros fatos classificáveis como crimes são subsumidas no heterogêneo universo dos ditos “problemas de família” e, por isso, restam sem apuração. O

fato

de

comunicantes

de

desaparecimento,

convertidos

em

“famílias”

independentemente dos vínculos que mantenham com os desaparecidos, receberem de volta os encargos não só da descoberta de paradeiro, mas da gestão mais ampla de virtualmente todas as suas relações e conflitos, explica em parte o ponto a que chega a poesia de Drummond. Depois de muito suplicar e esperar, a mãe de Luísa Porto não desiste de sua procura. Antes, reecontra, em si mesma e nos sentimentos por ela nutridos, novo lugar para a filha desaparecida. Localiza-a, portanto. Desse modo, reordena sua relação de filiação apesar da ausência de Luísa, e em certa medida contém o desarranjo provocado pelo desaparecimento dela. Para encerrar esta tese, obviamente sem concluí-la, gostaria de narrar dois relatos que ouvi no decurso da pesquisa que seguem em direção semelhante. A meu ver, ambos explicitam formas através das quais “famílias” reordenam parte dos “problemas” e desarranjos que reportam a policiais e, em seguida, recebem deles de volta. Em meu primeiro dia de pesquisa no SDP, enquanto aguardava a chegada do inspetor Fernando, que me apresentaria as dependências da Delegacia de Homicídios (DH) e os horários entendidos como adequados para minha presença lá, conheci a investigadora de polícia que, àquela época, era responsável por fazer retratos falados de envolvidos em ocorrências investigadas na DH. Ao saber que meu tema de pesquisa era o desaparecimento de pessoas, a policial relatou um caso ainda recente que, nas palavras delas, a “marcou para o resto da vida”. A mãe de uma criança desaparecida foi à repartição reportar, cheia de esperança, que havia visto a filha pela televisão. Em reportagem filmada em Copacabana, a 279

mãe viu a menina passar, sorridente e guiando uma pequena bicicleta, no segundo plano da imagem exibida por uma emissora de TV. A policial, porque boa fisionomista, foi chamada para cotejar fotografias da desaparecida com as imagens televisionadas. Seu parecer final foi que a criança andando de bicicleta por Copacabana não era a filha daquela mulher. Ainda assim, a mãe seguiu afirmando sua certeza não só diante da policial e de outros agentes da delegacia, mas também em jornais e revistas de grande circulação. 145 Em outro momento, talvez não por acaso no último evento da ReDESAP de que participei, ouvi relato igualmente impactante sobre possíveis novos lugares em que desaparecidos são situados por suas “famílias”. Segundo a funcionária de uma das ONGs que integram a rede, a mãe de um menino desaparecido há exatos vinte anos afirma ter certeza do que se passou com o filho. Para ela, o garoto foi levado do Brasil por uma boa “família” estrangeira, que lhe dá tudo do bom e do melhor, e como ele era ainda muito pequeno quando isso aconteceu, não tem nem motivos, nem capacidade para se lembrar que antes vivia no seio de outra “família”. Atualmente, o desaparecido vive em outro país, fala outra língua e tem apenas eventuais flashes de memória sobre sua vida no Brasil. Tais flashes não são suficientes para que ele reconstrua o passado de modo nítido e tenha vontade de retornar. Por isso, a mãe cuida com especial atenção do cavalo, agora já muito velho, em que o menino costumava cavalgar antes de desaparecer. Para ela, o animal é o elemento que reacenderá a memória do desaparecido e, como o Amor que encerra a poesia de Drummond, os reconectará.

145

Uma das reportagens em que essa mãe relata ter visto a filha na TV foi redigida por Martha Mendonça, sob o título “Eu a sinto viva”: Como é a vida de quem se agarra à esperança de rever o filho desaparecido – e como prevenir novos dramas”. A reportagem foi publicada pela Revista Época, edição de 14 de novembro de 2008.

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293

ANEXOS

294

ANEXO 1 - Documentos

Nome do documento

Função principal

Emitido por

Destinado a

Ofício

Solicitar busca de informações sobre o desaparecido nos arquivos da instituição de destino do ofício

Inspetores do SDP e/ou das DPs

Instituições diversas, entre repartições policiais, hospitais, fundações assistenciais, abrigos, necrotérios, instituto de identificação, etc.

