«Uma geometria gelada: alienação e iluminação nas crónicas de Maria Judite de Carvalho», in Paula Morão e Cristina Almeida Ribeiro, org., Maria Judite de Carvalho. Palavras, tempo, paisagem, Lisboa, Húmus/Centro de Estudos Comparatistas, 2015, pp. 59-70.

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UMA GEOMETRIA GELADA Alienação e iluminação nas crónicas de Maria Judite de Carvalho Pedro Serra* Num outro lugar pude propor dois âmbitos metaforológicos como vectores estruturantes da cronística reunida por Maria Judite de Carvalho em A Janela Fingida e O Homem no Arame.1 Formulei, nessa ocasião, a hipótese de que os pares velocidade/quietude e ruído/silêncio alicercem a fabrica mundi – a ‘máquina do mundo’ – verberada e conformada pelas crónicas. 2 Ambos os binómios, neste sentido, definiriam uma mundivisão em que a aceleração temporal vai obsolescendo os homens, as palavras e as coisas. Homens – no mundo juditiano sobretudo, e em rigor, as mulheres –, palavras e coisas que se empilham como erros e velharias num mesmo espaço social e físico inabitável: “gente, enfim, fora da vida” (1979, 125). Assim, os textos de índole cronística de Maria Judite de Carvalho articulam a noção de um processo de modernização que vai marginalizando tanto os sujeitos individuais como colectivos. É decerto esse o valor alegórico do texto intitulado “Máquinas gritadoras” que integra O Homem no Arame. Encetado por uma alusão ao romance queirosiano A Cidade e as Serras, o texto fala-nos do cronótopo inaugurado pela promessa de uma Modernidade portuguesa que, todavia, em palavras do texto de Maria Judite de Carvalho, “[se foi] complicando” (1979, 60). O destino dessa nova realidade social e existencial, material e simbólica – o presente que a escrita da autora                                                                                                                        

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Universidade de Salamanca. Concretamente na comunicação “Máquinas da voz, máquinas da escrita: estética da ciência e da tecnologia na ‘cronística’ de Maria Judite de Carvalho” apresentada ao Colloque International Maria Judite de Carvalho: thèmes, représentations, genres, style, 50 ans après la parution de ‘Tanta Gente…Mariana !’ – organizado pelas Universidades de Paris 8/Saint–Denis, La Sorbonne /Paris IV e o Centre Culturel Calouste Gulbenkian, realizado nos dias 4, 5 e 6 de Novembro de 2009. 2 Este texto foi, entretanto, publicado na revista Forma Breve, nº 8, 2010, pp. 43-55. 1

interpela e é, pela escrita, imaginado –, é descrito então nos seguintes termos: “há os que levam horas fora do mundo, já não são totalmente seres humanos entre seres humanos, mas só espectadores na platéia da sua casa” (ibidem, 60-61). Assim, os indivíduos virtualizam-se numa sociedade que deveio ‘sociedade do espectáculo’. Como se saíssem do mundo. Expropriação de uma existência autêntica que supõe a descaracterização de uma qualquer cultura étnica genuína: daí que a cronística de Maria Judite de Carvalho nos devolva uma escritora especialmente atenta à ‘americanização’ do mundo. Efectivamente, a “paisagem sem barcos” pela qual a escrita de Maria Judite de Carvalho responde,3 devolve-nos um ‘tempo português’ na posteridade daquela história em que barcos ibéricos faziam a história. O planeta é já um ‘Planeta Americano’, se me é permitida a alusão a um título de ensaios do espanhol, também cronista, Vicente Verdú (1997). ‘Tempo português’, o da escrita juditiana, marcado pelo nojo por um império póstumo. No belo texto “Ardina”, penúltimo de O Homem no Arame, diz-se precisamente “[d]esta nossa cidade [de Lisboa], grande e confusa cabeça do corpo frágil que é Portugal” (ibidem, 192). ‘Cabeça’ e ‘corpo’: tropologia própria de um corpo místico que claudica. Ora no texto imagina-se, ainda – acomodando esta figuração com tonalidade pós-imperial –, uma impressionante nova cosmologia dessublimada: “Aqui, nesta cidade [isto é, Lisboa], noutras maiores, claro, as estrelas foram apagadas e substituídas, e, quando avistamos um ponto luminoso, nem sequer é o planeta Vénus, mas a lanterna que fica acesa toda a noite no alto de um prédio em construção” (ibidem, 94-95). Lisboa, a ‘Nova Roma’ dos tempos áureos, é agora terra sem terra ou, o que é o mesmo, desterritorialização de uma urbe bulímica – a “terra de ninguém chamada Chiado” –, que comporta ao mesmo tempo outra territorialização, dita                                                                                                                         3

