Uma Justiça para o Estado: Formação jurídica e produção legislativa no Brasil do período tardo colonial à regência (1750-1841) (2011)

May 30, 2017 | Autor: Vanessa Spinosa | Categoria: History, História Do Direito
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDAD DE SALAMANCA FACULTAD DE GEOGRAFÍA Y HISTORIA

Departamento de Historia Medieval, Moderna y Contemporánea Doctorado en Fundamentos de la Investigación Histórica

Trabajo de grado

Uma Justiça para o Estado: Formação jurídica e produção legislativa no Brasil do período tardo colonial à regência (1750-1841) vanessa spinosa

Director: Jose Manuel Santos Pérez

SALAMANCA 2011

SUMÁRIO Prólogo .................................................................................................................................... 04 Introdução .............................................................................................................................. 06 1. O ‘lugar’ do direito: o debate jusfilosófico sobre o Estado no contexto da modernidade européia .................................................................................................... 16 1.1. Aspectos introdutórios .............................................................................................. 17 1.2. O caso português ....................................................................................................... 27 1.3. Fluxos luso-brasileiros ............................................................................................... 42

2. O estudo para o Estado: a formação jurídica como suporte da nova estrutura no país independente ................................................................................................................... 49 2.1. Pressupostos jusfilosóficos ........................................................................................ 50 2.2. A criação dos cursos universitários ........................................................................... 58 2.3. O papel do ensino ...................................................................................................... 69

3. Uma justiça para o Estado: produção legislativa enquanto esforço de normalização..................................................................................................................... 78 3.1. O Contexto luso-brasileiro ......................................................................................... 79 3.2. A política e o sistema judiciário ................................................................................. 88 3.2.1. O Código Criminal .......................................................................................... 99 3.2.2. O Código do Processo ................................................................................... 104 3.3. As Reformas ............................................................................................................. 112 Conclusão ...…...................................................................................................................... 121 Fontes ................................................................................................................................... 128 Bibliografia........................................................................................................................... 129 Anexos ................................................................................................................................. 142 A – Estatutos ................................................................................................................. 140 B – Ato Adicional............................................................................................................ 154 C – Código do Processo ...................................................................................................158 D – Lei de Interpretação ...................................................................................................165 E – Código do Processo Reformado ............................................................................... 166 F – Organograma Judiciário-Funções ............................................................................. 172

Prólogo

A monarquia no Brasil dura 67 anos e começa sua trajetória em 1822. Na realidade um pouco antes. Em 1808, se recebia no Rio de Janeiro boa parte da Corte portuguesa, a cabeça do Reino Luso-Ultramarino e sua burocracia. E a partir de então, o que seria uma extensão de um império passou a ser o centro da realeza luso-européia nas Américas. Era de se esperar que isso cambiasse algo no além-mar e Dom Pedro I foi o seu representante, por pouco tempo, é certo, mas o foi. Era um incômodo representante de um recente país independente sem um rei nativo, que imperava em um território onde não se entendia o porquê de se proclamar Império do Brasil. Enfim, sem a Corte, sem o pai, sem as pompas e logo sem a Assembleia e, consequentemente, sem o apoio das forças políticas ainda não muito consolidadas, Dom Pedro, imperador do Brasil, abdica ao trono, deixa uma Constituição (a de 1824) e um Código Criminal (o de 1830) e volta aos braços lusitanos e ao conforto de sua linha régia hereditária. E ali estavam os então brasileiros independentes, nos idos de 1831, sem um monarca. Em realidade com um menino-monarca, Dom Pedro II. Sim, se tinha um sucessor, agora brasileiro. Afinal, Pedro II havia nascido no Brasil e isso garantia algum grau de segurança e estabilidade, diria mais confiabilidade, na gestão do governo monárquico. Sendo assim, sem a possibilidade de uma criança governar, regeria o país uma tríade. A Regência foi a solução mais eficaz para manter a condição de independência e seguir no controle. Diogo Antônio Feijó encabeçou o processo regencial à espera da maioridade do príncipe. Não foram anos fáceis. Entre 1831 e 1840, um turbilhão de acontecimentos fez com que os anos regenciais se tornassem tensos e intranquilos. Sobretudo porque não havia uma clareza ou homogeneidade quanto ao modo de governar-ordenar politicamente o Brasil. Melhor, havia clareza, por parte da regência, de que a melhor maneira de conduzir um país tão vasto era através de um modelo federalista, ou seja, com autonomias locais, provinciais de onde se gestaria e conduziria seus problemas e suas soluções porque os conheciam de perto. Outra questão era se a ideia iria funcionar.