Relatório de prestação de informação

Relatar o caso e sugerir arquivamento como solucionado ou como suspenso

Inspetores do SDP

Delegados da DH

Convite

Convidar para prestar declarações

Inspetores do SDP

Possíveis envolvidos nos casos

Certidão

Certificar que há Sindicância em nome do desaparecido no SDP

Inspetores do SDP

Familiares de desaparecidos que necessitem comprovar o desaparecimento

Termo de declarações

Registrar declarações de possíveis envolvidos nos casos que forem à DP ou ao SDP falar sobre os mesmos

Inspetores das DPs ou da DH (SDP), mediante outrem

Inspetores das DPs ou da DH, para dar andamento aos seus trabalhos

Registro de Ocorrência da DH

Registrar a entrada dos casos encaminhados pelas DPs para a DH

Agentes da DH

Inspetores do SDP

Registro de Ocorrência da DP

Registrando desaparecimentos por solicitação de cidadãos comuns e dar início a diligências

Inspetores das DPs mediante outrem

Inspetores das DPs, para dar início às investigações

Despacho

Determinações e decisões acerca da condução de investigações, diligências e/ou arquivamento de casos

Delegados da DH e/ou das DPs

Inspetores da DH e/ou das DPs

Remessa ou Encaminhamento

Remeter ou encaminhar documentos e/ou casos para outras repartições (policiais ou não)

Inspetores da DH e/ou das DPs

Repartições policiais (DPs, DH ou outra delegacia especializada) e/ou hospitais, fundações assistenciais, abrigos, necrotérios, instituto de identificação, etc.

Ofício ou Correspondência

Registrar e fazer circular comunicação entre repartições

Delegados e/ou inspetores das DPs

Delegados e/ou inspetores das DPs

295

policiais

e/ou da DH

e/ou da DH

Mandado de Intimação

Intimar pessoas envolvidas ou que possam prestar esclarecimentos sobre casos a comparecer à repartição policial e prestar declarações

Delegados e/ou inspetores das DPs e/ou da DH

Delegados e/ou inspetores das DPs e/ou da DH

Protocolo/

Registrar que alguma peça, registro ou objeto foi acrescentado aos documentos (por exemplo, fotografias e bilhetes pessoais)

Inspetores das DPs e/ou da DH

Inspetores das DPs e/ou da DH

Informação

Registrar relatório (preliminar ou definitivo) sobre caso e sugerir condução

Inspetores das DPs

Delegados das DPs

VPI (Verificação Preliminar de Investigação)

Compilação, feita na DP, de todos os documentos produzidos acerca de um caso

Inspetores das DPs

Inspetores das DPs, para dar continuidade ao caso, e/ou inspetores da DH, para dar origem a uma Sindicância

Compilação, feita no SDP (DH), de todos os documentos produzidos acerca de um caso, normalmente a partir da VPI encaminhada à DH por uma DP

Inspetores da DH

Inspetores da DH, para dar continuidade ao caso e/ou arquiválo

Pedido formal de registro de ocorrência

Defensores públicos, representando cidadãos/familiares de desaparecidos

Inspetores das DPs

Autorização expressa para que alguém (um advogado ou outro cidadão) aja em nome de um cidadão

Advogados ou cidadãos comuns

Instituições diversas

Registrar e fazer circular informação ou solicitação pertinente a um caso

Inspetores de repartições policiais e/ou funcionários de instituições diversas

Repartições policiais e/ou instituições diversas

Respostas a ofícios*

Responder aos ofícios de solicitação de busca de dados sobre desaparecidos

Instituições diversas

Inspetores da DH e/ou das DPs

Resultados de buscas*

Imprimir informações sobre desaparecidos acessadas por sistemas de busca (sistema de identificação do DETRAN, registros do TRE, DESIPE, POLINTER, etc.)

Inspetores do SDP e/ou das DPs

Inspetores do SDP e/ou das DPs, para dar continuidade ao caso

Interna

Inclusão de peças

Sindicância

Petição

Procuração

Comunicação externa*

296

Guia de remoção de cadáver

Requisição de Serviço

Registrar a remoção de um cadáver, bem como o destino a ele dado, do local onde foi encontrado.

Agentes de Polícia Civil

Repartições policiais diversas

Requisitar serviços de outras repartições públicas

Conselheiros Tutelares

Repartições públicas diversas

* Documento nomeado por mim

297

ANEXO II – Índice alfabético e resumos dos casos

Nome, idade

Resumo do caso

Pág.

Álvaro, 67

Francinete comunica o desaparecimento de seu irmão Álvaro na DP. Álvaro é servidor público municipal. Dias depois, uma servidora da prefeitura vai à DP e informa que um procedimento administrativo corria na prefeitura em função da ausência de Álvaro no trabalho. O caso vai para o SDP e agentes localizam Valéria, filha de Álvaro, a pedido da servidora da prefeitura. Descobrem então que Valéria e Álvaro não se viam há mais de trinta e cinco anos. O caso é suspenso sem registro do paradeiro de Álvaro.

31

Antônio, 59

A ex-mulher de Antonio comunica o desaparecimento no próprio SDP, depois de tentar fazê-lo em duas DPs. No ato da comunicação, relata que não é mais casada com o desaparecido, mas que ele mora em sua casa e divide com ela o benefício que recebe mensalmente. No dia do desaparecimento, Antonio havia ido a uma agência bancária sacar parte de seu benefício e, em seguida, iria a uma segunda agência para depositar certa quantia em dinheiro. Contudo, não esteve nesse último banco e não retornou para casa. É encontrado dias depois pela própria comunicante, “descansando da vida” em uma cidade mineira.

