Uma identidade (re)construída através das obras “Um quarto de légua em quadro” (1976) e “Breviário das terras do Brasil” (1997), de Luiz Antônio de Assis Brasil

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE HISTÓRIA

GABRIELA DE LIMA GRECCO

UMA IDENTIDADE (RE)CONSTRUÍDA ATRAVÉS DAS OBRAS “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO” (1976) E “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL” (1997), DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Porto Alegre 2010

GABRIELA DE LIMA GRECCO

UMA IDENTIDADE (RE)CONSTRUÍDA ATRAVÉS DAS OBRAS “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO” (1976) E “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL” (1997), DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em História, pelo Curso de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Orientador: Prof. Dr. Charles Monteiro

Porto Alegre 2010

GABRIELA DE LIMA GRECCO

UMA IDENTIDADE (RE)CONSTRUÍDA ATRAVÉS DAS OBRAS “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO” (1976) E “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL” (1997), DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em História, pelo Curso de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Aprovada em _____ de ___________________ de ________. BANCA EXAMINADORA:

Prof.Dr. Charles Monteiro (orientador) - PUCRS __________________________________

Profa. Dra. Cláudia Musa Fay - PUCRS __________________________________

Prof. Dra. Janete Silveira Abrão - PUCRS __________________________________

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, devo parte deste trabalho à competência e à ajuda de meu orientador, Dr.Charles Monteiro, que me ofereceu grande auxilio no desenvolvimento e na finalização desta tarefa; Devo um sincero agradecimento ao professor e escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, de quem ouvi informações preciosas em seu depoimento, além de inspirar esse trabalho através de suas maravilhosas obras. Gostaria de agradecer a meu pai, Sérgio Luiz Grecco, o qual me fez amar a História e, portanto, foi o grande motivador para que eu escolhesse cursar esta faculdade que, desde o início, foi trilhada com muita dedicação. Muito obrigada por todas as histórias que, ao longo dos meus 24 anos, ouvi atentamente e que me fizeram, a cada palavra, amar a história da humanidade e compreender que também faço parte dela. Gostaria, também, de agradecer a minha mãe, Lucimar Soares de Lima Grecco, a qual sempre me apoiou na escolha do curso, História, e da profissão que desejo seguir, professora. Obrigada por ser um exemplo de integridade, empenho e força: qualidades necessárias que busco me apoiar para ser uma excelente profissional e ser humano. Devo agradecer imensamente ao apoio e à ajuda de um grande amigo, André Jaeger da Cunha. Nossas conversas sempre produtivas, as quais tanto me estimularam para que eu finalizasse, com mais segurança, este trabalho. Agradeço também sua amizade e seu companheirismo: certamente sou, hoje, uma pessoa melhor por ter trilhado essa jornada a seu lado. Devo também agradecer a meus amigos e colegas de faculdade que estiveram ao meu lado nestes 5 anos: Alessandra Guaragna, Daniela Gorgen, Gabriela da Silva, Iliriana Rodrigues, Lucas da Silva.

A incompreensão do passado nasce, afinal, da ignorância do presente. Marc Bloch

A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Mikhail Bakhtin

Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo. Carlo Ginzburg

Ainda o meu canto dolente, e a minha tristeza, no Congo, na Geórgia, no Amazonas. Ainda o meu sonho de batuque em noites de luar. Ainda os meus braços, ainda os meus olhos, ainda os meus gritos. Agostinho Neto

RESUMO

O presente trabalho pretende seguir uma abordagem histórica centrada no enfoque cultural, especialmente por utilizar-se das obras de Luiz Antônio de Assis Brasil (1945- ), “Um quarto de légua em quadro” (1976) e “Breviário das terras do Brasil” (1997). Estas obras podem ser consideradas como fonte importante de análise histórica por problematizarem a história do Rio Grande do Sul e, por conseguinte, o processo de construção da identidade gaúcha. Nestas obras, portanto, torna-se possível revisitar e reavaliar o passado, através de um olhar crítico capaz de reconstruir e subverter o passado do estado sulino. Com esses dois livros, pode-se compreender a evolução da própria forma que Assis Brasil representou certos personagens ao resgatar a temática da gênese do povo sulino temática bastante ilustrativa para se compreender a formação da identidade de uma sociedade. Além disso, o entendimento da condição sócio-cultural e estética da pósmodernidade, em que se pode observar uma crítica relativa ao cânone e à marginalização de atores sociais, são de suma importância para uma compreensão mais aprofundada das representações construídas nas obras de Assis Brasil, bem como para o entendimento do processo de construção e reconstrução da identidade gaúcha através do cânone literário sul-rio-grandense. PALAVRAS-CHAVE: História Cultural. Representação. Literatura sul-rio-grandense.

RESUMEN

El presente trabajo se propone seguir un abordaje histórico centrado en el enfoque cultural, sobretodo por utilizar las obras del autor Luiz Antônio de Assis Brasil (1945- ), “Um quarto de légua em quadro” (1976) y “Breviário das terras do Brasil” (1997). Estas obras literarias pueden ser consideradas como importante fuente de análisis histórico puesto que problematizan la historia del Rio Grande del Sur y, por consiguiente, el proceso de construcción de la identidad gaucha. En estas obras, por lo tanto, es posible revisitar y reevaluar el pasado, a través de una mirada crítica capaz de reconstruir y subvertir el pasado de la provincia sur-rio-grandense. También, por medio de estas dos obras, se puede comprender la evolución de la forma singular que Assis Brasil representó ciertos personajes al rescatar la temática de la génesis del pueblo gaucho - temática muy ilustrativa para que se comprenda el proceso de formación de la identidad de una sociedad. Además de eso, el estudio de la condición socio-cultural y estética de la pos-modernidad, donde se puede observar una crítica relativa al canon y a la marginalización de actores sociales, son de importancia extrema para una comprensión, más profundizada, de las representaciones construidas en los textos literarios de Assis Brasil, así como para el entendimiento del proceso de construcción y reconstrucción de la identidad gaucha por medio del canon literario sur-rio-grandense.

PALABRAS CLAVE: Historia Cultural. Representación. Literatura sur-rio-grandense.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 09 1 HISTÓRIA E LITERATURA: ENTRE NARRATIVAS LITERÁRIAS E HISTÓRICAS, UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO...................................................................................................14 1.1 HISTÓRIA CULTURAL: CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO............................14 1.2 O TEXTO LITERÁRIO COMO FONTE PARA A HISTÓRIA.............................. 19 1.3 HISTÓRIA E FICÇÃO: NARRATIVA LITERÁRIA E NARRATIVA HISTÓRICA. 23 2 DA PÓS-MODERNIDADE AO CÂNONE LITERÁRIO .........................................30 2.1 A IDENTIDADE PÓS-MODERNA .......................................................................30 2.2 DA IDENTIDADE AO CÂNONE ..........................................................................38 2.3 DA IDENTIDADE AO CÂNONE SUL-RIO-GRANDENSE ..................................42 3. IDENTIDADE E CÂNONE GAÚCHO: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA SUL-RIO-GRANDENSE ATRAVÉS DAS OBRAS “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO” E “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL”, DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL ..................................................................................49 3.1 UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA FICÇÃO CONTEMPORÂNEA ..........49 3.2 A HISTORIOGRAFIA GAÚCHA ..........................................................................53 3.3 A HISTORIOGRAFIA DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL ...........................58 3.4 ANÁLISE DE “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO”.....................................62 3.5 ANÁLISE DE “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL”.....................................72 CONCLUSÃO............................................................................................................87 REFERÊNCIAS ........................................................................................................91 ANEXOS ...................................................................................................................99 ANEXO A- DEPOIMENTO DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL ........................99

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INTRODUÇÃO

Nas áreas da História e da Literatura, já há um percurso respeitável em relação às reflexões referentes à identidade gaúcha. Tais reflexões, no entanto, não esgotam o assunto, mas, sim, tornam a discussão mais fértil e nos dão subsídios para refletir e questionar sobre a identidade sul-rio-grandense. Pode-se verificar, assim, que tanto o texto histórico como o literário compartilham um projeto de apreender as realidades humanas. Nesse sentido, muitos historiadores reconhecem, no texto literário, a possibilidade de se identificar dados históricos com a peculiaridade e expressividades próprias da linguagem artística, sendo a literatura, portanto, um campo privilegiado para a investigação histórica. Quando se analisa a literatura gaúcha, tal constatação ainda é mais evidente, de modo que as fronteiras entre texto ficcional e texto histórico se interpenetram de modo a não se saber, às vezes, o que de fato aconteceu e o que foi imaginado. Assim,

iniciou-se

essa

investigação

acadêmica

com

o

seguinte

questionamento: qual a importância e o papel da Literatura para a construção da identidade gaúcha? Numa busca por uma resposta prévia, a presente pesquisa partiu da hipótese de que os textos literários, ao serem canonizados, permitem que certos grupos da sociedade sejam legitimados a representar a cultura de uma dada sociedade – neste trabalho mais especificamente a cultura sul-rio-grandense - e, por conseguinte, seus valores acabam por “moldar” a identidade de uma sociedade. Por outro lado, percebeu-se que a literatura, embora possa contribuir para produzir assimetrias em nível social, também tem a função de ampliar as possibilidades de significação de uma identidade, valorizando outros elementos que também integram um projeto identitário não excludente. O objetivo geral desse trabalho, portanto, é problematizar a construção da identidade regional do estado do Rio Grande do Sul, através das representações simbólicas identificadas no livro “Um quarto de légua em quadro” (1976) e “Breviário das terras do Brasil” (1997), de Luiz Antônio de Assis Brasil. Para tanto, foram traçados os seguintes objetivos específicos: analisar o significado da obra de Luiz Antônio de Assis Brasil para a construção – ou desmistificação – da identidade sulrio-grandense; problematizar as representações criadas pelo cânone sul-riograndense; identificar os grupos étnicos e culturais marginalizados na obra de Assis

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Brasil; identificar as estratégias discursivas e formais com que são representados os acontecimentos e, sobretudo, os personagens das duas obras a serem analisadas; refletir sobre a possibilidade de se utilizar a literatura na pesquisa histórica, como fonte que fornece narrativas ficcionais de grande valor ideológico e capaz de subverter as representações construídas historicamente; analisar a importância de se confrontar e aproximar as áreas da História e da Literatura; e, por fim, refletir sobre o debate atual relativo à aproximação entre História e Literatura. Nesse sentido, este trabalho faz referências a escritos já tornados clássicos de pensadores da cultura, como Peter Burke, Stuart Hall, Edward Said e Carlo Ginzburg. Além desses clássicos, faz-se importante um embasamento teórico acerca de publicações recentes, sejam elas pertencentes ao campo da historiografia, sejam elas pertencentes ao campo da crítica e da teoria literária, possibilitando, com isso, uma reflexão mais completa e complexa para a investigação que este trabalho acadêmico se propõe. Dessa maneira, dentre as fontes referenciadas ao longo deste trabalho, dá-se ênfase a obras paradigmáticas para o pensar e fazer histórico e literário contemporâneo, são eles: Roger Chartier, Sandra Pesavento, Pierre Bourdieu, Antonio Candido, Flávio Kothe, Zilá Bernd e Regina Zilberman. No campo da história, os nomes destacados, como os de Roger Chartier e Pierre Bourdieu, remetem às inovações metodológicas e epistemológicas da segunda metade do século XX, baseadas em perspectivas sócio-culturais. A partir dessas novas perspectivas e partindo de novos conceitos, foi possível historicizar a obra literária e assumi-la de vez como uma evidência histórica. Nesse sentido, esta pesquisa buscará trabalhar, de forma crítica, com as representações simbólicas que são construídas historicamente através da Literatura. Assim, foi definida, como teoria norteadora, a teoria da História Cultural, através do conceito de representações 1. Tal conceito é extremamente significativo na medida em que é a partir dele que as sociedades observam a realidade e definem a sua existência. Segundo Bourdieu (2010, p. 12), “as construções simbólicas moldam a representação da realidade, até se tornarem a realidade da representação”, sendo assim “o campo de produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta 1

Para compreender tal conceito, foi necessária uma pluralidade de leituras, em especial, as do historiador Roger Chartier e sociólogo Pierre Bourdieu: (CHARTIER, 1990, 1998, 2002, 2006, 2009); (BOURDIEU, 1982, 1983, 2010). Além dessas leituras cabe citar: (FALCON, 2000); (MALERBA, 2000); (PACHECO, 2008).

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medida) que os produtos servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção”. Dessa maneira, faz-se necessário o reconhecimento de que a produção de discursos é uma faceta importante de atividade que deve ser analisada como parte integrante da reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e culturais devem, portanto, ser levadas em conta, merecendo as condições de sua produção cuidadosa atenção. Além destes teóricos, outros autores atuantes no universo historiográfico brasileiro contemporâneo contribuem de modo substantivo para a compreensão do campo de produção simbólica, como as historiadoras Sandra Pesavento e Ieda Gutfreind. Outra perspectiva de análise pode ser demarcada pelo viés dos Estudos Culturais e das teorias pós-modernas, que possibilitam uma reflexão sobre a história dos excluídos e das idéias contra-hegemônicas, permitindo, assim, uma atualização dos discursos históricos e literários sob uma visão crítica e popular.

Nessa

perspectiva, percebe-se que deve haver, por parte da academia, um maior compromisso social em suas pesquisas, no sentido de buscar um exame minucioso das relações sociais – muitas vezes relações subjetivas - para que não se produzam, em nossa sociedade, relações assimétricas de status de identidade cultural. Esse trabalho procura, pois, evidenciar, de forma especial, a representação de atores sociais que, na Literatura e na História, não foram representados em sua plenitude. Há que assinalar, ainda, que, dentre outras marcas pós-modernas, sobressaem, para a análise que este trabalho se propõe fazer, os conceitos de “identidade” e “hibridismo”. Deste modo, o presente trabalho acadêmico busca estabelecer diálogos e relacionar essas correntes e discursos contemporâneos, cuja função é a de construir um discurso sob uma ótica mais critica a respeito da produção literária e histórica. Para tanto, fez-se importante o estudo que relacionasse identidade cultural e cânone literário, uma vez que estes fazem parte das construções simbólicas de uma dada sociedade. Assim, o presente trabalho trata da questão relativa à atualização do cânone literário sul-rio-grandense, trazendo, para discussão, a importância do texto literário de caráter ficcional, o qual possibilita pensar e problematizar a construção da identidade gaúcha. Assim entendido, propõe-se uma análise de dois romances históricos, com viés social, “Um quarto de légua em quadro” (1976) e “Breviário das terras do Brasil”

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(1997)2, do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, os quais estão fundamentados numa reflexão sobre a identidade sul-rio-grandense. Nestas obras, através de uma diluição entre o real e o ficcional, é possível compreender um projeto cuja função crítica é o de resgatar os discursos dos excluídos – principalmente em relação à segunda obra -, revisitando o passado histórico sob novas perspectivas. A relação fronteiriça entre texto histórico e texto ficcional sempre foi de meu interesse. Já no segundo semestre do ano de 2006, na faculdade de História, através da disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa, ministrada pela professora Elizabeth Torresini, comecei a pensar a que tipo de pesquisa acadêmica gostaria de me dedicar. Como resultado final daquele semestre, elaborei um projeto de pesquisa que relacionava o campo da História com o da Literatura, surgindo, portanto, o trabalho intitulado “Poetas e Poesias na Guerra Civil Espanhola: a dialética entre a arte e a guerra”. Neste trabalho, buscou-se compreender a importância da poesia no contexto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), analisando o significado da poesia de alguns poetas específicos, como Rafael Alberti, Miguel Hernandez e Antonio Machado. Durante o ano de 2007, continuei tal pesquisa com a ajuda do professor Braz Brancato, podendo desenvolver outros aspectos. Esta pesquisa se mostrou muito importante na minha vida acadêmica, pois acabei me interessando mais pela pesquisa interdisciplinar e, no ano de 2007, ingressei, através do Vestibular da UFRGS, na faculdade de Letras (com ênfase dupla Português/Espanhol), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente, através desta mesma instituição, participei de uma seleção de bolsas pelo Banco Santander, conseguindo, dentre 6 vagas, uma bolsa paga para estudar na Universidad Autónoma de Madrid, na Espanha. Mais recentemente, através de um convite da professora Márcia Andréa Schmidt,

da

faculdade

de

História-PUCRS,

participei

de

uma

pesquisa

interdisciplinar, financiada pela Bolsa BPA/PUC, intitulada “Contando (a) História da Pós-modernidade: uma abordagem interdisciplinar para o ensino da Literatura e da História em ensino fundamental”, em que se associaram duas unidades acadêmicas da PUCRS, Letras e História, buscando formalizar uma abordagem pedagógica interdisciplinar, tendo em vista as emergências da pós-modernidade. Neste projeto, 2

Trabalhou-se, em relação à primeira obra, com a edição do ano de 2000, pela Editora Movimento; e a segunda, com a edição de 1997, da L&PM.

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participaram dois bolsistas, William Noal (Letras-PUCRS) e eu, Gabriela Grecco (História-PUCRS), bem como a professora e coordenadora do projeto, Maria Tereza Amodeo (Letras-PUCRS) e a professora Márcia Andréa Schmidt (História-PUCRS). No ano de 2010, duas disciplinas que cursei, Estágio de Bacharel – Fontes Orais e Estágio de Bacharel – Fontes Escritas, ministradas, respectivamente, pelas professoras Núncia Constantino e a professora Cláudia Musa Fay, também se mostraram bastante importante para o desenvolvimento deste presente trabalho. Assim, o depoimento de Luiz Antônio de Assis Brasil, que inicialmente foi realizado apenas para a disciplina de Fontes Orais, foi também utilizado para este presente trabalho, possibilitando-me uma visão mais refinada em relação à sua obra e ao modo de concebê-la. Já para a disciplina de Estágio de Fontes Escritas, era necessária a pesquisa em Arquivos, sendo o Delfos (Espaço de documentação e Memória da PUCRS) aquele em que encontrei materiais do escritor Assis Brasil; nesse sentido, tive a oportunidade de entrar em contato com algumas obras originais de Assis Brasil, bem como manuscritos e cadernos de anotações, o que se revelou muito interessante para a finalização e aprofundamento de alguns aspectos para este trabalho acadêmico. Em relação à estrutura do trabalho, este se divide em três capítulos. No primeiro capitulo, o qual tem um teor mais teórico, busca-se clarear o conceito de representação, conforme as teorias da História Cultural, e analisar a aproximação entre História e Literatura, bem como a utilização da literatura como fonte documental para a historiografia. Já no segundo capítulo, pretende-se realizar um entendimento da condição sócio-cultural e estética do período conhecido como pósmoderno, relacionando a este contexto conceitos como o de “hibridismo” e, sobretudo, “identidade”. Além disso, buscou-se problematizar o papel dos cânones literários, com vistas a perceber em que medida o cânone gaúcho colabora para a construção da identidade sulina. Por fim, o terceiro capítulo objetiva a análise das duas obras de Assis Brasil, “Um quarto de légua em quadro” e “Breviário das terras do Brasil”, de modo a perceber em que medida tais obras têm importância para a (re)construção da identidade gaúcha, identificando, principalmente, de que forma foram representados os personagens presentes nestas narrativas.

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1. HISTÓRIA E LITERATURA: ENTRE NARRATIVAS LITERÁRIAS E HISTÓRICAS, UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

Com o objetivo de realizar um estudo em relação à identidade sul-riograndense a partir de duas obras de Luiz Antônio de Assis Brasil, é adequado clarear o conceito de representação presente neste trabalho, visto que se utilizarão conceitos da corrente historiográfica conhecida como História Cultural. Para alcançar tal objetivo, utilizaram-se alguns dos seguintes teóricos: Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Michel de Certeau e Sandra Pesavento. Dessa maneira, primeiramente, é imperativo analisar a aproximação entre História e Literatura, uma vez que tal debate está no centro da interrogação epistemológica atual. Para tanto, serão trazidas questões relevantes acerca da utilização da literatura como fonte de grande relevância para as pesquisas históricas.

1.1 HISTÓRIA CULTURAL: CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

Desde a segunda metade do século XIX, quando a História tornou-se disciplina acadêmica, através das idéias do historiador alemão Leopoldo Von Ranke3, o emprego da palavra fonte estava fundamentado na idéia de que os documentos utilizados pelo historiador deveriam ser oficiais (como atas públicas, relatórios, correspondência diplomática, decretos, entre outros). “Nesta perspectiva, os textos literários, assim como outras fontes artísticas, não eram considerados documentos fidedignos para atestar a verdade histórica” (FERREIRA, 2009, p. 63). Dessa maneira, atribuía-se à [...] velha forma de ver a história como ‘ciência’ e a literatura como ‘ficção’, esta deveria se identificar com o imaginado, com o suposto, verossímil, e aquela com o real, concreto, acontecido, que, por sua vez, seria o passado reconstruído perfeitamente. O limite desse procedimento deu-se com a refutação a Ranke ao determinar o famoso wie es eigentlich, ou seja, o retraçado dos fatos ‘como eles ocorreram’ (MEIHY, 1997, p. 271-272).

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Ranke, historiador ligado ao historicismo, corrente historiográfica hegemônica entre o final do século XIX e o início do XX, defendia o ideal da objetividade na escrita da História. Dizia que a História deve contar como as coisas realmente aconteceram, como se fosse possível eliminar todos os componentes de subjetividade do fazer História, desconsiderando que o historiador também é homem do seu tempo. A chamada História rankeana era eminentemente política, narrativa e baseada em fontes oficiais.

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Surge, porém, na França, na década de 1920, um movimento de renovação historiográfica, liderado pelos professores da Universidade de Estrasburgo, Marc Bloch e Lucien Febvre, que pretendeu ampliar o repertório das fontes históricas. A revista que fundam, Annales d’Histoire Économique et Sociale, em 1929, caracteriza-se pela crítica à historiografia tradicional e, por conseguinte, ao domínio da historiografia político-factual. Dessa maneira, Bloch e Febvre investiram seus esforços no sentido de construir uma história que fosse mais ampla, a qual incluiria todas as atividades humanas, atingindo outras áreas (como a Literatura, a Lingüística, a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia): um impulso importante à interdisciplinaridade. Assim, a criação da revista Annales, em 1929, é um marco no que se refere à busca para se ampliar os horizontes da historiografia. Frente a esse contexto, a História se coloca sob uma nova estratégia: abrir espaço a novos objetos e territórios de pesquisa propostos nas ciências humanas. Assim, durante as décadas de 1960 a 1980, as novas gerações de historiadores ampliaram o leque relativo aos problemas, aos objetos e às abordagens da disciplina, influenciados pela ascensão dos estudos culturais. Novas temáticas surgiram, como os estudos de crenças, rituais, memória, sensibilidades, lutas simbólicas, entre outros, os quais convergiram no retorno da proposta inicial dos Annales. Desta forma, destacam-se os movimentos historiográficos conhecidos como a Nova História e a História Cultural4 - cada um com suas particularidades, mas que esboçam continuidades existentes5. Tais correntes inovaram o conceito de documento, promovendo revisões na forma da escrita da história e, mais do que isso, transformou o livro de história em mercadoria mais acessível, exigindo-se do historiador atenção e cuidado na elaboração do texto e capacidade estilística. Segundo Tétart (2000, p.122-123), A história como quebra-cabeças espaço-temporal no centro do qual o homem age: essa idéia, inscrita no âmago dos ‘Annales’, toma aqui uma dimensão ainda mais dinâmica. Ultrapassando os 4

Segundo Chartier (2006), a nova história cultural propõe um modo inédito de compreender as relações entre as formas simbólicas e o mundo social. A uma abordagem clássica, ligada à localização objetiva das divisões e das diferenças sociais, ela opõe a sua construção a partir das práticas sem discurso e das lutas de representações. Em seguida, a nova história cultural encontra modelos de inteligibilidade em vizinhos que até aí os historiadores tinham freqüentado pouco: como antropólogo e críticos literários. Sucederam-se assim novas proximidades que obrigam os historiadores a ler de maneira menos diretamente documental os textos ou as imagens e a compreender nos seus significados simbólicos os comportamentos individuais ou ritos coletivos. 5 Para aprofundar tal assunto, indica-se (BURKE, 2005).

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horizontes de investigação do historiador, desmultiplicando infinitamente seus temas, essa noção faz de ‘tudo’ uma fonte documental possível que, uma vez classificada, seriada, pode ser posta sob a luz explicativa do conjunto das técnicas oferecidas pelas diferentes ciências sociais. [...] Essa é, com efeito, a contribuição notável da Nova História, que não recusa – ou quase – nenhum assunto e se inspira tanto nos quadros analíticos da lingüística, na etnologia, na psicanálise.

Ao se falar em mudanças epistemológicas, significa esclarecer um conceito central que irá reger a postura do historiador desse campo – a idéia de representação. Nesse sentido, a História Cultural6, de modo genérico, vai atribuir o estudo das formas de representação do mundo no seio de grupos humanos. Esta idéia

é chave

para

a

ampliação

do

diálogo entre

diversas

disciplinas,

redimensionando as relações, por exemplo, entre história e literatura. A literatura, pois, assume um novo papel dentro da disciplina da História: o de significativa fonte de análise das diferentes visões de mundo que o homem apresentou em cada tempo e espaço. O conceito de representação já havia sido abordado no início do século XX, a partir dos estudos de Émile Durkheim. Para o sociólogo, este conceito é entendido como categoria de pensamento que através da qual determinada sociedade constrói e expressa sua realidade; é, portanto, um conceito socialmente construído e que se impõe, independentemente da vontade individual. Toda ação social é, desta forma, deduzida a partir de um sistema objetivo de representações que se encontra fora do alcance do ator social. Este conceito é retomado, durante a década de 1980, principalmente, com as teorias de Roger Chartier. Para ele,

[...] o conceito de representação é a de variabilidade e da pluralidade de compreensões (ou incompreensões) do mundo social e natural. [...] As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe [...] a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio (CHARTIER, 1990, p. 21).