Era a clara influência norte americana mesclada aos contornos franceses antiabsolutistas que estimulavam tais ideais. Mas, como ordenar um país novo e imenso de maneira coesa, dando a cada rincão dele poderes locais? Como manter a centralização do país em que havia ainda uma forte geração lusa a influir politicamente e uma boa parte de uma elite comercial e exportadora interessada em manter-se submetida à antiga metrópole? As províncias do Grão-Pará e Maranhão, do Rio Grande do Sul e ainda da Bahia já haviam dado sinais aos então liberais do novo Império de que era necessário um plano de ação 1. Era necessária a volta da figura do rei e, portanto, se diminui a idade mínima para a retomada do poder e se introjeta D. Pedro II ao trono. Mas, a essa volta, se impunha muitas outras condições. A Assembleia nacional estabelecida foi a principal estrela nesse palco de tensões. Representando os interesses de uma elite política, mas também econômica do novo país, tinha na ala conservadora sua maior força e atuou como pôde para fazer com que o liberalismo fosse o mais peculiar possível, coadunado com a estrutura agrárioexportadora e escravista. Ao mesmo tempo, se tentou imputar ao Estado um perfil de governo mais “atualizado” convergindo - através da Constituição e de seus Códigos para os modelos monárquicos europeus, em sua essência, mais precisamente o português, por um lado, e o inglês e italiano, por outro. Portanto, entre os anos de 1841 e 1888 o Brasil teve no regime monárquico-imperial seu alicerce governativo e sua maior estabilidade. Sob o reinado de Dom Pedro II durante esse período, o Império iria se constituindo, pouco a pouco, enquanto país independente. De costas para sua vizinha, a América Espanhola, e de face para a Europa e a América do Norte, o Império foi se conformando entre velhos paradigmas e novas atitudes. Império: herança lusitana, ecos do Antigo Regime ou um ímpeto desbravador de si mesmo? A identidade política que vai sendo gestada, a princípio, se ancoraria em visões expansionistas para o Prata ou ainda para a costa de África. Idealizações, talvez, refletidas do próprio colonizador, como cópias mal acabadas, em um painel bastante impressionista, todavia. Melhor, se pensava, mudar o rumo, afinal, de uma ruptura reverberar tal continuidade não coincidia com a amizade dos ingleses 2. Melhor ainda, 1

Durante o período regencial houve algumas revoltas provinciais ligadas à falta de autonomia provincial, influenciadas por ideias liberais e nacionalistas que invadiam a Europa no século XIX. No caso do GrãoPará o movimento foi conhecido por Cabanagem (1835-1840); já no Rio Grande do Sul, Farroupilha (1835-1845); e na província da Bahia, a Sabinada (1837-38). Todas elas foram, mais cedo ou mais tarde, controladas e sufocadas pelo governo central. 2 Nesse sentido ver COSTA, Wilma Pereira. “O Império do Brasil: dimensões de um enigma”. Em: Almanack Braziliense. n.01. São Paulo. mai.2005. pp. 27-43.

5

expandir-se. Sim. Demarcar, contar, cobrar (receitas, sobretudo) e legislar. Tomar posse, exercer a soberania, alargar sua presença nos sertões e desempenhar sua hegemonia pelo primado da lei. Entre várias fendas e marcas do passado que se podia eleger para perceber este estado imperial, o caminho direito, do pensamento e da legitimidade desse Estado para se alcançar uma justiça, foi a saída, o ponto de início em realidade, para se adentrar no Brasil dos oitocentos.

Introdução

De que ponto de observação se pode vislumbrar a trajetória independente do Brasil? De muitos, certamente. Há uma infinidade de trabalhos elaborados pela historiografia que pensam e discutem desde vários pontos de partida e de diferentes graus de profundidade o único país de fala portuguesa independente nas Américas. E a visão do Brasil que se tentará desenhar aqui será a de suas normas jurídicas, desde seu aparato jurídico-administrativo. Por esse caminho se pretende observar como o Estado tentaria dominar o território que havia legitimado desde o ato da proclamação de independência, e que se consolidaria com maior eficácia após o período regencial. Com isto, não se pretende reivindicar nenhum sentido de originalidade, já que os historiadores, principalmente do Direito, se debruçaram e seguem se dedicando ao estudo das formas jurídicas de ordenação do Brasil imperial. Para este trabalho se intentará trazer à discussão os principais paradigmas jusfilosóficos do além-mar para o aparato estatal buscando visualizar o que foi aplicado e readaptado no Império até o período regencial, numa atualização bibliográfica nos campos historiográficos e filosófico-jurídicos acerca do tema. Pretende-se, portanto, aceder as principais apropriações teóricas e da filosofia política modernas efetuadas pela monarquia brasileira na constituição de seu aparelho jurídico e policial, como estratégia de domínio e garantia da hegemonia do Estado. Com essa escolha, não se está ignorando que as práticas de justiça no novo país poderiam ter um rumo distinto do projetado e menos ainda que o primado da lei fosse totalmente