15

Arlete, 16

A mãe de Arlete comunica o desaparecimento da adolescente relatando que “foi dormir deixando sua filha acordada, e sua filha falou que iria para a residência de sua colega Ângela e lá iria dormir, no dia seguinte a comunicante foi trabalhar e quando chegou em casa não encontrou sua filha”. Arlete retorna dias depois para casa e é castigada por sua mãe com “uma surra”, conforme registrado por policial do SDP. A mãe da menina compromete-se a requerer a emissão de carteira de identidade para Arlete.

143

Belmiro, 38

Sílvia, esposa do guarda municipal Belmiro, comunica o desaparecimento relatando que seu marido vinha expressando desejo de desaparecer. Depois de descuidar-se de si, Belmiro havia saído de casa levando consigo “sua carteira de guarda, cartões de benefícios do INSS, cartão bancário e um pequeno álbum de foto”. Sílvia é intimada a voltar à DP, mas não atende ao mandado. O caso é remetido para o SDP, onde a primeira providência tomada engendra seu arquivamento como solucionado: um telefonema em que uma sobrinha do guarda relata que ele havia retornado.

247

Cinira, 19

A irmã de Cinira comunica o desaparecimento na DP, dizendo que a jovem já havia desaparecido antes. Na ocasião anterior, Cinira passara nove dias na casa de uma amiga sem dar notícias para ninguém de sua família. Cerca de um mês depois de efetuado o RO, a desaparecida comparece à DP, diz onde estava e comprometeu-se a não desaparecer novamente. Segundo os registros, Cinira desapareceu porque estava “aborrecida com vida, cansada e extremada” e disse não ter sentido “vontade de falar com ninguém, atitude da qual se arrepende muito”.

140

Clara, 15

Levada por sua mãe e irmão para o aeroporto, de onde partiria em viagem para Porto Alegre, Clara não embarcou. Sua mãe e irmão não viram o que ocorreu, e só souberam do fato ao constatar que a jovem não chegara à Porto Alegre. A mãe comunica o desaparecimento na

217

298

delegacia do aeroporto. Outro RO de desaparecimento é encontrado, feito pouco tempo antes, em outra delegacia, também a partir de comunicação da mãe de Clara. Dias depois, policial telefona para a casa e fala com a mãe da desaparecida, registrando em seguida desconfiança e suspeita de que ela não contara tudo o que sabia e até mesmo que a menina poderia estar em casa. A mãe de Clara é intimada e retorna {a delegacia, onde diz que sua filha fez contato telefônico, mas não voltou para casa. O caso é remetido ao SDP. Policial do Setor fala por telefone com um dos irmãos de Clara, que tem sete irmãos adotivos, e é informado de que ela está na Bahia e faz contatos regulares. O caso é arquivado como solucionado. Clóvis, 32

Clóvis diz à esposa que vai dormir na casa de sua mãe, para onde se dirige. De lá, marca encontro com um amigo (André) em Vila Isabel, para onde vai em uma motocicleta emprestada. Nem Clóvis, nem André voltam para a casa depois da saída, e a motocicleta não é mais vista. Manuelita, mães de Clóvis, comunica o desaparecimento. A motocicleta é registrada no Sistema de Roubos e Furtos de Veículos. A moto é encontrada pelo irmão de Clóvis. O caso vai para o SDP, de onde são emitidos os ofícios de praxe. Depois de respostas negativas aos ofícios, o caso é arquivado como suspenso, sem registros do paradeiro de Clóvis.

231

Daniela, 23

A mãe de Daniela comunica o desaparecimento na DP, relatando que já havia procurado pela filha entre amigos e parentes, em um endereço que a própria Daniela lhe dera e em hospitais e outros órgãos públicos. Não obteve sucesso em nenhuma dessas buscas e descobriu que o endereço fornecido por sua filha era inexistente. No relatório final produzido sobre o caso, o policial encarregado afirma que “deve ter ocorrido algum problema familiar” e não um caso de desaparecimento. O caso é suspenso sem registro do paradeiro de Daniela.

42

Domingos, 36

Clara, dia de domingos, comunica o desaparecimento relatando que seu sobrinho estava passando por “problemas emocionais”. No ato da comunicação, deixa uma fotografia de Domingos. O caso é remetido para o SDP. Dias depois, Clara vai ao Setor e informa que soube que ele está sendo atendido em um centro psiquiátrico, e que sumira por estar deprimido por ter sido demitido. Antes de deixar a repartição, a tia de Domingos pede de volta a fotografia dele anexada à Sindicância. O caso é arquivado como solucionado.