O movimento da História Cultural, por sua vez, deixou de perceber apenas os padrões cultos e eruditos, voltando-se, pois, para as manifestações populares, para os ritos e símbolos, vistos como expressões legítimas de uma dada consciência das 6

Segundo Pesavento (2008a, p. 11), “corrente historiográfica que, no contexto atual, perfaz 87% da produção científica do Brasil, contabilizadas teses e dissertações, livros e artigos de revistas especializadas, além de palestras e conferências, como também comunicações em congresso e simpósios”.

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sociedades

humanas.

As

representações,

além

disso,

são

extremamente

significativas de modo que é a partir delas que as sociedades observam a realidade e definem a sua existência. O conceito de representações, portanto, é vital para os estudos da cultura, para Pesavento (2008a, p. 12):

A incorporação de tal conceito marcou uma reviravolta na forma de os historiadores enxergarem o passado, redimensionando tanto o modo de pensar as marcas ou os traços que este deixou, sob a forma de fontes, quanto a própria escrita da história. As representações são a presentificação de uma ausência, em que representante e representado guardam entre si relações de aproximação e distanciamento.

Uma das formas possíveis de análise das representações é por meio da Literatura. Nesse momento atual da historiografia, a relação História e Literatura ganha um novo vigor. Incluída nesse grande contexto de transformações teóricas, onde se buscam novos paradigmas de análise da realidade histórica, a aproximação entre História e Literatura amplia novos paradigmas interpretativos. Nesse sentido, os discursos literários, ao resgatarem temas históricos, operam seletivamente, assegurando, por conseguinte, um novo olhar sobre os fatos, reinterpretando-os. Conseqüentemente, “a memória social criada a partir do discurso literário se constitui numa representação que se socializa e que tem um conteúdo pragmático e socializador” (PESAVENTO, 1998, p. 13). Numa visão mais ideológica, Chartier (1990, p. 17) ainda afirma: As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de um grupo que as forjam. [...] As percepções da realidade não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégicas e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.

Dessa maneira, como fica evidente, a História Cultural, embora tenha como foco a pesquisa em relação à cultura, de forma alguma deixa de ter uma preocupação social - muito pelo contrário, uma vez que esse movimento historiográfico consiste em localizar os pontos de afrontamento entre práticas culturais. Tal teoria, mais acentuadamente objetiva, tem de integrar não só a representação que os agentes têm do mundo social, mas também, de modo mais preciso, a contribuição que eles dão para a construção da visão desse mundo

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(BOURDIEU, 2010). É nesse sentido que, por meio da representação, alguns grupos impõem a sua visão de mundo ou a visão da sua própria posição nesse mundo, isto é, a visão de sua identidade social. Segundo Chartier (2006, p. 40), A nova história cultural propôs assim à história política e à história social que se tratassem as relações de poder como relações de forças simbólicas, como a história da aceitação ou da rejeição pelos dominados das representações que visam assegurar e perpetuar a sua sujeição.

Chartier, além disso, analisa o conceito a partir, também, da articulação entre pensamento e social, retomando a definição de mentalidades7 de Le Goff, citando a frase deste autor, “A mentalidade de um indivíduo, mesmo que se trate de um grande homem, é justamente o que ele tem de comum com outros homens do seu tempo” e completa: [...] É assim constituído como objeto histórico fundamental algo que é exatamente o contrário do objeto da história intelectual clássica: à idéia, construção consciente de um espírito individual, opõe-se, passo a passo, a mentalidade sempre coletiva que rege as representações e juízos dos sujeitos sociais, sem que estes o saibam. A relação entre a consciência e o pensamento é colocada de uma forma nova, próxima da dos sociólogos da tradição durkheimiana, pondo em relevo os esquemas ou os conteúdos de pensamento que, embora enunciados sobre o modo do individual, são de fato os condicionamentos não conscientes e interiorizados que fazem com que um grupo ou uma sociedade partilhe [...] um sistema de representações (CHARTIER, 1990, p. 41).

Evidencia-se, portanto, que as lutas simbólicas relacionam-se mais ao “inconsciente de classe” do que a uma “consciência de classe” no sentido marxista, pois as relações de poder operam, no campo simbólico, de modo que alguns agentes históricos tenham sua posição social ocupada e assegurada em detrimento de outros. Nesse sentido, tanto o texto histórico como o literário tem o poder de determinar, delimitar ou definir sentidos no presente, pois, ao reconstruir o passado, podem ajustá-lo às exigências de um grupo ou transformá-lo. Assim, [...] O conhecimento do mundo social e, mais precisamente, as categorias que o tornam possível, são o que está, por excelência, em 7

Segundo Falcon (2000, p. 42), “Quando se lê, em certos textos da história e ciências sociais, o termo representação (ou seu plural), tem-se a impressão de que ele se situa no centro de uma constelação de noções ou conceitos muito variados, como imaginário(s). Geralmente descritos em termos de representações sociais, tais conceitos ora se apresentam como outros tantos nomes aplicados às representações sociais, ora como se constituíssem diferentes partes de um todo (representações).” Acrescenta-se, portanto, a essa gama de conceitos ligados ao conceito de representação, o conceito de mentalidade(s).

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jogo na luta política, luta ao mesmo tempo teórica e prática pelo poder de conservar ou de transformar o mundo social conservando ou transformando as categorias de percepção desse mundo (BOURDIEU, 2010, p. 142).

A interiorização, pelos sujeitos, dos valores, normas e princípios sociais pode assegurar, portanto, a adequação entre as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo. Assim, Bourdieu propõe uma teoria da prática na qual as ações sociais são concretamente realizadas pelos indivíduos, mas as chances de efetivá-las se encontram objetivamente estruturadas no interior da sociedade global. Dessa forma, a identidade social é assegurada mediante o trabalho de representação que operam continuamente para cristalizar uma visão de mundo da classe dominante. Nesse sentido, [...] literatura e história contribuem para atribuição de uma identidade, social e individual, provocando modelos de comportamento. Traduzindo ambas uma sensibilidade na apreensão do real – oferecendo leituras possíveis de vida – história e literatura expressam também o jogo das forças sociais e do poder. Nesta medida, as duas narrativas têm igualmente por efeito socializar os indivíduos, criando as condições simbólicas de coesão social (PESAVENTO, 1998, p. 14).

1.2 O TEXTO LITERÁRIO COMO FONTE PARA A HISTÓRIA

Tanto a escrita histórica como a literária compartilham um ambicioso projeto de apreender as realidades humanas, evidenciando a força das representações do passado propostas por esses dois diferentes discursos. Nesse sentido, pode-se verificar que a aproximação entre história e literatura já tem um percurso8 respeitável, de modo que muitos historiadores reconhecem, no texto literário, a possibilidade de se trabalhar com discursos que, em grau variado, revelam o campo de produção simbólica9 de uma época. Assim,

[...] afirmar que a literatura integra o repertório das fontes históricas não provoca hoje qualquer polêmica, mas nem sempre foi assim. Mais do que isso, nas últimas décadas os textos literários passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a 8

Para se compreender melhor tal percurso, indica-se a leitura do texto de (PESAVENTO, 2006) e (BURKE, 1997). 9 Segundo Bourdieu (2010, p. 8), “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”

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múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas de homens e mulheres no tempo (FERREIRA, 2009, p. 61).

Nessa perspectiva, os estudos, na disciplina da História, através dos textos literários, estão assentados na idéia da literatura como um campo privilegiado para a investigação histórica, vista como valiosa fonte de análise, na medida em que possibilita um melhor entendimento relativo às representações construídas numa dada sociedade. É importante, pois, destacar a literatura como testemunho ou documento histórico, no sentido de valorizar a riqueza do texto ficcional como fonte que, de forma indireta, fala do mundo, através de uma linguagem metafórica e alegórica. O conteúdo narrativo do texto literário, por conseguinte, é expressão de formas de pensar e agir, dotado de credibilidade e significância. Segundo Heringer (2000, p. 14), [...] Apesar de todo o aparato editorial e das classificações vinculadas aos textos, desde o instante de sua publicação, é perceptível uma tendência nova no campo recepcional-artísticoliterário: as obras transformam-se em ‘documentos’ e a matéria ficcional configura-se, muitas vezes, mais real do que a própria realidade. Os textos colocam em foco uma série de informações que apontam para sentidos profundamente humanos e sociais, que abordam e atingem o povo e, sendo ficção, desvelam ‘sensos de verdade’, enquanto, paradoxalmente, a História passa a ser continuamente questionada quanto ao quesito ‘oferecer a verdade’.

O historiador Jacques Le Goff, ao definir alguns conceitos da história das mentalidades, enfatiza a importância da utilização das fontes literárias, pois afirma que é nas profundezas do cotidiano que se capta o estilo de uma época e, portanto, tais documentos são fontes privilegiadas quando consideradas como história da representação dos fenômenos objetivos (LE GOFF, 1976). A literatura, por sua vez, é compreendida como uma representação de uma época que comporta, através das descrições dos personagens, dos diálogos, das ações e, até mesmo, dos silêncios, as imagens sensíveis do mundo. Segundo Pesavento (2006), “o texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do simbólico através dos fatos criados pela ficção”. Neste contexto, [...] história e literatura apresentam caminhos diversos, mas convergentes, na construção de uma identidade, uma vez que se apresentam como representações do mundo social ou como práticas discursivas significativas que atuam com métodos e fins diferentes (PESAVENTO, 1998, p. 20).

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Assim, a compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético, uma manifestação cultural tem permitido ao historiador assumi-la como fonte de pesquisa. Toda ficção está sempre enraizada na sociedade, pois é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e relações sociais que o escritor cria seus mundos de sonhos, utopias ou desejos, explorando ou inventando formas de linguagens (FERREIRA, 2009). Assim, segundo Mendonça (2003, p. 7),

[...] a partir da análise de obras de Machado de Assis, José de Alencar, Mário de Andrade e Jorge Amado, entre outros, o livro organizado pelos autores citados argumenta que a obra literária é uma evidência histórica objetivamente determinada, ou seja, situada no processo histórico; necessita, portanto, ser adequadamente interrogada a partir de suas propriedades específicas10.

Nessa perspectiva, alguns historiadores poderiam argumentar que apenas a “literatura realista”, na linha de Flaubert ou Machado de Assis, serviria como fonte, no sentido de recuperar aspectos de uma época. No entanto, romances como “Um quarto de légua em quadro”, de Luiz Antônio de Assis Brasil, possibilita uma releitura do passado, redimensionando, por exemplo, a importância de atores sociais – como a mulher e o imigrante – ou, também, estigmatizando outros – como o índio e o negro. Assim, tem-se, sob o olhar de um escritor do século XX, a reconstrução de um tema histórico do século XVIII – a imigração açoriana no Brasil. Deste ponto de vista, a análise do historiador residirá no sentido de identificar as novas representações que uma época mais recente tem de seu passado histórico e, em que sentido, esse novo olhar é expressão de um testemunho de seu tempo. Para Pesavento (1998, p. 12-13),

Tal como a literatura, a história, enquanto representação do real constrói seu discurso pelos caminhos do imaginário. No caso da história, o passado é ‘inventado’, os fatos são selecionados, a memória é criada, a história é fabricada, mas se trata de uma produção ‘autorizada’, circunscrita pelos dados da passeidade (as fontes), a preocupação com a pesquisa documental e os critérios de cientificidade do método. Na narrativa literária, este componente de liberdade construtiva e de ‘vôo’ de imaginação é mais amplo, podendo esquecer um pouco as condicionantes da ‘testagem’ das fontes. 10

É necessário, para o historiador, delimitar com clareza a problemática a ser estudada e ter bem claro que a fonte literária pode ser um canal promissor para a busca de suas respostas sobre aspectos de um período histórico – representações, práticas, mentalidades, realidades culturais, políticas e sociais, etc.

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O universo da literatura, tal como o da história, também constitui uma socialização de valores, memórias e discursos. Portanto, pode-se aferir que o papel do historiador e do escritor relacionam-se à reconstrução da memória. Cultura e representações, portanto, não podem estar distantes do conceito de memória, pois “assim como a história é a narrativa que presentifica uma ausência no tempo, a memória recupera, pela evocação, imagens do vivido” (PESAVENTO, 2008a, p. 15). Já para Nora (1993), a relação entre história e memória são paradoxais: enquanto a história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais, ou seja, é uma representação do passado, a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. A memória, por sua vez, “tem a necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas” (NORA, 1993, p. 14). Sobre esse tema, o historiador Jacques Le Goff (1996, p. 425) problematiza a importância da memória que tem como suporte a escrita:

[...] A utilização de uma linguagem falada, depois escrita, é de fato uma extensão fundamental das possibilidades de armazenamento da nossa memória que, graças a isso, pode sair dos limites físicos do nosso corpo para estar interposta quer nos outros quer nas bibliotecas.

Nesse sentido, a literatura, apesar de não ter uma preocupação explícita em relação à memória, de certa forma tem esse papel de suporte, pois as construções literárias constituem formas privilegiadas de se apreender aspectos da memória coletiva. Os silêncios ou as revelações nos textos literários são fontes de extrema relevância para se compreender os mecanismos de perpetuação ou transformação das representações de uma dada sociedade. Os discursos, pois, não somente qualificam o mundo, mas também orientam o olhar e a percepção sobre a realidade. Do mesmo modo, [...] A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 1996, p. 146).

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As fontes literárias, por sua vez, têm a potencialidade de informar, em muitos casos, mais a respeito dos modos de pensamento de um grupo social do que os próprios textos históricos. Em verdade, a escrita literária visa, segundo a definição de Roland Barthes, a criar o “efeito da realidade”, de modo que, muitas vezes, constrói representações do passado mais vivazes do que os próprios textos históricos. “Seremos nós, enfim, mais sensíveis aos componentes simbólicos?” (NORA, 1993, p. 26). Segundo este mesmo autor (NORA, 1993, p. 28),

[...] A memória, com efeito, só conheceu duas formas de legitimidade: história ou literária. Elas foram, aliás, exercidas paralelamente, mas até hoje, separadamente. A fronteira hoje desaparece e sobre a morte quase simultânea da história-memória e da história-ficção, nasce um tipo de história que deve seu prestígio e sua legitimidade à sua nova relação com o passado, um outro passado. A história é nosso imaginário de substituição. Renascimento do romance histórico, moda do documento personalizado, revitalização li-terária do drama histórico, sucesso da narrativa de história oral.

1.3 HISTÓRIA E FICÇÃO: NARRATIVA LITERÁRIA E NARRATIVA HISTÓRICA O estudo interdisciplinar entre história e literatura11 - na perspectiva conceitual ocidental -, advindo das mudanças de novos padrões culturais no contexto da pósmodernidade12, estimula o surgimento de um processo de interpenetrabilidade dos discursos literários e históricos. Dessa maneira, a aproximação de diálogos em esferas distintas possibilita uma discussão importante relativa à mobilidade fronteiriça entre história e literatura. Nesta abordagem reflexiva, é adequado clarear a aproximação entre estas duas áreas, com vistas a determinar os diálogos que se estabelecem entre narrativa histórica e narrativa literária. Logo, a crença que a narrativa literária e a histórica possuem uma relação fronteiriça já tem uma trajetória antiga, como esta que aparece no Journal dos Goncourt, em 1862: “A história é um romance que foi; o romance é a história que poderia ter sido” (apud COMPAGNON, 2010, p. 220).

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Sobre os conceitos de “história” e “literatura”, indica-se a leitura de (MIGNOLO, 1993). Este autor sugere a procura de metodologias alternativas que permitam sair da conceituação universalista de “história” e “literatura”, em que a única base de conceituação é a ocidental, não levando em conta casos de culturas não-ocidentais ou daquelas que transformaram suas estruturas conceituais depois do encontro com pessoas e instituições ocidentais – como é o caso das culturas pré-colombianas. 12 Esse conceito será trabalhado no capítulo 2.

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Essa crença, do século XIX, lembra paradoxos ainda mais antigos, como os da tradição clássica. Aristóteles13 observa, por exemplo, que a separação do ofício do historiador e do poeta residia na natureza do conteúdo – o poeta deveria representar o que poderia acontecer, enquanto ao historiador competia narrar o que efetivamente aconteceu. Essa idéia é vinculada ao conceito de representação do real (ou imitação), regulados pelo conceito de mimese14. Para esse pensador, a verossimilhança é um atributo necessário ao trabalho artístico, já que o texto deve ter coerência e parecença com a realidade15. Na estética clássica, portanto, a categoria do “verossímil” assegurava o parentesco entre o relato histórico e as histórias fingidas. No entanto, o conceito de mimese foi questionado pela teoria literária, já que esta trabalha com a visão autônoma da literatura em relação à realidade, isto é, ao referente; assim, a própria noção de realidade torna-se uma convenção, na medida em que a realidade é entendida como sendo construída a partir de recursos simbólicos16. Dessa maneira, os textos ficcionais não operam a partir de um referente, mas, sim, da verossimilhança. Segundo Chartier (2006), a “realidade” não é uma referência objetiva, exterior ao discurso, mas é sempre construída na e pela linguagem. Nessa perspectiva, tal reflexão opera, também, num sentido de constante esforço de modificação no exercício e domínio, também, da história, com vistas a colocar em evidência a problematização do próprio fazer histórico. Para tanto, é necessário compreender que a subjetividade é parte integrante na reconstrução de um passado, feito através da escrita histórica, de modo que o historiador tem um discurso que emerge de um contexto social e suas representações são construídas a partir da sociedade em que vive. Dessa maneira,

13

Com relação a esse autor, foram necessárias as seguintes leituras: (ARISTÓTELES, 1997); (COSTA, 2008) e (COMPAGNON, 2010, p. 95-135). 14 “A mimese seria a representação de ações humanas pela linguagem [...] e o que lhe interessa é o arranjo narrativo dos fatos em história” (COMPAGNON, 2010, p. 102). 15 Para uma outra visão do conceito de ‘realidade’, ler Norbert Elias. Segundo este autor, a ’realidade’ é o mundo em transformação. Assim, sua ontologia é processual, já que busca conhecer não o ser, mas o sendo das coisas. Nesse sentido, a realidade será sempre correlata à capacidade das sociedades humanas em conhecê-la e transformá-la (MALERBA, 2000). 16 Segundo Bourdieu (2010), uma das formas elementares de poder político consiste no poder quase mágico de nomear e de fazer existir pela virtude da nomeação. Assim, os poetas e escritores têm uma função de explicitação e de produção simbólica. A efetivação dos acontecimentos e sua fixação na memória dá-se, portanto, mediante à nominação, isto é, entre linguagem e acontecimento há uma relação essencial.

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[...] indissociável até agora, do destino da escrita no Ocidente moderno e contemporâneo, a historiografia tem, entretanto, esta particularidade de apreender a invenção escrituraria na sua relação com os elementos que ela recebe, de operar onde o dado deve ser transformado em construído, de construir as representações com os materiais passados, de se situar, enfim, nesta fronteira do presente onde simultaneamente é preciso fazer da tradição um passado (excluí-la) sem perder nada dela (explorá-la por intermédio de métodos novos) (CERTEAU, 2010, p. 18).

Apesar de a história preservar a ambição de constituir um conhecimento científico, é dependente dos arquivos históricos, dos métodos de pesquisa, da escrita e dos critérios de cientificidade aplicados a estes. Trata-se, pois, sempre de um conhecimento construído, produzido no âmbito do discurso e, portanto, é parcial e relativo. A “prática de narração histórica”, portanto, é em si um instrumento de construção da própria realidade. Assim, enquanto a ciência moderna expulsou o sujeito empírico e valorizou, somente, o sujeito epistêmico, as condições do conhecimento e o objeto do conhecimento ficaram separados. A historiografia, hoje, não pode, portanto, ser pensada nos termos de uma oposição ou adequação entre um sujeito e um objeto (CERTEAU, 2010): o sujeito conhecedor relaciona-se com o objeto a ser conhecido e reconhece suas limitações e envolvimentos. É preciso considerar, por conseguinte, que não existe conhecimento que não seja socialmente adquirido. O ato do conhecimento funda-se num complexo, que liga linguagem, conhecimento, memória e pensamento (MALERBA, 2000). Ademais, a atualidade, de fato, é o começo real para o historiador. É a partir do presente que a história é construída, tal como Lucien Febvre dizia: “o ‘passado’ é uma reconstituição das sociedades e dos seres humanos de outrora por homens e para homens engajados na trama das sociedades humanas de hoje” (FEBVRE, 1948). Segundo Pesavento (2006),

Para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou rastros, o caminho do historiador é montado através de estratégias que se aproxima das dos escritores da ficção, através da escolha, seleções, organização de tramas, decifração de enredo, uso e escolha de palavras e conceito.

A modalidade de “verdade” ou “real”, dessa maneira, passa a ser questionada em relação ao “fazer histórico”, partindo-se do pressuposto de que o real é construído a partir de um olhar enquanto significado. “A rigor, o ‘fato’ preexiste à

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construção da narrativa histórica, sob a forma de representação já criada, que opera como ‘matéria-prima’ para o historiador, o qual visa, por sua vez, construir a sua versão” (PESAVENTO, 1998, p. 11). Para Heller (1991, p. 29),

Los acontecimientos humanos y las instituciones no están simplemente ahí para ser reflejados como una ‘verdadera imagen en la retina’, como sugiere la metáfora. Los miembros de una institución particular perciben dicha institución de mil diferentes maneras, y lo mismo ocurre con los participantes en cierto acontecimiento.

É adequado, conseqüentemente, relativizar a objetividade acerca da produção da história, pois, ao se utilizar do mecanismo de operação historiográfica, como a de interpretação17 dos fatos históricos18, o historiador imprime a sua subjetividade frente ao texto histórico: o historiador, portanto, tem uma atividade criadora. Para Compagnon (2010, p. 219), [...] A história é uma construção, um relato que, como tal, põe em cena tanto o presente como o passado; seu texto faz parte da literatura. A objetividade ou a transcendência da história é uma miragem, pois o historiador está engajado nos discursos através dos quais ele constrói o objeto histórico. Sem consciência desse engajamento, a história é somente uma projeção ideológica.

De fato, o discurso histórico é uma manifestação na perspectiva de uma pessoa, sempre contingente em relação às suas ideologias e às influências do presente histórico. Desse modo, não há história no singular, mas “histórias”. Cada historiador, portanto, constrói uma possível história a partir de suas representações, o que lhe confere uma função política eminente. Mais que isso, o historiador é “um mago que evoca o pretérito”, segundo Thomas Mann, pois é através do seu ofício que a memória coletiva é criada e recriada. “Entre a distância do fato e o mundo do leitor, interpõe-se a fala do historiador, que ‘salva’ o passado para o presente” (PESAVENTO, 1998, p. 13). Os textos históricos, por sua vez, assim como os textos de ficção, criam uma dependência relativa à recepção e às interpretações dos seus leitores, embora seja 17

“‘Interpretation’ is here taken to mean the task of making a historical account appear meaningful (significant, important) to an audience in the present – to an identity or subjectivity, that the author intends to be affected by the account (on ‘interpretation’ in this sense, see Megill). Historians “interpret”, that is, they attempt to connect their statements about the past to a present subjectivity, just as we expect literary artists to do” (MEGUILL, 1999). 18 Segundo François Furet (1975), o fato histórico já não é a irrupção de um acontecimento importante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim um fenômeno escolhido e construído, e cuja regularidade permite que seja referenciado e estudado através de uma série cronológica.

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claro que a leitura do texto histórico tem certo fechamento às livres interpretações diferentemente do texto literário. Tal concepção, que tem origem nas teorias da estética da recepção, tem sido retomada e compartilhada por críticos que refletem sobre a narrativa histórica. Nesse sentido, a ação do leitor tem uma importância fundamental, pois, ao interagir com o texto, atualiza-o, conferindo-lhe um significado presente (BAUMGARTEN, 1993). Conforme o pensamento da historiadora Pesavento (1998, p. 12), [...] enquanto ficção, tanto a narrativa literária quanto a histórica pressupõe uma ordenação do real e a busca da coerência através de uma correlação de elementos e do estabelecimento de relações entre os dados. Esta coerência fictiva depende de uma possibildiade de construção de sentido articulada no momento da escritura do texto, mas que deverá também ser reconstruída pelo leitor. Portanto, a construção da coerência narrativa deverá fazer sentido através da leitura. Pode-se, com isso, dizer que a contemporaneidade de um texto, literário ou histórico, se dá na medida em que a sua coerência ficcional é resgatada através da significância que lhe é atribuída pelo leitor.

Dentro dessa perspectiva, a identificação do discurso histórico e da narrativa19, típica da história pós-moderna20, é importante na medida em que reforça a separação entre discurso e realidade. O discurso histórico, assim, situa-se em constante tensão entre identidade narrativa e ambição de verdade. A narração, para Ginzburg, não é algo sobreposto à história, mas a mediação indispensável que torna possível a obra histórica, pois a narração é guardiã do tempo, à medida em que não haveria um tempo pensado que não fosse narrado (apud FALCON, 2000). Paul Ricoeur, por sua vez, não admite a indistinção entre história e ficção, pois, malgrado sua proximidade, subsiste um corte epistemológico, o qual se fundamenta

19

Ainda sobre a questão da narrativa, Peter Burke (1992, p.339-345) propõe a utilização de uma narrativa revigorada pelos historiadores, uma “narrativa densa”, capaz de lidar não apenas com as intenções conscientes dos atores nos acontecimentos históricos, mas também com as estruturas sociais. Nesta narrativa, os historiadores aprenderiam as técnicas dos romancistas modernos, e produziriam novas modalidades de escrita na história, tais como: a micro-narrativa (a história de pessoas comuns), a narrativa de dramas sociais, a biografia de pessoas comuns e diferentes. 20 Segundo Malerba (2000), entenda-se, grosso modo, aquelas concepções que afirmam a impossibilidade de acesso ao conhecimento da História, ou, em sua própria formulação, a inexistência de ou a impossibilidade de acesso a qualquer referente extra-discursivo no texto de história. Ainda, para Hutcheon (1991), a escrita pós-moderna da história e da literatura ensina que a ficção e a história são discursos constituintes de sistemas de significação através dos quais se dá sentido ao passado. Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses acontecimentos passados em fatos históricos presentes, o que não é um refúgio para escapar à verdade, mas um reconhecimento da produção de sentido dos construtos humanos.

