Uma filosofia da religião: Kant

July 23, 2017 | Autor: Adriano Oliveira | Categoria: Philosophy Of Religion
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Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional de Braga Departamento de Filosofia – Doutoramento em Filosofia da Religião Disciplina: Hermenêutica e Metafísica Orientador: Professor Dr. Manuel Sumares Orientando: Adriano Oliveira Síntese sobre Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant1 Paul Riccouer entende que a reflexão kantiana em A religião nos limites da simples razão mostra-se não uma crítica, mas uma hermenêutica filosófica da religião. Tal posição é justificada por ele mediante três identificações fundamentais. A primeira, em razão do fato de Kant tomar, propriamente, como assunto a religião em termos de representação, crença e instituição. A seguinte, refere-se à centralidade da liberdade no horizonte da experiência religiosa, posto que à existência individual tanto é possível o cumprimento da lei e consequente realização dos mandamentos divinos ou a cessão à força do desejo empírico e consecução do mal. A terceira, tem a ver com a articulação entre a problemática do mal e a réplica da religião, esta apontada como via de possibilidade esperançosa de superação da malignidade2. Em termos de ponderação geral sobre o conteúdo da obra, o filósofo francês ajuíza que a discussão sobre o mal não se limita à primeira parte de A religião nos limites da simples razão, mas se faz presente em todo o texto. Por outro lado, ele indica que a afirmação acerca da alternativa da regeneração humana é antevista já nos inícios da exposição de Kant. Destarte, o problema do mal e a questão de sua ultrapassagem são tópicos correlatos que contracenam nas páginas do texto kantiano. De qualquer modo, o capítulo inicial que versa acerca do mal radical trata da malignidade em termos de situação, radicalidade e origem3.                                                                                                                 1

RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. In.: RICCOUER, P. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996, p. 19-40. 2 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 19-20. “Pode-se considerar então A religião nos limites da simples razão como um ensaio de justificação filosófica da esperança, a favor de uma interpretação simbólica do mal e do texto das representações e das instituições que delimitam a religião enquanto tal. (...) Desse modo, um dos motivos maiores da hermenêutica filosófica da religião é dar a razão, nos limites da simples razão, desse entrecruzamento entre o reconhecimento do mal radical e a assunção dos meios de sua regeneração. Assim, na medida em que esse entrecruzamento é constitutivo da estrutura da esperança, pode-se dizer que esse é o objeto específico da hermenêutica filosófica da religião. É uma hermenêutica, e não uma crítica, porque o entrecruzamento dos sinais do mal e dos sinais da regeneração é ele mesmo um fenômeno histórico de segundo grau, que combina a historicidade cultural da religião positiva e a historicidade existencial da propensão para o mal. É nesse sentido complexo que a filosofia kantiana da religião pode ser chamada de hermenêutica filosófica da esperança.” RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 21-22. 3 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 22. 1/5  

Sobre a situação, o mal encontra-se no contexto da máximas morais e se revela como uma inversão de prioridades. “Se o mal reside em algum lugar, ele reside nas máximas de nossas ações, com as quais hierarquizamos as nossas preferências, situando o dever acima do desejo, ou o desejo acima do dever.”, ou seja, “(...) o mal consiste na perversidade de uma relação, a saber a ordem de prioridade entre a lei e o desejo.”4 Através de uma disposição de arbítrio, o sujeito realiza a opção por uma máxima de natureza má e em amplo contraste à lei. Riccouer recorda o paradigmático exemplo indicado por Kant da hipocrisia, como forma de enganação de alguém no sentido de fazê-lo acreditar em algo que não é verdadeiro. Esta atitude é explicitada na prática religiosa como a má fé da fé5. De acordo com a análise do filósofo francês, a inclinação ao mal, identificada por Kant como causa das ações humanas contrárias à lei, não é deduzível da experiência, mas constitui-se um a priori da estrutura do livre arbítrio. Neste sentido, a questão do fundamento das máximas más é de matriz transcendental. Riccouer julga que Kant procurou, a seu modo, desenvolver, através da elaboração sobre a radicalidade do mal na natureza humana, “(...) o paradoxo de um algo aí desde sempre pelo qual somos, no entanto, responsáveis.”6 Isto é, o mal se faz presente à humanidade, ele dá-se com o nascimento do sujeito, não é adquirido no tempo, mas a sua consecução é da ordem do arbítrio7. Riccouer destaca que o elemento paradoxal da radicalidade do mal - na qualidade de algo que antecede à humanidade, mas pelo qual ela também é responsável - é elevado a um outro nível, paradoxo de paradoxo, mediante a asserção da disposição do homem para o bem. Sendo que esta ocupa o ponto proeminente na estrutura teleológica do ser humano enquanto ser vivo, racional, responsável. Se se pode falar na situação do sujeito inclinado ao mal, é possível, com mais justeza, afirmar a sua tendência primordial ao bem8. “Por mais radical que seja o mal enquanto princípio a priori de todas as máximas más, ele não ocupa o lugar originário, que é o da disposição para o bem, condição última do respeito à lei.”9

