Uma Genealogia da Dependência e suas Implicações para o Feminismo e a Política

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UMA GENEALOGIA DA DEPENDÊNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O FEMINISMO E A POLÍTICA Ilze Zirbel Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo A partir da década de 1980 uma teoria política feminista do cuidado vem sendo elaborada entre feministas estadunidenses e europeias. No centro desta teoria encontra-se um sujeito interdependente. O objetivo deste artigo é explorar este sujeito. Em especial, pretende-se fazer uma genealogia da dependência afim de compreender porque esta característica humana possui uma carga tão negativa em meio as teorias políticas e porque é comumente associada a mulheres e ao espaço privado. De igual forma, argumentar-se-á que a ausência de definições mais positivas de dependência possui importantes implicações éticas e políticas para os mais diversos grupos sociais. Por fim, uma concepção mais positiva de dependência será apresentada, pautada na observação de que trata-se de uma condição humana fundamental e duradoura, necessária ao desenvolvimento de capacidades humanas centrais (como as da reflexão e da autonomia) e ativamente implicada no processo de organização das mais diversas sociedades. Palavras-chave: Teoria Feminista; Teorias Políticas; Gênero; Condição Humana; autonomia relacional. Introdução Nas últimas três décadas, um novo campo teórico tem-se desenvolvido em torno da ideia de cuidado. Apesar das variações presentes neste campo, pode-se dizer que a teoria do cuidado é uma teoria relacional que reivindica que certos tipos de relações, como as relações de dependência, são inevitáveis e duradouras em meio às experiências humanas, gerando responsabilidades e deveres para os indivíduos e a sociedade. Trata-se de uma teoria que levou em conta a experiência moral e a prática de milhares de mulheres que tiveram ao seu encargo atividades de cuidado, especialmente vivenciadas na esfera doméstico-familiar. Tais atividades foram exercidas de forma não remunerada e receberam pouca estima social ao ponto de, ao serem exercidas fora da esfera doméstica e serem alvo de remuneração, foram assumidas por mulheres e homens de camadas sociais

desvalorizadas em troca de baixos salários. O campo de pesquisas sobre o cuidado vem apresentando importantes resultados para a elaboração de uma Teoria Política capaz de atender as críticas feministas relativas ao sistema de gênero em funcionamento nas sociedades ocidentais. Para este artigo, levar-se-à em conta algumas das críticas surgidas na área, relativas a carga negativa que as teorias econômicas, políticas, filosóficas e sociais têm dado à dependência humana bem como à idealização das mesmas de um modelo humano ficcional (ou abstrato): o homem autônomo-independente. Como observaram Fraser e Gordon, (1994, p. 310), algumas palavras e expressões podem ser vistas como pontos de negociação e luta sobre os significados da experiência social, tornando-se um elemento crucial para a política. A palavra dependência é uma delas. O desprezo e a ausência de definições mais positivas para a dependência humana possui importantes implicações éticas e políticas para os mais diversos grupos sociais, em especial para as mulheres, pessoas idosas, adoentadas, com deficiência, desempregadas e/ou de baixa renda. Nesse sentido, a primeira parte deste artigo pretende apresentar uma breve genealogia da palavra dependência afim de revelar algumas das suas variações interpretativas, sua negativisação e o seu uso político-ideológico. Contrastando com o modelo negativo de dependência das teorias políticas e filosóficas contemporânias, a segunda parte do artigo apresentará uma concepção mais positiva da mesma, pautada na teoria do cuidado e capaz de auxiliar na elaboração de argumentos e políticas públicas que visam empoderar agentes do cuidado tanto quanto os grupos sociais que demandam cuidado especial ou suplementar em determinadas fases da vida ou durante toda a sua linha do tempo.