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na veracidade21, próprio ao contrato do historiador em relação ao passado (apud FALCON, 2000). A questão do equilíbrio, segundo a expressão de Ricoeur, entre “compreensão narrativa” e “ambição científica” está no centro da interrogação epistemológica atual (TÉTART, 2000). Para Ginzburg (1999, p. 25): Reconhecer as dimensões retórica ou narrativa da escritura da história não implica, de modo algum, negar-lhe sua condição de conhecimento verdadeiro, construído a partir de provas e de controles. Por isso, ‘o conhecimento (mesmo o conhecimento histórico) é possível’.

É nesse sentido que o saber histórico, apesar de suas limitações, diferentemente da literatura, busca ser, de forma objetiva, um discurso com vistas à veracidade22, através da pesquisa documental. As fontes históricas, apesar de serem vestígios do passado e testemunhos de uma realidade inexistente, recuperam significados, possibilitando a reconstrução da história com o olhar do presente. Argumenta Ginzburg (1992), portanto, em favor da significação das evidências documentais disponíveis: as fontes são, na realidade, formas de conhecimento indireto. Segundo La Capra (2000, p. 69), O problema enfrentado pelos historiadores é o da articulação das relações entre a exigência de competência científica e as demandas [...] situadas no uso da linguagem, devidas à difícil tentativa de trabalhar, mediante relações de transferência, um diálogo com o passado que tem implicações no presente e no futuro.

Dessa maneira, se a história não é somente um texto, deve, no entanto, ser considerada como tal e, conseqüentemente, deve ser questionada devido a sua relatividade. Segundo François Hartog (apud TÉTART, 2000, p. 149),

A história não parou de dizer os fatos e gestos dos homens, de contar, não o mesmo relato, mas relatos de formas diversas. [...] 21

Distingue-se verdade de veracidade considerando-se que, enquanto a primeira é a própria realidade da coisa, ou a correspondência da coisa com o intelecto, ou do enunciado com aquilo de que se fala, a segunda é uma espécie de correspondência do que se diz com quem o diz. Por isso, enquanto o contrário da verdade ou dos diversos tipos de verdade, é o erro, o contrário da veracidade é a mentira ou o engano. Documento acessível em . Acesso em dia 02 set. 2010. 22 No entanto, para a historiadora Sandra Pesavento (1998, p.21), “a história só se realiza no campo da representação, tanto de quem participou dos eventos do passado e deles deixou um registro, quanto de quem, no presente, busca recuperar aquelas fontes e delas fazer uma releitura. Nesse sentido, a história teria a tarefa de reimaginar o imaginado, oferecendo uma leitura ‘plausível’ e ‘convincente’ do passado. Portanto, sob este enfoque, o mais condizente com o propósito de uma nova história cultural seria substituir o critério da ‘veracidade’ pelo de ‘verossimilhança’.

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Reencontra-se então Barthes com uma fórmula provocadora: ‘O fato jamais tem senão uma existência lingüística’.

A história, portanto, é uma ciência em permanente construção. E não poderia ser diferente, já que nós, seres humanos, também estamos nesta condição. O homem faz e escreve a história, dando, através desta conjugação, um caráter eminentemente criador ao ato de narrá-la. Desse modo, verifica-se que o discurso narrativo se estabelece como marca tanto da escrita ficcional quanto da historiografia contemporânea,

apesar das reservas e polêmicas entre os

historiadores quanto a sua essencialidade no campo da história (LEVON, 2008).

30

2. DA PÓS-MODERNINDADE AO CÂNONE LITERÁRIO

Com o objetivo de realizar o entendimento da condição sócio-cultural e estética atual, em que se pode observar uma crítica relativa ao cânone e à marginalização

de

atores

sociais,

tornou-se

necessário

examinar

mais

detalhadamente o período conhecido como pós-modernidade. Para tanto, a problemática acerca do conceito de identidade23 é chave para a compreensão de tal contexto e para a análise posterior das obras de Luiz Antônio de Assis Brasil - “Um quarto de légua em quadro” (1976) e “Breviário das Terras do Brasil” (1997). Além disso, será necessário problematizar as identidades criadas no cânone sul-riograndense com a finalidade de se verificar, posteriormente, em que medida a obra de Assis Brasil tem importância para a reconstrução da identidade gaúcha.

2.1 A IDENTIDADE PÓS-MODERNA

Os últimos anos têm sido marcados por uma crescente configuração de novas idéias relacionadas à pós-modernidade24. Em anos recentes, tal conceito histórico vem determinando padrões de debate, definindo o modo de discurso e estabelecendo parâmetros para a crítica cultural, política e intelectual. Concomitante a esse processo, há também prognósticos catastróficos relativos ao futuro, colocando fim de ideologias, da arte, de classe social, da social-democracia ou ao Estado de Bem-estar-social. O argumento em favor da existência da pósmodernidade apóia-se na hipótese de uma quebra radical, cujas origens geralmente remontam ao fim dos anos 50 ou começo dos anos 60 (JAMESON, 1997).

23

Conceito operatório de larga utilização em ciências humanas, sobretudo a partir dos anos 60, quando se passa do conceito de identidade individual ao de identidade cultural (coletiva), o conceito torna-se recorrente no domínio dos estudos literários a partir do momento em que as literaturas minorizadas, no interior dos campos literários hegemônicos, recusam a classificação de literaturas periféricas, conexas e marginais e reivindicam um estatuto autônomo no interior do campo instituído. Segundo Levi-Strauss, identidade é uma entidade abstrata, sem existência real, mas indispensável como ponto de referência. Felix Guatarri, por outro lado, prefere abandonar o termo identidade cultural, que ele considera redutor, e propõe a expressão “processos de singularização”. Para o autor, enquanto a identidade é um conceito de referenciação, a singularização é um conceito existencial (BERND, 1992). 24 Adota-se, com certa flexibilidade, a distinção feita por vários autores, como García Canclini, entre a modernidade como etapa histórica, a modernização como um processo sócio-econômico que vai construindo a modernidade, e os modernismos, ou seja, os projetos culturais que renovam as práticas simbólicas com um sentido experimental ou crítico.

31

Para Fredric Jameson, o pós-modernismo não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado. As teorias pós-modernas têm a óbvia missão ideológica de demonstrar que a nova formação social em questão não mais obedece às leis do capitalismo clássico, a saber, o primado da produção industrial e a onipresença da luta de classes (JAMESON, 1997). Dessa maneira, a tradição marxista tem resistido com veemência a essas formulações de cunho fragmentário e dos decretos do fim de tudo que é “moderno”. Jamenson assinala, ainda, que o pós-modernismo caracteriza-se por uma superficialidade e, o que antes se via como uma idéia de uma classe dominante (a saber, a burguesia), hoje se vive no reino da heterogeneidade estilística e discursiva ditadas pelos países capitalistas avançados. Para Jameson (1997, p. 72), A concepção de pós-modernismo aqui esboçada é uma concepção histórica e não meramente estilística. É preciso insistir na diferença radical entre uma visão do pós-modernismo como um estilo (opcional) entre muitos outros disponíveis e uma visão que procura apreendê-lo como o dominante cultural da lógica do capitalismo tardio. Essas duas abordagens, na verdade, acabam gerando duas maneiras muito diferentes de conceituar o fenômeno como um todo: por um lado, julgamento moral (não importa se positivo ou negativo), e, por outro, tentativa genuinamente dialética de se pensar nosso tempo presente na história.

Em relação ao termo “pós-moderno”, este talvez represente, para muitos teóricos, uma espécie de tentativa de ruptura ou reação à modernidade25 (apesar de ser claro todo o peso de ideologia que, necessariamente, o modernismo continua a carregar hoje, como, por exemplo, a da herança marxista). Este último visto, geralmente,

como

positivista,

tecnocêntrico,

universalista

e

racionalista,

é

identificado com crenças do progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais. O que há, por conseguinte, em comum nestes exemplos é a rejeição pelos pós-modernos das “metanarrativas”, ou seja, interpretações teóricas de larga escala pretensamente de aplicação universal – 25

Embora o termo moderno tenha uma história bem mais antiga, o “projeto” da modernidade entrou em foco no século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e as leis universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas. A idéia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. O desenvolvimento de formas racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como o lado sombrio da nossa própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser revelada (HARVEY, 2010).

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incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades de razão iluminista (HARVEY, 2010). Segundo o crítico literário Terry Eagleton26 (apud REIS, 1998), O pós-modernismo assinala a morte dessas ‘metanarrativas’, cuja função terrorista secreta era fundamentar e legitimar a ilusão de uma história humana ‘universal’. Estamos agora no processo de despertar do pesadelo da modernidade, com sua razão manipuladora e seu fetiche da totalidade, para o pluralismo retornado do pósmoderno, essa gama heterogênea de estilos de vida e jogos de linguagem que renunciou ao impulso nostálgico de totalizar e legitimar a si mesmo... A ciência e a filosofia devem abandonar suas grandiosas reivindicações metafísicas e ver a si mesmas, mais modestamente, como apenas outro conjunto de narrativas.

Nesse sentido, o mundo atual vive, também, uma compressão do tempoespaço, advindos da globalização27, em que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas. Assim, a experiência do tempo e do espaço se transformou, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas (HARVEY, 2010). Um outro aspecto relativo às mudanças do processo de globalização é a questão do seu impacto frente à identidade cultural. Como Karl Marx refletiu sobre a modernidade (tardia), registrado por Stuart Hall (2003, p. 14):

[...] É o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos... Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas representações e concepções, são dissolvidas, todas as relações recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificarse. Tudo que é sólido se desmancha no ar.

Nessa perspectiva, novas tecnologias da informação que permitem notícias em tempo real, a globalização dos mercados mundiais, a sociedade em rede, o aumento da desigualdade social e a destruição de ecossistemas, são fenômenos que estão ocorrendo de forma intensa nas últimas décadas. Tal experiência evidencia, contudo, que uma parte expressiva da sociedade naturaliza esses fenômenos, vivendo-os como algo inevitável, sobre os quais o homem não tem qualquer poder de decisão – ideologicamente, esta visão é sustentada pelo 26

Ler também deste mesmo autor: (EAGLETON, 1997). Tal termo vem ajudado a fazer parecer inevitável a redução dos poderes estatais em termos de regulamentação dos fluxos de capital e se tornou um instrumento político extremamente potente de privação de poder dos movimentos operários e sindicais nacionais e internacionais. Veio a ser, em resumo, um conceito central associado ao admirável mundo novo do neoliberalismo globalizante (HARVEY, 2009).

27

33

neoliberalismo28. Visto assim, o humano é retirado de sua condição de sujeito e de sua possibilidade de transformar o que está posto. Na realidade, já não se pode conceber o indivíduo alienado no sentido marxista clássico, porque ser alienado pressupõe um sentido de eu coerente e não fragmentado do qual se alienar. Há, portanto, razões para acreditar que a alienação do sujeito é deslocada pela fragmentação do sujeito. Segundo Harvey (2010, p. 57), O modernismo dedicava-se muito à busca de futuros melhores, mesmo que a frustração perpétua desse alvo levasse à paranóia. Mas o pós-modernismo tipicamente descarta essa possibilidade ao concentrar-se nas circunstâncias esquizofrênicas induzidas pela fragmentação e por todas as instabilidades (inclusive as lingüísticas) que nos impedem até mesmo de representar coerentemente [...] algum futuro radicalmente diferente.

A sociedade atual, portanto, conduz o homem a vivenciar mudanças decorrentes da pós-modernidade, como a fragmentação, a dinamicidade e a movimentação intensa (como a da internet e do avião). Os indivíduos parecem apanhados numa arapuca, impotentemente passivos, aprisionados e fragmentados na teia da vida urbana que vai sendo tecida por agentes que parecem distantes (HARVEY, 2009). Com o ícone da globalização, tornou-se celebre afirmar que no mundo não há mais fronteiras29. Dessa forma,

[...] uma coisa é certa: vivemos hoje em uma dessas épocas limítrofes na qual toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. Vivemos um desses raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado (LÉVY, 2002, p. 17).

Nas artes plásticas, por exemplo, o movimento artístico chamado “Retorno à Pintura” é bastante emblemático para se entender alguns aspectos da pósmodernidade. De acordo com seus defensores, o pós-modernismo caracteriza-se pela tomada de consciência por parte do artista e do público de que o prazer é uma qualidade fundamental na realização e na apreciação da obra de arte, que, no

28

A onda do neoliberalismo varreu o mundo avançado a partir de 1980. Nesse sentido, um potente inibidor da ação foi a incapacidade de apresentar uma alternativa à doutrina tatcheriana de que “não há alternativa”. A incapacidade de descobrir um “otimismo do intelecto” com que trabalhar em busca de alternativas tornou-se hoje um dos mais sérios obstáculos à política progressista. 29 Segundo o antropólogo francês Jean-Loup Amselle, (apud BURKE, 2003, p.2), não existe uma fronteira cultural nítida ou firme entre grupos, e sim, pelo contrário, um continuum cultural.

34

entanto, foi abandonada pelos artistas modernistas do início de século XX em função do seu comprometimento com a história. Segundo De Fusco (1988), O fracasso da palavra política e do dogma ideológico provocou a superação da superstição de uma arte como atitude progressista. O artista compreendeu que progressismo significa afinal progressão, evolução interna da linguagem, segundo linhas de fuga que espelham a fuga utópica da ideologia. Se a arte anterior pensava participar na transformação social mediante a expansão de novos processos e de novos materiais, através do transvasamento do quadro e do tempo histórico da obra, a arte atual tende a não se iludir fora de si própria e a refazer os seus próprios passos.

Dessa maneira, após receber uma grande herança, os artistas estão selecionando uma ampla gama de alternativas sem chegar a nenhuma conclusão definitiva. Os sintomas dessa passagem do moderno para o pós-moderno são um ecletismo onipresente e uma confusa combinação de estilos que refletem causas e interesses pessoais restritos (H.W. JANSON & A. JANSON, 1996). Um exemplo de arte pós-moderna é a produção artística do pintor Francesco Clemente (1952- ), o qual trabalha com um estilo que seja apropriado ao momento, captando os fenômenos transitórios30. A pintura anexada sugere uma alma atormentada por impulsos e sensações do homem pós-moderno: um homem fragmentado, deslocado e atormentado.

Fig.1 – (CLEMENTE, 1968)

30

Para entender melhor tal assunto, recomenda-se (REIS, 1998).

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Para Charles Newman, o pós-modernismo assinala uma receptividade não crítica à Arte, uma tolerância que equivale à indiferença, principalmente por parte da elite intelectual. Desse ponto de vista, afirma Newman, “a celebrada fragmentação da arte já não é uma escolha estética: é somente um aspecto cultural do tecido social e econômico” (apud HARVEY, 2010, p. 64). O aspecto cultural, por conseguinte, não pode ser visto como característica autônoma das Artes, visto que está enraizado em outros setores, principalmente da vida cotidiana: a mobilização da moda, da arte, da mídia faz parte do estilo de vida do homem regido pelo neoliberalismo. Já para o teórico Canclini (1997, p. 329), “o pós-modernismo não é um estilo, mas a co-presença tumultuada de todos, o lugar onde os capítulos da história da arte e do folclore cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais”. Nessa perspectiva, tal explicação se conecta com o sentido de “hibridismo cultural”, visto como uma articulação entre várias mesclas interculturais dentro do processo de globalização cultural. Desse modo, não é somente a arte pictórica que se utiliza desse sentido de hibridização, mas também o próprio texto, segundo Peter Burke (2003), como os gêneros híbridos japoneses ou latino-americanos que não podem ser vistos como simples imitações do romance ocidental. Por outro lado, se parte dos teóricos pós-modernos nega a historicidade de seus trabalhados, de modo a perder profundidade, alguns outros teóricos assumiram uma abordagem que evoca as questões sociais e políticas, como as de gênero, de sexualidade, de etnia, de poder das ordens simbólicas, abrindo-se um canal para o campo de estudos que vão além dos aparatos conceituais tradicionais. Este outro movimento reinsere, portanto, os contextos históricos sendo significantes e até determinantes para as artes e as disciplinas científicas. A questão da identidade, por exemplo, vem sendo problematizada, em que esta é estabelecida por uma marcação simbólica (homem/mulher; branco/negro; rico/pobre), ainda de influencia pós-estruturalista, definindo-se quem é o excluído e o incluído. Portanto, crescentemente se exigem o reconhecimento dos direitos das várias culturas e dos vários “outros mundos”, isto é, o pós-modernismo tem uma estreita relação com as “outras vozes” que há muito estavam silenciadas (mulheres, gays, negros, povos colonizados).

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O campo dos Estudos Culturais31, por sua vez, surge como proposta de cunho teórico-político para estudar algumas premissas relativas ao contexto da pósmodernidade, abrangendo preocupações de ordem cultural, histórica e social:

A primeira premissa é que os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade. A segunda é que cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas necessidades. A terceira [...] é que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas em local de diferenças e de lutas sociais (SILVA, 2004, p. 13).

Dessa maneira, muito importante para a história recente tem sido as lutas políticas e teóricas advindas do movimento feminista e das lutas contra o racismo. “Esses movimentos e lutas têm aprofundado e ampliado os compromissos democráticos e socialistas” (SILVA, 2004, p. 14). As feministas, por sua vez, têm contribuído de forma radical e particular para a ampliação do debate referente à identidade pós-moderna, em que afirmam que “o pessoal é político”, reconfigurando o papel da mulher na sociedade contemporânea e politizando a subjetividade no processo de identificação das relações binárias criadas simbolicamente (filho/filha; marido/esposa; homem/mulher) com vistas a subverter a dicotomia sexual ou de gênero. Assim, o reconhecimento das formas de poder associado às representações simbólicas se mostra essencial para o entendimento da sociedade pós-moderna, como as idéias do sociólogo, trabalhado no capítulo 1, Pierre Bourdieu.

Nesse

sentido, a conexão entre o trabalho intelectual e o trabalho político tem sido importante para os Estudos Culturais. Significa que a pesquisa e a escrita têm sido políticas (SILVA, 2004). Para Silva (2004, p. 25),

[...] os Estudos Culturais dizem respeito às formas históricas da consciência ou da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subjetivo das relações sociais. 31

Estudos Culturais são estudos sobre a diversidade dentro de cada cultura e sobre as diferentes culturas, sua multiplicidade e complexidade. São, também, estudos orientados pela hipótese de que entre as diferentes culturas existem relações de poder e dominação que devem ser questionadas.

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Nessa perspectiva, é evidente que a literatura – como forma de poder associado às representações e como texto privilegiado na medida em que pode conter outros textos, como o histórico - faz parte de um projeto de (re)construção das identidades. As representações fictícias e textuais, por conseguinte, são extremamente relevantes: procuram a identidade, a construção da imagem de si, da coletividade e das relações. “El factor más constante de alienación sería, precisamente, el hiato entre las representaciones y la aprehensión de su falsedad” (VEJA, 2003). Las representaciones, las formaciones discursivas construyen, en cierto modo, el mundo. Es una constelación de datos y una serie de proposiciones las que lenta e insidiosamente, mediante textos, revistas, cuentos, novela, películas, libros escolares, programas de radio, van conformando la visión del mundo de la colectividad a la que se pertenece (VEJA, 2003, p. 50-51).

Entretanto, construindo-se como um desafio à instituição literária, as literaturas emergentes desempenham um papel fundamental na (re)elaboração das representações identitárias. “As literaturas dos grupos discriminados – negros, mulheres, homossexuais – funcionam como elemento que vem preencher os vazios da memória coletiva e fornecer de ancoramento do sentimento de identidade” (BERND, 1992, p.13). Assim, o essencial destas literaturas é precisamente sua força de resgatar as formas onde subsistem as culturas de resistência, matéria-prima da identidade cultural (BERND, 1992). Este novo debate, pois, se produz a partir da crise do sujeito, tal como diagnostica os teóricos pós-modernos, em que afirmam sobre os fracassos das identidades centradas em uma racionalidade unificada. No entanto, cabe um questionamento: como conciliar o novo “eu desunificado” com a necessidade política de seguir em uma dinâmica de sujeitos e identidades para se articularem coletivamente? A hibridização cultural pode ser uma resposta, uma vez que a “identidade híbrida”, isto é, uma identidade múltipla e fluída, permite ao sujeito abandonar as identidades reconhecíveis e catalogáveis, para oscilar criticamente entre o “pertencimento” e o “estranhamento”. Assim, a identidade é concebida como uma síntese inacabada: A busca pela identidade deve ser vista como processo, em permanente movimento de deslocamento, como travessia, como uma formação descontínua que se constrói através de sucessivos processos de reterritorialização e desterritorialização, entendendo-se

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a noção de ‘território’ como o conjunto de representações que um indivíduo ou um grupo tem de si próprio (BERND, 1992, p. 11).

Nesta acepção, o conceito de identidade se revela extremamente útil, no contexto atual, para iluminar a leitura de textos que, produzidos em situações de cruzamento ou de dominação cultural, procuram reencontrar ou redefinir seu território, a partir de um novo olhar sobre o passado histórico. A construção da identidade é, pois, indissociável da narrativa e, conseqüentemente, da literatura. Assim, [...] somente em termos de um tal sentido centrado de identidade pessoal podem os indivíduos se dedicar a projetos que se estendem no tempo ou pensar de modo coeso sobre a produção de um futuro significativamente melhor do que o tempo presente e passado (HARVEY, 2010, p. 57).

2.2 DA IDENTIDADE AO CÂNONE

Os Estudos Culturais têm postulado uma crítica da representatividade do cânone32 enquanto mecanismo de exclusão de ordem cultural. A reflexão em relação ao cânone teve duas vertentes: uma mais conservadora, em defesa de seu status quo, representada pelo teórico americano Harold Bloom, em seu livro O Cânone Ocidental; e uma segunda mais contestadora, postulada por grupos marginais e, também, por membros da academia que adotam o mesmo discurso, podendo citar Frantz Fanon como um teórico de resistência estética e literária através, principalmente, do livro Os Condenados da Terra, assim como gaúcho, crítico literário, Flávio Kothe, o qual faz uma revisão radical do cânone brasileiro. Assim, os impulsos dos Estudos Culturais e das teorias críticas pós-modernas vêm no sentido de lutar para que a cultura exclusivista começasse a fazer parte de uma cultura comum, mais democrática, em que os significados e valores fossem construídos por amplos setores da sociedade, a saber, não somente por segmentos privilegiados (como do homem branco, ocidental), mas também por aqueles que até então foram excluídos (como os gays, as mulheres, os povos colonizados). Dessa

32

Segundo Kothe (1997, p. 108), “o cânone de uma literatura nacional é o conjunto dos seus textos consagrados, considerados clássicos e ensinados em todas as escolas do país. O termo ‘cânone’ tem origem religiosa, e não é empregado por alusão gratuita, mas porque conota a natureza ‘sagrada’ atribuída a certos textos e autores, que assumem caráter paradigmático e são considerados píncaros do ‘espírito nacional’ e recolhidos num ‘panteão de imortais’”.

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maneira, uma cultura comum se caracterizaria pela contínua redefinição em que todos os membros da sociedade participassem de sua construção, em todos os níveis da vida social, exigindo, pois, uma ética de responsabilidade comum. Os Estudos Culturais, portanto, vêm contrapor-se aos estudos literários justamente em um momento de lutas políticas para a transformação geral da sociedade. Assim, o texto literário, como integrante do discurso social, será um dos mediadores do processo de afirmação e de reconstrução das identidades nacionais/regionais devido à sua própria especificidade que é a de conter em si mesmo uma infinidade de discursos (como o histórico), possibilitando, por conseguinte, a produção de abordagens a partir dos horizontes das minorias. Os discursos históricos, por sua vez, contidos nas narrativas literárias, podem trazer à tona conjuntos e fatos sociais relevantes; no entanto, tais relatos podem conter a exclusão ou a deformação de atores sociais. Nesse sentido, é evidente que a historiografia literária tende a consolidar modelos de interpretação segundo interesses de certos grupos, a ponto de não se poder perceber, com a repetição e o estabelecimento do cânone, a diferença entre os fatos havidos e a narrativa desses fatos (KOTHE, 1997). Nessa perspectiva, tanto a literatura como a historiografia constroem juntas, na ordem do imaginário, a idéia que fazemos de nós mesmos e, conseqüentemente, da nossa identidade nacional. Assim, já que a memória procura salvar o passado para servir o presente e o futuro, é importante, por conseguinte, trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens (LE GOFF, 1996). É adequado, assim, tornar claro que não se pode analisar a literatura sem seu referente histórico, nem mesmo conceber uma literatura sem a realidade que ela produz e reproduz. Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar uma visão dissociada da literatura em relação a seus fatores externos. Segundo Candido (2010, p. 14), Só podemos entender [a integridade da obra] fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.