Aludo aqui, como é óbvio, ao título do conhecido romance juditiano. A personagem Jô modeliza uma tópica que mais adiante comento – a da ‘ilha’ que a personagem diz ser: “Sim, uma ilha, sem arquipélago, e à volta o oceano desconhecido e um nevoeiro tão denso que não deixava ver os barcos, se os havia. Mas era natural que os houvesse. Há sempre barcos em volta das ilhas” (1963, 98).

“geometria gelada da cidade” (ibidem, 104) – zona hinóspita de sobreviventes e náufragos, como o são as personagens das crónicas de Maria Judite de Carvalho. Na nova fabrica mundi ‘portuguesa’, a espacialidade ‘intra muros’ é a definida por uma errância ‘sem terra’, de que o ‘turismo’ – tema de diversas crónicas – será um subproduto: “Ser turista é um estado de graça. Que como todos os estados de graça, faz com que o espírito domine a matéria” (ibidem, 113). Ora, é este irónico “estado de graça” que é impossível aos habitantes autóctones de uma grande cidade como Lisboa – já não território pregnante mas lugar de trânsito estéril –, modulada ao invés pelas tópicas da “ilha de cimento” e do “campo de concentração voluntário” (ibidem, 96-97). Unindo-as numa mesma imagem sensível: a “geometria gelada”.   Lugar enclaustrado ou Terra Imóvel, para lembrar o título de um conhecido livro de poemas de Luiza Neto Jorge publicado nos mesmos idos (cf. Jorge 1964). Na imaginação desta genial poeta, a escrita de um poema e seus materiais são como “dedo agudíssimo” ou “agulha de sangue”, arma estiliforme “apontando” o mundo – que o alveja ou que, como um deíctico, o marca. Enfim, o poema como tensão – como “duelo”, como intensidade – entre o “claro” e a “sombra”, isto é, como iluminação: “esta terra imóvel | onde já a minha sombra é um sinal de alarme” (57). ‘Esta terra’… nesses idos, não apenas o mundo como lugar concentracionário, mas o poema como lugar quieto. O sujeito devém, no poema “sombra”; devém, enfim, sinal obscurecido mas também sonoro: “traço de alarme”. O corpo, o poema como “traço de alarme”. No fundo, a literatura como ficção; ficção que nega a realidade, mas que a afirma também no mesmo lance. Tudo isto valerá, creio, para Maria Judite de Carvalho. Ora, gostaria de, nesta ocasião, acrescentar aos pares velocidade/quietude e ruído/silêncio já mencionados, esta outra figura esculpida na leitura das crónicas: a de uma espacialidade concentracionária, classe espacial que se concretiza em múltiples espécies de espaços, para utilizar o feliz sintagma que constitui o título