6

descartado. Todo o contrário. Em realidade, esta investigação foi efetuada conjecturando as diversas possibilidades que essas bases idealizadas - e efetivamente concretadas como legislação e organização do aparato judiciário - poderiam ser flexibilizadas no seio da sociedade civil. Assim, a eleição do tema, de uma justiça para o Estado, precede uma inquietação gerada nos arquivos locais no interior do Brasil, onde com muita sorte e pouco escrúpulo se pode chegar à linha tênue entre o ideal e a prática dos meandros da lei. As reflexões deste trabalho se apresentam para que esse universo do judiciário, perdido entre escassos fundos documentais pelo sertão brasileiro, tenha sentido histórico e se vincule a um plano mais macro de justiça e do exercício da lei e sua de aplicabilidade. Primeiramente, interessa saber sobre o lugar do direito e sua importância para o Estado do Brasil, que se dizia monárquico e constitucional. As bases filosóficas que apoiaram toda uma geração de legisladores e de estadistas que pensaram a constituição do Estado independente, advinham de um passado e de um nascedouro comum. Portanto, tais noções sobre o direito e a justiça mereciam ser revisitadas e investigadas. Toma-se como ponto pacífico, tanto as discussões no campo da História, como no campo do Direito, que as transformações reformadoras à época pombalina, isto é desde 1750, foram um marco essencial no que tange ao pensamento lusitano. O esforço do ministro Pombal para uniformizar e racionalizar o direito perpassou - tanto em Portugal como em suas possessões além-mar – eminentemente aos centros de ensino superior e nesse caso os cursos jurídicos. A tal esforço o Brasil não estaria inerme, ainda que independente. As reformas pombalinas que visavam articular educação superior jurídica e a racionalização do direito para o Estado estarão presentes no pensamento político e na cultura jurídica do além-mar. Portanto, a partir dessa baliza temporal se buscará por em contexto a história das ideias, visando matizar o processo mental, jurídico e político que dialogou mais diretamente com o Brasil já que as mudanças efetuadas, neste período, nas estruturas pedagógico-jurídicas do ainda Império Luso, repercutiriam na forma de pensar o direito para o futuro Estado imperial 3. 3

João Pimenta observa, tratando da história do pensamento jurídico e das instituições, a necessidade de seguir investigando sobre o tema para o século XIX, especialmente o marco da independência, no que envolve história administrativa, história do direito e história política. Percebe que daí se pode entender várias facetas das estruturas e poderes políticos do Estado e também desse Estado em âmbitos regionais. Sobre os marcos temporais recorda: “a necessidade de adotar periodizações longas, que contemplem não apenas a ordem nacional, também o mundo colonial, ao menos em suas últimas décadas, bem como suas tradições intelectuais peninsulares, suas instituições e paradigmas políticos que tiveram enorme peso na

7

Ainda seguindo o percurso do movimento de ideias para o Brasil, após a vinda da família real, em 1808, se demarcará a Independência política e a necessidade do país de se reestruturar como segunda zona cronológica de interesse para este estudo. Esse processo estará abalizado, no que toca o pensamento jurídico e sua estrutura, pela formação dos Cursos jurídicos e a confecção de seus Códigos no Brasil independente. Desde 1824, o país intentava ajustar formação, adestramento do corpo administrativo e legitimação estatal. Os Códigos, Criminal e do Processo, serão essenciais para denotar esse processo de ordenação e legitimação da soberania estatal e, com o rei Dom Pedro II já entronizado, a reforma no Código do Processo Criminal em 1841 será o emblema jurídico material que encerra um período de instabilidade política e jurídica para o país.

***

Primeiramente, há alguns pontos que se deve destacar. No período tardocolonial, existiu uma política administrativa e uma elite política e judiciária que não só influenciou na estruturação do Brasil, assim como se manteve depois de 1822. Esse é um fato que não se deve desconhecer. Outro, é que o Brasil já não estava na mesma condição política de antes. Ainda que conectado a um passado recente com a antiga metrópole, as apropriações e as novas aquisições ideológicas iriam ser vivenciadas e captadas dentro de um novo contexto. Dentro desses nexos se compreende a importância de estudar o caso do Brasil. Com Portugal e suas marcas, esse caminho referencial, que às vezes parece único, na verdade é múltiplo, pois não ignora as outras nações símbolos de desenvolvimento e civilização à época. O que permaneceu provavelmente conte bastante sobre o perfil jurídico e do sistema judiciário e, por certo, do próprio país. Contudo, essa tentativa de constituir seus próprios Códigos (criminal, do processo e o comercial) também sinaliza sobre o quê dos novos referenciais o Império queria de si e para si. Por isso, se considera importante discutir essa idealização de como deveria funcionar o Estado, a partir do seu aparato jurídico, analisando os aportes jusfilosóficos da Europa e, em alguma medida, da América do Norte. Portanto, almeja-se um estudo do percurso da cultura jurídica que envolveu intelectual, política e filosoficamente o Brasil, no período que se estende dos

América Portuguesa e no Brasil Independente”. Ver: PIMENTA, João Paulo G. “A Independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção acadêmica”. Em: HIB. Revista de Historia Iberoamericana [en línea], vol. 01, 2008. p. 91-92.

8

meados do século XVIII até as três primeiras décadas do século seguinte, momento em que se percebe a conformação das bases do aparelho judiciário, como país já independente.