40

Por outro lado, o trabalho da narrativa literária é, também, o de ordenar, dar forma e tornar significativo um conjunto disperso de experiências e vivências segundo certos padrões e dispositivos capazes de serem apreendidos por uma comunidade de leitores. Contudo, ao fazê-lo, opera a partir de um trabalho de domesticação desse passado segundo necessidades e demandas que não são evidentemente às do próprio passado (GUIMARÃES, 2006). Para Walter Benjamin (apud, CHUVA, 2006), quando a relação do homem com o passado se transforma numa estratégia, está presente uma nova idéia a seu respeito: a de que o presente pode iluminar o passado e não o sentido inverso. A partir desse foco dado por Bejnamin, pode-se refletir sobre o momento em que se tornou necessário inventar identidades e passados nacionais. Complementando a idéia de Benjamin ,Bourdieu (2010) afirma que o poder simbólico – contido no texto literário e construído através das palavras – tem o poder de consagração ou revelação; assim, um grupo só começa a existir enquanto tal na medida em que é reconhecido, revelando no presente a sua existência no passado. A consagração de um passado histórico e de seus atores sociais são elementos chave para o entendimento de que certas tradições se traduzem como antigas e, portanto, se consolidam como tal. Na realidade, estas tiveram origem, muitas vezes, forjadas num passado mais recente, a fim de criar um passado histórico adequado para a manutenção de uma identidade que certos grupos elegem para representar uma sociedade: Tradição inventada significa um conjunto de práticas [...], de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado (HOBSBAWN e RANGER apud HALL, 2003, p. 54).

Um exemplo bastante significativo, para a identidade brasileira, é a imagem lusa que, traduzindo-se como a tradição mais fundamental, nega o nosso antepassado indígena e, até mesmo, de outros imigrantes - a sua grande narrativa, a saber, encontra-se em Os Lusíadas, de Camões. A literatura portuguesa, por sua vez, não é uma literatura mundialmente importante: sua obrigatoriedade no ensino do Brasil faz parte, obviamente, de uma política, ainda presente, de assimilação da

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cultura de matriz lusitana33. Tal diagnóstico é representativo para se perceber a continuidade de uma mentalidade colonial. As representações construídas através dos textos literários visam, portanto, à cristalização de uma “ordem”, a qual, no entanto, revela contradições em si mesma, posto que sua harmonia é uma construção artificial. O cânone vigente, pois, está sofrendo reformulações no sentido de democratizar os discursos; entretanto, esse processo não deve somente propor uma outra verdade, mas questionar o próprio conceito de verdade contido no cânone. Não há lugar, por conseguinte, para as idealizações, mas nem por isso deixa-se de trilhar caminhos competentes, buscando a reinserção de atores sociais no plano das representações construídas no passado. As literaturas marginais, nesse sentido, devem ter um compromisso em resgatar a figura seja do negro ou do índio, seja da mulher ou do homem colonizado. Segundo Veja (2003, p. 199), La lengua es compañera del imperio. Convendría quizá añadir que lo son también las tradiciones literarias, los cauces y moldes genéricos y estilísticos, las pautas retóricas, las formas de ordenar y disponer un discurso, los moldes de referirse al mundo y describirlo.

Dessa forma, um componente essencial de toda essa reflexão é a de que as literaturas não apenas refletem uma cultura, como também a criam. Ante as identidades, a literatura tem função de representá-las, mas também de imaginá-las, encaminhando-as para novos paradigmas culturais, em que não há mais lugar para uma visão parcial de modo a impor uma fictícia identidade à custa das diferenças específicas. O reexame permanente das identidades ordena uma reflexão profunda sobre a formação de nós próprios e de nossa identidade cultural. As minorias, por muito tempo, sofreram a imposição de uma identidade que não é sua. Acaba sendo “natural” assumir a visão do outro como a própria, não se percebendo mais como se está dominado enquanto se pretende estar emancipado: o único modo de ser é ser outro, ser como o outro quer que seja (KOTHE, 1997). Nas narrativas em que se inserem novos atores sociais e novas abordagens históricas, há a direção a uma visão mais integrativa da comunidade humana, no sentido de não se afastar de uma identidade nacional, mas de representá-la de 33

Este conceito será desenvolvido no capítulo 3 a partir das idéias da historiadora Ieda Gutfreind (1998).

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maneira mais verossímil. Nas últimas décadas, há interesses visíveis referentes à transformação de ordem cultural. Contudo, a cultura, por muito tempo, foi exonerada de qualquer relação com o poder e as representações foram consideradas apenas imagens apolíticas, negando-se que há um envolvimento direto e constante entre passado e presente. Segundo Said (2005, p. 251), A história [...] não é uma máquina calculadora. Ela se desenvolve no espírito e na imaginação e se encarna nas múltiplas respostas da cultura de um povo, que é em si mesma a mediação infinitamente sutil de realidades materiais, de fatos econômicos subjacentes, de ásperas objetividades.

É tarefa do historiador, pois, decodificar, sob a aparente ingenuidade de alguns textos literários, os mecanismos de silenciamento de algumas vozes, assim como a da invenção do outro, mas também aquelas passagens que representam, de modo verossímil, o outro em sua alteridade. Segundo Kothe (1997, p. 104), “a imagem do passado pouco tem a ver com a que realmente foi”; assim, o cânone é, em certo sentido, uma ficcional reconstrução da história,

[...] na qual e pela qual se acaba encontrando no passado exatamente aquilo que nele se quis projetar, mas que se apresenta como se fosse a mais objetiva captação do processo histórico de formação literária, sem a menor participação volitiva do interpretador (KOTHE, 1997, p. 13).

No entanto, segundo o mesmo autor, a história havida é a única histórica que foi concretamente realizada, mas não a única história abstratamente possível: as possibilidades sufocadas continuam presentes; o que o passado não concretizou, o futuro pode tornar impositivo.

2.3 DA IDENTIDADE AO CÂNONE SUL-RIO-GRANDENSE

No campo da história e da literatura, já há uma trajetória respeitável em relação às reflexões referentes à identidade gaúcha. Tais reflexões, no entanto, não esgotam o assunto, mas, sim, tornam a discussão mais fértil e nos dão subsídios para problematizar e questionar as construções identitárias circunscritas ao estado

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sulino – sendo estas problemáticas constantes para diversos estudos34. Nessa perspectiva, a literatura sul-rio-grandense35 - datada a partir da década de 1870 - é campo privilegiado para entender-se o modo pelo qual foi sendo construída a identidade gaúcha. Para tanto, é importante o estudo que relaciona identidade cultural e cânone literário, posto que estes fazem parte das construções simbólicas de nossa sociedade e, mais especificamente, do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, o texto literário, devido ao seu caráter eminentemente social, interfere na sociedade, criando, através das representações, a nossa identidade. Segundo Candido (2010), a arte é social em dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Assim, não se pode desprezar o fato de que nenhuma sociedade faz uma leitura solitária, idêntica ou isolada de si mesma, mas todas realizam exercícios permanentes de autoconsciência, promovendo leituras de si próprias de ângulos ou perspectivas inusitadas (DAMATTA, 2004). No entanto, o cânone vem servindo como uma “camisa-de-força” por meio da literatura, marginalizando a língua e a cultura de diversos povos que constituem a sociedade brasileira, mediante uma política sistemática de assimilação ao invés de integração (KOTHE, 1997). A identidade brasileira, e também gaúcha, que deveria ser múltipla e heterogênea, torna-se “una”, homogênea, hierárquica. O que se entende por identidade no mundo pós-moderno e que, segundo Stuart Hall (2003), está em crise, ou seja, as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades, interessa sobremaneira para este estudo. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente não é mais possível: hoje se vê que há uma

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Como os seguintes trabalhos: (MARTINS, 1998); (RITER, 2000); (LIMA, 2001); (ALVES, 2005a); (ZISMANN, 2006). 35 Para Zilberman (1992), como a produção sulina faz parte da literatura nacional, é prudente esclarecer onde se situa a individualidade daquela porção, para justificar o tratamento que a singulariza. Assim, foram considerados pertencentes à literatura sul-rio-grandense os autores nascidos no estado. Outro critério também utilizado pela autora é o tema de expressão rio-grandense. Para Fischer (2004), é a partir da Guerra dos Farrapos, entre 1835 a 1845, que, não por acaso, nascerá o conceito de literatura gaúcha. Será a geração dos filhos da guerra a responsável pela invenção do gaúcho literário, pela reivindicação nele implícita do direito à particularidade e à diferença.

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multiplicidade

de

identidades

possíveis,

novos

atores

sociais

surgindo

e

reivindicando o seu papel como sendo significativo. Entretanto, nem sempre foi assim. Por muito tempo as identidades basearamse num recorte ou numa representação falha da realidade, circunscrita a um plano de referência, quando, de fato, esta representação deveria se dar em vários níveis – como o psicológico, o sociológico, o cultural, entre outros (ALVES, 2005a). Na literatura gaúcha, tal constatação é evidente: por muito tempo os grupos indígenas apareceram em número reduzido de obras literárias, dando lugar à temática da formação étnica a partir das correntes migratórias européias. Segundo Zilá Bernd (1992, p. 14),

(admitir) as correlações imediatas entre características raciais ou geográficas, por exemplo, e a construção de uma determinada cultura, é não apenas cientificamente falso como ideologicamente perigoso e pode levar a conclusões racistas segundo as quais somente indivíduos pertencentes a raça X, ou habitantes da região Y, são capazes de produzir certos objetos culturais.

Nesta mesma perspectiva etnológica, Damatta (2004) afirma que a identidade gaúcha sempre esteve fundamentada em elementos de modernidade, isto é, o sul do Brasil representaria a ponta exemplar de um processo aculturativo à modernidade, ao qual os países modernos já teriam chegado. Assim, enquanto a maioria do Brasil seria atrasada, o “sul” seria moderno; tal idéia está relacionada, sobretudo, à questão étnica. Enquanto a identidade brasileira teria sido construída a partir da fábula das três raças, o Rio Grande do Sul tem um número bastante representativo de imigrantes brancos e os reconhece como atores importantes na constituição de sua narrativa de identidade. A literatura gaúcha, por sua vez, durante um longo período (do século XIX até metade do século XX), mostrou-se como uma narrativa construída no sentido de firmar a identidade do homem da campanha. A imagem do gaúcho, portanto, foi sendo construída a partir de uma imagem de um homem valente, generoso, destemido, capaz de enfrentar o inimigo. Segundo Albeche (apud ALVES, 2005a), na obra Os Farrapos de Oliveira Belo, o gaúcho aparece, pela primeira vez, na literatura como símbolo rio-grandense. A idéia de “homogeneização” do Rio Grande do Sul foi caracterizada desde então, construindo a crença de que o gaúcho heróico representa a figura real do povo sulino.

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Nas últimas décadas, entretanto, há uma evidente ampliação dos temas e das figuras retratadas no texto literário sul-rio-grandense36, de modo a construírem uma identidade não excludente e capazes de representar a sociedade gaúcha em seu conjunto. Dessa maneira, a identidade gaúcha vem sendo criada e recriada através do cânone sul-rio-grandense, em que se passa, mais recentemente, a refletir a partir do horizonte das minorias étnicas e sobre o papel da mulher em nossa história, mergulhando-se, pois, nos problemas de nossa identidade cultural. Segundo Alves (2005a, p. 30-38),

Várias foram as concepções da figura do gaúcho até a sedimentação da que se tem hoje, tão variadas quanto os contextos históricos em que foram forjadas. [...] Na segunda metade do século XX, através de uma concepção marxista da História, começou-se a questionar o caráter tão marcadamente heróico do povo gaúcho. A própria Revolução Farroupilha apresentava episódios nada dignos de orgulho, como a Batalha de Porongos, por exemplo, quando os Lanceiros Negros (escravos que por acreditarem na abolição lutavam junto aos farrapos) foram traídos e vitimados. [...] Da mesma forma, demonstrou-se que o gaúcho mítico nunca existiu historicamente e que a decantada democracia dos pampas era uma construção idealizada que respondia aos interesses de legitimação das oligarquias locais.

Hoje, portanto, já se considera que os eixos definidores do processo cultural sul-rio-grandense passam necessariamente pelo hibridismo étnico. Assim, o processo cultural gaúcho, como uma entidade em construção, assiste, no presente momento, ao aporte de várias etnias e de vertentes até então sem voz (ASSIS BRASIL, 2004). Nesse processo, a partir da metade do século XX, houve um movimento em busca de uma visão mais crítica acerca da identidade gaúcha, podendo citar Érico Veríssimo, Cyro Martins, Dyonélio Machado e, mais recentemente, Caio Fernando Abreu, Lya Luft e Antônio de Assis Brasil (a obra deste último autor foi escolhida para ser analisada neste presente trabalho, no terceiro capítulo). Érico, por exemplo, refletiu, em suas obras, sobre as opções possíveis para os grandes dilemas étnicos da época, realizando ficções de grande qualidade estética, capazes de mergulhar no passado histórico, de modo a recriar a identidade gaúcha (FISCHER, 2004). Porém, ao passo que Érico prefere fazer a saga da classe dominante de sua origem à sua decadência, Cyro Martins opta pelos desvalidos do 36

Tal ampliação temática na literatura gaúcha será trabalhada com mais detalhe no capítulo 3.

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pampa: pequenos arrendatários, agregados, peões, carreteiros, personagens que perderam o pouco que possuíam e que vagam sem destino pela campanha. Dyonélio, por sua vez, foi um dos pioneiros na reflexão literária sobre o universo urbano, retratando a precariedade dos centros urbanos, incluindo os sujeitos vindos do interior. Já na obra de Caio e Lya Luft, verifica-se a influência da ficção introspectiva, à maneira de Clarice Lispector, explorando a subjetividade e a procura de identidade dos personagens. A identidade gaúcha hoje, portanto, é bem mais ampla do que seu substrato mítico parecia indicar, o que vem possibilitando um reexame profundo acerca dos trabalhos discursivos que, em seu conjunto, legitimam a idéia de que temos de nós mesmos. Há, ainda, a manutenção de alguns símbolos e costumes ligados à idéia do que foi nosso passado, mas estes estão ficando cada vez mais circunscritos a determinados grupos. Algumas representações, porém, possibilitaram, de forma muito profunda, a interiorização e a legitimação de nossa auto-imagem e, para desconstruí-las, é necessária uma reformulação identitária que se incline ao resgate de nossa identidade de maneira a relativizar o “nós”, isto é, “como um homem que está em condição de viver o relativo depois de ter sofrido o absoluto” (GLISSANT, apud BERND, 1992, p. 84). Dessa maneira, embora a literatura sirva como um discurso para que não se ouçam algumas vozes, de modo a preservar uma totalidade inexistente, ela também tem a função da ampliação das possibilidades de significação de uma identidade, dando espaço à diferença. Ao se questionar a verdade do cânone, muitos escritores têm utilizado de sua literatura como uma reformulação da interpretação canonizada, redefinindo papéis e encontrando alternativas históricas distintas, com vistas a dessacralizar a história do passado. Nessa perspectiva, faz-se importante conhecer um panorama do cânone sulrio-grandense, com vistas a compreender, de maneira mais ampla, a inserção dos escritores gaúchos na literatura brasileira. É necessário, assim, inserir um quadro, obviamente incompleto, nesta análise do cânone, baseado no livro de Fischer (2004), em que se pode observar, paralelamente, o cânone nacional e o cânone gaúcho. É importante perceber, ainda, que a literatura brasileira sempre se preocupou em estar em sintonia com os modelos europeus (Barroco, Arcadismo, Romantismo, etc.). Assim, afirma Flávio Kothe (1997, p. 20), “a mentalidade colonial acha que só

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imitando modelos das metrópoles se pode fazer arte ou ciência; a ruptura dá-se quando o ponto de partida e primeira chegada da produção passa a se dar dentro da sociedade brasileira”. Dessa maneira,

[...] a divisão de períodos literários nas historiografias repete modelos europeus, que eram imitados, em geral com atraso, pelos literatos da colônia, como se as condições sociais fossem as mesmas e os pensamentos fossem pássaros migratórios. [...] Voz e vez tem aquele que serve para confirmar o esquema (KOTHE, 1997, p. 60).

Seria interessante, por conseguinte, tentar se analisar a literatura brasileira - e também a gaúcha, já que esta faz parte da mesma -, de outra perspectiva, isto é, questionando uma única visão sistêmica, uma única avaliação do que se entende por “literatura canônica”. No entanto, pouco ainda se fez nesse sentido, inclinandose a provocar a saída de elementos que poderiam participar do sistema e enriquecêlo. Para tanto, trata-se de redescobrir as múltiplas identidades, superando as identidades fictícias e inverossímeis, a fim de possibilitar a abertura do sistema a outras séries literárias e interpretações, adequando o texto literário melhor à realidade e à evolução histórica. O quadro apresentado a seguir, portanto, procura traçar uma seqüência das gerações da narrativa sul-rio-grandense, combinando-se com a literatura canonizada brasileira, a fim de conhecer um quadro mais geral de nossa literatura. Tem-se, assim, pela ordem, a coluna com o período cronológico e, nas outras duas, os autores mais representativos (do Brasil e do Rio Grande do Sul), segundo o cânone, conforme as suas escolas literárias correspondentes. É adequado, além disso, perceber em que contexto literário insere-se o escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, pois, neste presente trabalho, as obras deste autor terão uma análise mais detalhada no próximo capítulo.

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Época

Brasil

Rio Grande do Sul

1600

Barroco (Bahia e Minas)

Missões, Igrejas

1760-1820

Arcadismo (Minas, Rio de Janeiro)

Começo da vida urbana no sul

1830- 1870

Romantismo: definição da nacionalidade via figura do índio e exaltação à natureza tropical.

Romantismo: lirismo (poetas mulheres); busca de identidade local, contrastante com a brasileira, aproximada da matriz platina (o gaúcho e pouca ênfase na natureza). Criação do Partenon Literário

1880-1930

Parnasianismo de enorme importância Realismo e Naturalismo: radical exame da vida urbana do Rio de Janeiro (Aluísio de Azevedo e Lima Barreto), ao lado de relatos críticos da vida provinciana (Machado de Assis) Simbolismo: tendência minoritária

Parnasianismo fraco, quase inexistente

Realismo e Naturalismo: a cidade é quase inexistente. Conto de tema rural: Simões Lopes Neto, Alcides Maya Simbolismo: tendência majoritária

1920

Modernismo paulista: radical, vanguardista, antiparnasiano

Modernismo pouco radical, dialogando com o Simbolismo

1930-1960

Romance realista de grande alcance, com relato do mundo rural (José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano, etc), e do mundo urbano, dos pequenos funcionários (Graciliano, Cyro dos Anjos)

Idem, com relação ao universo rural gaúcho. Érico Veríssimo, Dyonélio Machado, entre outros. A literatura gaúcha entra em sincronia com a do país em geral

Geração de grandes poetas, como Drummond, Vinícius de Morais, Cecília Meirelles, Jorge de Lima, Murilo Mendes

Maior poeta gaúcho: Mário Quintana. Lila Rippol. Aureliano de F. Pinto

Revigoração do tema rural: Guimarães Rosa, João Cabral, Ariano Suassuna, com traços de mágico, Murilo Rubião, José Cândido de Carvalho. Poesia de João Cabral, vanguarda concretista

Romance de tema rural: Cyro Martins. Poesia social ( Heitor Saldanha, Lila Rippol), impulso da vanguarda (Grupo Quixote)

Grande voga do conto: Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Sérgio Sant'anna. Romance Urbano: Cony

Voga (nova) do romance histórico (Josué, Assis Brasil, Tabajara Ruas, Letícia W, José C. Pozenato). Prosa psicológica de grande alcance: Caio, Noll e Lya. Outros: Moacyr Scliar, Luis Fernando Veríssimo, Charles Kiefer

1945-1960

1970-1980

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3. IDENTIDADE E CÂNONE GAÚCHO: UMA ANÁLISE DA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA SUL-RIO-GRANDENSE ATRAVÉS DAS OBRAS “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO” E “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL”, DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Este capítulo tem por objetivo a análise do processo de construção da identidade gaúcha através de duas obras do autor Luiz Antônio de Assis Brasil – “Um quarto de légua em quadro” e “Breviário das terras do Brasil”. Para tanto, necessitou-se, primeiramente, contextualizar, brevemente, a ficção contemporânea brasileira e gaúcha. Na análise das obras, faz-se importante identificar em que matriz ideológica as obras de Assis Brasil estão filiadas, no sentido de buscar o “novo” ou/e a “tradição” presentes em seus textos, a partir das idéias da historiadora Ieda Gutfreind. Ademais, é necessário identificar os grupos étnicos e culturais marginalizados nestas obras e analisar de que forma os personagens foram representados. Por fim, este capítulo objetiva, também, analisar em que medida estes dois livros tiveram importância para a construção (ou desmistificação) da identidade sul-rio-grandense.

3.1 UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA FICÇÃO CONTEMPORÂNEA

A ficção contemporânea brasileira, a partir da década de 1970, reflete as novas transformações em nível econômico, político, social e cultural pelo qual o mundo pós-moderno, e também o Brasil, estavam passando. A partir de 1964, com a ascensão dos governos militares, o Brasil ingressa num processo de rápida modernização. A ditadura militar, contudo, prolonga-se demasiadamente, mais tempo do que a oposição imaginara, com toda a sua carga de opressão, exílio e censura. Por outro lado, o Brasil se consolida como nação industrializada, embora tal transformação seja marcada por graves desigualdades sociais, sendo fruto de uma política orientada num sentido único – favorecendo certos grupos privilegiados e o capital internacional. Ante tais mudanças, os sujeitos desta sociedade industrializada, tida como inserida no sistema do “capitalismo avançado”, passam a se questionar “quem somos nós?”. Para Hall (2003, p. 13), esse processo produz, portanto, o sujeito pós-moderno, cuja “identidade torna-se uma ‘celebração móvel’:

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formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Frente a essas transformações, os ficcionistas refletem em suas obras esta experiência coletiva de esfacelamento e pulverização da realidade (GONZAGA, 2007) e, ao mesmo tempo, a literatura modifica as concepções de mundo desta mesma sociedade, criando obras que revisitam os cânones, com um olhar bastante crítico em relação às identidades ideologicamente forjadas e às minorias até então marginalizadas. Os escritores desse período trabalharam, por sua vez, com uma narrativa de desintegração das formas realistas tradicionais, que haviam predominado até o fim da década de 1960. Ao mesmo tempo, surgiram autores que criam suas obras através de temas existencialistas, de modo a representar, de maneira direta, os dramas subjetivos e a procura de identidade mais profunda dos seres. Há, assim, um rompimento com a sintaxe, de modo a tentar recuperar o sensível via linguagem através da experiência dos personagens, buscando na linguagem metafórica um teor metafísico, sendo os representantes dessa linha Caio Fernando Abreu e Lya Luft. Por outro lado, a partir da década de 1980, ganha força o romance histórico37, evocando fatos históricos e personagens do passado, reinterpretando-os por meio de uma visão crítica, visando a uma reconstrução das representações históricas até então cristalizadas pela literatura canônica - tendo como expoente dessa vertente o escritor

Luiz

Antônio

de

Assis

Brasil.

Paralelamente,

houve

também

o

reaparecimento de ficções de temática rural, mas já com vistas ao seu esgotamento, posto que tais obras tinham como temática a “pequena e média propriedades encurraladas entre o avanço da urbanização e o surgimento da grande empresa agrícola” (GONZAGA, 2007, p. 463). Segundo Riter (2000, p. 252), A ficção brasileira contemporânea [...] oscila num movimento pendular entre três grandes linhas: a regionalista, a urbana (psicológica) e a histórica; sendo que esta última tem sido a principal vertente da literatura brasileira nos anos 90. São vários os romances 37

Segundo Burke (1997), o romance histórico foi uma invenção do final do século XVII. Madame de Lafayette, por exemplo, fez pesquisas para se certificar de que os detalhes históricos em seus “romances” estavam corretos, ainda que esses detalhes não fossem importantes para o enredo. O gênero conhecido nas décadas de 1670 a 1680 como nouvelle historique também era histórico no sentido de que esses textos se preocupavam principalmente com personagens e acontecimentos históricos reais. Atualmente, o romance histórico ganhou novo impulso, apresentando em sua construção, profundas inovações que se ajustam às incertezas, aos paradoxos e à pluralidade próprios da realidade sócio-cultural da contemporaneidade.

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que buscam a história não como mero pano de fundo, mas como releitura histórica, repesando e repensando o valor dos fatos. [...] Há, ainda, neste desabrochar regional e histórico, uma necessidade de revisão do passado que repercute na busca da identidade, na formação do imaginário próprio que, muitas vezes, é desmistificador.

Tendo descrito as mudanças da sociedade brasileira e, concomitante a tal processo, as transformações paradigmáticas das narrativas literárias, é interessante observar que “a literatura gaúcha também entra no processo de modernização, dando curso às mesmas contradições que a estrutura social e econômica brasileira propunha” (SANTOS, 1992, p. 27). Dessa maneira, no Rio Grande do Sul, a temática histórica e regionalista38 continuam tendo importância para os autores sulinos, objetivando a repensar o passado histórico, de maneira a criar romances antiépicos que identifiquem as novas identidades que configuram o mundo pósmoderno. Segundo Zilberman (1992), desde o legado dos anos 1920, com as obras de Cyro Martins, o cânone sul-rio-grandense garante a persistência do tema “regionalista” enquanto orientação vigente na prosa do Rio Grande do Sul; este tema, contudo, teve nova configuração: abandonou uma antiga criação mitológica, o morador da Campanha, isto é, o gaúcho. A narrativa gaúcha, pois, ampliou seu repertório, buscando olhar para o passado histórico de forma crítica, recuperando nossos laços com a história, mas de forma a integrar personagens silenciados e fatos históricos, muitas vezes, renegados. Segundo Bosi (2006, p. 436),

Chama igualmente a atenção o gosto, que essa mesma concepção de literatura cultiva, de verticalizar a percepção do seu objeto, examinando-o com um olhar em retrospecto; procedimento que dá um tom épico, ainda quando a intenção é antiépica.