de um livro de Georges Perec (2007 [1974]). A figura de uma “geometria gelada” dir-nos-ia da generalizada alienação da humanidade. Assim, as crónicas reunidas em A Janela Fingida e O Homem no Arame encontram-se pejadas de pequenos poderes e despossessões, acumulam personagens que nos pretendem dizer da possibilidade e da impossibilidade de as pessoas serem agentes da realidade social e subjectiva. Uma problemática do ‘romance’ enquanto género do qual Maria Judite Carvalho não se desvinculou, como, com acerto, anotou em tempos Baptista-Bastos (cf. Carvalho 1975, 17). A Janela Fingida e O Homem no Arame supõem algo como a pulverização do género romanesco, ou melhor, do seu paradigma oitocentista. Sublinho o termo que utilizo, na sua equivocidade: ‘pulverização’. Diria que as ‘crónicas’ se podem definir na tensão entre a redução a pó do modelo ainda hipostasiado, por um lado; e, por outro, o espargimento desse mesmo modelo em miniaturas. Quase me atreveria a propor, neste sentido, a noção de ‘fractal’ para objectivar a relação entre romance e crónicas em Maria Judite de Carvalho. O fractal, uma espécie de módulo, mantém uma mesma estrutura a diferentes escalas. Cada uma das crónicas, assim, miniaturiza um virtual romance: o conjunto delas, contudo, perfila-se como uma soma que não perfaz uma unidade maior, o fechamento num todo orgânico que subsumisse as partes soltas. Seja como for, e como saldo da soma dessa modulação miniaturizada de vidas ‘alienadas’, teremos algo como um ‘humano’ desautorado na produção da história. Assim, não é difícil encontrar múltiples estampas dessa desautoração generalizada nas histórias contadas: nelas, por exemplo, o que pudessem ser causas devêm efeitos, e vice-versa, sendo que os gonzos – afinal fora dos gonzos – trocam sujeitos e objectos, emaranhando também meios e fins. A “ilha de cimento” ou o “campo de concentração voluntário”, coalescendo naquele poderoso sintagma da “geometria gelada”, poderiam ser figuras textuais desta máquina do mundo perversa – porque emaranha, porque é foco de geração de um mundo emaranhado –, aferindo-a pelo conceito de ‘alienação’. Alienação da humanidade como objecto da cronística de Maria Judite de Carvalho,

um objecto cujo interesse, digamos, ‘hermenêutico’, provém do facto de o uso do vocábulo ‘alienação’ ser francamente matizado na analítica social e cultural da romancista, o que nos impõe ponderá-lo como espécie. Mais ainda, e este é um ponto essencial da minha proposta de leitura, se a máquina do mundo perversa não parece autorizar uma ‘agência humana’ que faça diferença(s) – enfim, que produza tempo –, é contudo contra ela que podemos graduar as intensidades de diferentes momentos iluminados cuja fenomenologia e refracção textual são determinantes na inventio de Maria Judite de Carvalho. Uma invenção modelizada tanto pelo sofrimento como pela demanda de beleza, um engenho da escrita eivado de justiça e de verdade. Beleza e justiça insubornáveis. No fluxo do efémero quotidiano, Maria Judite de Carvalho é atingida por instantes de esplendor que movem a escrita. Lembra-me um belíssimo pequeno livro de Elaine Scarry intitulado precisamente On Beauty and Being Just (2001). O argumento assenta na noção de que uma coisa bela impõe a sua repetição: “Beauty brings copies of itself into being” (ibidem, 3). O estético é, assim, uma violência na medida em que ser atingido pela beleza significa ser movido à geração de uma cópia do objecto belo. Um impulso benigno a replicar a beleza. Ora, creio que precisamente a cronística de Maria Judite de Carvalho colige momentos iluminados, instantes de esplendor: coisas vistas, coisas ouvidas – coisas que tocam e mobilizam a escrita. Mas retomemos brevemente o problema da ‘alienação’. A autora, numa breve mas magistral pincelada, mostra-nos como a sua interpretação e descrição do mundo – decerto empenhada e comprometida – não obedece propriamente à gramática das ideologias. No texto “A Bordadora”, que integra O Homem no Arame, uma jovem cliente impõe à artesã o rótulo de ‘mulher alienada’: “Uma cliente fizera para ali um discurso sem pés nem cabeça e no fim chamava-lhe alienada. Alienada seria a outra” (1979, 71). Se o texto visa relativizar a noção do trabalho como alienação, sobrevém uma cena doméstica entre a bordadora e o marido que acaba por representar as determinações de