***

Nesse sentido, outro desafio que necessita ser matizado é sobre o tema da interdisciplinaridade. Percorrer trilhas distantes pode ser algo valorado e também deveras perigoso. Portanto, entre o mérito e a desvantagem, se preferiu arriscar e recorrer à filosofia do direito, à história do direito e à história. Uma tarefa árdua, que necessita de tempo para se notar algum reflexo positivo aos estudos e investigações a que se propõe. Contudo, era necessário começar. Um universo bibliográfico especializado, e ao mesmo tempo generalizante nos conceitos e matizes, foi um dos percalços mais comuns encontrados nas leituras. Transitar por outras zonas é também ver os próprios limites e, às vezes, adentrando-se mais, observar limitações outras. E este trabalho é produto de uma revisão de leituras já consideradas clássicas sobre essas áreas do conhecimento e sobre o tema. Algo positivo para contrabalançar os riscos: o tema proposto converge para áreas de interesse distintas e, portanto, se tentou tomar, da maneira mais fluida e explicativa possível, a trajetória do pensamento jurídico e sua importância para o Estado. Por isso, é provável que haja uma considerável quantidade de notas explicativas e de obras referenciais sobre o tema. O esforço é o de contribuir aos diálogos e gerar um estado da questão minimamente explicativo e temático sobre a história das ideias jurídicas no Brasil. Afinal, de todos os ângulos de reflexão, o Direito tomado pela História será o eixo de visão mais eficaz para entender esse processo de gestão da ordem no Brasil. Controlando o Império através das leis, que se pretendiam estáveis e referenciais, a monarquia no Brasil buscava na tradição das normas e do papel dos magistrados e bacharéis uma via de legitimidade entre seus súditos espalhados pelo seu vasto território. E é sob esse ponto referencial que se pretende revisitar a historiografia sobre o período, observando e relendo algumas fontes referenciais que fomentaram tanto os debates da época, quanto o que a história tratou de refletir acerca do assunto.

*** 9

Durante alguns anos, estivemos estudando a história através de uma fonte jurídica, os processos-crime. Detendo-nos à História Social, e com um olhar voltado às camadas populares, percebemos suas formas de moradia e compreendemos como se ordenava a cidade e os comportamentos, face ao cotidiano, de pessoas comuns no trânsito do dia-a-dia republicano no norte do Brasil4. Não importava diretamente as falas dos personagens da justiça ─ advogados, promotores, juízes. O foco era outro e nisso nos detivemos durante cerca de cinco anos de estudos. Contudo, ao seguir manipulando fontes jurídicas, através do trabalho de catalogação de processos-crime no interior do Brasil entre os séculos XVIII, XIX inícios do XX, saltou-nos aos olhos a imensa necessidade de entender o outro lado dos processos judiciais: os atores do judiciário e sua relação lei/entorno social. Essa observação primária, que pode conduzir a diversos caminhos, estimulou a voltar aos Códigos, observar que tipos de crimes eram os cometidos e catalogados séculos antes, através de uma norma diferente. Nesse intento de entender o porquê de tantos crimes dignos de uma pena resultarem perdoados pelo sistema penal, através do Júri ou do próprio juiz, é que essa pesquisa foi motivada. Para tanto, era necessário entender como o Estado se organizava no campo jurídico e se legitimava por esse caminho. E essa pesquisa é fruto dessa preocupação, de entender essa cultura jurídica do Brasil dos oitocentos, estabelecendo uma relação entre o que já estava, o que se apreendia de novo e o que se praticava. Essa última parte da relação se investigará em outro momento de maneira mais efetiva, através da análise dos processos criminais. Porém, agora, pretendemos acercar-nos do ideal de justiça e de sua organização para o Estado, para posteriormente poder contrastar com o intento de pôr em prática tantas ideias novas e tentativas de rupturas com o passado, que mais pareciam sinais de uma continuidade que se tentava borrar. Para a investigação que se apresenta, é significante que se compreenda as principais motivações desse trabalho, do que se espera contribuir para os debates sobre o Brasil e os percursos e influências de seu sistema jurídico desde o século XVIII até as primeiras décadas após sua independência política.

*** 4

SPINOSA, Vanessa. Pela Navalha: cotidiano, moradia e intimidade (Belém 1930). Dissertação de Mestrado, PUC: São Paulo, 2005.

10

Considera-se como assentada pela historiografia a importância do direito e de seu aparato sistematizado para o Estado. Autores como José Murilo de Carvalho, Maria Odila S. Dias, Emilia Viotti da Costa, Carlos Guilherme Mota5, entre outros, sinalizam a importância do mundo jurídico e de seus atores como conformadores do projeto estatal, de sua soberania e legitimidade. Richard Graham 6, por exemplo, trabalhando sobre o processo de construção da nação, em contraste América Portuguesa e Espanhola, ratifica que os três cargos mais importantes para a efetivação da identificação estatal e de sua força no Brasil foram a Guarda Nacional, os delegados e os juízes substitutos, pois eram figuras que personificavam o Estado nos mais diversos e longínquos rincões. Carvalho aponta, já em um plano mais específico, a importância do magistrado na consolidação da unidade política, pois que compunha uma parte considerável da elite política que dirigiria, junto ao monarca, os rumos da máquina administrativa estatal. No mesmo sentido, Thomas Flory7 sinaliza a importância da figura do juiz de paz e dos movimentos políticos refletidos nos câmbios em torno do aparelho judiciário no Brasil no período que chamou de a década liberal do país (1827 a 1837). Além dessa vertente da historiografia que relaciona política, Estado e direito, outra corrente pensou a cultura jurídica e a formação no Brasil como um elo importante para verificar a correlação existente do fenômeno chamado de bacharelismo com a consolidação do aparato administrativo e político no Império. Venâncio Filho, Sérgio Adorno, Andrei Koerner8, entre outros, compõem o quadro de trabalhos importantes para pensar sobre o tema. Tratando sobre o nexo entre formação acadêmica, influências lusitanas e inserção política, os autores abriram espaços para que as fontes legislativas,