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RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 22. Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 23. 6 RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 24. 7 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 23-24. 8 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 24-25. 9 RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 25. 5

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No que tange o tema da origem do mal, Paul Riccouer fala, a partir da abordagem kantiana, de uma origem racional, a qual se refere ao uso original do livre arbítrio. Todavia, parece que a origem da origem racional da inclinação para o mal permanece, na explicitação encontrada em A religião nos limites da simples razão, no horizonte do impenetrável ou incompreensível. Riccouer inclusive cumprimenta Kant por sua honestidade intelectual em reconhecer e afirmar a inacessibilidade de tal origem. E como o homem chega ao mal? Segundo a imagem delineada no texto, isto ocorre pela sedução. Assim, o filósofo francês pontua, novamente, o esforço kantiano, pois ao identificar que o sujeito se torna mau porque cede à sedução, Kant deixa entender que a natureza humana não se encontra corrompida em sua essência. Isto implica a admissão da possibilidade da prática do bem e põe em relevo o princípio da esperança10. Paul Riccouer observa que, desenvolvida a situação da humanidade inclinada ao mal, mas, marcadamente, na disposição para o bem, os livros seguintes da obra kantiana ocupam-se da restauração do poder perdido do livre-arbítrio. Esta operação se constitui uma contradição à filosofia, pois o que está em jogo é a circunstância de um sujeito naturalmente mal vir a ser, por si mesmo, um homem bom. Destarte, a religião aparece, em Kant, como o outro da filosofia, uma vez se revela como meio ou caminho performativo possível de tal conversão. O primeiro modo como ela é retratada em sua estrutura é através da representação do embate ou do confronto entre o bem e o mal. Na acepção do pensador francês, Kant desenvolve a sua explanação de maneira teatral, onde atuam e contracenam as hipóstases arquetípicas dos dois referidos princípios, cuja função é representar a tomada de posse do poder perdido do arbítrio de agir conforme a máxima moral boa11. O tipo singular da ideia acabada da humanidade agradável a Deus ou a imagem excelente do bom princípio é, em A religião nos limites da simples razão, o Cristo. Enquanto modelo exemplar da boa intenção, esta ideia não se manifesta como constructo humano, mas é dada à racionalidade. A religião, por sua vez, firma-se como a depositária e guardiã dessa representação. Ao que tudo indica, é justamente esta ideia de Cristo como paradigma do princípio do bem, que se anuncia, pela via da religião, como a possibilidade da regeneração ou libertação da liberdade humana marcada pela inclinação ao mal12.                                                                                                                 10

Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 26-27. Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 28-29. 12 RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 30. “A figura crística representa mais do que um herói do dever, menos do que uma kenosis efetiva do próprio absoluto, mas, nos estritos limites da teoria da analogia, um autêntico esquematismo da esperança.” RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 31. 11

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A passagem da representação à crença encontra-se no interno da descrição dramatúrgica de Kant do embate entre o bom e o mal princípio. Conforme consta, o processo de emancipação da liberdade do servo arbítrio ou o tornar livre o ser humano em sua capacidade de realização do bem, espécie de proprium da religião, opera-se mediante a crença. Esta aparece como a dimensão de efetividade da representação. Paul Riccouer recorda a temática da justificação pela fé que emerge na formulação kantiana. À humanidade marcada, radicalmente, pela inclinação ao mal, somente um auxílio extraordinário, exterior e sobrenatural, é capaz de regenerar-lhe ou restituir-lhe o caráter e ou capacidade primordial de realização do bem e da ação moral segundo as leis da virtude13. É significativa a correlação estabelecida por Riccouer entre a realidade do auxílio extrínseco e a dimensão da responsabilidade individual, no que concerne a realização do bem. “(...) a fé em uma absolvição forense não poderia desligar a vontade de sua responsabilidade; crer na efusão de um dom fora de toda intenção boa é corromper os móbiles da moralidade. Por outro lado, uma boa disposição não pode proceder de uma vontade radicalmente má; sem um dom, sem um socorro insondável, nenhuma mudança de coração seria possível.”14