género na distribuição social do poder; ou se se quiser, acaba por focalizar a alienação – agora sim – da mulher à ordem patriarcal que sustenta o mundo. Um outro exemplo deste modelo de leitura compassiva do mundo por parte de Maria Judite de Carvalho temo-lo no texto “Burocracia”. Os burocratas são vistos como “parafusos” ou “rodinhas”, mas a voz do texto não se exime ao contrafactual de se colocar na posição dos “parafusos” e “rodinhas”: “E se eu ali estivesse? Podia ter acontecido, não? Nós não escolhemos os lugares onde vamos morar na vida, somos escolhidos por eles, presos dentro deles” (ibidem, 76). Com laivos materiais, e mesmo algo materialistas, eis, então, uma outra especificação da já mencionada ‘espacialidade concentracionária’. Não só a realidade objectivada determina o lugar dos indivíduos, como também impõe tanto a insciência como a consciência de que um qualquer lugar, porque objectivo, é como ‘uma prisão’. Daí que tenhamos a sensação, ao ler Maria Judite de Carvalho, que o mundo que esta cronística refracta é um mundo sem emenda. Ou, na imagem vibrátil da romancista, um mundo determinado por “um longo futuro de céu tapado, de sol ausente” (1979, 96). Mas isto – e gostaria de sublinhar com traço grosso este aspecto do meu argumento – não significa claudicar por desespero. Poderá significar, tão-sómente, que a inteligência do presente se joga contra esse “longo futuro de céu tapado, de sol ausente”, belíssima fórmula com que Maria Judite de Carvalho espacializa uma temporalidade em que os possíveis se suspendem. Dizer que no impossível ‘presente’ que a cronística vai conformando a semente dos possíveis não parece frutificar, significa que o futuro se virtualiza. E ser virtual o futuro, isto é, que o futuro seja uma virtualidade, não significa que não seja real. Um futuro virtual é diferente tanto de um futuro concreto como de um futuro abstracto. Para ampliar um pouco mais a descrição da “geometria gelada”, imagem sensível da máquina do mundo perversa de Maria Judite de Carvalho, valerá a pena fazer o cotejo desta figuração textual com outras ‘máquinas do mundo’ coevas. Neste sentido, gostaria de convocar

brevemente um lugar muito trilhado d’O Aprendiz de Feiticeiro de Carlos de Oliveira, concretamente o último parágrafo de “A fuga”. Façoo porque me permite levar a cabo um cotejo produtor de diferenças, uma aferição que, no meu ponto de vista, pode ser útil para a leitura de Maria Judite de Carvalho. Sobretudo, para tentar mostrar como a ‘espacialidade concentracionária’, enquanto figura da ‘alienação’, deverá ser lida na sua relação com descarga de momentos intensos que a ‘iluminam’. Recordo, então, o seguinte trecho de “A Fuga”: “O céu real é talvez irreal. Nada me garante que não contemplo um universo morto, um deserto. Talvez a máquina de facto parasse. Mas trabalha ainda nos meus olhos. Tece neles a sua própria harmonia. Dentro de oito anos pensarei na catástrofe ou no cansaço a que o médico dá o nome clínico de angústia. Tentarei separar então a aparência da realidade, se valer a pena” (1992, 599). Note-se como o sujeito do texto propõe uma derrogação da pulsão epistemológica (“se valer a pena”), dubitatio (“talvez”, “nada me garante”) e indeterminação sujeito/objecto no que à origem da “harmonia” da “máquina” se refere. A máquina do mundo funciona nos meus olhos configurando a sua (da máquina?, dos olhos?) harmonia? É pelos meus olhos que a máquina do mundo trabalha configurando a harmonia (da máquina?, dos olhos?)? Seja como for, diz-se ter acontecido a “contemplação” e um momento de “harmonia”. Sendo dita, é diferida; mas é na instanciação do dizer que teria uma “autenticidade” (im)possível. Este lugar, do meu ponto de vista, valerá tanto para Pastoral como Finisterra na medida em que são textos que nos devolvem uma espécie de inflação de momentos de presença em regime alegórico. Diria mesmo que ambas as obras podem ser lidas como “avejões” da presença, de um escritor existencialmente sincronizado com uma escrita assincrónica. “Tentarei separar então a aparência da realidade, se valer a pena”: resignação, por cansaço, à vacuidade de uma tamanha demanda epistemológica? Determinação de uma situação clínica de angústia? Talvez não. O texto a que pertencem estas palavras, datado de 1961 e 1967, em muitos aspectos tematizando uma consciência de ‘ser