5

DIAS, Maria Odila da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Em: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. N. 278. Rio de Janeiro, 1968. p.105-170; COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. Momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: UNESP, 1999; CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem. Teatro de Sombras. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na Formação do Estado Brasileiro. Vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. (Coleção Juristas Brasileiros). 6 GRAHAM, Richard. “Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre classe, cultura e Estado”. Em: Diálogos. DHI/UEM, v. 05, n.01, 2001. pp-13-47. 7 FLORY, Thomas. El Juez de Paz y el Jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. 8 VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1982; KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na constituição da República brasileira. São Paulo: HUCITEC-USP, 1998; ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. Bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

11

os estatutos acadêmicos e a imprensa possibilitassem outro olhar sobre a figura do bacharel e a conexão com a formação estatal. Já em outra direção, que busca transcorrer aspectos da história e da filosofia do direito, se pode destacar Gizlene Neder, Ruth Gauer, Mozart Linhares da Silva9 com reflexões que dão um novo fôlego aos debates convertendo o olhar aos aspectos jusfilosóficos e formadores das permanências lusófonas. Nesse sentido, com estes trabalhos, se promove a renovação dos debates em torno da importância da centralidade e hegemonia que a formação jurídica tinha ainda na formação de uma intelectualidade luso-brasileira. Em boa medida, tais investigações aprofundam mais as relações de dependência do já Império do Brasil com a herança que as bases conimbricenses lhes oportunizavam. Tematizam, portanto, sobre o grau de influência no pensamento brasileiro oitocentista das matrizes não somente lusas, senão ibéricas e européias na consolidação do Império e de suas leis. Dentro dessa gama de possibilidades, algumas escolhas foram necessárias para que houvesse a interação entre a história, a filosofia e o direito nesse estudo. Primeiramente, a relevância pela centralidade dos estudos sobre o direito em relação aos fundamentos para os estados modernos. António Manuel Hespanha 10 explica o direito como elemento justificador e fundamental para entender as mudanças de paradigmas sobre a centralidade do Estado a partir de sua relação com elementos de legitimidade, forjados a partir das noções do que era o direito no seio das comunidades locais. O monarca passa a servir como a força centrípeta para a conformação dos Estados. Quando se concebe os direitos individuais, os pactos sociais e o poder de assegurar as vontades do povo e sua segurança, é porque se concebe também toda uma filosofia política que englobará um Estado sem Deus e um povo delegador de seus poderes. E nisso se funda boa parte da importância de se eleger o entendimento das principais correntes jusfilosóficas que auxiliarão a compreender o processo de concepção dos Estados na Europa, como também direcionar o olhar para o caso português, que mais interessa destacar. Harold Berman, trabalhando sobre a tradição jurídica no Ocidente, observava para as instituições modernas que as leis, desde sempre, dependeram antes de tudo da fé 9

GAUER, R. M. C. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001; NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro; obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000; SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003. 10 HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal – séc. XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.

12

que podia ter nelas e em seu sistema, de sua capacidade de funcionar em uma sociedade por gerações, ganhando um caráter continuum. Para ele, a durabilidade do direito só existe porque há um mecanismo nele próprio que permite um cambio orgânico. Isso significa que o direito, como também defende Hespanha, tem um poder de flexibilidade11 e ao mesmo tempo denota tradição e autonomia em relação aos demais poderes, possibilitando um ângulo de visão para o historiador que coliga os aspectos históricos e políticos e promove a dinamização da ciência jurídica como uma área não estática, mas perene em relação ao seu presente. A tradição histórico-jurídica, e suas eventuais transformações, portanto, “proceden de una reinterpretación del pasado para satisfacer las necesidades actuales y futuras”12. Nesse sentido, a cultura jurídica irradiada pelo Estado é reflexo do que ele quer de si, ou ao menos, que se estatua sobre si, para si e para os demais. Portanto, essa cultura é descritora institucional e institucionalizada do Estado e de suas normas como também é sistematizadora do que normaliza. Assim, o papel do dever-ser estatal moderno e de sua Justiça interessa em especial para Portugal e suas possessões, pois o pacto político que se entabula entre o governo e o povo estará na esteira das bases jusnaturalistas a que estes Estados ocidentais irão lançar mão para solidificar suas soberanias.

***

Dentro deste esforço em aproximar leituras e olhares sobre o sistema de justiça e a legitimação do Estado imperial do Brasil, se estruturou este trabalho em três esquemas capitulares, condensando três vias temáticas que se aproximam e se complementam. O capítulo primeiro intitulado O ‘lugar’ do direito, é reflexo da preocupação em buscar as matrizes jusfilosóficas para o Estado pensando nas principais teorias da representação que ensejariam, no contexto da modernidade européia, os debates sobre a legitimidade da sociedade burguesa que se instaurava e que buscava, no arcabouço filosófico, seu esteio. O direito, portanto, entra como garantidor da racionalidade do Estado, sendo a positivação estatal o cerne para que a sociedade civil tivesse garantidos 11

HESPANHA, António Manuel. “Depois do Leviathan”. Em: Almanack Braziliense. N. 05.mai. 2007. pp.55-66. 12 BERMAN, Harold J. La formación de la tradición jurídica de occidente. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 19.