234

Elias, 46

Tendo passado três dias sem se comunicar com seu irmão, Elias, a manicure Alice decide adentrar a casa dele por conta própria. Encontra tudo em ordem, mas não vê sinal de que Elias tenha estado em casa recentemente. Decide então comunicar seu desaparecimento em uma DP. O caso é encaminhado ao SDP e a primeira providência só é tomada pelo agente do Setor encarregado do caso um ano depois. O policial telefona para Alice e ouve o relato dela: Elias havia sido atropelado e estava morto. O policial confirma a informação ao encontrar RO em que Elias consta como vítima de atropelamento.

252

Elói, 20

O pai de Éloi comunica o desaparecimento na DP relatando que seu filho havia saído de casa, na moto emprestada por um amigo, para comprar drogas no Morro São João. O jovem teria sido morro por traficantes de uma boca de fumo inimiga da boca de que era freguês. Segundo o pai de Éloi, seu filho estava envolvido também em um “esquema de roubo de mangueiras de incêndio”. A moto que Éloi dirigia também desapareceu. O caso é suspenso sem registro do paradeiro do jovem, mas contando

116

299

com um relatório comovido feito pelo policial que dele ficara encarregado no SDP. Francisco, 29

A tia de Francisco, com quem ele mora, comunica o desaparecimento e, antes que diligências sejam levadas a cabo na repartição, volta à DP para dizer que o caso já está solucionado. Afirma então que seu sobrinho estava “trabalhando como biscateiro em obras (servente pedreiro) no Município de Mangaratiba/RJ, não avisando, alegando que ligava para casa mas o telefone não funcionou (é da VESPER e é com cartão de crédito), não conseguindo avisá-la”.

75

Geraldo, 62

Munida de ofício da Defensoria Pública, uma irmã de Geraldo relata que seu irmão está desaparecido há décadas – o que marca e confirma através da data da primeira de muitas pensões que ele não sacou. A intenção dela é obter um RO para instruir uma ação de Declaração de Ausência, já que deseja redistribuir a pensão do irmão para compor sua própria pensão e de sua irmã. O RO é efetuado na DP, o caso vai para o SDP e posteriormente é suspenso.

55

Gilson Filho, 15

O marido da mãe adotiva de Gilson Filho comunica o desaparecimento, que é parte de uma história de múltiplos desaparecimentos. Gilson Filho foge de casa com freqüência, embora costume mandar notícias para sua mãe e seu irmão. O caso é encerrado com o abrigamento de Gilson Filho em um Centro de Acolhimento e arquivado como solucionado no SDP.

167

Graziele, 15

A mãe de Graziele vai ao Conselho Tutelar informar que sua filha fugiu de casa. No Conselho é encaminhada para a DP, onde é feito RO de desaparecimento em nome da menina. O caso é remetido da DP para o SDP, onde é arquivado como solucionado sob a justificativa de que houve emissão de RG em nome de Graziele posteriormente ao desaparecimento e, equivocadamente, “após [a menina] atingir a maioridade”.

67

Gutemberg, 48

A esposa de Gutemberg comunica o desaparecimento na DP. Dias depois, o síndico do condomínio onde o desaparecido morava acusa-o, na mesma DP, de ter roubado dinheiro do condomínio enquanto foi síndico. O desaparecido comparece na delegacia para negar a acusação. O caso é arquivado como solucionado no SDP.

106

Humberto, 62

Humberto é taxista e seu desaparecimento é comunicado na DP por seu filho, que é policial militar. O filho, a namorada e um funcionário da empresa de táxi em que Humberto trabalha vão a DP e prestam declarações a respeito dele, atribuindo-lhe uma boa reputação, calcada sobretudo em sua dedicação ao trabalho. Dias depois do desaparecimento, o táxi de Humberto é visto por um policial militar em serviço. O carro estava sendo dirigido por outro homem, que é perseguido e baleado pelo PM. Também dias depois, policiais do SDP encontram registro de óbito em nome de Humberto, cujo corpo havia sido recolhido pela polícia como “não identificado” tempos depois do desaparecimento. O caso é arquivado como solucionado.

154

Janilson, 27

A mãe de Janilson comunica o desaparecimento na DP, relatando que seu filho esteve em um baile funk com dois amigos, como de hábito. Os dois amigos voltaram do baile, mas Janilson lá ficou com uma namorada. O jovem não voltou mais para casa, nem deu notícias para seus amigos ou para sua mãe. Os amigos são ouvidos na DP, onde o policial encarregado registra algumas impressões sobre o baile funk

152

300

como local que reúne pessoas “da pior espécie”. O caso vai para o SDP onde é posteriormente suspenso. Joaquim, 11

Jandira, mãe de Joaquim, comunica que o menino fugiu de casa e que vinha fugindo com freqüência. Joaquim vinha pedindo dinheiro em sinais de trânsito e Jandira relata acreditar que estivesse usando drogas. O caso transita entre duas DPs e é remetido ao SDP. No Setor, Ofícios são emitidos para alguns órgãos, mas só recebem respostas negativas e “nada consta”. O caso é arquivado como suspenso cerca de três anos depois, sem registros sobre o paradeiro do menino.