Neste sentido, desde os anos 1970, a arte gaúcha surge com um novo olhar sobre a história, questionando as temáticas estabelecidas pelo cânone vigente. Assim, os escritores gaúchos procuram escrever obras que resgatem o passado histórico rio-grandense, a gênese do povo, tendo como um dos temas o prisma da

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Segundo Cyro Martins (1997), o regionalismo traduz, sobretudo, uma atitude sentimental. Atitude de entusiasmo em face da sua região e da sua legenda. Legenda é uma palavra que se relaciona intimamente com a mística e com a epopéia. Essa literatura regionalista, portanto, se origina da exaltação de heróis e do romanesco. O regionalismo sublima as suas virtudes na glorificação do indivíduo, do tipo, do arquétipo e, no nosso caso, do “monarca das coxilhas”.

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colonização, o qual teve um papel de grande importância na formação do imaginário sulino, podendo citar os seguintes livros: O Quatrilho (1985), de José Clemente Pozenato; Quem faz gemer a terra (1991) e A face do Abismo (1988), de Charles Kiefer; Os varões assinalados (1985) e Netto perde sua alma (1995), de Tabajara Ruas; Um quarto de légua em quadro (1976) e “Breviário das Terras do Brasil” (1997), de Luiz Antônio de Assis Brasil, livros estes que se pretende analisar neste trabalho. É evidente, pois, que literatura e história são duas áreas do saber humano com profundos pontos de intersecção. Quando se examina a literatura sul-riograndense, tal constatação é ainda mais evidente, de modo que as fronteiras entre texto ficcional e texto histórico se interpenetram de modo a não se saber, em muitos casos, o que de fato aconteceu e o que foi imaginado. Segundo Alves (2005b, p. 122-123), “hoje, poder-se-ia dizer que estudar a literatura no Rio Grande do Sul é, de certo modo, acompanhar a própria trajetória histórica do estado”. Assim, ao selecionar uma obra literária como fonte de análise de uma representação de um determinado momento histórico, o pesquisador se depara com certas problemáticas de ordem metodológica. Desta incerteza, reabre-se o debate em torno da verdade, do simbólico, da finalidade das narrativas histórica e literária, da gerência do tempo, questões estas que colocam a história e a literatura como leituras possíveis de uma recriação imaginária do real (PESAVENTO, 1998). Dessa forma, através das novas questões propostas pela História Cultural, a literatura assume a função de testemunho ou documento histórico para os historiadores. Segundo Mendonça (2003),

A compreensão de que a literatura é, além de um fenômeno estético, uma manifestação cultural, portanto uma possibilidade de registro do movimento que realiza o homem na sua historicidade, seus anseios e suas visões de mundo, tem permitido ao historiador assumi-la como espaço de pesquisa.

Nesse sentido, os escritores, diferentemente dos historiadores, não possuem um compromisso concreto com a tradução da “realidade”, mas seu conteúdo narrativo é expressão de formas de agir e pensar o mundo dos homens em um dado tempo e espaço. Em função dessa constatação, o texto literário torna-se fonte de extrema relevância, visto que nele são reveladas as verdades da representação ou

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do simbólico através dos fatos criados pela o literato, segundo a verossimilhança. Para o historiador Peter Burke (1997, p. 108), Fronteiras metafóricas também merecem atenção do historiador – as fronteiras que separam opostos complementares tais como o sagrado e o profano, o público e o privado, ou história e ficção. Embora cada um faça parte do processo pelo qual o outro é constituído, essa interdependência não impede que ocorra a mudança.

Os textos escritos no Rio Grande do Sul, como se pode observar, são fontes bastante profícuas para os historiadores, por buscarem a aproximação entre texto ficcional e histórico, criando representações vivazes de episódios de nossa história. Em termos gerais, a literatura gaúcha caracterizou-se, desde sua origem, por realizar painéis sociais e históricos quase sempre sob uma ótica regionalista e, também, histórica. Segundo Pacheco (2001), a referência básica modelar de tudo isso é, evidentemente, a trilogia de O tempo e o vento, de Érico Veríssimo. Mais recentemente, já de um diverso modo, o exemplo que há é o do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, o qual realiza uma profunda revisão histórico-literária sul-riograndense. Em Veríssimo, no entanto, os personagens são, em certo sentido, míticos, emblemáticos – em suma, arquetípicos. Já em Assis Brasil, o lado humano propriamente dito é bem mais acentuado, trazendo à tona inúmeros conflitos internos e dramas existenciais. Tais trajetórias literárias, portanto, convergem e divergem dependendo da perspectiva com que se analisa; em um ponto, no entanto, os dois autores têm em comum: “a preocupação com a reconstituição e o desvelamento de verdades escamoteadas pela história escrita dos homens a respeito das etnias fundadoras e de seu papel na constituição do ‘povo brasileiro’ e de sua identidade” (ALVES, 2005b, p. 11). Assis Brasil, portanto, não rompe totalmente com o cânone gaúcho, mas aprofunda algumas questões e renova em outras, as quais serão trabalhadas nesta presente pesquisa.

3.2 A HISTORIOGRAFIA GAÚCHA

A partir dessas observações, estabelece-se necessário a utilização do conceito de representação como mecanismo analítico das simbologias presentes

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nas obras de Assis Brasil. O conceito de representação é significativo na medida em que é através dele que as sociedades constroem, pensam e lêem a “realidade”, definindo, por conseguinte, a sua existência. Entretanto, trabalhar com a idéia de representação é levar em consideração seu duplo significado, o de ausência e o de presença, isto é, a substituição de algo ausente pela recolocação sensível de sua presença. Assim, pode-se afirmar que a representação não é uma realidade concreta, mas uma construção a partir dela. Levando em conta tais definições, Pesavento (2003, p. 41) expõe o sentido importante desse mecanismo: [...] As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que, constituídos social e historicamente, se internalizaram no inconsciente coletivo e se apresentaram como naturais, dispensando reflexões.

Nesse sentido, quando a realidade é deturpada, a representação torna-se máquina de submissão (CHARTIER, 1990). Ante tal idéia, pode-se observar que tanto a literatura como a história, muitas vezes, podem ser utilizadas como formas de dominação simbólica, em que certos grupos modelam as representações deles próprios ou da sociedade em que vivem para fins constitutivos de sua identidade. Tal constatação mostra-se bastante evidente quando se estuda a história do estado do Rio Grande do Sul por meio do aparato histórico e literário que buscou construir a identidade sulina. Para compreender melhor essa idéia, a historiadora Ieda Gutfreind (1998) desvela este caráter ideológico da produção do conhecimento histórico e, também, literário no estado do Rio Grande do Sul. Esta autora pesquisa, nesse sentido, a literatura gaúcha e a sua relação com a construção de representações, identificando em que medida o poder político mitifica a identidade sul-rio-grandense, acarretando na marginalização de alguns grupos étnicos e culturais. Ieda G., portanto, trabalha com as questões de parcialidade ideológica presentes tanto na obra histórica como literária e, por conseguinte, a importância de se aproximar essas duas áreas. Partindo dessa idéia, o termo “historiografia”, para Ieda, deve ser empregado para todo produto da sociedade, independente do campo em que se manifesta, e não somente no sentido de história escrita. “Decorre disso a denominação de historiador para todo aquele que viveu no Rio Grande do Sul e escreveu um texto ou

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um livro sobre temas históricos rio-grandenses” (GUTFREIND, 1998, p. 9). É evidente, portanto, a maneira pela qual a autora aproxima o texto literário do texto histórico: a história dilui-se na literatura. A partir de tal constatação, torna-se possível, pelo menos, identificar duas matrizes39 ideológicas na historiografia do Rio Grande do Sul, as quais se originam de interpretações de participantes contemporâneos nos acontecimentos narrados e, posteriormente, reinterpretados e incorporados à produção histórica. Uma das orientações identificadas denomina-se de matriz platina40 e a outra de matriz lusitana41. À primeira, filiam-se os historiadores que enfatizam algum tipo de relação ou de influência da região do Prata na formação histórica sul-rio-grandense e, comumente, defendem que a área das Missões Orientais compunha a história do Rio Grande do Sul. A outra, a matriz lusitana, minimiza a aproximação do Rio Grande do Sul com a área platina e, conseqüentemente, defende a inquestionável supremacia da cultura lusitana na região (GUTFREIND, 1998). Tanto a história como a literatura, portanto, tornam-se instrumentos utilizados para afirmar uma identidade construída a partir de interesses de certos grupos, uma vez que a historiografia opera sobre os fatos, reinterpretando-os. Dessa maneira, a autora conclui, a partir da análise de obras tanto da matriz platina como a da matriz lusitana, que a história foi usada para fins político-ideológicos: o instrumento utilizado é a história (e a literatura que faz parte desta) e os seus manipuladores, os historiadores e os políticos gaúchos. Ieda Gutfreind, contudo, coloca em evidência um autor extremamente importante, da década de 1930, para uma visão mais crítica e menos ligada a certos grupos do poder: Cyro Martins. Este literato segue a linha denominada de romance social. Suas obras, que compõem a trilogia do gaúcho a pé - retratando a decadência e a miséria do homem da campanha – conseguem mostrar, de forma 39

Por matriz, entende-se um tipo de discurso com características comuns encontradas em um conjunto de obras históricas [...]. Essas matrizes representam a busca da identidade político-cultural do território sul-rio-grandense (GUTFREIND, 1998, p.11). 40 Os primeiros trabalhos que valorizaram as relações do Prata com a província do Rio Grande do Sul são “História popular do Rio Grande do Sul” e “História da república rio-grandense”, respectivamente de Alcides Lima e Assis Brasil, ambos do século XIX. 41 Na década de 1920, inaugura-se o discurso da historiografia que insistia na origem lusitana do estado sulino e no sentimento de brasilidade de seus habitantes. Assim, o estado sulino assume um compromisso com a história e financia pesquisas, delegando responsabilidades a seus funcionários para a execução de trabalhos. Com a Revolução de 30, coloca-se, mais acentuadamente, o interesse em demonstrar historicamente a identidade brasileira do estado sulino.

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bastante fiel, a realidade do homem do campo (GUTFREIND, 1998). Assim, enquanto a matriz lusa, deste mesmo período, esforçava-se em construir uma representação otimista e pujante do Rio Grande do Sul e do gaúcho, a literatura de romance social desenvolvia um texto mais crítico e realista. Relacionando a literatura e a história deste período, pode-se, portanto, afirmar que nunca a literatura foi tão histórica quanto neste momento, no sentido de aproximação com a realidade concreta sulina. Nesse sentido, enquanto a preocupação de Moysés Vellinho, por exemplo, e de seus colegas historiadores da década de 1930, limitava-se a diferenciar o gaúcho sul-rio-grandense de seu congênere platino, invocando suas origens, a realidade vivida pela população sulina estava sendo trabalhada pela literatura. Como se observa, o discurso tanto da História como da Literatura olham para os acontecimentos históricos, muitas vezes, a partir de uma mesma perspectiva, revelando que, no Rio Grande do Sul, História e Literatura desenvolveram caminhos muito semelhantes, sobretudo, nos seus comprometimentos de natureza ideológica (ALVES, 2005b). Sabe-se, ao mesmo tempo, que tal idéia vem se modificando e, atualmente, vê-se inúmeros escritores e historiadores com uma visão bastante crítica e um aparecimento de um certo revisionismo no campo da História, podendo citar, por exemplo, o historiador Moacyr Flores e a historiadora Sandra Pesavento. Não se pode negar, também, que a mesma atitude se encontra em textos de ficção, como as obras de Luiz Antônio de Assis Brasil - o qual tem uma atitude de atualizar os fatos do passado, reconstruindo as representações com um olhar crítico e atual. Segundo Pereira (2001, p. 131), A busca pelo cenário histórico na obra de Assis Brasil dá-se, primeiro, pelo fato de que o universo ficcional precisa estar centrado em um momento específico da história ou da cultura que está sendo representada; segundo, porque, através desse mesmo recorte histórico, desse revisitar o passado ou da revelação presentepassado, é que surge a visão crítica, a reflexão sobre condutas, critérios, valores, práticas realizadas no passado.

Parece, em suma, que História e Literatura, embora se valendo de procedimentos distintos, têm trilhado os mesmos caminhos, ora filiando-se nitidamente ao discurso oficial, ora dele distanciando-se (ALVES, 2005b). Nessa medida, pode-se citar o autor Peter Gay, para reafirmar que “História e Literatura ‘condividem’ uma longa fronteira cheia de meandros, que é atravessada pelo trânsito

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erudito e literário sem grandes impedimentos nem muitas formalidades” (apud ALVES, 2005b, p. 130). Configurando-se como formas narrativas, ambas disciplinas sofrem a interferência do narrador, do leitor e da temporalidade, operando sempre de forma seletiva e ideológica. Para tanto, é necessário compreender que a subjetividade é parte integrante na reconstrução de um passado: sujeito e objeto não podem ser vistos separadamente, com vistas a reconhecer as limitações e o envolvimento que há do historiador na historiografia. Por essa razão, “tanto uma modalidade de discurso quanto outra contribuem para o conhecimento e a elucidação e/ou mascaramento de nossa passado histórico” (ALVES, 2005b, p. 130). Nesta mesma perspectiva, a crítica contemporânea identificou, a partir das últimas décadas do século XX, o surgimento de uma nova literatura, chamada de metaficção historiográfica. A teórica canadense Linda Hutcheon (1991), nesse sentido, ao falar do novo romance histórico, prefere denominá-lo de metaficção historiográfica, posto que neste há uma visível preocupação em rediscutir as relações entre ficção e história, bem como redefinir a própria conceituação de história como produção humana. A autora, ainda, acrescenta que a metaficção historiográfica atua dentro das convenções não para negá-las, mas, sim, para subvertê-las. A preocupação com o passado histórico não deve ser, portanto, vinculada ao recuo nostálgico no tempo, como fizeram os antepassados românticos – essa noção precisa ser superada e, por conseguinte, assimilada à possibilidade de retornar ao passado criticamente, como propõe o pós-modernismo (PEREIRA, 2001). As obras de metaficção historiográfica refletem [...] conscientemente sobre sua condição de ficção, acentuando a figura do autor e o ato de escrever [...]. (Elas) tomam como tema ostensivo personagens e eventos da história conhecida, mas os submetem à distorção, à falsificação e à ficcionalização [...] o ponto essencial é que esses textos expõem a ficcionalidade da própria história (CONNOR apud FERREIRA, 2009, p. 76).

É adequado, pois, relativizar a objetividade acerca da produção da história, como fazem os pós-modernos, quando afirmam que a história não existe a não ser como texto, reconhecendo, portanto, a dimensão retórica ou narrativa da escritura da história. Assim, os pós-modernos não negam a existência da história, apenas chamam atenção para se pensar criticamente o passado, uma vez que tal legado chegou até nós através de textos - que são criações humanas e, portanto, imprimem

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sua subjetividade e sua parcialidade ideológica - e, invariavelmente, contribuem para a formação das representações de uma sociedade e de nós mesmos (PEREIRA, 2001). Assim, história e literatura convergem para a construção de uma identidade, apresentando-se como representações do mundo social significativas que atuam com métodos e fins diferentes (PESAVENTO, 1998). Nesse sentido, os romances históricos de Luiz Antônio de Assis Brasil podem ser considerados, segundo o conceito de Hutcheon, como uma “metaficção historiográfica”, isto é, romances com uma preocupação contextual e auto-reflexiva. Segundo o próprio autor, em uma entrevista exposta no seu site oficial42,

O romance histórico tradicional, ao estilo de Scott e Herculano, não se pratica mais; pelo menos, se pratica pouco - e de má qualidade. No denominado ‘novo romance histórico’ - que Linda Hutcheon chama de ‘metaficção historiográfica’ -, a história é sempre pretexto, e é deformada, reinterpretada, discutida e, até, criada. Imagino ter feito, e com certa freqüência, essa segunda modalidade, com recurso à paródia, ao pastiche e, uma ou duas vezes, ao plágio burlesco. [...] Hoje me preocupa, mais que tudo, a ficção. Mesmo que os plots estejam situados num tempo pretérito, isso é apenas uma opção do escritor: o passado me dá maior liberdade criadora, e as emoções e paixões me parecem mais autênticas (ASSIS BRASIL, 2010b).

Assis Brasil, portanto, confronta os cânones através da distorção dos materiais históricos que utiliza na construção dos seus textos, promovendo uma diluição entre o real e o ficcional: o passado é, pois, reconstruído. Já que esse passado é apresentado através de discursos, e pelo discurso torna-se possível subvertê-lo, contestá-lo, repensá-lo e, com isso, representá-lo sob novas e diversas perspectivas (LEVON, 2008, p. 158).

3.3 A HISTORIOGRAFIA DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Luiz Antônio de Assis Brasil é escritor brasileiro contemporâneo, gaúcho, nascido em Porto Alegre, no ano de 1945. Passou a infância na cidade de Estrela. Hoje é professor e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, da faculdade de Letras e, mais atualmente, foi convidado a ser Secretário de

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Disponível em . Acesso em 20 de out. 2010.

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Cultura do estado do Rio Grande do Sul (2010). Mantém há 15 anos a Oficina de Criação Literária, criada no ano de 1985. Assis Brasil é voltado para o chamado novo romance histórico (ou metaficção historiográfica, segundo a autora Hutcheon). Tal autor vem produzindo obras que procuram examinar o passado legendário do estado sulino. Nesse sentido, a ótica do romancista é sempre desmistificadora, seja na ficção da colonização açoriana (Um quarto de légua em quadro, 1976), ou no registro da Revolução Farroupilha (A prole do corvo, 1978), entre outros temas históricos. Mesmo nos relatos em que os fatos históricos são mais ou menos irrelevantes, cujo foco é o drama humano, o escritor descreve rigorosamente as circunstâncias objetivas do passado, sempre mediante uma visão crítica (GONZAGA, 2007). Sobre a relação entre a obra ficcional de Assis Brasil e a história, ele afirma:

[...] como um romancista eu não tenho compromisso com a verdade, a não ser com a verdade da obra, a qualidade estética da obra. Então, eu vou atrás de alguns aspectos que em geral não são relacionados à macro-história, digamos assim, mas em alguns aspectos episódicos, humanos, que fazem parte, portanto, daquilo que a gente espera encontrar num romance, e que normalmente não está na historia. Muitos também eu imagino, trabalhando dentro da verossímil. No inicio da minha carreira de escritor, estive mais atrelado a fontes históricas. [...] Com o passar do tempo, eu fui assumindo mais o lado ficcionista, (buscando) os aspectos humanos da história (ASSIS BRASIL, 2010a).

Estilisticamente, o autor atém-se aos padrões tradicionais da grande narrativa realista do século XX, e sua linguagem é elegante e precisa. Preocupa-se em utilizar palavras e recursos estilísticos do período em que escreve, para dar “um sabor de época”. [...] eu não sou alguém de hoje que vai estar no passado, eu sou de hoje alguém que olha para aquele passado [...] com a nossa perspectiva de hoje. Então os elementos lingüísticos são o ponto necessário para manter, digamos assim, um sabor de época, e por outro lado, o nosso idioma, tem recursos expressivos tão interessantes, recursos expressivos no passado, certas condutas lingüísticas muito interessantes, muito boas, alguns vocábulos que caíram em desuso e que são muito bonitas. E que recuperar isso também é um prazer e um prazer pro leitor de hoje (ASSIS BRASIL, 2010a).

Há, portanto, na obra de Assis Brasil, uma necessidade de revisão do nosso passado que repercute na busca da identidade sul-rio-grandense, operando de

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forma a desmistificar o imaginário criado pela historiografia sulina. Assim, a representação de nossa história tem esse poder de consagrar a ordem ou de desconstruí-la. “Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva” (LE GOFF, 1996, p. 146). Assis Brasil busca, através de sua obra, revelar acontecimentos esquecidos ou silenciados pela memória coletiva, buscando reconstruir e compreender a nossa história e nossa identidade sulina. Segundo Assis Brasil (2010a),

[...] que há, que havia, enfim, em minha obra, um projeto que eu mesmo não me dava conta. É um projeto de justamente de tentar melhor entender essa nossa condição aqui do sul, do sul do Brasil, da América do Sul. A nossa condição de perplexidade e de viver continuamente uma oposição entre aquilo que é rude, aquilo que é bárbaro, como nós chamamos, e aquilo que é civilizado. [...] Então, um pouco essa coisa de eu entender eu mesmo, enquanto ser humano, enquanto homem civilizado, da cidade, profundamente urbano, e sentindo dentro de mim uma necessidade de recuperar algum modo de ser, ainda não tocado pela civilização. Essa discussão está em todos os meus livros.

Retomando o percurso da produção de Assis Brasil, observa-se a preocupação com temas da gênese da sociedade sulina, como fica claro no seu primeiro romance Um quarto de légua em quadro. Já na década de 1980, pode-se citar as obras A prole do corvo (1978) e Bacia das alvas (1981), dando continuidade à temática de episódios importantes da história rio-grandense e abordados de forma crítica. Retoma, no primeiro, a Revolução Farroupilha e o período compreendido entre a ascensão política de Júlio de Castilhos e a implantação do Estado Novo; no segundo, discute o positivismo sul-rio-grandense (PEREIRA, 2001). Manhã transfigurada (1982) e As virtudes da casa (1985) refletem novas preocupações do literato, inserindo uma nova temática: a figura feminina. Embora o cenário histórico continue presente, tais obras centram-se nos dilemas existenciais das protagonistas, buscando o teor psicológico e dramático na narrativa. Outra obra que vem complementar a temática dos dramas existências é O homem amoroso (1986) – romance construído através de um universo intimista, focalizando o drama particular de um músico integrante da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Já no livro Cães da Província (1987), retoma fatos e personagens históricos, durante o século XIX, desafiando os limites entre ficção e documento histórico, revivendo

um

personagem

antológico,

Qorpo-Santo,

e

fazendo

coincidir

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acontecimentos históricos de diferentes momentos. Perguntado sobre a pesquisa histórica e a preocupação em escrever segundo a realidade histórica, Assis Brasil (2010a) relata, [...] eu tinha que ficar a distrito aquilo que está na história, e a história digamos, tem fatos, tem documentos, documentos de mais variada natureza e que digamos, podem, em determinado momento, [...] limitar a ação do romancista. Por isso, eu tenho me permitido algumas liberdades, como por exemplo, Cães da província, eu fiz coincidir, no mesmo momento, os cães da rua do arvoredo e a interdição do dramaturgo Qorpo-Santo, quando eles tiveram 10 anos de diferença entre um e outro.

Assis Brasil encerra a década de 1980 com a publicação de Videiras de cristal (1990), a qual trabalha com um episódio fascinante da histórica sulina: liderada por uma frágil mulher, Jacobina Maurer, uma legião de colonos alemães revolta-se contra as instituições da época, enfrentando o próprio exército imperial. Já na década de 1990, escreve a trilogia Um castelo no pampa, integrada por Perversas famílias (1992), Pedra da memória (1993) e Os senhores do século (1994), reconstruindo um amplo painel da história gaúcha e brasileira. Segundo Pereira (2001, p. 131), Nessa trilogia, é o tempo que, acima de outras perspectivas possíveis da ficção, possibilita a evocação histórica de um espaço determinado, levando-nos a observar o realismo de expressão e de concepção, um concretismo apreensível dos dados do cotidiano da época. Esse jeito de devassar a história, inerente ao processo ficcional de Assis Brasil, é detectado também nos seus livros seguintes, Anais da Província-Boi, Concerto Campestre (1997) e Breviário das terras do Brasil (1997).

Atualmente, Assis Brasil já tem publicado 18 romances, todos sempre bem reverenciados pelo público leitor e pela crítica. Nessa perspectiva, para elucidar as propostas de estudo que o presente trabalho se propõe, foram escolhidas duas obras do escritor Antônio de Assis Brasil (Um quarto de légua em quadro e Breviário das terras do Brasil), pois se entende que tais obras são representativas para se compreender e problematizar questões relativas à identidade gaúcha por tratarem da temática da “gênese” do povo rio-grandense e pela forma que seus personagens são representados.

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3.4 ANÁLISE DE “UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO”

Luiz Antônio de Assis Brasil publica, em 1976, pela editora Movimento de Porto Alegre, seu romance de estréia, Um quarto de légua em quadro, lançando-o na 32ª Feira do Livro de Porto Alegre, e que lhe dá o Prêmio Ilha de Laytano. O fato de o livro ter tido uma adaptação para um longa-metragem de ficção – Diário de um novo mundo, dirigido por Paulo Nascimento –, filmado no ano de 2004, revela a boa recepção da obra entre os leitores. Neste livro, o autor focaliza a imigração açoriana na região sul do Brasil sob a ótica de um narrador, Doutor Gaspar de Froes – médico que escreve os acontecimentos da sua diáspora dos açores até o estado sulino através de seu diário, durante os anos de 1752 a 1753. O livro, por ser em forma de diário, não é dividido em capítulos, mas, sim, em dias – tendo início no dia 02 de janeiro de 1752 e acaba em 20 de junho de 1753. Em relação à temática histórica, Assis Brasil buscou retratar a fase inicial da história da Província do Rio Grande do Sul, com a vinda de casais açorianos. Segundo Pesavento (1982, p. 22), Paralelamente à expansão das sesmarias e dos fortes militares (Rio Pardo, Santo Amaro), a Coroa portuguesa promoveu a vinda para o Rio Grande de casais açorianos, com o objetivo de povoar a zona das missões, que por direito caberia a Portugal, garantindo assim a posse da terra. Chegando as grandes levas a partir de 1752 (ponto alto da imigração), os “casais d’El Rey” foram distribuídos pelo Porto de Viamão ou do Dornelles (Porto Alegre) e pela beira do Jacuí (Rio Pardo, Santo Amaro, Triunfo, Taquari), não recebendo terras de imediato, ante a possibilidade de serem transferidos para as Missões.

Esta obra, por sua vez, busca retratar a gênese do povo gaúcho, buscando elementos realistas e desmistificadores; a literatura, pois, atua, em determinados momentos históricos, no sentido de representar sociedades, aqui no caso a sociedade gaúcha, fabricando mitos ou desconstruindo este mesmo. O romancista gaúcho, nesse sentido, foi um dos primeiros a pensar a história mais remota do Rio Grande do Sul, buscando as origens e, por isso, faz uma revisão do passado para melhor compreender o presente.