13

seus direitos elementares e justificasse, então, a delegação do poder. O caso luso será avaliado com maior profundidade, visando observar dentro das principais correntes do pensamento político, quais matizes seriam apropriados e ressignificados pelo Estado português. O alvo é buscar dentro desse percurso o raio de influência dessas escolhas nos domínios do Atlântico. Portanto, o fluxo de ideias entre Portugal e o Brasil será essencial para compreender como as bases lusas e européias eram irradiadas para a América portuguesa. Ainda dentro da perspectiva do sentido do direito e de seu alcance para o Brasil, a Universidade de Coimbra e sua formação jurídica pareceram a opção mais apropriada para seguir se aproximando das questões que permeavam a importância da formação de um Estado de Direito e de sua legitimidade. Assim, no capítulo segundo O estudo para o Estado, se discute as principais bases jurídicas e filosóficas que formaram os que seriam estadistas no Brasil independente. Aqui se buscará entender como se construiu, dentro dos debates parlamentares, o discurso sobre a necessidade de se formar um corpo de bacharéis dentro do território nacional. O ensino era valorado como mais um instrumento de suporte para a ratificação de legitimidade enquanto Estado independente, pelo menos politicamente, da antiga metrópole. Seria através da formação jurídica que o Império também maduraria suas concepções sobre o próprio direito e garantiria um aparato político e jurídico para sustentar sua hegemonia no cenário interno e exterior. Dentro dessas preocupações o magistrado no Brasil ocuparia um papel importante, como forte elemento de identidade normativa, promotor da ordem e, consequentemente, da estabilidade do Império. Durante as primeiras décadas da independência no Brasil, os magistrados, formados ou não pelas aulas jurídicas nas cadeiras nacionais, comporão mais do que os quadros do poder judiciário no país. Estes homens farão parte da construção da ordem normatizadora e lançarão as bases constitucionais para a edificação da estrutura judiciária e policial do Império. Portanto, visando valorar a importância do bacharel e do esforço de normalização por parte do Estado, o terceiro capítulo, Uma Justiça para o Estado, vem a matizar as principais ideias que refletiriam transformações políticas e reformas jurídicas, entre o Primeiro reinado e a Regência no Brasil. O caminho para se chegar a esse entendimento seguiu sendo a relação do direito para a formação estatal. A carta constitucional e os Códigos, Criminal e do Processo Criminal do Império, foram tomados como marcos jurídicos essenciais para entender a relação magistrados/políticos dentro de um ideário nacional, 14

como também um esforço em se conectar com as principais correntes jusfilosóficas ocidentais para consolidar o próprio Estado imperial do Atlântico.

De modo geral, a intenção dessa estrutura organizativa do trabalho é a de veicular esse projeto de legitimação do Estado moderno, separado da sociedade civil, com o direito. Por meio da positivação das leis se pensava estruturar o país, garantir direitos e, além disso, codificar os deveres e as punições. Por conseguinte, se busca aqui conhecer a trajetória do pensamento jusfilosófico para os estados modernos e para o Brasil. Também, se objetiva conhecer a importância do principal ator e viabilizador desse projeto: o bacharel. Era ele quem deveria, estando no cume da sua posição política e jurídica, confeccionar as leis, doutrinar sobre os parâmetros legais estatais e, estando nas bases mais baixas de sua carreira, promover o exercício da justiça e ser um arauto do Estado, um árbitro entre o mundo ideal e o real. Portanto, se espera, através desse trabalho, contribuir para um estudo da história das ideias jurídicas e fomentar outros olhares para o tema que necessita ser renovado e rediscutido para o contexto oitocentista no Brasil.

Nesta trajetória, é preciso demonstrar sinceros agradecimentos aos que diretamente apoiaram o processo de elaboração deste trabalho. Ao orientador, Doutor José Manuel Santos, os méritos pela visão atenta e acurada nos momentos precisos. Aos amigos, daqui e de lá, pelo auxílio e suporte: sem eles seria inviável boa parte desta pesquisa. E essencialmente à família, esteio hoje e sempre.

15

Capítulo Primeiro O ‘lugar’ do direito: o debate jusfilosófico sobre o Estado no contexto da modernidade européia O presente capítulo tem como objetivo trazer à discussão o tema do Estado relacionado ao direito, esteio filosófico legitimador do processo de delegação do poder na sociedade civil da Europa Ocidental. A construção dos Estados modernos e suas formas de governar são de fundamental importância para se compreender como as idéias políticas, entremeadas a matizes jusfilosóficas, se desenvolverão a escolhas de governo e de exercício da justiça no ocidente. Portanto, quais as principais matrizes norteadoras do pensamento europeu sobre o que deveria ser o Estado? E, que papel ele desempenharia nas formas de se conduzir e ordenar seus territórios conquistados? Nesse sentido, as discussões em torno da função do direito como veículo e razão de ser desse Estado estarão evidenciadas eminentemente para a parte ocidental da Europa. Consideradas as preocupações iniciais, se observará como, afinal, esse fluxo teórico e filosófico em torno dessas formações políticas modernas na Península Ibérica se revelará, para o exemplo lusitano. A questão que se pretende pontuar através do caso português é: o que foi apreendido, ressignificado ou ignorado pela inteligência lusa, entre os setecentos e os oitocentos, dentro dessas discussões sobre soberania e legitimidade? Do mesmo modo, não se pode ignorar a construção do Império Ultramarino lusitano e sua influência sobre a formação intelectual em seus domínios. Por isso, se atentará, na última parte desse capítulo, ao pólo essencial de irradiação do pensamento sobre o direito e sobre o Estado para as possessões além-mar portuguesas, especialmente o Brasil: a Universidade de Coimbra. E, nesse sentido, se sondará, ao valorizar os Cursos Jurídicos da Universidade lusa, quais as principais bases formadoras das elites luso-brasileiras a partir das reformas pombalinas. Essa trajetória sobre a história das idéias será essencial porque revigorará os debates sobre as bases do pensamento político europeu no período moderno. Associar as discussões entre história e filosofia do direito trará margens para visualizar, tanto na península como na América portuguesa, as bases jusfilosóficas para a organização do Estado e da funcionalidade do direito neste processo. 16