estruturalmente tardio’ – o universo pode ter acabado, a notícia ainda demorará a chegar, “eu” terei sobrevivido ao apocalipse –, responde por um tempo em que os possíveis criativos são ainda muitos. O que este parágrafo d’ “A Fuga” me devolve, na verdade, é a possibilidade de uma aceitação da “harmonia” como pura intensidade sem sentido. Aceitação de momentos de presença, necessários para garantir um mínimo de legitimidade à aspiração de uma outra mais agradável vida. Um pequeno pecúlio para atravessar o Inverno, como o que lemos no seguinte parágrafo de Hans Ulrich Gumbrecht: But accepting the full and awe-inspiring responsibility of representing the worldview of an aging man, I insist that – as an aging man indeed – I have come to treasure the rare moments of harmony that happen to me. So much so that I believe we should never let our political commitments (if we have any) completely obscure this longing. For what, after all, would be the point of politics and potential transformations without a vision of a more enjoyable life?” (2004, 143).

“Visão do mundo de um homem que envelhece”: a matéria da escrita e do mundo é finita (esgota-se); finita também a energia – a matéria – de um corpo humano e da consciência que encarna. Contudo, a resistência destes materiais é assimétrica. Para um corpo humano e a consciência que encarna, tanto a resistência da escrita como a resistência do mundo são, na prática, quase infinitas. Fazer contas com o apocalipse do universo, é perder-se nas contas: ou seja, produzir uma imagem da orbe celeste que permite manter em suspensão o distinguo entre “mundo” e “deserto”, “máquina parada” e “harmonia”. Ora, voltemos a Maria Judite de Carvalho, à “terra de ninguém chamada Chiado”, ao “longo futuro de céu tapado, de sol ausente”, à cosmologia de uma existência insularizada “Aqui, nesta cidade [de Lisboa], noutras maiores, claro, [onde] as estrelas foram apagadas e substituídas, e, quando avistamos um ponto luminoso, nem sequer é o planeta Vénus, mas a lanterna que fica acesa toda a noite no alto de um prédio em construção” (1979, 94-95). Voltemos, em suma – e para utilizar, uma vez mais, as eloquentes imagens da escritora –, à