Uma genealogia da dependência1 Em uma pesquisa sobre a história e os usos correntes do termo dependência, a filósofa Nancy Fraser e a historiadora Linda Gordon (1994) observam que, antes da era industrial, o verbo depender fazia referência a uma relação física entre duas coisas na qual uma se encontrava pendente, mas, ainda assim, ligada à outra. Em se tratando de seres humanos, a dependência era a condição normal das relações sociais uma vez que homens e mulheres dependiam da terra, de boas colheitas, da proteção de senhores feudais etc. Assim, na definição mais antiga encontrada por elas (registrada no Oxford English Dictionary, de 1588), o dependente equivale ao servo, alguém subordinado e atrelado a outrem em uma escala de hierarquias na qual praticamente todos se encontram interligados e na qual os aspectos econômicos, sociais, legais e políticos da subordinação-dependência eram praticamente indistintos. Além disso, algumas definições de dependência eram explicitamente positivas, próximas do significado contemporâneo da palavra fiável (dependable, em francês) implicando confiança e a possibilidade de contar com o outro. De igual forma, até o início do século XX, não havia nos dicionários ingleses nenhum termo pejorativo para essa palavra (FRASER e GORDON, 1994, p. 314). Garrau e Le Goff (2010), em uma pesquisa relativa à literatura francesa, encontram resultados semelhantes e verificam que, no final do século XIII, o termo denotava uma espécie de solidariedade necessária e produtiva entre dois ou mais elementos. Dependente seria o que não pode vir a se realizar sem a ação ou intervenção de outro elemento, exterior a ele. Três séculos depois, um segundo sentido pode ser localizado, remetendo à ideia de ação de um indivíduo sobre o outro e a um estado de sujeição deste último em relação ao primeiro. “É dependente aquele que se encontra 'sob a autoridade de'” (GARRAU e LE GOFF, 2010, p. 12)2.

1 O termo genealogia é aqui utilizado em referência ao método foucaultiano de análise histórica que investiga as causas de transição de uma maneira de pensar à outra. O método genealógico expõe a complexa rede e as mudanças nas relações entre poder, conhecimento e subjetividades, demostrando que um determinado sistema de pensamento (seus valores e crenças), muitas vezes postulado como auto-evidente, é, na verdade, o resultado de viradas contingentes da história e possui um passado plural, por vezes contraditório, que revela traços da influência que o poder tem sobre o que se considera verdade (FOUCAULT, 1971; 1975). 2 As traduções dos textos em inglês e francês usadas neste artigo são de responsabilidade de sua

Durante o período industrial, no entanto, uma nova nomenclatura passa a figurar nos discursos políticos e econômicos, a da independência, afetando o conceito de dependência. Até este período, o termo independente não costumava ser associado a seres humanos, mas a entidades, como um território ou uma igreja. A partir do século XVIII, com a disseminação da linguagem econômica, um indivíduo poderia ter certa independência caso possuísse alguma propriedade ou fortuna que lhe propiciasse viver sem ter de trabalhar. Além disso, a rejeição aos tipos de relações que implicavam ser sujeito a alguém (política, social ou legalmente) era recorrente entre representantes do protestantismo radical puritano, como os quakers, batistas e congregacionistas. Para estes, possuir um mestre era uma forma de ofensa à dignidade humana (FRASER e GORDON, 1994, p. 315-16). Muitos grupos abolicionistas, feministas, operários (etc.) sofreram a influência do puritanismo protestante em seu imaginário relativo à criação de um modelo de cidadania que vê na independência e na normatividade do trabalho o seu ideal. Assim, trabalhadores brancos passaram a reivindicar seus direitos civis e eleitorais com base na ideia de independência econômica e reinterpretaram o significado do trabalho assalariado, desatrelando-o da ideia da dependência e associando-o à ideia de dignidade (“o trabalho dignifica o homem”). De igual forma, o trabalho assalariado passou a implicar a ideia de posse de si ou da própria força de trabalho (entendido como uma nova forma de propriedade), o que permitia associar o trabalhador assalariado à independência atribuída aos proprietários de terras ou de fortunas. A obrigatoriedade do trabalho no mundo público foi se intensificando e levou à justaposição das categorias de cidadão e de trabalhador. Assim, quando a Lei do Voto inglesa foi regulamentada (1832), o privilégio do sufrágio foi concedido a arrendatários e locatários, reconhecendo as reivindicações políticas daqueles que podiam oferecer a evidência de um sucesso econômico. De igual forma, aos trabalhadores

foram

acordados

os

direitos

identificados

como

trabalhistas

(aposentadoria, salário desemprego, seguro saúde) e a reforma da Lei dos Pobres

autora.