207

José, 38

José é filho de Otávio e Ivonete. Ainda bebê, Ivonete “levou o menino e o entregou” a outra mulher, que o criou. Depois de adulto, por iniciativa própria, José retomou contato com Otávio. José é casado e pai de um menino. Preocupado por não ter notícias do pai, o menino contacta o avô, Otávio, que comunica o desaparecimento em uma DP. O caso é remetido ao SDP, Ofícios de praxe são remetidos a instituições diversas e respondidos, unanimemente, com “nada consta”. O caso é arquivado como suspenso, sem registros sobre o paradeiro de José.

126

Justo, 57

A esposa de Justo comunica o desaparecimento da DP dizendo que seu marido desapareceu depois de discutir com o encarregado de uma fazenda próxima a residência do casal. Justo estava caçando passarinhos na propriedade em que Paulo Cigano é o encarregado. Contrariado com isso, Paulo Cigano teria discutido com Justo. Justo foi visto entrando na fazenda, mas não saindo. O caso é suspenso no SDP sem registros sobre o paradeiro de Justo.

96

Lia, 21

A jovem paraguaia Lia vem ao Brasil passar as festas de fim de ano. Sua mãe fica sem notícias dela antes do Reveillon e faz contato com o Consulado Paraguaio. O Consulado comunica o caso à Polícia Federal que, por sua vez, o encaminha para o SDP – depois de consultar dados sobre a jovem e constatar suas viagens anteriores ao Brasil. A primeira providência tomada no SDP é um telefonema para o Consulado, que permite concluir que a garota havia apenas viajado para uma ilha para o Reveillon e depois fizera contato com sua mãe e retornara para sua casa, no Paraguai. O caso é arquivado como solucionado.

173

Linda, 38

A irmã de Linda comunica o desaparecimento da irmã e coloca suspeitas sobre o companheiro e a sogra dela. Ambos são ouvidos na DP. O companheiro de Linda afirma que o que foi registrado como desaparecimento é, para ele, uma separação entre os dois. A sogra, por sua vez, se detém em descrições sobre o temperamento “explosivo” de Linda. O caso é suspenso no SDP sem qualquer registro sobre o paradeiro de Linda.

134

Lício, 25, e

Dagmar, mãe de Lício, comunica o desparecimento relatando que seu filho desapareceu em companhia de seu amigo Rui. É efetuado RO com o nome de ambos, designados, respectivamente, “desaparecido I” e “desaparecido II”. O RO registra também que Lício já foi preso. Em uma segundo ida à DP, Dagmar, diz acreditar que Lício e Rui foram mortos e tiveram seus corpos carbonizados. Relata ainda que “esteve no IML e um funcionário que lhe atendeu disse que havia encontrado uma pulseira em um dos corpos que estava escrito o nome LÍCIO; (...) que o corpo já havia sido enterrado e não dava mais pra saber de tal detalhe.” O caso é remetido ao SDP. O policial encarregado emite os Ofícios de praxe, recebe respostas negativas e encerra o caso, arquivando-o como

225

Rui, 20

301

suspenso e sem registros sobre o paradeiro dos amigos. Lúcio, 45

O pai de Lúcio comunica o desaparecimento relatando que seu filho costuma sair de casa e passar curtos intervalos de tempo sem dar notícias, mas que “dessa vez” já estava desaparecido há muito tempo. Afirma ainda que Lúcio tem “problemas mentais”. Depois que o caso é encaminhado ao SDP, o pai de Lúcio comparece no Setor e informa que o desaparecido já havia voltado para casa. O caso é arquivado como solucionado.

79

Marília, 81

Carmen, procuradora de Marília e moradora da mesma casa em que a desaparecida viveu, comunica o caso em uma DP levando consigo uma petição redigida por seu advogado. Marília recebia uma pensão que, desde 1995, passara a ser recolhida por outra pessoa, desconhecida de Carmen e dos demais moradores da casa. Marília teria sido levada a um hospital para receber atendimento e nunca mais foi vista. Policiais não conseguem localizar a pessoa que estaria recebendo a pensão, nem Marília. O caso é suspenso.

102

Marlene, 35

Uma tia de Marlene comunica seu desaparecimento na DP dizendo que ela “sofre de esquizofrenia” e, quando estava preste a ser atendida por uma ambulância do SAMU, “achou que a citada ambulância iria levá-la a algum manicômio e empreendeu fuga correndo pelas ruas, sendo que desde aquela oportunidade não foi mais vista.” Acrescenta ainda que Cilene “já ameaçou eliminar sua vida. Dias depois, a tia de Marlene volta a DP e informa que a desaparecida, exatamente como temia, está internada em um Centro Psiquiátrico. O caso é arquivado como solucionado.