1.1. Aspectos introdutórios Desde meados do século XVI13, o tema do Estado, de sua vinculação ao poder temporal e de sua legitimidade como representante da sociedade civil permeava as discussões entre teólogos, filósofos e pensadores na Europa 14. Nesse sentido, o direito será um dos eixos fundamentais para que, na modernidade, as idéias políticas estivessem entremeadas a matizes jusfilosóficos para compor o arcabouço estrutural justificador das suas escolhas de como governar e exercer a justiça. Com Hugo Grócio, para pontuar um dos mais emblemáticos para o tema, em De Jure Belli ac Pacis (1625), se construía uma doutrina que, apesar de absorver nuances do pensamento neoescolástico, trazia à tona a valorização da limitação estatal através do direito. Diferentemente de Maquiavel, que via no monarca a soberania absoluta, Grócio entendia que “os príncipes, apesar de soberanos, estão, com efeito, ligados pelo direito natural, divino e das gentes, e ainda pelos compromissos tomados”15. Preocupava-se, também, com a limitação do poder soberano do Estado que deveria ser efetuado através de um contrato entre povo e um governante. Nesse momento, a valorização do direito natural invalidaria a historicidade que o direito poderia ter em uma dada sociedade. Assim, a razão humana, nesta fase já tomada como

13

Desde o século XIV se debate sobre o poder político separado do poder temporal da Igreja. Pode parecer muito cedo, mas Marsílio de Pádua, em Defensor Pacis (1324), e Guilherme de Ockham, em Breviloquium de Principatu Tyrannico (1339-40), já tinham tal clareza, se não de toda a teoria política que englobaria essa cisão, ao menos para dar os primeiros sinais de que o poder secular se relacionava ao poder dos príncipes, ou melhor, que a soberania, o povo e o território eram os legitimadores do poder político e não o papado. Contudo, só no período renascentista é que se perceberá uma teoria política que dará maior significado a essa base tripla do que Maquiavel, em De Principatibus (1513), compreenderá por Estado. Para uma melhor compreensão do pensamento político e filosófico destes e dos demais pensadores deste aparatado Cf. TOUCHARD, Jean. História das Idéias Políticas. Vol.02. Lisboa: Europa-América, 1970; MIETHKE, Jürgen. Nascimento da Modernidade, História das Idéias Políticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2001; VALLESPIN, Fernando (org). Historia de la Teoria Política. Vol.02. Madrid: Alianza, 2002; BRITO, Wladimir. “Do Estado. Da construção à desconstrução do conceito de Estado-Nação”. Em: Revista da História das Ideias. Vol.26. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2005. 14 Este Estado, que nos séculos anteriores estava nublosamente definido, mas que já se percebia como essencialmente conectado às leis, ganhará à época moderna um sentido mais coeso como instituição política tendo uma ética própria e diferenciada da religiosa. Sobretudo com homens como Francisco de Vitória, em De Potestate Civili (1528), e Jean Bodin, Lex Sex Livres de la Republique (1576), a idéia de Estado não só se distanciará da concepção religiosa como também ganhará status jurídico, como um direito político, submetido às leis, garantindo, assim, a soberania, principalmente externa. 15 MONCADA, Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. vol. I. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 160.

17

um fato, explicaria os direitos naturais do homem acima ou além de qualquer justificativa histórica, caracterizada pelo racionalismo, individualismo e subjetivismo 16. Enfim, será no período moderno que a Europa definirá teórica e praticamente suas concepções doutrinais sobre o Estado e, sobretudo, do papel do direito 17 que, em um plano macro, relacionará a soberania ao Estado, separando-o da sociedade civil e, em menor escala, o compartirá em esferas de poder internamente, ordenando-as paulatinamente. Nesse sentido, o Tratado de Westfália, em 1648, após a Guerra dos Trinta Anos, garantiria em uma dimensão continental a igualdade jurídica dos Estados na Europa, firmando de maneira efetiva a autonomia dos estados em detrimento da Igreja, apoderando-se cada um de sua economia, política e religião 18. Ainda assim, as características do direito natural sairão mais completamente do campo teológico e ganharão nuances antropológicas com Thomas Hobbes e a célebre obra Leviathan (1651)19. Para ele, os homens abandonam então o estado de natureza, renunciam o seu “direito natural” de fazerem só o que lhes apetece, e, em demanda duma paz interesseira e estável (a mutuo metu), fundam enfim o Estado. Este, o Estado, porém, dados tais antecedentes lógicos, não pode ter outra estrutura racional senão precisamente a que lhe resulta da sua natureza e origem contratual. O Estado é essencialmente um contrato20.