(1834)3 admitia auxílio econômico apenas às pessoas que encontravam-se em instituições, como as workhouses que visavam a “correção” daqueles que não estavam inseridos no mercado de trabalho (desempregados, mendigos e órfãos). No mesmo período, um modelo específico de família é consolidado: o de uma unidade dirigida e mantida por um único “chefe”, entendido como o representante político de seus dependentes consangüíneos (GLEN, 2000, p. 85). Ainda que não haja registros que identifiquem a família como uma forma de propriedade masculina, as ideias de unidade familiar e dos “salários de família” pagos aos homens (e não às mulheres) funcionavam no sentido de atribuir a estes os direitos relativos ao fato de serem entendidos como os “dirigentes” dessa instituição. O discurso da dependência da mulher tornava-se necessário ao discurso da independência masculina, ainda que a maioria das mulheres também trabalhasse em troca de salários. Nos Estados Unidos e na Inglaterra da segunda metade do século XVIII (e durante a maior parte do século XIX), o direito comum enquadrava as mulheres na doutrina da cobertura, defendida pelo jurista William Blackstone, que suspendia, por meio do casamento, “o próprio ser ou existência jurídica de uma mulher” (BLACKSTONE, s/d), incorporando-a na existência jurídica do marido que, por sua vez, era compreendido como seu protetor e provedor. A cobertura jurídica da mulher pelo marido implicava que a mesma não podia assinar documentos legais em seu nome (como processos ou contratos) e, acima de tudo, ser proprietária (o que equivaleria a ser independente, tanto no sentido simbólico quanto econômico. Como conseqüência, durante séculos, trabalhadoras casadas foram legalmente impedidas de gerenciar seus rendimentos (CAINE e SLUGA, 2002, p. 13). A dependência adquiriu, assim, uma característica de gênero regulamentada: aos homens eram possibilitadas as práticas legais e sociais que lhes qualificavam como seres independentes, contratantes, proprietários de si e do seu trabalho, enquanto que as mulheres eram mantidas e descritas como dependentes, sendo assalariadas ou não. Ainda no século XVIII, Rousseau produziu sua obra Émile ou de l'éducation, 3 De acordo com a lei dos pobres, a Igreja administrava o auxílio prestado à população necessitada e o trabalho era a condição para alguém ser digno deste auxílio. Além disso, a chamada vagabundagem (perambular pelas ruas, sem emprego) e a mendicância eram punidas com prisões ou castigos (como chicotadas) (HIGGINBOTHAM, s/d; THE VICTORIAN WEB HOME, s/d.)

que viria a ser muito popular na França, Inglaterra e Alemanha (CAINE e SLUGA, 2002, p. 11). Seu conteúdo e popularidade devem-se, sem dúvida, à importância que a nova classe econômica e social (de burgueses e capitalistas) dava à educação de suas crianças e à necessidade de que fossem cuidadas dentro de uma estrutura nuclear que primasse pelo seu desenvolvimento pessoal, de acordo com dois modelos de gênero. Rousseau estruturou, pois, um modelo duplo e oposto de moralidade, direitos políticos e planos de vida que girava em torno das ideias de independência-racionalidade e dependência-submissão. Ao longo de centenas de páginas, Rousseau detalha como o desenvolvimento da razão e do julgamento deveria ser estimulada nos meninos, tipificados na figura de Emílio. Emílio deveria aprender a ser livre, ter coragem, fazer seu próprio julgamento, tomar decisões, ser independente e viver de acordo com seus próprios valores e crenças. Por outro lado, a educação de Sofia (e de todas as meninas) é abordada rapidamente, em um capítulo separado, suficiente para explicar como cada aspecto de sua educação deveria ser o oposto da de Emílio. Ela teria de ser confinada, abrir mão de si mesma, submeter seu próprio julgamento ao de outros, ter modéstia (etc.) para, futuramente, dedicar-se aos desejos e interesses de Emílio, cuidando dele e de seus filhos, vivendo sob sua dependência. A valorização da independência e do recebimento de salários propiciou, ainda, a estigmatização das camadas populacionais e das atividades que não participavam do mercado de trabalho assalariado (como as que eram efetuadas no mundo do doméstico ou atreladas à saúde e bem estar da população). De igual forma, as classes sociais consideradas dependentes e subordinadas foram sistematicamente motivadas a exercer atividades de baixa remuneração ou não remuneradas. Atividades vitais de cuidado e manutenção da vida passaram a ser vistas como inferiores (obrigatórias a um gênero ou ao encargo de grupos posicionados fora das esferas de poder), mistificadas (atribuídas à “natureza” de quem as exercia ou atreladas aos afetos [amizade, amor]) e de pouca importância moral e política. Uma vez definida a diferença entre independentes e dependentes, assim como a diferença de valor entre as categorias, novos registros sobre a dependência podem ser encontrados, como os que a associam a traços morais e psicológicos