166

Maurício, 12

Lindalva, mãe de Maurício, havia apresentado garoto no CT de Barra Mansa e voltado para casa. O menino, contudo, não retornou e não foi mais visto. Lindalva comunica o desaparecimento narrando a cena. Diz ainda que Maurício já havia fugido de casa algumas vezes. Meses depois, ela volta à DP e relata que havia ido procurar Maurício em Resende, pro ter ouvido notícias de que ela estivera lá. No CT de Resende, há relatórios sobre o menino em que Lindalva é acusada de negligência e de obrigar o menino a trabalhar. Policiais da DP checam o relatório, ao procurar informações sobre Maurício em algumas instituições. O caso é encaminhado ao SDP. Sem registros sobre o paradeiro de Maurício, em seguida é arquivado como solucionado sob a justificativa de não se tratar de desaparecimento.

187

Nina, 35

A mãe de Nina comunica o desaparecimento da filha na DP afirmando que ela tem “problemas mentais” e não sai de casa sozinha a não ser para ir à padaria e à Igreja. No ato da comunicação do caso, a mãe de Nina diz que ela teria saído para comprar pão e não mais voltara; na segunda ida à DP, contudo, afirma que ela saíra da casa na companhia de um rapaz. Os relatos da mãe recobrem de suspeitas um homem por quem Nina dizia ser apaixonada, e retratam a desaparecida como totalmente dependente. Ao receber o caso, policial do SDP liga para a comunicante e fica sabendo que Nina voltou para casa cerca de três meses depois de desaparecer. O caso é arquivado como solucionado.

160

Nuno, 15

A mãe de Nuno vai a DP comunicar o desparecimento de seu filho e narra que, junto a alguns amigos e vizinhos, o menino havia ido nadar nas águas de um rio próximo à sua residência, mas afogou-se. A mãe do garoto afirma que faz visitas regulares no IML em busca do corpo de

174

302

Nuno. O caso é suspenso no SDP sem registro do paradeiro do desaparecido. Olívia, 20

Maranhense de Imperatriz, Olívia compra uma passagem para o Rio de Janeiro e parte deixando uma carta para sua mãe, uma para o delegado e uma terceira para o padre da igreja freqüentada por sua família. A mãe e o pai da jovem vêm ao Rio de Janeiro e comunicam o desaparecimento no SDP. A mãe relata que Olívia havia feito amigos pela internet que seriam parte de uma seita religiosa. Em seguida, a própria Olívia vai ao Setor, nega que faça parte de uma seita religiosa e diz que seus amigos tampouco professam alguma religião específica ou integram seitas. Diz não desejar esclarecer onde está vivendo no Rio de Janeiro. O caso é arquivado como solucionado.

199

Otávio, 19

A mãe de Otávio comunica o caso na DP depois que seu marido procura pelo filho em hospitais, no IML e na Polinter. As diligências dos policiais encarregados permitem-lhes descobrir que Otávio está preso por ter cometido um crime em Copacabana. De fato, na comunicação do desaparecimento, sua mãe relata que o jovem havia saído “rumo a Copacabana” quando desapareceu. O caso é arquivado como solucionado no SDP.

91

Quincas, (sem registro de data de nascimento)

Quincas fazia tratamento psiquiátrico em uma universidade e vivia na casa dos fundos do terreno das irmãs Inácia e Neusa. Certa noite, Neusa foi à casa de Quincas convidá-lo para o jantar e encontrou um bilhete em que ele afirmava estar partindo e desculpava-se por isso. Com o bilhete em mãos, um documento de Quincas e dois retratos dele, a senhora vai a uma DP e o desaparecimento é registrado. O caso é remetido ao SDP e cerca de um mês depois, por telefone, o agente encarregada é informado de que Quincas havia retornado para casa.

247

Raquel, 16

Cláudia, mãe de Raquel, encontra um bilhete da filha dizendo que estava saindo de casa e que não revelaria seu destino, e pedindo desculpas. Cláudia vai ao CT e é encaminhada ao uma delegacia, onde comunica o desaparecimento e entrega o bilhete de Raquel. Relata ainda que sua Irma, tia de Raquel, recebeu telefonema da adolescente dizendo que estava bem, mas que não revelaria onde estava. Dois meses depois, funcionária do CT que atendera Cláudia vai a DP e informa que não tem notícias de Raquel. O caso é remetido para o SDP, onde é arquivado como solucionado sob a justificativa principal de que a mãe de Raquel já aceitou sua fuga.

211

Rodrigo, 15

O pai de Rodrigo vai a DP comunicar que “seu filho estava acompanhado de colegas num domingo de carnaval, onde seguia rumo a sua residência, seguiu sozinho e nunca mais foi visto, não se sabendo seu paradeiro.” O comunicante diz ainda que procurou por Rodrigo em vários hospitais e no IML. Tempos depois o caso é arquivado como solucionado, sob a justificativa de que o garoto saíra voluntariamente de casa e que tem contato com familiares.