“geometria gelada da cidade” (ibidem, 104). Propus já, numa outra oportunidade, o argumento de que a leitura do mundo interior e exterior que temos na cronística de A Janela Fingida e O Homem no Arame responda por uma interpretação da fabrica mundi que, não dispensando densidades ontológicas dentro e fora do discurso, se subsume à relatividade. Assim, e numa síntese possível da pulsão interpretativa da realidade no âmago destes textos jornalísticos, “a maior objectividade possível” – diz-nos a autora – é “uma objectividade muito relativa” (ibidem, 100-101). Neste sentido, a “geometria gelada da cidade” é decerto figura da realidade objectivada, isto é, alienada. E “a lanterna que fica acesa toda a noite no alto de um prédio em construção”, por seu turno, replicando a objectivação – devolve-nos a voragem tardocapitalista tão amplamente refractada nas crónicas de Maria Judite de Carvalho –, não deixará de ser a figura de uma actividade nocturna, de uma ‘viagem ao fim da noite’, do labor intenso de um escritor ou escritora que, dessa dessublimada mansarda ainda observe o mundo e tente dar-lhe uma forma. A ‘mansarda dessublimada’, como lhe chamo, tem aliás na figura da ‘janela’ a sua formalização mais conspícua, é de resto esta a imagem que percute no título de uma das colecções de crónicas de Maria Judite de Carvalho. Ora, concluo ampliando algumas consequências desta zona intersticial, deste lugar liminar que é a ‘janela’. Avanço com as seguintes considerações finais em torno da ‘janela’ convocando uma outra ‘janela’, uma ‘janela’ cinematográfica. Poderia, claro, atrair para o meu argumento outras ‘janelas’, quer da literatura portuguesa, que do cinema português. Mas opto pela inquietante ‘janela’ que serve de pano de fundo ao monólogo da personagem Steiner em La dolce vita de Federico Fellini que começa por dizer “Qualche volta, la notte, quest’oscurità, questo silenzio, mi pesano”, e conclui com uma referência à arte, à obra de arte, como lugar ‘fora’ de um mundo sobre o qual impende a possibilidade do apocalipse: “Bisogna di vivere fuore dalle passione e altri sentimenti nell’armonia che c’è nell’opera d’arte reuscita, in quell’ordino incantato. Vodremmo reuscire al amarci tanto, da vivere

fuore del tempo, distacati... distacati” (2001 [1959])). Aí temos, então, uma ‘janela’ cuja vidraça é, fundamentalmente, o contorno sem contorno de um breu, de uma escuridão que, oriunda do mundo exterior, acaba por subsumir o lugar enclaustrado da casa. Esta ‘janela’, na verdade, vale-me pela sua diferença em relação à ‘janela’ de Maria Judite de Carvalho. Pois, na verdade, considero que funciona como ‘moldura’ em que ainda a arte pode encontrar um seu analogon: a arte verbal, a escrita, como ‘vida fora do tempo’, como ‘ordem encantada’. O último texto de A Janela Fingida intitula-se “Vento”, e funciona no livro como ‘clausura narrativa’. Nele, precisamente, retorna a ‘janela’ que, entre outros lugares das crónicas, tem avatares nos textos “A Janela Fingida” e “Janelas Pintadas”. Numa descrição possível, a ‘janela’ é, então, uma figura da ‘escrita’: a cronística de “palavras poupadas”, entre o documento e a efabulação, é como uma janela imaginária a dar para o mundo. O impossível presente da escrita detona a memória da casa da infância, que é também como uma mónada com janela imaginada. Uma descrição da infância, em suma, e da língua enclaustrada e silenciosa que é a sua – in fans, lembrava Lyotard, significa etimologicamente “aquele que não fala” –, uma língua que inventa mundos possíveis como num jogo. Assim, a infantil “janela fingida” será prefiguração da escrita: “Não via nada, claro está, só a parede e o papel da parede” (46). O papel da parede, ou o papel em que se escreve, e em que, enfim, o escritor inventa mundos de ficção – havendo, claro, realidade na ficção. Entretanto, nas “Janelas Pintadas” – um texto em que podemos observar como uma ‘escrita do quotidiano’ é sempre priorizada pela literatura, ou não tivéssemos uma ‘voz narrativa’ febril e com dores de cabeça, muito necessitada de ‘aspirinas’ como num conhecido poema pessoano – temos a replicação dessa superfície que provém da infância onde o mundo quadrimensional se reduz a duas dimensões. O cenário é de um quarto em que a ‘voz narrativa’ encontra na febre, nas dores de cabeça e na janela o ‘módulo’ que, enfim, define a escritora e a sua escrita. Num ‘prédio em obras’, os martelos golpeiam tanto o exterior como o interior: “Como disse e vou repetir uma vez mais, estava pois com febre e dores