negativos e indesejáveis. Um dos primeiros exemplos encontra-se atrelado à figura do indigente. Pessoas em situação de pobreza, até meados do século XVIII, eram vistas como desafortunadas e, no século seguinte, passaram a ser descritas como seres degradados e de caráter corrompido pela dependência da caridade de outros. Embora muitos pensadores da época reconhecessem que a pobreza poderia contribuir para o estado de degradação desses indivíduos, as causas relacionais e econômicas da miséria foram sendo obscurecidas pela discussão moral-psicologizante. Assim, no final do século XIX, em meio ao crescimento de discussões sobre hereditariedade, a dependência do indigente podia ser explicada como um defeito de caráter (preguiça, fraqueza de vontade etc.), oriunda da biologia e uma forte causa para a pobreza (FRASER e GORDON, 1994, p. 316-317). Olhando de uma forma mais ampla, os textos jurídicos, econômicos, filosóficos, políticos e pedagógicos do período industrial, produzidos em sua grande maioria por homens, brancos e de condição econômica estável ou abastada, passaram a negar, ocultar ou estigmatizar o que até então era compreendido como normalidade: a dependência de uns em relação aos outros. Além disso, a visão de uma dependência comum e generalizada, resultante das relações sociais, foi cedendo lugar a algo mais individual, chegando a ser o atributo de certos indivíduos. Após a Segunda Guerra Mundial, uma discussão sobre hábitos de dependência pode ser verificada em vários países, incluindo os EUA. Tais hábitos foram “identificados” nas pessoas beneficiárias de programas de auxílio público e utilizados como argumento para a exigência de supervisão e provas morais e materiais da falta de meios dos indivíduos afim de obterem benefícios do Estado. Além disso, a prática e a linguagem fazia diferença entre auxílios estatais e direitos trabalhistas (aposentadoria, licença-saúde...). Com o tempo, discursos médicos e psicológicos intensificaram as conotações negativas da dependência, identificando certos comportamentos como patologias e utilizando a idéia da dependência para definir problemas individuais e sociais (como exemplificados nas expressões “dependência química” e “dependência alcóolica”, por exemplo). A partir da década de 1950, trabalhadores sociais estadunidenses influenciados pelas teorias psicanalistas diagnosticavam a dependência como uma forma de