Os açorianos constituíram o primeiro grupo de europeus que se transferiu para o Brasil com o intuito declarado de se radicar na nova

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terra, ocupando e colonizando o território até então habitado apenas pelos indígenas. Esse processo ocorreu durante o período colonial, quando a região começava a fazer parte do império lusitano (ZILBERMAN, 1992, p. 115).

Com esse romance de estréia, já é evidente a preocupação de Assis Brasil, seguindo a tradição antiga das narrativas rio-grandenses, de repassar episódios históricos reais, bem como recriar atmosferas do passado para nelas inventar caracteres e enredos. Evidencia-se, nesse sentido, uma abordagem realista, não deixando de lado a pesquisa histórica, mas mantendo atenção para os estados de alma dos personagens, para os dramas existências, mais que para cenas de ação (FISCHER, 2004). Como já foi abordado anteriormente, o romance de Assis Brasil situa-se entre o novo romance histórico (ou metaficção historiográfica), revelando, portanto, esta preocupação em descrever o passado sulino, com um viés revisionista, através de suas narrativas.

A obra de Luiz Antônio de Assis Brasil, desde o seu primeiro romance, está comprometida com a História. Não se trata, no entanto, da idéia de romance histórico nos moldes das narrativas que vêm desde o movimento romântico. Se esse gênero buscava, como era comum, a associação entre a realidade histórica e a ficção, Assis Brasil caminha em sentido contrário, isto é, o percurso histórico de que se utiliza ficcionalmente é apenas um mote para mostrar o ‘outro lado’ da história (SANTOS, 2007, p. 24).

Utilizando a forma de diário, o texto retrata os acontecimentos relacionados à viagem ao Brasil e a fixação dos casais açorianos na Província do Rio Grande do Sul. Através de um autor fictício, Doutor Gaspar de Froes, vê-se o desenrolar da travessia dos colonizadores dividido em três momentos: dos Açores à Ilha de Santa Catarina, testemunhando a travessia do oceano; do Desterro ao porto do Rio Grande – onde os imigrantes deveriam receber as terras prometidas, ou seja, “um quarto de légua em quadro” de terras, e as condições materiais para exercer seu trabalho; de Rio Grande a Viamão, quando são acolhidos por Jerônimo de Ornellas (ZILBERMAN, 1992). A imigração açoriana, através desta obra, é abordada em termos polêmicos e bastante realistas. “A maioria dos historiadores do passado havia descrito os imigrantes açorianos envoltos numa áurea triunfalista” (MAROBIN, 1985, p. 123). O romance histórico, diferentemente, reproduz nos personagens e suas vivências as

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péssimas condições dos imigrantes açorianos que vieram ao Rio Grande do Sul, durante o século XVIII. Segundo Marobin (1995, p. 123), Luiz Antônio de Assis Brasil muda essa visão festiva e encara o açoriano criticamente, pondo em relevo a realidade nua e crua dessas levas de imigrantes, que aportaram no Rio Grande do Sul sem o preparo devido, analfabetos, sem condições adequadas de adaptação e inserção imediata em novo ambiente. Frustração, morte, aniquilamento físico são realidades que aparecem em primeiro plano em ‘Um quarto de légua em quadro’.

O realismo de Assis Brasil é extremamente objetivo, e o autor utiliza-se de uma linguagem direta, mas polida para retratar o fenômeno da imigração açoriana. A estrutura e a história baseiam-se nas memórias escritas de Gaspar de Froes, configurando-se em um olhar externo e crítico àquele acontecimento. A atitude reflexiva veiculada pela linguagem e pela narração em primeira pessoa ilumina os acontecimentos, dando, através da ótica de apenas um olhar, profundidade à realidade do processo imigratório e ao complexo perfil da população açoriana. Segundo Assis Brasil (2010a), [...] com relação ao episódio do povoamento açoriano eu tinha algumas coisas que me levavam a pensar em algumas personagens especificas. Essas personagens deveriam ter cada uma o seu olhar relativamente ao episódio, mesmo que seja narrado em primeira pessoa. Então, o que acontece é que eu precisava de um olhar externo a tudo aquilo que acontecia, e teria que ser um olhar qualificado, de uma pessoa que soubesse refletir sobre o que estava acontecendo.

É de grande importância, portanto, o conhecimento relativo ao narrador — a sua existência implícita ou explícita, a sua imparcialidade ou intervenção, as suas liberdades, o modo como ele encara a narração — quando se analisa um romance, uma vez que o leitor não entra diretamente em contato com os acontecimentos, mas só toma conhecimento deles através de quem os apresenta. Para Assis Brasil, tomar o ponto de vista da primeira pessoa e centrar-se sobre o protagonista principal é resultado duma exigência de objetividade. A escolha também foi fruto de suas leituras, de suas pesquisas históricas para formar o enredo:

[...] eu li que, em certo momento dizia assim, ‘em um dos barcos veio também um físico-cururgião’, não sabia muito bem o que

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era isso - designação de médico no século XVIII. E isso me pegou, sabe. O que estaria fazendo? Não existia médico de bordo, isso não existia. Poderia ser alguém que tivesse fugindo de alguma coisa, de um passado, de uma experiência dolorosa. Então, por isso que eu escolhi esta personagem como protagonista (ASSIS BRASIL, 2010a).

Assis Brasil, por outro lado, poderia ter escolhido um narrador em primeira pessoa que fizesse parte da população característica dos imigrantes açorianos. Obviamente, por ser um médico, Dr. Froes fazia parte de uma elite e seus objetivos no Novo Mundo diferiam bastante dos outros imigrantes trabalhadores; não obstante, ao ser questionado porque teve esta escolha referente ao protagonista, o escritor disse não ser uma escolha consciente, somente baseou tal escolha na idéia que teve através de uma leitura. Apesar disso, pode-se afirmar que a perspectiva com que a obra é focada é crítica e desmistificadora: “denuncia não apenas os percalços administrativos, como a má vontade dos que aqui já estavam estabelecidos e não queriam perder seus privilégios” (ZILBERMAN, 1992, p. 114). Conforme Zilberman (1992, p. 115) analisa, Fróis sintetiza a contrapartida desse processo, porque sua lucidez e formação intelectual fazem-no ver as intenções ocultas do projeto; e, dada sua personalidade pessimista, antecipa e constata o fracasso das iniciativas portuguesas, não no sentido de luta com os índios (ele é o único a ter certeza de sua realização), e sim quanto ao insucesso dos açorianos na nova terra.

Ainda do ponto de vista estrutural, Assis Brasil prefere, então, a narrativa em primeira pessoa, que se adapta melhor ao esforço do escritor de desvelar o interior de seus personagens, a partir da perspectiva de um narrador-personagem43. Este narrador, portanto, concomitantemente, registra a realidade exterior e mergulha na sua própria interioridade. Esse recurso, apesar de restringir o campo do observador, não limita o universalismo pretendido, uma vez que na experiência do personagem principal há toda uma problemática universalista, que nada fica a dever a experiências múltiplas traduzidas por outros pontos de vista. Sobre esse assunto, Veja (2003, p. 258) afirma “la narración de un relato individual y de la experiencia individual implica inevitablemente, en última estancia, la laboriosa narración completa de la experiencia de la colectividad misma”. Pode-se observar a interioridade do narrador, a sua experiência individual no seguinte trecho: 43

Narração em primeira pessoa em que o próprio protagonista dá voz a sua história.

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A cada milha que navegamos, algo vai ficando de mim no rastro de espuma. E os pedaços são comidos avidamente pelas gaivotas, que não sabem sofrer e nem a razão por que são felizes (ASSIS BRASIL, 2000, p. 18).

Dessa maneira, o foco narrativo em primeira pessoa se renuncia às liberdades e vôos da terceira pessoa onisciente, ganha profundidade de análise, tanto maior quanto o espaço observado é mais de natureza psicológica que física. Verifica-se, assim, uma espécie de compensação das limitadas possibilidade que um “eu” narrativo poderia trazer ao texto. Segue abaixo, uma reflexão profunda de Dr. Froes, sintetizando a difícil realidade da pobreza material e, ao mesmo tempo, a simplicidade e grandeza do homem imigrante:

O velho que mandei ‘para baixo’ morreu, como já previa. Antes de entrar em coma, confiou-me dois mil réis para ajudar alguma igreja. ‘Pegue, doutorzinho – disse-me, dando-me um lenço onde estavam amarradas as moedas – só para Vossa Excelência eu posso dar esse dinheiro. Não dou nem para o capitão, que não confio nele’. Quantas canseiras, quantas lutas, para juntar aquele pouco! O que pretendia fazer com esse dinheiro? Quando muito comprar algum arado e animal. Mas era a sua fortuna. Com esse início ainda sonhava conquistar o mundo (Ibidem, p. 18).

A vinda dos imigrantes pressupõe uma nova vida, uma vida melhor. A “terra prometida”, isto é, “um quarto de légua em quadro” figura-se numa ilusão, como fica evidente ao longo da leitura. Por vezes, fica-se com a nítida sensação de que não existe chegada, só partidas. Os imigrantes são levados de um lugar ao outro, sem nunca fixar sua moradia. Apenas se aguarda o tão sonhado dia de se ter uma terra para viver e nela plantar. Nesta seguinte passagem, tal atmosfera de angústia é evidente: Realmente, todos esperam. Estamos vivendo ‘entre’, perdidos no meio de um oceano que não é só de águas, mas também de dúvidas, de perguntas, de longas indagações. Os olhos cismam, estendendo-se pela amplidão sonolenta. Tem-se a impressão de que nunca se vai chegar (ASSIS BRASIL, 2000, p. 24).

Os imigrantes, por sua vez, são representados de forma submissa (“Os colonos, por hábito de submissão, temem perguntar”); desprovidos de bens materiais (“Vinham das ilhas abarrotados de gente, sem terra”) e de pobreza intelectual, apesar de sua ingenuidade encantadora. Sua ânsia, portanto, residia

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apenas em ter um quarto de légua em quadro, caracterizando-os como ingênuos por acreditar em tantas promessas dos governantes do Brasil: - E prometeram muita coisa, não foi? - Muita, muita coisa! A começar pela terra, um quarto de légua em quadro. Dois alqueires de semente, duas vacas, farinha para o sustento, ferramentas, espingarda – todo o necessário. E a nossa gente espera tudo isso, sonha com tanta riqueza (ASSIS BRASIL, 2000, p. 23).

Já o protagonista, Dr. Gaspar, é a representação de um anti-herói, isto é, não tem atributos de um herói - força, coragem, destreza, valentia; pelo contrário, é um sujeito sem força, um homem atormentado pelas desditas de sua vida privada, saudoso da esposa que o abandonou (Ana), sucumbindo aos encantos de uma mulher casada (Maria da Graça), a quem uma gravidez mal havida gerou um filho nascido morto (ELMIR, 2005). Um médico que salva vidas, mas que é incapaz de colocar em rumo a sua própria vida, vivendo como um imigrante em seu próprio mundo interior. Desolado, não consegue esquecer a sua amada: Falecer. Ana não faleceu. Abandonou nosso mundo, abandonou-me. Sem que eu tivesse feito nada para isso. Tanto sonho, tantas pequenas coisas construídas entre nós, nós que fazíamos um Universo só nosso. Tanto sonho, tantas pequenas coisas destruídas sem mais nem menos. Ainda te sinto tão real, tão pequena, tão hábil em resolver todas as situações difíceis, transformando-as em algo de proveitoso para nós (Ibidem, p. 27).

Em relação a outros personagens, é bastante óbvio o silenciamento referente aos povos indígenas e negros que habitavam a Província. Tal postura traz, como conseqüência, o desprezo por algumas culturas do país, manifestando-se pela negação da alteridade do negro e do índio que são relegados à condição de objeto e não de sujeito. Esta característica da obra coloca-a num patamar menos transgressor, como era evidente a sua condição inicial, posto que procura retratar a história sul-rio-grandense de maneira a desconstruí-la, mas acaba por excluir certos grupos que foram imprescindíveis para a nossa formação histórico-cultural. O continente africano é retratado, em uma curta passagem, como um “continente da morte lenta e dolorosa” (p. 26), desconsiderando, pois, as íntimas relações que o Brasil tem com o continente africano; por outro lado, assim como a historiografia de matriz lusa, esta obra busca vincular a história sul-rio-grandense à de Portugal, zelando pelo laço com a história açoriana. Nessa perspectiva, a

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população negra – ou afro-descendente – é representada apenas em 3 passagens, fazendo parte apenas do cenário colonial; primeiro como escravo doméstico, “Um negro trouxe uma jarra e dois copos, muito limpos” (p. 76), “Ou ricos, que podem manter estância, com escravos e enorme criadagem” (p. 111); e como bandido, “São bandidos, tudo meio com cara de índio. Às vezes até negro aparece para desancar” (p. 87). Um quarto de légua em quadro, portanto, em relação às minorias étnicas, como os negros, tem uma função de exclusão, ocultando-os ou representando-os de maneira a cristalizar uma idéia inventada sobre eles: a de submissão e de subserviência. Segundo Silveira (1992, p. 58),

O movimento negro no Estado representa uma constante de esforço organizativo ocorrido ao longo da história sul-rio-grandense, desde a resistência, os quilombos e tentativas de sedição no escravismo, até as lutas pós-abolicionistas pela sobrevivência nesta sociedade sulina, tão expressivamente multiétnica e pluricultural.

Sobre esse assunto, a historiadora Ieda Gutfreind, em seu artigo O Negro no Rio Grande do Sul: o Vazio Historiográfico (1990), observa a pequena representatividade de estudos sobre o negro no Rio Grande do Sul, principalmente se comparado com outros temas históricos produzidos contemporaneamente pela historiografia gaúcha. Desde a criação da Colônia de Sacramento, fundada em 1680, pode-se reconhecer a presença do negro no estado sulino, sendo este comercializado, além do tabaco, couro, entre outras mercadorias, por ser altamente lucrativo. A presença da população negra nos livros de história e de literatura, portanto, está em descompasso com a história que se construiu. Segundo Gutfreind (1990, p. 176), O resgate da história do negro no Rio Grande do Sul é recente, permitindo afirmar que a identidade criada pelos historiadores [e literatos] para o gaúcho e o Rio Grande do Sul não apresenta correspondência in totum com a realidade objetiva do processo histórico em si.

Já em relação ao personagem indígena, a questão não se difere a do negro. A representação do indígena já tem um percurso bastante longo na literatura brasileira, através da literatura indianista, a qual tem como delimitação temporal o século XVI ao XX, podendo citar autores como José de Anchieta, Santa Rita Durão, José de Alencar e Mário de Andrade. A superioridade do homem branco em relação

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ao índio é percebida na maioria das obras. Em algumas obras o índio é retratado como um selvagem, salientando as virtudes dos povos brancos em oposição aos índios - como nas obras de Anchieta - e, em outras, como nas obras de Rita Durão e Alencar, o índio tem uma postura mais elevada, mas sempre de subalternidade em relação ao colonizador. Na obra de estréia de Assis Brasil, como se pode observar, o autor não rompe totalmente com a tradição, conduzindo sua narrativa a criar representações do índio a partir de um ponto de vista etnocêntrico, isto é, o que é diferente da cultura européia é inferior a ela. Assim como os negros, não é diferente a representação dos povos indígenas que são citados em maior número, mas sempre de maneira a retratá-los como inferiores: “Quem vai desalojar a indiarada?” (p. 35); “As relações com os castelhanos são boas! Mas há os índios!” (p. 66); “Não falta índia pelas redondezas, com vontade de ganhar alguma prata. O amor? É subir em cima da índia e pronto. Tudo muito fácil e sem complicações” (p. 95); “Ultimamente os índios andam roubando muito” (p. 75); “Os vinte e três índios mortos me fizeram mal; vomitei-os todo, misturados com canjica, no caminho da volta” (p. 78). Estas representações da população indígena não retratam a sua profunda importância para a cultura e história sul-rio-grandense:

Assim como os conquistadores e colonizadores ibéricos marcaram de maneira indelével o continente com sua cultura, haviam igualmente sido tocados profundamente pelas raízes culturais indígenas. Chimarrão e poncho, churrasco e palheiro, boleadeiras e fogo de chão, milho e mandioca, redes e cachimbos, tabaco e ervamate, e tantos outros traços culturais, eram coisas das quais os seus antepassados açorianos, naquelas ilhas perdidas no Atlântico, jamais haviam ouvido falar (KERN, 1992, p. 70).

Permanece a indagação: e o negro e o índio, que papel lhes toca nesta formação histórica? Sobre essa mesma questão, Zilá Bernd (1992, p. 76) analisa a literatura neste mesmo cenário de exclusão: A literatura exerceu, então, uma função sacralizante, empenhando-se em aderir e solidificar este projeto [o de nação mestiça, mas preponderantemente branca]. O negro foi o grande ‘ausente da história’[...], bem como o índio, incluído apenas para justificar uma ancestralidade original, logo diluída pela pretendida supremacia étnica e cultural do colonizado.

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Por outro lado, quando analisamos de que forma as mulheres são representadas nesta mesma obra, há, certamente, uma construção no sentido de subverter o conceito mítico do heroísmo do homem gaúcho – como o de centauro dos pampas, monarca das coxilhas – em relação à submissa “prenda”44. À mulher, na formação do mito gaúcho, foi reservado um papel secundário. É evidente que tal aspecto se modificou na literatura gaúcha do século XX, principalmente, a partir das obras de Érico Veríssimo e, neste aspecto, pode-se dizer que Assis Brasil segue esta mesma tradição, assegurando um lugar de maior destaque às mulheres. Assim, Ana e Dona Maria da Glória são mulheres de personalidade forte, contrastando-se em relação ao homem com que elas se relacionam, Dr. Fróis, pois este é a antítese do “monarca das coxilhas” – homem fraco, inseguro e incapaz de resolver seus problemas pessoais e sentimentais. Dessa maneira, Dona Maria da Glória é retratada como “uma mulher a par de tudo. O que é raro” (p. 41), sendo, portanto, uma mulher à frente do seu tempo: letrada e de atitudes transgressoras – o que é exemplificado na traição de seu marido -, tema que não faz parte do imaginário mítico gaúcho. Sua beleza é reconhecida pelo protagonista apenas na medida em que ela corresponde aos padrões de beleza ocidental, “Branca como uma vela” (p. 64). Ao mesmo tempo, tem um caráter de duplicidade, transformando-se em uma mulher, muitas vezes, dissimulada - Maria da Glória é que leva Fróis a sucumbir aos seus encantos: “Encostou a cabeça em meu peito. Senti mais perto do que nunca o hálito. A suave emanação de calor que saía do seu corpo [...]. Caminhou lentamente a mão pelos meus braços, por baixo da camisa” (p. 80). Além disso, o protagonista sente-se submisso e passivo diante dos encantos de Maria, como ele mesmo diz: “vi e olhei que me observava, como quem dá uma criança um presente desejado e fica esperando o agradecimento” (p. 80). Por outro lado, Ana, a outra mulher da vida de Fróis, que é a real razão da vinda (ou melhor, fuga) dele ao Novo Mundo, é retratada através das lembranças do protagonista. Ela também é representada como uma mulher forte, apesar de Ana ter que se resguardar, dissimulando, muitas vezes, sua personalidade forte, posto que a sociedade patriarcal não a aceitaria com esse jeito “a frente do seu tempo”. Tal 44

Os tradicionalistas institucionalizaram uma palavra que expressa realmente o conceito social e emocional que possuem em relação à mulher: ‘prenda’. O seu significado em qualquer dicionário nos dá: ‘acessório, adorno, coisa que se possui, que se usa, se ocupa, etc’ (GOLIN apud RITER, 2000, p. 254).

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análise se evidencia nesta passagem: ”tão hábil, mas que sabia muitas vezes esconder

sua

habilidade,

tornando-se

voluntariamente

submissa

a

uma

superioridade que, sei bem, não via em mim” (p. 27). O mundo feminino, no entanto, não faz parte da proposta da obra de estréia de Assis Brasil, diferentemente, por exemplo, da obra As virtudes da casa (1985). Esta narrativa parte de uma realidade feminina, abrindo-se a discussão de questões como a paixão, a traição, a disputa entre mãe e filhos, a insatisfação feminina, a opressão, entre outras. “Ao dar-lhe voz e um papel decisivo na trama, o autor subverte a estrutura mítica, desterritorializa, permitindo um outro olhar sobre a cultura gaúcha, cujas raízes machistas produzem frutos ainda hoje” (RITER, 2000, p. 274). Resumidamente, é possível construir o seguinte esquema para caracterizar o livro “Um quarto de légua em quadro”: ESPAÇO

TEMPO

Concepção do tempo Não há descrição fundado num da paisagem retorno, de certa (natureza) e esta, forma, crítico ao por conseguinte, passado, não se integra à correspondendo a vida dos um desejo de discutir personagens. Isto a gênese do povo acontece porque gaúcho e as os personagens dificuldades não se fixam em enfrentadas pelos nenhum local: imigrantes não existem (reconstrução de chegadas, só nosso passado partidas. histórico).

DISCURSO

HERÓI Não há de fato um herói. Há a Construção de um presença de um discurso em anti-herói e a primeira pessoa falência do (Dr. Gaspar), baseado em uma conceito de herói tradicional. Assim, representação Dr. Gaspar é distorcida do representando indígena e do como um antinegro, através do herói e, ao qual estes personagens são mesmo tempo, há julgados com base a desconstrução do mito gaúcho em uma axiologia do “monarca das eurocêntrica. coxilhas”.

IDENTIDADE Identidade construída através de uma relação assimétrica com a cultura do outro, ou seja, o personagem indígena e negro são vistos como inferiores ao branco português. A mulher tem uma representação mais transgressora, à maneira de Érico V.

Buscando analisar, segundo as idéias da historiadora Ieda Gutfreind, em que medida o romance histórico de Assis Brasil se filia a alguma matriz ideológica da historiografia gaúcha, foi constatado que não se pode inserir a obra Um quarto de légua em quadro em nenhuma das duas matrizes – a platina e a lusa. Embora o escritor Assis Brasil escreva sobre um tema que faz parte também da história lusitana – a imigração açoriana -, esta é vista de uma maneira bastante crítica e realista. Por outro lado, há ainda aspectos que não rompem com a “ordem”

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canônica, como é o caso da representação dos povos indígenas e negros. Assim mesmo, parece melhor colocá-lo, já que sua obra tem diversos aspectos renovadores, na linha de um romance mais social, à maneira de Cyro Martins e Dyonélio Machado. Enquanto a matriz lusa e platina se esforçam em construir uma imagem otimista dos habitantes do estado sulino, tendo cada uma diferentes orientações político-culturais, a literatura de caráter social aproxima o texto da realidade concreta do nosso passado histórico. Observa-se, portanto, que o livro Um quarto de légua em quadro ainda não consegue reconstruir, em sua totalidade, a formação social do Rio Grande do Sul. Isto porque ainda está ausente uma representação que transgrida àquelas que foram construídas, ao longo do tempo, na literatura gaúcha. Há, ainda, a necessidade de dar voz aos que a colonização reduziu ao silêncio; nesse sentido, analisar-se-á, na próxima obra, Breviário das terras do Brasil, se há a introdução de novas vozes, outras histórias, outros modos de ver o mundo.

3.5 ANÁLISE DE “BREVIÁRIO DAS TERRAS DO BRASIL”

O romance histórico de Breviário das terras do Brasil: Uma aventura nos tempos da inquisição (1997) remete-nos, inicialmente, ao sul do Brasil, início do século XVIII, próximo à zona conflagrada das reduções jesuíticas, na fronteira entre o Brasil e as possessões espanholas. Posteriormente, a obra volta-se a um contexto mais amplo do Brasil: a sociedade escravocrata do Rio de Janeiro, durante o período da Inquisição Portuguesa no Brasil. O autor, portanto, parte de fatos históricos – com destaque às Visitações do Santo Ofício à Colônia e às Missões Jesuíticas ao sul do território brasileiro -, compondo um rico panorama do Brasil Colonial do século XVIII. Tal preocupação histórica, porém, não pretende atrelar pura e simplesmente o relato histórico à lógica da ficção; visa, sim, a proporcionar ao leitor uma compreensão crítica para se entender a história sul-rio-grandense num contexto brasileiro, buscando redefinir a identidade tanto sulina quanto nacional. Conforme aspectos mais formais, esta obra contém 29 capítulos e foi, antes de tornar-se livro, publicada, originalmente, como folhetim, entre julho e setembro de 1988, no extinto Diário do Sul. Após quase 10 anos, em 1997, saiu em formato de livro, com algumas modificações gráficas, mas com o mesmo texto original. Segundo Cadernos de Anotações do Breviário, do próprio autor, ele escreve: “Não quero

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publicá-lo em livro” (ASSIS BRASIL, 1987-1988). No entanto, este belo texto, de grande valor estético, literário e histórico, felizmente foi publicado e, hoje, os leitores gaúchos e brasileiros podem usufruir de uma obra bastante crítica que revela um passado, às vezes, esquecido e silenciado. Anotações manuscritas, cadernos, rascunhos, estão reunidos no Museu Delfos (Espaço de Documentação e Memória Cultural, na Biblioteca Central da PUCRS), onde pesquisadores podem conhecer as idéias, as pesquisas e as obras originais de Luiz Antônio de Assis Brasil. Nesse sentido, é bastante evidente a profunda preocupação do escritor em relação à escolha dos personagens e da própria trama do romance, bem como as pesquisas relativas a períodos históricos. Sobre o protagonista deste romance, Francisco Abiaru, Assis Brasil (2010a) relata: Tudo surgiu de uma imagem de um crucifixo, de um cristo num crucifixo, na casa de um poeta, meu amigo, Trevisan. E eu fiquei olhando aquele rosto, foi no século XVIII, e eu percebi algumas condições [...] muito interessantes, como os olhos amendoados. E daí ele me disse que aquilo era Missioneiro. Então, possivelmente o escultor deu aquele rosto que era um rosto semelhante ao seu, naquele Cristo, para aquele Cristo. Então ficou aquela idéia: Quem será que fez? Que tipo de pessoa? Uma pessoa que vivia em dois mundos: por um lado estava jogado pelos padres jesuítas, tirado da Idade da Pedra e levado para o Renascimento, sem passar por todos os períodos. Por outro lado, uma pessoa também fortemente ligada a sua raça, a sua etnia. Então, surgiu naturalmente essa história.