44

Sebastião, 47

Jacira, irmã de Sebastião, seis meses depois de saber do desaparecimento dele, comunica o caso na DP. Além dela, prestam declarações sobre o caso a cunhada de Sebastião e o irmão dele e de Jacira. As declarações de todos são repletas de negativas e constroem uma imagem vaga de Sebastião. Também são repletas de negativas as repostas recebidas no SDP a Ofícios solicitando informações sobre o desaparecido a órgãos e instituições diversos. O caso é suspenso no SDP sem registros sobre o

99

303

paradeiro do catador de papel. Sílvio, 55

Uma prima de Sílvio, procuradora de sua mãe, comunica o desaparecimento dizendo que ele vivia andando pelas ruas da cidade “em uma bicicleta velha” e descrevendo o apartamento onde ele morava como um local cheio de entulho. A comunicante informa que o referido apartamento consta do inventário do pai do desaparecido e que é preciso oficializar o desaparecimento para desembaraçar o espólio. O caso é suspenso no SDP sem registros sobre o paradeiro de Sílvio.

56

Tiago, 15

Uma tia de Tiago comunica o desaparecimento na DP relatando que o garoto já desaparecera muitas vezes e é surdo-mudo. O último desaparecimento, objeto da comunicação, ocorreu quando o menino fugiu de um abrigo que o havia acolhido depois de encontrá-lo em Araruama. A tia e a mãe de Tiago souberam que ele havia sido abrigado porque viram uma foto do garoto em um jornal, veiculada pelo programa “Encontre minha família” da FIA/RJ. O caso é arquivado como solucionado no SDP depois que a tia comunica na DP que o menino foi encontrado em um abrigo em Angra dos Reis.

111

Urbano, 20

O pai de Urbano comunica o desaparecimento relatando ter recebido telefonema anônimo segundo o qual seu filho havia sido morto e carbonizado por traficantes. O caso é remetido para o SDP, devolvido para DP e novamente enviado ao Setor. Pesquisas em sistemas de informação são feitas e Ofícios enviados a instituições, mas não são encontrados registros sobre o jovem. São também checados ROs de “Encontro de cadáver”, mas nenhum é tido como de Urbano. O caso é arquivado como suspenso sob a justificativa de que “restou apurado” que Urbano foi assassinado.

121

Vicente, 74

O enteado de Vicente vai a DP e narra que “seu padrasto vem comportando-se de maneira estranha há cerca de dois meses, saía e ficava andando pelas ruas, por cerca de três dias e depois retornava, no entanto, desta vez não mais retornou e faz dezoito dias que está desaparecido.” Afirma ainda “que, o mesmo já apresentou este problema antes, tendo inclusive sido levado ao médico pelo declarante, no entanto, nada de errado foi constatado.” No dia seguinte à comunicação, a exesposa do desaparecido e o filho deles vão à DP e dão declarações semelhantes. O caso é suspenso no SDP sem registro sobre o paradeiro de Vicente.

177

304

ANEXO III - Membros da ReDesap

UF

Instituição

-

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

AC

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do Acre

AL

Delegacia dos Crimes Contra a Criança e o Adolescente de Alagoas

AM

Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente do Amazonas

AP

Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Praticados Contra Crianças e Adolescentes do Amapá

BA

Delegacia Especializada de Repressão a Crimes Contra a Criança e o Adolescente da Bahia

CE

Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente do Ceará

CE

Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra Crianças e Adolescentes (SAS/CE)

DF

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente do Distrito Federal

DF

Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (SEDEST/DF)

ES

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do Espírito Santo

ES

Núcleo de Pessoas Desaparecidas (NUPEDE - Polícia Civil/ES)

GO

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Goiás

GO

FUMDEC/Sociedade Cidadão 2000 – SOS Criança Desaparecida

MA

Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente do Maranhão (DPCA/GESEP)

MG

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente de Minas Gerais

MG

Delegacia Especializada em Localização de Pessoas Desaparecidas (DELPD/DI)

MS

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente do Mato Grosso do Sul

MS

Delegacia de Homicídios do Mato Grosso do Sul - Setor de Pessoas Desaparecidas

MF

Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Mato Grosso

PA

Serviço de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (SILCADE - DATA/Polícia Civil/PA)

PB

Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Infância e a Juventude da Paraíba

PB

Centro de Reintegração e Capacitação Fabiana Maria Lobo da Silva

PE

Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente de Pernambuco - Setor de Desaparecidos

PI

Centro de Referência Criança Cidadã do Piauí - Projeto Sentinela

PI

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente do Piauí

PR

Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas do Paraná

PR

Movimento Nacional em Defesa da Criança Desaparecida

RJ

Vara da Infância, da Juventude e do Idoso-RJ/Serviço de Localização de Desaparecidos

RJ

SOS Crianças Desaparecidas - Fundação para Infância e Adolescência (FIA/RJ)