imaturidade comum entre mulheres, especialmente mães solteiras que reivindicavam auxílio estatal (descritas como “crianças pequenas”, “dependentes, irresponsáveis e instáveis”4). Por fim, na década de 1980 a Associação Americana de Psiquiatria “codificou” uma nova psicopatologia: o Transtorno de Personalidade Dependente, caracterizado por um “padrão pervasivo de dependência e comportamento submisso iniciado na primeira infância”. A grande maioria dos diagnosticados foi de mulheres, descritas como “incapazes de tomar decisões no dia a dia sem uma quantidade excessiva de conselhos e garantias de outros”, chegando a autorizá-los a tomar decisões por elas (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1987, p. 353-354). Não casualmente, o diagnóstico assemelha-se bastante ao modelo de educação proposto por Rousseau para Sofia, dois séculos antes. A identificação da dependência com uma incapacidade individual negativa e que demanda tratamento ou medicalização aparece, igualmente, em estudos sobre a velhice em países europeus nos quais essa parcela da população tem aumentado. Neles, o idoso dependente ocupa o lugar socialmente estigmatizado que o pobre e a mãe solteira ocuparam nos registros estadunidenses. Como observam Garrau e Le Goff (2010), tratando do caso francês, um processo de medicalização e estigmatização da população idosa entrou em cena a partir da década de 1960 e nele “o conceito de dependência foi truncado para se referir unicamente às representações negativas em torno [de uma] velhice [que se considera] 'que vai mal'” (p. 19). Os interesses de uma classe médica em vias de desenvolver a área da geriatria convergiram com as de uma classe política que se deparava com uma população idosa ativa. A ausência de debate público sobre a questão da dependência possibilitou que a mesma fosse definida por médicos e políticos como incapacidade, resultante de deficiências físicas e mentais de um corpo que envelhece, demandando supervisão regular. Com o crescimento cada vez maior dessa parcela da população, a dependência dos idosos que “envelheceram mal” tornou-se um problema sócio-político e ser dependente virou sinônimo de

4 Como atesta a discussão de 1954 sobre “gravidez fora do matrimônio” (YOUNG, Leontine. Out of Wedlock, New York: McGraw Hill, 1954, p. 87; apud FRASER e Gordon, 1994, p. 325).

incapacidade, inutilidade social e parasitismo5. Para concluir, ao observarmos as mudanças ocorridas, ao longo dos séculos, na maneira de interpretar a dependência humana, é possível perceber que a mesma deixou de ser uma característica comum neutra ou positiva das relações sociais para tornar-se um atributo negativo individual (um fracasso econômico, moral ou psicológico) que reflete sobre o status jurídico e social da pessoa considerada dependente. O sujeito do cuidado e seu conjunto de dependências de efeito positivo Após a revolução das mulheres no ocidente (com a primeira e a segunda onda feministas) e o aumento da presença destas em centros de pesquisa, as teorias ocidentais vêm sendo confrontadas com novos conteúdos e abordagens. Assim, durante a década de 1980, iniciou-se no campo da psicologia moral uma discussão sobre a postura ética adotada por pessoas envolvidas em relações e atividades de dependência, identificada como ética do cuidado (GILLIGAN, 1982; NODDINGS, 1984; RUDDICK, 1989). A discussão evoluiu rapidamente para o campo político e passou a questionar a invisibilidade das atividades de reprodução e manutenção da vida cotidiana dos indivíduos e da sociedade, a ideologia da oposição entre independência e dependência, assim como o lugar da dependência nas relações sociais (HELD 1994, 1995; TRONTO, 1993; KITTAY, 1999). No campo das teorias sobre o cuidado, uma das ideias centrais é a da continuidade que interliga as pessoas consideradas independentes e aquelas consideradas dependentes em uma vasta rede de relações. A experiência humana é visualizada em um contínuo que inicia com a dependência extrema da infância (inerente [intrínseca à condição humana], abrangente [física, econômica, cognitiva, afetiva, legal...] e de longa duração), passando por dependências variadas ao longo de toda a linha do tempo dos indivíduos. Nesse contínuo, as posições na rede de relacionamentos são intercaladas: de dependentes extremos pode-se passar a ter

5 O ideal da independência como um modelo de “vida boa”, e a ideia da dependência como inutilidade produz, igualmente, efeitos sobre a população idosa considerada saudável, uma vez que também ela é pensada como um fardo para os outros e o Estado quando deixa de fazer parte da força de trabalho assalariada.

dependências parciais, ter outras pessoas dependendo de si e, em seguida, voltar a ocupar o lugar de alguém com dependências abrangentes. A dependência é entendida como uma característica humana fundamental atrelada à nossa constituição física, emocional, psíquica e cognitiva, bem como à nossa natureza finita. Ela é inevitável e parte de uma vida humana normal que se entrelaça com a dos demais. Ainda que a organização política e social possa criar mecanismos ideológicos e de distribuição de atividades que permitam a certos indivíduos ignorar esse fato e criar a ilusão da independência, não é possível remover certos aspectos da nossa interdependência sem nos causar sérios danos ou mesmo afetar importantes aspectos da nossa humanidade.