Em Breviário, portanto, o autor narra a saga da um índio guarani, Francisco Abiaru, o qual foi catequizado pelos padres jesuítas, na Missão Jesuítica de São Miguel. “No decorrer do século XVIII, estas reduções, criadas em território riograndense, vieram se constituir numa linha de expansão rumo ao sul praticamente independente da lusitana ou espanhola propriamente dita” (PESAVENTO, 1982, p. 12). Com os jesuítas, o índio aprende o ofício de escultor e, também, a trabalhar suas imagens seguindo o modelo barroco europeu. Abiaru, entretanto, ao elaborar suas esculturas, mistura elementos de sua cultura de origem e da realidade que o cerca – tais como olhos amendoados, pele morena, cocar, arco e flecha, os quais constituem elementos que caracterizam os traços étnicos e culturais dos guaranis -, de modo, pois, a identificar a formação cultural e religiosa da sociedade sulina por meio do hibridismo religioso (LUSTOSA, 2010). Sobre esse assunto, a historiadora Jacqueline Ahlert (2009, p. 274) diz:

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O hibridismo cultural fundado em decorrência do projeto totalizador da redução de indígenas à vida cristã, quer em suas crenças e rituais, quer enquanto movimento de representação do imaginário, tem sua implicação maior na insurgência de um estilo original de arte, um estilo missioneiro e, acima de tudo, histórico, oriundo de ambas contribuições, com a ressalva das devidas proporções, onde se expressou a intenção de conjugar com fórmulas poucas e pregnantes o ethos indígena e a cristandade.

Para fins de ilustração, abaixo segue uma imagem missioneira, de “Nosso Senhor dos Passos”, em que se pode observar o estilo barroco assumindo características distintas pela influência cultural dos povos ameríndios reduzidos. Os princípios estéticos de ornamentação, dramatização e emoção, próprios do barroco, é evidente. “O que ocorre foi uma transposição em que os elementos formais barrocos cederam lugar à rigidez, ao frontalismo, geometrismo e esquematismo indígena milenar” (AHLERT, 2009, p. 287). Nesse sentido, pode-se imaginar melhor o Cristo-índio retratado na obra Breviário, de Francisco Abiaru que tem “uma boca entreaberta de quem expira dores, o nariz pontudo bem diferente dos narizes índios e os olhos, esses sim rasgados e insolentes da raça guarani” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 22).

Fig.2 – (Nosso Senhor dos Passos. Museu Júlio de Castilhos) Disponível em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:MuseuJulio16.jpg>. Acesso em 12 nov. 2010

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Nesse sentido, segundo Peter Burke (2003), o indivíduo hibrido – quer os que já nasceram nesta situação por suas mães e pais serem originários de culturas diferentes, quer os que se viram nela mais tarde, de bom grado ou não, por terem sido convertidos ou capturados – vive uma vida “entre” diferentes culturas. Uma vida entre culturas, conseqüentemente, resulta em uma “consciência dúplice”. Por isso, a dupla influência na arquitetura missioneira: o sincretismo entre a cultura de origem, “tradicional”, e a “nova” cultura, a européia. Segundo Burke (2003, p. 20), Historiadores das missões européias à Ásia, África e América agora reconhecem que os ‘convertidos’ não tanto abandonaram suas religiões tradicionais pelo cristianismo quanto fizeram uma espécie de síntese de suas religiões.

Nessa perspectiva, foi dado destaque especial, na obra Breviário, à escultura, mais especificamente à imagem sacra. Tais imagens artísticas pontuam grande parte da obra como elemento indispensável à história narrada, mas também, em se tratando de arte e de cultura brasileiras, pelo valor histórico e estético das poucas obras que resistiram ao tempo, e chegaram ao século XXI como fragmentos daquele utópico universo colonial formado por índios e padres jesuítas (LEVON, 2008). A arquitetura missioneira, em sua peculiaridade e diversidade, é destacada nesta passagem: - Pois então descubra as esculturas menores. Mestre Domingos destapa uns volumes pequenos, e vão aparecendo anjos retacos, de rosto brejeiros e feliz, arcanjos de peitos largos e pés enormes, descalços, santas com os seios caídos à mostra, doutores da Igreja segurando arcos e flechas, toda uma hagiografia negra, índia e bela (ASSIS BRASIL, 1997, p. 217).

Já sobre a escolha do nome do protagonista, Francisco Abiaru, José Roberto Levon (2008) busca algumas hipóteses, como a intertextualidade com outras obras do cânone gaúcho e com referentes da própria história. Na obra de Érico Veríssimo, O tempo e o vento, há um personagem indígena, escultor e missioneiro, assim como Francisco Abiaru. No entanto, se o personagem homônimo a de Assis Brasil inscreve em sua obra escultória as características de sua etnia, como os olhos amendoados, o Francisco de Érico trilha um caminho estético diferente: O índio Francisco, que nascera e se educara na missão, era um escultor consumado. Havia talhado muitas imagens, algumas das quais se achavam nas igrejas de outras reduções. De torso nu e calças de algodão, ele trabalha a madeira com paixão, enquanto o

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suor lhe escorria pelo corpo bronzeado [...] Francisco esculpia a imagem dum Senhor Morto. Os outros escultores índios em geral davam à face das figuras os seus próprios característicos fisionômicos: olhos oblíquos, zigomas salientes, lábios grossos. Havia pouco um índio esculpira um Menino Deus índio com um cocar de penas na cabeça. Mas o Cristo Morto de Francisco, com sua face alongada e suas feições semíticas, lembrava estranhamente, na sua simplicidade dramática, certas imagens do século XI que Alonzo vira em igrejas da Europa (VERÍSSIMO, 1995, p. 31).

Já o segundo nome “Abiaru”, pode-se relacioná-lo a um referente histórico: “trata-se do bravo cacique guarani que comandou o exército missioneiro vencedor da batalha de Mbororé, em 1641, nas margens do rio Uruguai” (LEVON, 2008, p. 131). Ambos os personagens têm em comum seu heroísmo e a indignação diante das atrocidades cometidas pelos portugueses, em nome de uma religião. O personagem histórico, Abiaru, proclama: “é uma grande vergonha para gentes que se diziam cristãs, querer roubar a liberdade aos que professavam a mesma religião” (LUGON apud LEVON, 2008, p. 131). A obra, Breviário, portanto, retoma uma temática muito importante e que, certamente, foi bastante tratada na literatura brasileira, embora não de maneira apropriada: o reconhecimento da importância do indígena para a formação cultural regional e nacional. Sobre esse assunto:

É tempo de respeitar e reconhecer também o legado étnico das inúmeras sociedades indígenas que antecederam e coexistem com a atual, em que vivemos. Os grupos indígenas, por sua vez, poderão conscientizar-se da importância do processo histórico do qual foram protagonistas, repensando os caminhos de seu próprio destino. A resultante poderá ser uma sociedade mais justa, coesa e solidária. Talvez ocorra a idéia de que a construção de uma nova sociedade pode perfeitamente ser feita sem que necessariamente se tenha que destruir o ambiente, o patrimônio cultural do passado e algumas etnias que compartilham a região sulina (GOLIN; BOEIRA, 2009, p. 5).

Dessa maneira, o personagem escolhido foi “Francisco Abiaru, escultor, de 19 anos” (ASSIS BRASIL, 1987-1988), no contexto do século XVIII, do Brasil Colônia. Ao contar a vida de Abiaru, Assis Brasil está remontando os primeiros momentos da história brasileira. No primeiro capítulo, intitulado “Tempestade”, Francisco, que estava indo vender as suas esculturas em Buenos Aires, é salvo por um navio português das águas do rio da Prata, agarrado a uma imagem esculpida por ele

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mesmo: a de Jesus Cristo, ou melhor, a de um Cristo-índio. Este navio português viajava nas fronteiras sulinas, mais especificamente, “saía da Colônia de Sacramento para o Rio de Janeiro” (ASSIS BRASIL, 1987-1988), transportando couro. Nele, havia um padre a bordo que, devido aos traços indígenas do Cristo feito por Abiaru, é levado a suspeitar de heresia, conduzindo, assim, o índio ao Rio de Janeiro, para os cárceres da Inquisição.

- Ei, índio, toma lá – e jogam uma corda que vem serpenteando sobre as águas, os dedos murchos conseguem alcançá-la, mas o braço livre ainda enlaça o pescoço do Salvador, e os homens rindo e gritando que largue o santo e Francisco Abiaru prende-se ainda mais nEle: vai reconhecendo o acento da malévola gente portuguesa e brasileira que tantos estragos fizeram nas Missões (ASSIS BRASIL, 1997, p. 13).

A partir do ambiente do cárcere, onde há o registro de personagens marginalizados no contexto da sociedade brasileira do século XVIII, Assis Brasil constrói seu romance, dando voz, por conseguinte, a outros discursos, percebendo outras histórias e modos de ver o mundo. “O romance de Luiz Antônio de Assis Brasil também coloca em cena personagens marginais, anônimos e ‘ex-cêntricos’ da historiografia institucionalizada” (LEVON, 2008, p. 2). Dentro do cárcere, o escritor faz “com que cada prisioneiro da Inquisição represente um tipo, todos rebeldes” (ASSIS BRASIL, 1987-1988), como o próprio protagonista, um índio missioneiro; uma mulher negra mística (Rainha Hécuba); um estrangeiro holandês (Petrus Cornelius, o holandês “voador”). Nesse sentido, Assis Brasil reinsere novos atores sociais, dando valor a suas contribuições sócio-culturais para a formação do Brasil; para tanto, confere, a cada personagem, um capítulo com seu nome: Rainha Hécuba; O holandês voador tem seus planos; e Moisés Israel (este não é preso, mas será, ao final da obra, pego pela Inquisição, por ser um judeu convertido ao cristianismo, mas ainda praticante de sua religião original). Nesse sentido, o narrador onisciente intruso, que cedera a voz a Abiaru, no desenrolar da narrativa, passa a palavra a diferentes personagens, que darão testemunho, sob o viés dos marginalizados, sobre a construção da nação, a partir do seu olhar sobre o mundo. O foco dominante, a saber, centra no protagonista Francisco, representando valores, em vias de desaparecimento, que construirão a nossa identidade cultural. O índio Francisco caracteriza-se como herói degradado, o

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qual rompeu com suas tradições, não conseguindo enquadrar-se ao mundo capitalista, mas, ao mesmo tempo, é retratado como “a humana natureza é sábia, pois vai somando camada sobre camada de pele e assim ficam fortes como se tivessem uma armadura” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 16) e “o índio aí é inteligente” (Ibidem, p. 95). Além de Abiaru, Rainha Hécuba, Petrus Cornelius e Moisés Israel são personagens que lutam para manter a sua identidade num mundo tão diverso (PEREIRA, 2001), caracterizando-se pela força moral e inconformidade com a realidade que os cerca. A leitura de Breviário das terras do Brasil acaba confrontando os “cânones” através da distorção do material historiográfico, promovendo uma diluição entre o real e o ficcional, o que permite distorcer e subverter o que é escrito na historiografia tradicional. Assim, uma vez que esse passado é apresentado através de discursos, há a possibilidade de desmistificar o passado histórico, representando-o sob novas e diversas perspectivas. A narrativa de Breviário, pois, prima em dar voz aos homens comuns, pertencentes a diversificadas camadas sociais. Esta obra, assim, dá ênfase, através da verossimilhança e da singularidade histórica narrada, a personagens marginalizados pela historiografia e não às figuras de primeiro plano da história. Tal problemática pode ser exemplificada na seguinte passagem da obra, em que temos uma visão bastante humana em relação aos escravos: olhar que confronta a condição de objeto da população negra:

Francisco Abiaru sabendo agora que sua mão não se deterá até concluir a figura do negro que há pouco viu morrer, um santo como os outros, ou até mais santo, de morte horrível e degradante, nem aos animas davam tal morte nas Missões. Sim, ali há um Santo. Depois de pronta a imagem, porá uma auréola como as de Santo Inácio, São Francisco Xavier e todos os outros. [...] A morte do negro não passará em vão. O que mais nos indigna é o que mais força nos dá (ASSIS BRASIL, 1997, 56).

Assis Brasil, com esta obra, resgata, através da intertextualidade, e também alegoricamente, o prejuízo humano decorrente do que existiu durante a Inquisição no Brasil, quando o Estado português buscava controlar a vida das pessoas e criava “olhos” na população e no próprio governo para ver a vida da sociedade, “uma poderosa Ordem acima de qualquer ordem, odiada e temida, que julga, prender e mata [...] e que todos da Colônia portuguesa querem mais é destruir, sendo ela entretanto indestrutível como o Demônio, tudo vê, tudo ouve enxerga” (ASSIS

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BRASIL, 1997, p. 35). Sem possuir um sistema legislativo próprio, o Brasil precisava sujeitar-se ao tribunal do Santo Ofício português que, através da Visitação, julgava crimes como feitiçaria, bigamia, homossexualismo e heresia (PEREIRA, 2001). Segundo Darcy Ribeiro (1995, p. 37-38),

Ao contrário dos povos que aqui encontraram, todos eles estruturados em tribos autônomas, autárquicas e não estratificadas em classes, o enxame de invasores era a presença local avançada de uma vasta e vetusta civilização urbana e classista. Seu centro de decisão estava nas longuras de Lisboa, dotada sua Corte de muitos serviços [...] Outro coordenador poderosíssimo era a Igreja católica, com seu braço repressivo, o Santo Ofício. Ouvindo denúncias e calúnias na busca de heresias e bestialidades, julgava, condenava, encarcerava e até queimava vivos os mais ousados.

Portanto, na chegada ao Rio de Janeiro, Abiaru vê-se diante do caos urbano da grande cidade, fazendo com que se lembrasse de sua condição de homem arrancado de um sistema social mais igualitário, caracterizado pela disciplina, religiosidade e arte, mas que agora é exposto a uma realidade que predominam a arbitrariedade, a indisciplina, a corrupção e o desgoverno, à sombra, pois, das ameaças da Inquisição. A partir das descrições do Rio de Janeiro colonial, o leitor passa a refletir o que, de fato, é tido como a barbárie e o mundo “civilizado”. Esse diálogo, durante o livro, é permanente, fazendo-nos reformular tais conceitos. No capítulo “No Rio de Janeiro”:

Olha ao redor: de fedores inundada, triste em sua miséria e esplendor, a Babilônia apresenta-se espalhando-se espinhas de peixe e casca de banana nas lajes do cais, negros coçando suas pústulas encostados às paredes, dignitários de fardões verdes e suarentos a passar lenços encardidos nas testas, escravas fritando bolos em banha rançosa, mulheres seminuas agarradas a homens perdidos, mulatos que vendem água, cavalos largando bosta sob os narizes das autoridades que às vezes assomam alagados em suor às sacadas do Largo do Carmo, carruagens abafadas que transportam donas brancas como leite a abandonarem-se com leques multicoloridos, padres estáticos a olharem cães e cadelas fornicando no furor do cio, a podre, degenerada e bíblica cidade (ASSIS BRASIL, 1997, p. 28-29).

A capital do Brasil, pois, vai sendo retratada, através de estratégias discursivas e formais, como o protótipo de um “Brasil do Diabo”, onde impera a desigualdade e a injustiça. Tal análise fica clara nesta passagem:

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As noites no aljube são tão cheias de fatos como o dia, e não há noite que não aconteça alguma coisa, um enforcamento voluntário, morte por arma branca e mãos amordaçadas, é o diabo que impera nesta terra (ASSIS BRASIL, 1997, p. 61).

Nesse sentido, Assis Brasil reescreve um recorte do passado brasileiro em linguagem e recursos expressivos contemporâneos, proporcionando, assim, ao leitor do século XXI um retrato multifacetado do contexto e dos tipos humanos que faziam parte do contexto do século XVIII. Neste outro trecho, em que a Rainha Hécuba antevê um futuro complicado a Abiaru, também é evidente o contexto decadente do Brasil Colonial:

- Longe é teu caminho nesta Colônia, índio, mil perigos te esperam, mil bocas te acusarão, mil braços te prenderão, tudo te quer agarrar e prender e matar. Vieste para a Colônia mais pobre e triste da terra, onde o que se planta morre antes de que a semente estoure a vida, onde os homens são misteriosos e tristes, e esquecem pai e mãe e querem antes de mais nada encher seus bolsos de ouro, onde príncipes falam do bem do povo e obram em seu próprio bem, uma terra sem conserto nem destino, chamada antes de Santa Cruz mas que por obra de meu Senhor perdeu este nome para ganhar o de braseiro, brasil, lugar de chamas e vermelho de calor. Aqui não agem as leis da natureza, que foram pervertidas, terra onde um rei é rei por pouco tempo, porque lhe tiram a coroa e trocam ele por um comandante de praças-fortes que ajunta sua gente e só querem gozar a vida, enriquecendo os seus nem que para isso tenha de atormentar e matar em valhacoutos perdidos que ninguém sabe onde ficam. Bem infeliz é quem venha cair na mão desse povo (Ibidem, p. 68-69).

Apesar dessa paisagem decadente, o livro vai mostrando também a singularidade do Brasil, em que se assisti a uma variedade étnica e cultural que dificilmente se encontraria em outro lugar no mundo. Muitas vezes tal idéia passa despercebida, em que se vê uma característica básica da nossa religiosidade: justamente o seu caráter especificamente colonial. Branca, negra, indígena, refundiu espiritualidades diversas num todo absolutamente específico e simultaneamente multifacetado (SOUZA, 1986). Tal idéia é evidente no próprio “sincretismo” religioso e cultural de Francisco Abiaru:

Apenas lhe resta o Salvador, e nunca Ele foi tão merecedor deste nome. Mas é sua força, a única nesta hora, e comovido diz

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alto: Por la señal de la Santa Cruz de nuestros enemigos liberanos Señor en el nombre del Padre e del Hijo y del Espíritu Santo Amén, Jesus. Por docilidade ao materno idioma recita: Santa Cruz ra angaba rehe ora mora rey mbaragui. Orepi Ciro epe Tupa Oroyara Tupa hac Taira hac Espiritu Santo rera pipe Amem Jesus. Para maior certeza de ser ouvido lembra-se das missas: Por signum Sanctare Crucis de inimics nostriis libera nos Deus noster, in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti Amen. Não vai morrer mais, a vida lateja em seus membros guaranis, é forte, moço e belo, tem destreza e malícias, e possui uma arte que nunca ninguém lhe poderá tirar (ASSIS BRASIL, 1997, p. 10-11).

Não obstante, os hereges da nação eram aqueles que afirmavam o direito de ter sua própria identidade e livre-arbítrio (PEREIREA, 2001). Enquanto a Monarquia, através do poder da Igreja Católica, pautava a evangelização antes por razões de Estado do que pelas da Alma – daí uma Igreja que admitia a escravidão, imprescindível à exploração colonial -, o povo brasileiro caracterizava-se por uma cristandade totalmente original, ou seja, mestiça, híbrida, em que a espiritualidade estava integrada à vida da população. Traços católicos, negros, indígenas, judaicos misturavam-se, pois, na colônia, tecendo uma religião sincrética (SOUZA, 1986). Rainha Hécuba é um exemplo da busca pela afirmação de sua identidade. Nos capítulos “Pactos com o demônio” e “Rainha Hécuba”, Abiaru é apresentado à cultura afro-brasileira e às suas entidades sobrenaturais. Chama-se Maria das Neves: mulher negra, linda, presa também no aljube, sendo julgada por acusação de bruxaria. Hécuba é o nome de uma trágica personagem troiana de Eurípedes – símbolo ocidental da dor materna. “Foi condenada a viver como uma cadela de alma errante, é resgatada da mitologia ocidental, para justificar o padecimento da raça negra nestas terras do Brasil” (PEREIRA, 2001, p. 143). Traz pendurada ao pescoço uma pequena ânfora, em que se encontra Alimã, entidade africana invocada por Hécuba, mas confundida com o diabo pelos católicos. No entanto, enquanto aguarda o julgamento do Tribunal, sua ânfora é retirada. Sem sua entidade protetora, Alimã, Hécuba é apenas uma mulher, negra, marginalizada:

- Não sou mais Rainha – ela diz, os olhos cravados nele. – Perdi meu consolador e o meu guia. Se tu me quiseres, sou apenas uma pobre viúva. Este infeliz aí – indica o adúltero com a ponta do pé – esse infeliz pensa que posso ser ainda mãe. Meu leite secou. Me tiraram todo e nada mais me resta. De agora em diante pode me chamar de Brasil (ASSIS BRASIL, 1997, p. 201).

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Ademais, há, neste trecho, uma alegoria em relação ao Brasil Colonial: terra em que os estrangeiros só sabem extrair e explorar nossas riquezas e nosso povo. Ainda em relação à mulher, na seguinte passagem, vislumbra-se a condição não só da mulher negra marginalizada, mas do sexo feminino no seu conjunto. No capítulo “Uma graciosa figura”, em que a personagem Mariana Gabriela é retratada, pode-se ver a condição feminina: Para as mulheres, contudo, a Colônia é severa, impõe regras desconhecidas no Reino, tais como esta de somente saírem à rua aprisionadas nesta geringonça de cortinas escuras onde o calor é uma antevisão do inferno. Apenas pode entreabrir uma fresta de polegada para ter idéia de onde anda ou simplesmente para espairecer os olhos (ASSIS BRASIL, 1997, p. 103).

Outro personagem interessante a ser analisado é Moisés Israel (ou Vasco Antonio). Este personagem representa um jesuíta, amigo de Francisco Abiaru quando este se encontrava no Rio de Janeiro, manifestando uma personalidade caracterizada pelo dualismo: é um cristão-novo que não consegue abandonar sua religião de origem, o judaísmo. Sua identidade, portanto, é demarcada a partir de uma fronteira entre culturas e crenças distintas. Moisés Israel se auto-define como “talvez brasileiro, e talvez católico, judeu. Os católicos me acusam de judeu, e os judeus não querem saber de mim. Mas vê: uma coisa é a fé, outra coisa é o costume” (Ibidem, p. 43). Dessa maneira, Vasco Antônio/Moisés Israel acaba sendo um dos principais alvos do Tribunal. Para não se submeter aos julgamentos do Santo Ofício, Moisés Israel “enforca-se por não querer dizer assentior contra me dictis” (ASSIS BRASIL, 1987-1988), ou seja, “concordo com o que me acusam”. As palavras de Abiaru definem muito bem o sentimento de impotência do personagem frente à opressora Igreja: “a compreensão da própria impotência é como um muro de milhares de pedras que de repente desaba sobre os ombros” (Idem, 1997, p. 47). De repente a sala transforma-se em uma agitada assembléia em torno do Visitador, o rosto ventilado por um leque de juta. Uma notícia chegou a seus ouvidos e já corre como um rastro de labareda, estonteando a todos: um réu matou-se, jogando-se da alta janela. O doutor Clemente José de Matos, aturdido, tem apenas um pensamento nesta hora: Moisés Israel. Corre para a ante-sala, afasta os soldados e frades que se aglomeram junto à janela, olha para baixo, para as lajes de arenito do passeio. Sim, era ele, a cabeça esfacelada, jazendo entre um grupo de curiosos: embora de maneira

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errada e trágica, Moisés Israel acabou mesmo por cumprir seu propósito, seus lábios, ora mudos para sempre, jamais diriam o assentior contra me dictis (ASSIS BRASIL, 1997, p. 195-196).

Já Petrus Cornelius, o “holandês voador”, é um “holandês que veio ao Brasil com 2 anos de idade, viver em Pernambuco, sendo preso no aljube” (ASSIS BRASIL, 1987-1988). Seu sonho é voltar à Maurizstaad, isto é, a cidade de Recife. “Quer restabelecer o Império de Maurício de Nassau, libertando-o do domínio português” (Ibidem). Sonha, assim, em retornar a sua terra, voando em seu aparelho planador – uma espécie de “asa-delta”, segundo os desenhos e escritos de Assis Brasil (1987-1988). Segundo Levon (2008, p. 146), Ao se pôr em foco essa personagem que, no cadinho étnico e ‘excêntrico’ representado pelo ‘aljube’ colonial, personifica o indivíduo europeu de formação não-católica, portador de idéias e conhecimentos também não condizentes com a ortodoxia e os padrões culturais então impostos.

Segundo o “holandês voador”, sobre Recife, “vi as pontes, vi os palácios ricos de ouro e as ruas limpas e o progresso [...] os holandeses comportam-se com sabedoria buscando riqueza, não são como os portugueses, que empobrecem suas casas para enriquecer suas igrejas” (ASSIS BRASIL, 1997, p. 100). Justifica-se, então, o anseio de Petrus Cornelius por retornar à Mauriztaad: assim como Francisco Abiaru, o holandês saiu de um local onde se identificava para um centro marcado pela desordem e injustiças. Ademais, Petrus Cornelius representa a utopia e a liberdade, o que fica claro ao final da obra: “ninguém acreditava e, num belo dia, o holandês apresenta seu invento: uma asa-delta” (Idem, 1987-1988). O final da obra45 é de um fenômeno insólito, em que Assis Brasil encaminha Breviário “para um tom de farsa, que fica mais a propósito do burlesco igual que é este país” (Ibidem): Assis Brasil coloca um europeu visionário e um índio a voar em busca da liberdade, voar através da 45

Segundo o Caderno de Anotações do livro Breviário, o escritor Assis Brasil teria elaborado outros dois finais diferentes: um final apocalíptico, em que Abiaru entenderia a estética e a ética portuguesa/européia, colocando fogo nas imagens que estava incumbido de vigiar. Depois desse episódio, o índio seria torturado e acabaria aceitando toda a estética barroco-portuguesa, passando a produzir imagens iguais às européias. O outro final, chamado de “final mais apocalíptico”, Abiaru se submeteria à ética e estética portuguesa; no entanto, é mandado de volta às Missões. Lá é incompreendido pelos seus pares, ou melhor, é adorado por seus pares por fazer uma arte mimética. Um belo dia destrói todas as imagens: perdera a identidade cultural. Como se evidencia, Assis Brasil optou por um final pitoresco, mas que reflete uma questão importante: os marginalizados não se submeteram aos poderes do Estado/Igreja, lutando pela manutenção de sua identidade.