de cabeça. Estive assim durante muitos dias. E ao longo desses dias os martelos a baterem não sei onde, mas também em todos os ossos da minha cabeça, mesmo os mais discretos e ignorados” (1975, 149-150). A ‘janela’, aqui, não funcionará como ‘ordem encantada’: “Vou levar meses a olhar com ódio estas velhas janelas pintadinhas” (ibidem, 150). Antes, estas janelas devolvem a desordem do mundo, no ruído doloroso do mundo, conformado textualmente no diminutivo depreciativo. Por fim, o sujeito textual de “O Vento”, também enclaustrado no espaço fechado de um quarto fazendo da ‘janela’ um símil da imaginação. “Eisme pois aqui, à janela, e não sei nada. Encosto-me à vidraça e olho” (ibidem, 186). A existência do vento lá fora é submetida à ‘dúvida’, suspende-se mesmo a pulsão epistémica que confirmasse ou infirmasse a existência de vento: “Claro que eu podia a janela e ficava logo a saber? Mas que me importa a mim hoje, neste instante, saber se há vento? Nada, absolutamente nada” (ibidem, 186). Fica apenas o rasto que as imagens do mundo lá fora deixam nessa superfície de inscrição em que sujeito e objecto se indistinguem: a janela, precisamente. A ‘gabardina da rapariga’ o a ‘chapéu de abas do velhote’, subsumidas pela dubitatio, acabam por ser o correlato em ruínas daquele vento infantil irrecuperável: “Gostava era de ver de caras [o vento], como em criança, quando morava diante de um jardim cheio de árvores revoltadas nos dias ventosos” (ibidem). Restam, em suma, esses instantes de ‘iluminação’, momentos efémeros em que a ‘ordem encantada’ do mundo é uma virtualidade inscrita na ‘ordem encantada’ da arte. A ‘janela fingida’ juditiana, enfim, perfila-se como uma figura da imaginação. É, a de Maria Judite de Carvalho, uma obra que vem até nós do amplo arquivo dos discursos simbólicos do campo cultural português da segunda metade do século XX, o acontecimento fundamental da “nossa actualidade” sócio-política é o advento da Democracia, depois de um estado ditatorial basicamente solipsista, enclaustrado numa autoimagem que prolongou no tempo uma ontologia nacional sustentada como corpo místico imperial. A replicação desse acontecimento, enquanto momento que galvaniza a relação do presente com o passado,

mostra-nos como a “nossa actualidade” é ainda a da construção da democracia, cujos processos obrigam a continuar a pensar as suas origens ou, para utilizar um termo certamente menos marcado, os seus começos. Recentemente, o historiador Fernando Rosas formulava o seguinte imperativo, motivado pelo diagnóstico que faz do devir histórico dessa “nossa actualidade”, no caso português: “[T]alvez um dos desafios centrais da cidadania dos nossos dias seja o de saber se o processo histórico de esvaziamento das conquistas fundamentais da democracia logrará ou não transformá-la num ente radicalmente contraditório com a sua génese” (2005, 193). Pensado em função desse modelo fundacional, tomado como origem ou como começo, o advento complexo da Democracia é um módico de mitologia, de ansiedade ou metafísica das origens, de que talvez não seja conveniente, pelo menos de momento, prescindir. Um módico de idealização, um módico de nostalgia – não sendo possível determiná-los a ponto de os tornar necessidades! – são modestamente necessários. Tal como alguma literatura que é (ou continua a ser) ficção necessária, certamente aquela literatura de grandes “fracassos” vitais que perseveraram no fracasso, aquela literatura que perfaz a hipóstase de um futuro sempre a vir ou, tendo no horizonte uma conhecida formulação derridiana, uma Democracia sempre a vir. 4 Coloco entre aspas a palavra “fracasso” porque cito Augusto Abelaira, concretamente uma passagem de Enseada Amena (cuja primera edição data de 1966) que faz a descrição breve da complexa ontologia da escrita que mais adiante vou percorrer: “Recentemente, estive para recomeçar a escrever, sempre é uma maneira de enganar-nos a nós próprios quanto ao fracasso das nossas vidas... Mas                                                                                                                         4 Sublinho, claro está, a tensão entre a presença da democracia e a promessa da democracia. Ainda, a aporia no âmago do democrático: “A antinomia no coração do democrático, reconhecida de há muito, clássica e canónica, é a do binómio constitutivo e diabólico da democracia: liberdade e igualdade. Traduziria este binómio dizendo que a igualdade tende a introduzir medida e cálculo (por conseguinte, condições) lá onde a liberdade é por essência incondicional, indivisível, heterogénea ao cálculo e à medida” (Derrida 2003, 74). Tensada entre presença e promessa, os condicionalismos e o incondicional, a democracia é forma informe que permite precisamente reconhecê-la sempre “em perigo”, e possibilita o seu aperfeiçoamento.