Nós não nos bastamos a nós mesmos e dependemos dos outros, de sua disponibilidade, cuidado e trabalho para a satisfação das necessidades tanto de ordem fisiológica (beber, comer, dormir) quanto emocional (de carinho, amor, reconhecimento). Essas formas aparecem claramente durante os períodos da nossa vida nos quais nossas capacidades de ação são limitadas – infância, velhice e doença. Mas elas também existem para as pessoas entendidas como independentes que continuam dependendo de certas pessoas para a satisfação de suas necessidades emocionais e permanecem enredadas em relações sociais complexas que mediam e tornam possíveis a satisfação de necessidades fisiológicas fundamentais bem como a elaboração e realização de projetos de vida que repousam sobre capacidades complexas (GARRAU e LE GOFF, 2010, p. 13-14).

Nossa humanidade possui uma natureza vulnerável e um conjunto de possibilidades que demandam cuidados e implicam interdependência. As dependências físicas (para sobreviver e desenvolver-se), cognitivas (para desenvolver intuição, raciocínio, reflexão pessoal, planos de vida), afetivo-emocionais (para desenvolver empatia, simpatia, repulsa, indignação, obter reconhecimento etc.), epistêmicas (para adquirir conhecimento, formas de raciocinar...), identitárias (para desenvolver a pessoalidade e as características necessárias ao convívio com os outros) e sóciolegais (para ser respeitado e obter direitos), bem como as dependências para com o mundo natural, deixam isso evidente. Assim como a interdependência pode ser percebida como necessária ao desenvolvimento e à manutenção da vida de cada indivíduo ela também o é em

relação à sociedade como um todo. A organização social é, pelo menos em parte, uma resposta às dependências humanas de cunho abrangente e inevitável. Por sermos todos dependentes de cuidados e interligados em uma vasta e variada rede de relações e atividades, o conjunto da sociedade se beneficia do cuidado que circula e mantêm essa rede, tornando a vida social possível. Não por último, tanto para o nosso funcionamento e sobrevivência quanto para a manutenção da sociedade e a formação dos conceitos individuais de vida boa, dependemos do cuidado que outros dão a outros. Assim, a rede de dependências estende-se e atinge aquelas pessoas que não se encontram ligadas diretamente a nós, mas afetam e afetarão a vida destas pessoas. Os estudos sobre o cuidado e a interdependência humana têm resultado, igualmente, em um questionamento do modelo tradicional de autonomia (pautado na imagem do indivíduo livre e auto-suficiente do liberalismo econômico e sob a ameaça constante da interferência dos demais) e em um modelo alternativo a este: o da autonomia relacional. Segundo este modelo, a autonomia não pode ser entendida como uma característica humana estática, mas como uma habilidade desenvolvida na interação e dependente de um conjunto de fatores (NEDELSKY, 1989). Para autoras como Meyers (1989, 2000), a autonomia é uma competência que compreende um conjunto de diferentes habilidades e capacidades que envolvem

reflexão

(como

as

da

auto-descoberta,

auto-definição

e

auto-

direcionamento) e que só podem ocorrer no contexto das relações, práticas e instituições sociais. Não podemos ser realmente autônomos sem compreender as maneiras pelas quais somos constituídos, na interação com outras pessoas, grupos e identidades significativas e significantes (como as de gênero, raça, etnia, classe, orientação sexual etc.) com os quais temos de negociar. A autonomia relacional é definida, pois, como uma característica humana que envolve criatividade, desejos e imaginação tanto quanto reflexão e racionalidade. Seu estudo procura iluminar as maneiras pelas quais os sujeitos se diferenciam social e psicologicamente dos demais e como as relações sociais impedem ou implementam as capacidades necessárias à autonomia. Fazendo uso desse modelo,