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realização de um sonho, afinal as mazelas do Brasil serviram para estimular a imaginação do holandês voador que, inconformado com o local que ele vivia, quer partir para um futuro mais promissor (PEREIRA, 2001). O doutor Clemente José de Matos segue com os olhos as graciosas evoluções que faz a nave de Mauritztaad em meio às nuvens, cada vez menor. Pergunta, a face iluminada: -Excelência, aquela nave, o que lhe parece? O Visitador descobre o aparelho no céu e diz: -Uma letra grega, não é igual a uma delta? - Sim – concorda o Vigário-geral – um delta colorido. Bem como o Brasil. E enquanto Filipe devolve uma ânfora à Rainha Hécuba, que recebe de joelhos, e todos aplaudem o destino feliz de Petrus Cornelius e do índio, D.Antônio de Ericeira puxa o capuz sobre a cabeça, envolvendo-se em silencio (ASSIS BRASIL, 1997, p. 226).

O livro, portanto, termina de uma maneira bastante burlesca, fugindo da realidade e utilizando o texto ficcional com vistas a subverter os fatos históricos. A sugestão criada pelo escritor não soluciona os problemas estruturais do Brasil – certamente os personagens presos no aljube teriam um fim bem mais trágico -, mas faz com que os leitores reflitam sobre as fronteiras entre o real e o imaginário, transformando o vôo em libertação, ou seja, representa, simbolicamente, a liberdade almejada pela população brasileira – e a sua possibilidade concreta. A partir da alegoria do “vôo” de Petrus Cornelius e de Francisco Abiaru, podese refletir que a libertação dos marginalizados é paralela à libertação integral, política e psicológica da sociedade brasileira como um todo. O processo de construção identitária é, deste modo, um processo também literário e histórico, porque leva a cabo o âmbito do espírito e da consciência. Segundo Regina Zilberman (apud PEREIRA, 2001, p. 138), A desautomatização do relato histórico é uma característica da literatura no Rio Grande do Sul, uma literatura que não desmente seu passado, mas pelas mesmas razões não o endossa de modo passivo. Este fato reforça a afirmativa de que a preocupação dos escritores tem sido [...] a de repensar a cultura sob perspectiva crítica e convidar o leitor a reconstruir sua história de forma mais comprometida, refletindo, pela literatura, sobre os erros do passado e ver em que medida eles permanecem presentes entre nós, com que razões, por que motivos.

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Daí a importância da literatura para a criação de uma nova identidade pessoal e coletiva. Segundo Bourdieu (2010), o conhecimento do mundo social é o que está em jogo na luta política, luta ao mesmo tempo teórica e prática, pelo poder de conservar ou de transformar o mundo social conservando ou transformando as categorias de percepção desse mundo. Ao perceber, portanto, o mundo de outra forma, a literatura tem o poder de criar representações capazes de transgredir a “realidade”. Pode-se, de maneira simples, construir o seguinte esquema para caracterizar o livro “Breviário das terras do Brasil”: ESPAÇO TEMPO DISCURSO HERÓI Há descrição do meio em que os Concepção do Construção de um personagens tempo fundado De certa forma, discurso polifônico, vivem: o Rio de num retorno crítico Abiaru pode baseado em Janeiro é ao passado, representar o representações representado correspondendo a herói devido a bastante realista de como um local um desejo de dar suas qualidades personagens até decadente. voz aos (inteligência, então Contrasta, pois, personagens persistência) e marginalizados na com as Missões marginalizados profunda literatura gaúcha e (de onde vem durante o Brasil consciência brasileira: índio, Abiaru) e Recife Colônia – e, por que político-religiosa. negro e mulher. (onde vivia Petrus não, até hoje. Cornelius).

IDENTIDADE

Identidade construída através da introdução de agrupamentos humanos até então afastados de toda e qualquer representação social.

Breviário das terras do Brasil, portanto, quando se fala em minorias étnicas e de gênero tem uma função de transgressão, ou seja, resgata os discursos dos excluídos, representando-os em sua alteridade. Além disso, tem, em outros termos, uma função de dessacralização, desmontando as engrenagens de um sistema dado, desconstruindo crenças, abrindo-se ao diverso, ao pensamento politizado e ao hibridismo (diversas culturas se relacionando). Nesse aspecto, Breviário em relação à obra Um quarto de légua em quadro consegue construir, de forma mais completa, a formação social do contexto Brasil Colônia. Dessa maneira, também se diferencia da obra de estréia de Assis Brasil por colocar o contexto gaúcho num contexto brasileiro, englobando o regional ao nacional, confrontando e dialogando esses dois sistemas. Por outro lado, assim como Um quarto de légua em quadro, Breviário das terras do Brasil, segundo as idéias da historiadora Ieda Gutfreind (1998), pode ser

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adequadamente inserido na linha dos “romances sociais” por aproximar a literatura a uma realidade crítica do passado histórico.

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CONCLUSÃO

Este trabalho acadêmico, conforme foi estabelecido em seu início, teve por principal objetivo analisar em que medida o cânone sul-rio-grandense teve importância para a construção ou desmistificação da identidade gaúcha. Para tanto, foram selecionados como fontes basilares da pesquisa duas obras contemporâneas, Um quarto de légua em quadro (1976) e Breviário das Terras do Brasil (1997), do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil. Ambas as obras se destacam por terem sido produzidas numa época em que se tornou permitida a ruptura de fronteiras entre campos culturais, como a história e a literatura. A pós-modernidade, portanto, permite a ambas escrituras romper com certas regras e tradições “canônicas”, olhando, descrevendo o “outro lado da história”. Assis Brasil, com isso, confronta os cânones gaúchos, desconstruindo representações que, ao longo do século XIX e XX, foram sendo construídas através da historiografia (conceito abrangendo os textos literários). No entanto, este escritor não renuncia seu próprio tempo: escreve como intelectual de hoje, com os olhos da atualidade, reinterpretando, de maneira intencional, os fatos históricos. Nesse sentido, o panorama das últimas décadas da literatura sul-rio-grandense revela que a história continua a inspirar a imaginação dos ficcionistas, caracterizando a literatura contemporânea pela busca de sentido na história para refletir e subverter as representações do mundo social do presente. Relendo-se a história, entende-se melhor a própria sociedade de hoje, pois tudo o que somos é fruto de nossa própria história. Assim, toda sociedade tenta definir sua identidade em articulação com sua representação de mundo. No entanto, a sociedade sempre dispõe de meios para obstruir qualquer projeto que não atenda aos anseios daqueles que detêm o poder efetivo; assim, o campo de produção cultural, em que se encontra a produção literária, serve, muitas vezes, para reforçar a situação existente, isto é, o status quo. Por isso, para se modificar o presente, deve-se compreender as representações sociais do passado, já que essas definiram e continuam definindo, as identidades construídas socialmente. Dentro do campo da história e da literatura, acabava-se criando exatamente o que se queria encontrar no passado. Por muito tempo, toda a interpretação literária

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que postulasse algo diverso ao cânone tendia a ser ignorada ou excluída – sob o argumento de desqualificação estética ou de discriminação a priori. A cultura, portanto, envolve poder, contribuindo, muitas vezes, para produzir assimetrias em nível social. Cultura e memória, por sua vez, estão intrinsecamente relacionadas e é através do ofício de historiador e escritor que a memória é criada e recriada. Porém, a “memória coletiva”, a respeito, por exemplo, de genocídios dos povos indígenas e da condição de objeto da população negra, foi “apagada”, criando-se mecanismos de silenciamentos acerca de nosso passado histórico. Assim, os silêncios ou as revelações dos textos narrativos são indícios para se compreender os mecanismos de perpetuação ou transformação das representações de uma sociedade. Nesta perspectiva, as minorias étnicas se viram perseguidas e eliminadas do palco da história e da literatura; contudo, atualmente vê-se um processo inverso, em que o campo cultural do contexto pós-moderno amplia seus horizontes. Assim sendo, as fontes literárias, as quais representam as imagens sensíveis do mundo, engajaram-se no sentido de dar voz às minorias, mostrando-se como um canal promissor para se questionar o passado, ao passo que reconstroem este mesmo. Desse ponto de vista, a análise das duas obras de Assis Brasil residiu no sentido de identificar as novas representações que uma época mais recente buscou construir sobre o seu passado. Esse novo jeito de fazer a literatura vem em conseqüência do mundo contemporâneo, em que setores da sociedade vêm lutando para dar voz aos que a colonização reduziu ao silêncio. O discurso da literatura já não se constrói mais no sentido de “calar o gemido dos vencidos”, mas sim de dar a voz a estes mesmos. A leitura de Um quarto de légua em quadro e, principalmente, de Breviário das terras do Brasil tornam evidentes muitas das premissas que são estabelecidas a partir do “novo romance histórico”, o qual reinterpreta o passado, reconstruindo as representações que até então tinham sido cristalizadas pela historiografia. Estas obras, pois, buscam um reexame da identidade gaúcha e nacional, das alternativas históricas, refletindo sobre a formação do estado sulino e da nação brasileira. Estas narrativas superam os limites “impostos” pelos cânones literários, fornecendo um horizonte oriundo de sensibilidade histórica das minorias. O conhecimento histórico e literário, atualmente, objetiva reconstruir a formação social do Rio Grande do Sul em sua totalidade; procura-se, assim, corrigir, ou pelo menos enfrentar, as assimetrias construídas em nível social. Assim sendo,

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nomes como de Francisco Abiaru, por exemplo, que não costumam figurar nas páginas da historiografia e que, entretanto, são de grande representatividade para significativa parcela da sociedade sulina, figuram, atualmente, em obras literárias de romances históricos – de caráter social - na contemporaneidade. Entende-se, por conseguinte, que as duas obras em análise são bastante representativas no sentido de se compreender o processo pelo qual a literatura – e também a história – vem se transformando. Há uma preocupação em se olhar para o passado não de forma conformista, mas sim de maneira a repensar a nossa cultura e a nossa identidade sob uma perspectiva crítica. A obra Um quarto de légua em quadro retrata, de maneira bastante crítica e realista, a imigração açoriana no Rio Grande do Sul, permitindo que o leitor reconheça naquele passado histórico uma reconstrução que transgride àqueles “modelos” já conhecidos. Breviário das terras do Brasil aprofunda a análise social, histórica e cultural, dentro de um período circunscrito ao Brasil Colônia, do passado gaúcho e brasileiro. Permite, nesse sentido, que outros discursos sejam ouvidos, dando voz aos marginalizados tanto social como culturalmente. É nesta perspectiva que se compreende que a identidade deve ser vista como processo, dissolvendo-se e construindo-se, deslocando-se conforme as condições sociais e políticas estão estruturadas, dando espaço para que os indivíduos construam, em conjunto, a sociedade. A fragmentação do sujeito pós-moderno, no entanto, impede que os indivíduos pensem que têm esse poder de decisão. Para efetivar esse projeto, os indivíduos devem inserir-se nesse processo como sujeitos, capazes de transformar a representação que eles próprios têm da sociedade onde vivem. Começa-se, assim, a fazer parte de uma cultura em comum, em que os significados e valores podem ser construídos por todos e não por uns poucos privilegiados. Dessa maneira, pretendeu-se trabalhar com as práticas e as representações da sociedade contemporânea através da literatura. Este trabalho acadêmico, no entanto, não contempla todos os escritores e livros escritos do período em torno da década de 1970 até os dias de hoje, somente duas obras do escritor Luiz Antônio de Assis Brasil (1945- ). Talvez, num estágio posterior desta pesquisa, se possa incluir estes e outros autores cuja obra revela preocupação com a reconstituição e o desvelamento de representações do passado histórico, buscando contemplar personagens importantes para a nossa formação cultural e social - podendo citar

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Charles Kiefer, José Clemente Pozenato e Tabajara Ruas. Seria, também, interessante uma pesquisa com outras obras de Assis Brasil, como As virtudes da casa, em que este autor trabalha com o universo feminino. Tal perspectiva de análise não foi contemplada nos dois livros analisados – excetuando-se, de certa forma, a representação da personagem Rainha Hécuba em Breviário das terras do Brasil e Maria da Glória, em Um quarto de légua em quadro. Assim sendo, ao final desse estudo, pode-se constatar que a problematização colocada ao início dessa pesquisa foi corroborada ao longo de todo esse exame, a partir da análise das duas obras então escolhidas de Luiz Antônio de Assis Brasil. Entende-se que, de certa forma, foi difícil o cruzamento entre duas áreas, a da Literatura e da História, por ver-se ampliado o leque de bibliografias; no entanto, o objetivo parece ter sido alcançado e, com esta pesquisa, espera-se ter contribuído para o entendimento de que a literatura, assim como a história, tem um papel bastante relevante na construção das identidades.

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ANEXOS

ANEXO A - DEPOIMENTO DE LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Gabriela de Lima Grecco, hoje é dia 24 de agosto de 2010, vou entrevistar o Professor Luiz Antonio de Assis Brasil. Bom...

- Professor, como é o seu método de pesquisa para elaboração de uma obra? Mais especificamente em relação à pesquisa histórica necessária para escrever suas obras.

- Eu não faço uma pesquisa muito profunda, como muitos podem imaginar, muitos podem pensar que eu faço uma pesquisa muito profunda, na verdade eu vou na pesquisa até o ponto que me interessa. Porque como um romancista eu não tenho compromisso com a verdade, a não ser com a verdade da obra, a qualidade estética da obra. Então, eu vou atrás de alguns aspectos que em geral não são relacionados à macro-história, digamos assim, mas em alguns aspectos episódicos, humanos, que fazem parte, portanto, daquilo que a gente espera encontrar num romance, e que normalmente não está na historia. Muitos também eu imagino, trabalhando dentro da verossímil. No inicio da minha carreira de escritor, estive mais atrelado a fontes históricas, principalmente quando [...], nas que havia naturalmente. Com o passar do tempo, eu fui assumindo mais o lado ficcionista, [...] criações literárias em si, e cada vez mais a minha pesquisa é menor, e cada vez mais seletiva e, portanto, a busca dos aspectos humanos da história.

- Por que houve essa mudança do inicio da tua produção para agora?

- Porque eu sentia que isso me fazia perder em qualidade estética e em qualidade literária, porque eu tinha que ficar a distrito aquilo que está na historia, e a historia digamos, tem fatos, tem documentos, documentos de mais variada natureza e que digamos, podem, em determinado momento, podem limitar a ação do romancista. Por isso, eu tenho me permitido algumas liberdades, como por exemplo, Cães da

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província, eu fiz coincidir, no mesmo momento, os cães da rua do arvoredo e a interdição do dramaturgo Qorpo-Santo, quando eles tiveram 10 anos de diferença entre um e outro. Então, a busca de uma melhora expressão estética e literária é que faz isso.

- O vocabulário utilizado no livro “Um quarto de légua em quadro” e “Breviário das Terras do Brasil” é de época ou a linguagem é atual? Houve uma pesquisa específica sobre linguagem?

- Sim, de fato sim, quer dizer que eu, [...] digo, não como qualidade de romancista, eu não sou alguém de hoje que vai estar no passado, eu sou de hoje alguém que olha para aquele passado a luz com a nossa perspectiva de hoje. Então os elementos lingüísticos são o ponto necessário para manter, digamos assim, um sabor de época, e por outro lado, o nosso idioma, tem recursos expressivos tão interessantes, recursos expressivos no passado, certas condutas lingüísticas muito interessantes, muito boas, alguns vocábulos que caíram em desuso e que são muito bonitas. E que recuperar isso também é um prazer e um prazer pro leitor de hoje.

- Quais critérios o senhor utilizou para a escolha dos protagonistas do livro “Um quarto de légua em quadro”?

- É que com relação ao episódio do povoamento açoriano eu tinha algumas coisas que me levavam a pensar em algumas personagens especificas. Essas personagens deveriam ter cada uma o seu olhar relativamente ao episódio, mesmo que seja narrado em primeira pessoa. Então, o que acontece é que eu precisava de um olhar externo a tudo aquilo que acontecia, e teria que ser um olhar qualificado, de uma pessoa que soubesse refletir sobre o que estava acontecendo. E eu li, e [...] naquela época eu não fazia muitas anotações, e eu li que, em certo momento dizia assim, “em um dos barcos veio também um físico-cururgião, não sabia muito bem o que era isso, designação de médico no século XVIII. E isso me pegou, sabe. O que estaria fazendo? Não existia médico de bordo, isso não existia. Poderia ser alguém que tivesse fugindo de alguma coisa, de um passado, de uma experiência dolorosa. Então, por isso que eu escolhi esta personagem como protagonista. Os outros participantes são representativos dos diferentes status sociais que faziam parte

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estes povoadores. O padre, o analfabeto, o agricultor, a pessoa velha, o muito jovem. Então, todos esses faziam parte desse universo de pessoas que vieram pra cá no século XVIII. Então, eles estão, digamos, representando suas respectivas fatias sociais e socioeconômicas, digamos assim. Então por isso foram escolhidos. Foi um processo bastante consciente, que eu tinha que me cuidar até pra não transformar esses personagens em tipos, sem densidade humana. E bom, era isso eu era muito jovem quando escrevi esse livro, me faltavam muitas condições técnicas, ainda hoje me faltam. Mas me faltavam mais, seguramente. Então eu vejo que eu poderia ter dado um conteúdo humano mais forte.

- Por que o Sr. escolheu narrar a história na perspectiva de um personagem da “elite” portuguesa (ou seja, um médico) em “Um quarto de légua em quadro”? E porque houve uma mudança, nesse sentido, do protagonista, na obra “Breviário das Terras do Brasil”?

- É, quanto a história “Um quarto de légua em quadro” já falei. Em relação ao Breviário, pois olha... Tudo surgiu de uma imagem de um crucifixo, de um cristo num crucifixo, na casa de um poeta, meu amigo, Trevisan. E eu fiquei olhando aquele rosto, foi no século XVIII, e eu percebi algumas condições [...] muito interessantes, como os olhos amendoados. E daí ele me disse que aquilo era Missioneiro. Então, possivelmente o escultor deu aquele rosto que era um rosto semelhante ao seu, naquele Cristo, para aquele Cristo. Então ficou aquela idéia: Quem será que fez? Que tipo de pessoa? Uma pessoa que vivia em dois mundos: por um lado tava jogado pelos padres jesuítas, tirado da Idade da Pedra e levado para o Renascimento, sem passar por todos os períodos. Por outro lado, uma pessoa também fortemente ligada a sua raça, a sua etnia. Então, surgiu naturalmente essa história.

- Não foi consciente?

- Não, quando eu vi era ele para ser o protagonista.

- O Senhor chegou a pensar na conseqüência dessa escolha de personagens e do tema para a construção da identidade sul-rio-grandense? Essa mudança [...] para a

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nossa construção, a construção da identidade gaúcha. [...] No momento que tu mudou a perspectiva do personagem. Primeiro tu coloca uma pessoa que vem da elite, depois um indígena. - Eu pensei... eu só entendo a minha obra vendo em perspectiva. Portanto, que sim, que há, que havia, enfim, em minha obra, um projeto que eu mesmo não me dava conta. É um projeto de justamente de tentar melhor entender essa nossa condição aqui do sul, do sul do Brasil, da América do Sul. A nossa condição de perplexidade e de viver continuamente uma oposição entre aquilo que é rude, aquilo que é bárbaro, como nós chamamos, e aquilo que é civilizado. E não está presente só nesses livros, está presente em todos os outros. Quer dizer, aquela coisa sofisticada que nos faz depender culturalmente, nos faz uma cultura dependente culturalmente, até certo tempo da Europa e agora dos Estados Unidos. E por outro lado, tem alguma coisa em nós que é ainda muito terrestre, muito ligado a uma mitologia ancestral, talvez indígena, então, esse tipo de oposição entre a civilização e a barbárie, digamos assim de maneira simples [...] e as coisas muito simples são, em geral, discutíveis. Então, um pouco essa coisa de eu entender eu mesmo, enquanto ser humano, enquanto homem civilizado, da cidade, profundamente urbano, e sentindo dentro de mim uma necessidade de recuperar algum modo de ser, ainda não tocado pela civilização. Essa discussão está em todos os meus livros.

- Saindo dos livros, o senhor poderia citar algum livro que o influenciou para escrever esses dois romances (Um quarto de légua em quadro e Breviário das Terras do Brasil)? Até poderia ser algum de História, [...] não necessariamente de literatura.

[...] De história, que foi, seguramente, “Casais” de João Borges Fortes[...]. Havia pouca coisa na época quando publiquei “Um quarto de légua em quadro”, sobre esse tema do povoamento açoriano, não havia quase nada. Havia um livro de 1935 que era de João Borges Fortes, “Casais”, que foi reeditado pela Martins Livreiro mais recentemente, e esse livro foi uma espécie de condutor. Além disso, alguns textos do historiador [...] de Macedo, que foram também muito importantes nessa recuperação. [...] No primeiro livro, quanto ao segundo livro eu tinha, naquele livro tinha a terra de Santa Cruz, teria que fazer uma pesquisa ai [...]. E foi um livro

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realmente muito importante. Além disso, livro de natureza artística sobre a questão missioneira, a arte missioneira. [...] Também livros produzidos pelo próprio Armindo Trevisan e pelo que eu conhecia Laura de Mello e Souza. Esse livro foi muito importante para entender um pouco essa coisa, as visitações especialmente me impressionaram muito. Esse livro foi muito importante, “A religiosidade no Brasil Colonial”. Então, como se vê, a minha pesquisa não vai em muita profundidade, vai até [...]. São esses livros.

- Quais mudanças o senhor percebe, hoje, na Literatura gaúcha, dos teus conterrâneos?

- Pois então, justamente, a gente pode até discutir a existência de uma literatura gaúcha atualmente. Porque... ela perdeu em territorialidade, digamos, [...] como o Caio, e o Noll, faz uma literatura que se pode passar em qualquer lugar do mundo. [...] Daniel Galera mesma coisa, Cintia Moscoviti, estou dizendo autores, da nova geração, que vem depois de mim, que faz uma literatura descontextualizada. E é alguma coisa que eu tenho pensando bastante, se ainda vale a pena a gente manter esse sintagma “literatura gaúcha”. Talvez a melhor solução tenha sido dada pelo escritor Aldir Chiveira, falando em literatura gaucha como aquela que tem [...] a digamos a metade sul do estado, o Uruguai o norte da Argentina, o sul do Paraguai que faz uma literatura gaúcha. Mas mesmo isso está em extinção; eu não tenho visto alunos meus da Oficina Literária [...] 25 anos de oficina, não tem nenhum que se volte para isso. Mesmo uma [...] que é de São Gabriel, no início ela escrevia algumas coisas e tal, mas não era aquilo [...]. Parece que esse assunto já começa a ser superado e nós temos que discutir realmente se existe literatura gaúcha.

- Mas o senhor não acha que é importante para os novos leitores terem um novo olhar sobre a nossa história, porque a literatura querendo ou não ela reconstrói a história?

- Mas são os poucos que fazem isso. Eu sou uma espécie de fim de raça. [...] Porque eu fui daquela geração que levou pedra né. A geração [...] honrava o RS, e o que se passava, com exceção do Silvio Martins. [...] Mas de qualquer maneira, uma geração de transição. Isso que me preocupa eu não consigo situar a minha, os meus

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episódios da minha literatura [...] e isso cada vez se percebe mais. Mas realmente eu sou um dos últimos, mas talvez a Letícia Ruchovsky, mas mesmo assim, depois da “Casa das 7 mulheres”, ela não voltou muito essa questão do passado do RS [...] A questão toda é que, eu sempre ouvi, uma relação ambivalente do passado do sul, por um lado é relevante, ele é importante pra mim, por outro lado ele também é um pouco esmagador, um pouco tirano. Então eu tento estabelecer um acordo com isso, por um lado [...] uma coisa que eu ultimamente estou pensando, como é que eu me volto para escrever essas séries [...] que veio com “O pintor de Retratos” [...] “A margem imóvel do rio” e “Música Perdida” [...] como isso dos visitantes ao sul que são estrangeiros que vem para o Sul. E são personagens, com exceção de “Música Perdida”, são personagens históricos. Então, eu me vejo com um outro olhar relativamente ao sul e desse modo, [...] mas eu creio que dentro de um tempo ninguém vai falar mais sobre isso.

- Tu achas que isso é conseqüência desse mundo globalizado, da pósmodernidade?

- Não e sim. A mundialização [...] Mas esse trabalho de ver a historia vai ficar com os historiadores, eu acho que não cabe mais ao escritor, não há mais um espaço para isso.

- Então a história tem que ser mais atraente para o publico leitor. Senão...

- Mas eu vejo que os historiadores [...] os alunos da pós-graduação [...]. Isso a meu ver é significativo, se a gente pensar os historiadores mais conhecidos pela mídia como [...] e Jacques Le Goff , eles escrevem de uma forma muito parecida com o romance, dramatizando cenas, incluindo diálogos. Eu não sou historiador, não quero me meter nesse assunto, mas eu acho que é uma forma de chegar ao grande publico, sem perder a seriedade, sem perder o rigor, adotar alguns métodos e processos do trabalho literário.

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