desisti. Ser romancista não ajuda a diminuir esse fracasso, é apenas um meio de confessá-lo publicamente” (1997, 55). Esta descrição não funcionará como um retrato cuja verdade pudesse ser aferida pelo estabelecimento de correspondências. Trata-se, antes, de um conjunto de problemas postos pela escrita na sua implicação com uma democracia por vir. É a escrita que configura um “fracasso vital”, nos idos de meados de sessenta, certamente determinado pela obturação de vários futuros – socialismo, revolução, etc. – e a sua substituição por outros – desenvolvimento da sociedade de consumo, tardo-capitalismo, etc. Um conjunto de problemas que têm uma negociação singular e original nos “traços de alarme” da cronística, contos e romances de Maria Judite de Carvalho.

Referências e obras citadas Abelaira, Augusto. 1997. Enseada Amena. 4ª ed. Lisboa: Editorial Presença [1ª ed.: 1966]. Carvalho, Maria Judite de. 1963. Paisagem Sem Barcos. Lisboa: Editora Arcádia. Carvalho, Maria Judite de. 1975. A Janela Fingida. Lisboa: Seara Nova. Carvalho, Maria Judite de. 1979. O Homem no Arame. Lisboa: Livraria Bertrand. Derrida, Jacques. 2003. Voyous. Paris: Galilée. Fellini, Federico. 2001 [estreia: 1959]. La Dolce Vita. Alicante: Suevia Films. Gumbrecht, Hans U. 2004. Production of Presence. What Meaning Cannot Convey. Stanford: SUP. Jorge, Luiza Neto. 1964. Terra Imóvel. Lisboa: Portugália Editora. Oliveira, Carlos de. 1992. Obras. Lisboa: Caminho. Perec, Georges. 2007 [1ª ed. francesa: 1974]. Especies de espacios. Madrid: Montesinos. Rosas, Fernando. 2005. “A Revolução Portuguesa de 1974/75 e a Institucionalização da Democracia”. In Manuel Loff e Maria da Conceição Meireles Pereira, coords. Porto: Editora da Universidade do Porto, pp. 15-34. Scarry, Elaine. 2001. On Beauty and Being Just. Princeton: Princeton University Press. Verdú, Vicente. 1997. El planeta americano. Madrid: Anagrama.

«Uma geometria gelada: alienação e iluminação nas crónicas de Maria Judite de Carvalho», in Paula Morão and Cristina Almeida Ribeiro, org., Maria Judite de Carvalho. Palavras, tempo, paisagem, Lisboa, Húmus/Centro de Estudos Comparatistas, 2015, pp. 59-70. Comunicação apresentada ao congresso internacional Maria Judite de Carvalho: Palavras, Tempo, Paisagens. Nos 50 Anos de Palavras Poupadas, Lisboa, Universidade de Lisboa, 21 e 22 de Março de 2011.

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