a aparente oposição entre dependência e autonomia cai por terra. A dependência não é vista como negativa ou um impedimento à autonomia, mas certos tipos de relacionamento (opressivos, exploradores, desrespeitosos, paternalistas etc.) é que a transformam em algo abusivo. Considerações finais O sujeito das teorias políticas e morais modernas é comumente apresentado como um ser pré-social, auto-suficiente e auto-interessado, que entra em cena pronto para a barganha e a discussão das regras que o farão entrar em sociedade e protegerão a si e aos recursos que adquiriu ou tem interesse em adquirir. De igual forma, é possível perceber que há um conjunto de valores definidos de antemão pelas teorias como essencial ou superior. São valores a serem almejados, respeitados e implementados pelo indivíduo e pelo Estado (liberdade, autonomia...). Em geral, a vulnerabilidade e a dependência desse sujeito não são discutidas ou são descritas como algo negativo que demanda proteção ou superação. A valorização da independência (pensada de forma econômica, racial e sexista) propiciou a invisibilidade e a negação das mais variadas formas de dependência humana necessárias e positivas, assim como a estigmatização de inúmeros grupos sociais e das atividades efetuadas fora do mercado de trabalho assalariado. Tal prática possui efeitos sobre questões políticas fundamentais como a possibilidade de definir o que são necessidades humanas comuns, qual o critério objetivo para atendê-las e quais formas organizacionais poderiam ser consideradas justas no processo de distribuição das atividades que visam atender a estas necessidades. Um modelo alternativo de sujeito, que leva a dependência humana em consideração sem estigmatizá-la e que explora seus aspectos inerentes e fundamentais para o desenvolvimento das mais variadas capacidades e projetos humanos, pode resultar em uma visão menos cética das instituições e relações sociais no que se refere à implementação de projetos que visam promover um certo conceito de bem-estar universal. De igual forma, o estudo das relações de dependência necessárias e fundamentais, assim como dos seus abusos, pode nos auxiliar a pensar certas obrigações éticas e políticas que delas decorrem (como o

apoio estatal e social a cuidadores e cuidadoras, o combate ao modelo paternalista e abusivo do homem-protetor-chefe de família, a necessidade de mudanças no mercado de trabalho para acomodar aqueles segmentos sociais que demandam cuidado especial ou suplementar em determinadas fases da vida ou durante toda a sua linha do tempo, a valorização de outras formas de contribuição social que não têm aspecto meramente econômico etc.). Referências Bibliográficas AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder, 1987. BLACKSTONE, William. Women and the Law in Victorian England. s/d. Disponível em: Acesso: junho de 2015. CAINE, Barbara e SLUGA, Glenda. Gendering European History: 1780–1920. Londres: Continuum, 2002. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, La généalogie, l’histoire. Em: Hommage à Jean Hyppolite, Paris: P.U.F., coleção Épiméthée, p. 145-172, 1971. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir, Paris: Gallimard, 1975. FRASER, Nancy e GORDON, Linda. A genealogy of dependency: Tracing a Keyword of the US Welfare State. Signs: Journal of Women in Culture and Society, vol. 19, nº 2, p. 309336, 1994. GARRAU, Marie e LE GOFF, Alice. Care, Justice, Dépendance. Introduction aux théories du care. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 2010. GILLIGAN, Carol. Uma voz diferente. Psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à fase adulta. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1982. GLENN, Evelyn Nakano. Creating a Caring Society. Contemporary Sociology, vol. 29, nº 1, Utopian Visions: Engaged Sociologies for the 21st Century, jan. de 2000, p. 84-94. Disponível em: . Acesso: 17 de maio de 2011. HELD, Virgínia. Non-Contractual Society: a Feminist View. Em: WEISS. Penny e FRIEDMAN, Marilyn (eds.). Feminism & Community, Philadelphia: Temple University Press, p. 209, 1994. HELD, Virgínia. The Meshing of Care and Justice. Hypatia, vol. 10, nº 2, p. 128-133, 1995. Disponível em: . Acesso: 14 de outubro de 2012. HIGGINBOTHAM, Peter. Workhouse Live, s/d. Disponível em: . Acesso: 17 de abril de 2012. KITTAY, Eva Feder. Love's Labor: Essays on Women, Equality, and Dependency. New York: Routledge, 1999. MEYERS, Diana Tietjens. Intersectional Identity and the Authentic Self? Opposites Attract!. Em: MACKENZIE, Catriona e STOLJAR, Natalie (eds.). Relatinal Autonomy: Feminist

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