305

RJ

Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

RJ

Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DECAV/RJ)

RN

Delegacia Especializada em Defesa da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Norte

RO

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente de Rondônia

RR

Delegacia de Defesa da Infância e Juventude de Roraima

RS

1ª Delegacia de Polícia para Criança e Adolescente Vítima do Rio Grande do Sul

RS

Coletivo Feminino Plural

RS

Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente de Caxias do Sul

RS

Departamento Estadual da Criança e do Adolescente da Policia Civil do Rio Grande do Sul (DECA/RS)

SC

Diretoria Estadual de Investigações Criminais (DEIC) - Setor de Desaparecidos, Procurados e Foragidos

SC

Delegacia de Proteção à Mulher, Criança e Adolescente de Florianópolis

SE

Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente de Sergipe

SP

2ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa de São Paulo (DHPP)

SP

Mães da Sé - Associação Brasileira de Busca e Defesa à Criança Desaparecida

SP

Projeto Caminho de Volta / Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

SP

Mães em Luta - Associação Nacional de Prevenção e Busca a Pessoas Desaparecidas

TO

Delegacia Estadual de Proteção à Criança, ao Adolescente e ao Idoso do Tocantins

Fonte: http://www.desaparecidos.mj.gov.br

306

ANEXO IV - Eventos da ReDesap

Data 2 a 5 de dezembro de 2008

Local

Evento

Forma de participação

Centro de Convenções Sulamérica, Rio de Janeiro/RJ SEDH/PR e SENASP, Brasília/DF

II Encontro Nacional da ReDesap*

Inscrita por conta própria

3 de julho de 2009

5 de outubro de 2009

6 e 7 de outubro de 2009

26 de fevereiro de 2010

Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, São Paulo/SP Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, São Paulo/SP

SEDH/PR, Brasília/DF SENASP, Brasília/DF

26 de fevereiro de 2010

26 de fevereiro de 2010

Sala de Retratos do Ministério da Justiça, Brasília/DF SEDH/PR, Brasília/DF

14 de abril de 2010

27 e 28 de abril de 2010

Hotel St. Paul‟s, Brasília/DF

Reunião do Comitê e Reunião do Comitê Gestor da ReDesap com equipe da Rede INFOSEG responsável pela formatação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas Gestor da ReDesap Reunião do Comitê Gestor da ReDesap

I Jornada Internacional sobre Desaparecimento e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e III Seminário Projeto Caminho de Volta Reunião do Comitê Gestor da ReDesap Reunião do Comitê Gestor da ReDesap com equipe da Rede INFOSEG responsável pela formatação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas Lançamento oficial do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas Reunião com coordenador geral do Programa de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e dos Adolescentes da SEDH/PR e com o diretor de projetos do Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Cidadania (IIDAC) e representante da Fundação Antares de Ensino Superior, Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Curso de Capacitação dos atores do Sistema de

Convidada com financiamento próprio

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR para

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Hotel St. Paul‟s, Brasília/DF 27 de abril de 2010

24 de maio de 2010 24 de agosto de 2010 31 de agosto de 2010

14 de setembro de 2010

28 de setembro de 2010

5 de outubro de 2010

6 de outubro de 2010

3, 4 e 5 de novembro de 2010

SEDH/PR, Brasília/DF Hotel OK, Rio de Janeiro/RJ

Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente para utilização do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas* Reunião com o diretor de projetos do Instituto Internacional para o Desenvolvimento da Cidadania (IIDAC) e representante da Fundação Antares de Ensino Superior, Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Reunião do Comitê Gestor da ReDesap Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no âmbito da ReDesap

Hotel Tulip Inn, São Paulo/SP

Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no âmbito da ReDesap*

Celi Hotel, Aracaju/SE

Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no âmbito da ReDesap

Hotel Expresso XXI Batista Campos, Belém/PA

Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no âmbito da ReDesap*

Hotel Naoum Express, Brasília/DF

Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no âmbito da ReDesap*

Hotel Kananxuê, Goiânia/GO

Programa de Capacitação de Atores Estratégicos no âmbito da ReDesap*

Boa Vista Eco Hotel, Boa Vista/RR

III Encontro Nacional da ReDesap

fazer uma palestra

Convidada e financiada pela SEDH/PR

Convidada e financiada pela SEDH/PR Contratada pela Fundação Antares para coordenar e ministrar o curso Contratada pela Fundação Antares para coordenar e ministrar o curso Contratada pela Fundação Antares para coordenar e ministrar o curso Contratada pela Fundação Antares para coordenar e ministrar o curso Contratada pela Fundação Antares para coordenar e ministrar o curso Contratada pela Fundação Antares para coordenar e ministrar o curso Convidada e financiada pela SEDH/PR para proferir fala em uma das Mesas e coordenar os trabalhos da Plenária Final.

* Eventos a cujas atas ou relatórios tive acesso.

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