Assim, a possibilidade esperançosa pelo cumprimento do dever ou consecução das máximas virtuosas figura na circunstância da relação paradoxal entre o dom concedido e o esforço realizado. E ainda, se permanece inescrutável a origem do mal, num nível mais profundo de inescrutabilidade encontra-se a presença, a atuação e a eficácia do arquétipo da humanidade agradável a Deus em relação ao sujeito que intenta sua regeneração15. Além da representação e da crença, há ainda um terceiro modo como a religião é considerada em sua estrutura, a saber, sua dimensão institucional. Na verdade, existe uma íntima vinculação entre estes aspectos. Pois, como foi afirmado, se a crença aparece como a efetividade da representação, a instituição mostra-se como o local de manifestação da crença. Ou seja, na comunidade eclesial, a representação torna-se crença e esta visualiza-se na prática. No fundo, o que encontra-se em tela aqui é a questão da possibilidade da efetivação da soberania do bom princípio e da realização do verdadeiro culto no espaço público e no contexto de sujeitos inclinados radicalmente para o mal. Paul Riccouer comenta que nenhuma comunidade ética ou política está à altura de fundar ou tampouco de ser expressão de uma comunidade voltada à regeneração da vontade16.                                                                                                                 13

Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 33-34. RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 33. 15 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 34-35. 16 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 34-35. 14

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O “(...) triunfo do bom princípio não se torna soberania senão sob a condição de uma encarnação pública em um corpo eclesial.”17 Diante de tal exigência e consciente da incompetência das formas de associação citadas acima, impõe-se, segundo Riccouer, analisar a Igreja enquanto comunidade capaz de cumprir os requisitos que a soberania do bem requer. O autor adverte que, neste aspecto, a razão filosófica deve ter em mente uma comunidade cultural, historicamente situada, vinculada a regras, tradições e ritos que, em sua contingencialidade, abriga variantes do falso culto. Riccouer reconhece o procedimento de Kant de compreender as comunidades eclesiais de seu tempo como canais já existentes de instauração do reino do bom princípio18. É possível asseverar que A religião nos limites da simples razão propõe a identificação dos sinais de uma comunidade autêntica nas Igrejas visíveis. Consoante à explanação de Riccouer, a atitude de Kant em discernir a verdadeira Igreja de certas versões caricaturais das comunidades religiosas distancia-o da condenação generalizada da norma eclesiástica, propagada pelo espírito iluminista de seu tempo. De certo modo, a posição kantiana configura-se como uma forma de empenho em localizar as similitudes entre a comunidade procurada e as experiências institucionais concretas do cristianismo. O que, em última instância, não é senão sinônimo da constatação da vigência da soberania do Bem e da contemplação da presença do Reino invisível de Deus na terra19. A título de conclusão desta síntese, é justo recordar e ressaltar três elementos da original e significativa aproximação hermenêutica executada por Paul Riccouer de A religião nos limites da simples razão. O primeiro tem a ver com a própria leitura e entendimento da estrutura da religião sob os paradigmas relacionais da representação, crença e instituição. Riccouer põe em relevo a auto-implicação e a conexão entre eles, figurando a crença como um tipo de ponto de comunhão entre os outros dois. O segundo ponto diz respeito à inescrutabilidade da origem racional da inclinação para o mal. A sua origem originante situase num não saber ou no domínio do inacessível à racionalidade. Contudo, mesmo que seu princípio incognoscível, o mal pode ser combatido e a humanidade reformada. Assim, o terceiro aspecto é a ênfase dada por Riccouer à possibilidade de regeneração e conversão do coração humano, sob a perspectiva da harmonização entre esforço individual e auxílio divino exterior. É evidente o acento colocado no princípio da esperança. Apesar do mal radical, a pessoa humana ainda tem jeito, em razão da sua disposição prioritária ao bem, a qual é possível de ser resgatada somente no horizonte da religião. A insistência de Riccouer nos temas da regeneração e da esperança favorece a compreensão do texto kantiano para além da visão pessimista da realidade humana. Uma hermenêutica filosófica da religião constitui uma singular ferramenta na leitura de A religião nos limites da simples razão.                                                                                                                 17

RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 36. Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 37-38. 19 Cf.: RICCOUER, P. Uma hermenêutica filosófica da religião: Kant. p. 37-39. 18

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