Esse contrato, coadunado com a propriedade individual e com a vida, é o eixo da teoria do Estado que se necessita conservar 21. Portanto, se pretende por em relevo

16

Para essa corrente de estóicos-cartesianos não era Deus o ser que regia a natureza, mas ela própria era o espírito que criava o movimento no cosmos e sua ordem. Daí a idéia de que mesmo que Deus não existisse, seguiria havendo o Direito Natural, pois que era a natureza a ordenadora de todo o sistema, sendo a razão a natureza humana de onde se emana também esse espírito e o Direito se rege graças a esta matriz e a reflete positivando-a. Estas bases serão fundamentais para a fase jusnaturalista moderna. Ver: TEIXEIRA, António Braz. O pensamento filosófico-jurídico português. Lisboa: Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua portuguesa, 1983. 17 Pode-se considerar Grócio como um iniciador – ainda que rudimentário – do pensamento jusnaturalista, um laicizador da ciência jurídica, pois que tira o lado místico das justificações do direito e valoriza a razão (humana) como fio condutor original da sociedade, sendo a antiga escolástica aristotélica realmente tirada de campo. Uma visão universal e supra-humana estava sendo cambiada por outra em que a razão e o fato empírico eram o cerne do desenvolvimento jurídico. 18 Nesse sentido, vale Cf. HESPANHA, António Manuel (org.), Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, Colectânea de Textos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984; TOUCHARD, Op. Cit.; Revista da História das Ideias. Op. Cit. 19 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Editora, 2008. 20 MONCADA, Op. Cit., p.171. 21 Vale sublinhar que, segundo Cabral de Moncada, Hobbes dará voz a um pensamento típico de seu grupo social, no sentido de valorar o individualismo e ter um totalitarismo que satisfazia a própria necessidade burguesa e liberal, no caso inglês. Para o autor, “nunca ele pensou que a sociedade e o Estado existissem por outro motivo ou para outro fim que não fossem os interesses dos indivíduos, considerados como multidão. (...). O Estado não é uma nova entidade resultante do contrato social, mas sim a forma que, por assim dizer, tomam os indivíduos, ou a multidão de seus contraentes, logo incarnada a pessoa do imperante”. Em: MONCADA, Ibid., p.181. Também, tratando sobre esse processo da construção da ideia

18

que é nesse momento do pensamento sobre o Estado e o direito, que se relaciona poder e soberania direta e unicamente ao monarca, que já terá característica de soberanoabsoluto, e quando também a sociedade civil estará separada do Estado 22. Segundo António Manuel Hespanha23, esse processo, que a princípio continha características teóricas, começava a se solidificar no plano da organização do Estado e ganhava força conceitual de norma: o Estado tinha de ser separado da sociedade civil. A importância do direito advinha da própria importância dessa separação e legitimação do Estado. Era este último o que detinha o poder de legislar e, por conseguinte, de confeccionar suas leis. Pufendorf, em De iure naturae et gentium (1672)24, será o jurista alemão que tentará condensar ao sistema jurídico as noções dedutivistas do momento histórico em que estava imerso. Numa combinação entre os primeiros passos de Hugo Grócio e a teoria hobbesiana, exclui a responsabilidade divina que ainda se percebia no primeiro e agrega a matematização do direito facilitando a confecção posterior de um direito positivo. Nesse sentido, o Estado seria o fim maior do homem que, objetivando a segurança e a paz, tendia a unir-se em sociedade ultrapassando seu estado natural, submetendo-se às leis25. Convergindo para as ponderações jusfilosóficas de sua época e atento às ideias de Leibniz de cunho conciliador entre o direito natural e Deus, será Wolff, em Jus Gentium Methodo Scientifica Pertractatum (1758), quem sustentará a idéia da perfeição de soberania no contexto inglês, Morgan traz uma importante reflexão sobre a significação da soberania aliada à representação popular, com a definição do termo ficção como uma construção ideológica para alçar a dominação e o controle, através do Parlamento, de uma minoria sobre a maioria, em nome do bem comum e em nome da soberania popular. Ver: MORGAN, Edmund Sears. Invención del pueblo: el surgimiento de la soberanía popular en Inglaterra y Estados Unidos. Buenos Aires : Siglo XXI Editores, 2006. 22 Segundo Brito, “É este conceito de soberania absoluta e exclusivista que consagra o Estado moderno como um Estado territorial e nacional (...)”. BRITO, op. Cit., p.281. 23 HESPANHA, Op. Cit. 24 Pufendorf, Samuel. Os Deveres do Homem e do Cidadão de acordo com as Leis do Direito Natural. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 2007. 25 SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003. p.68-70. Vale pontuar ainda que, em contraponto a essa lógica filosófica de Pufendorf, que dá à natureza humana o atributo da razão, Leibniz traz ao jusnaturalismo, outra vez, uma visão mais próxima ao da chamada Escola Peninsular de Direito, que tinha como expoentes Suaréz, Soto e Vitória, e que mais se aproximava da lógica justeológica para explicação do direito e da sociedade. Para Leibniz, o direito natural não emana do homem e sim de Deus em essência, sendo a verdade eterna o ponto de coesão para o exercício do que é justo. “Leibniz, nesse sentido, estabelece um direito que procura, através da certeza matemática, alcançar a certeza da essencia da razão natural”. p.73. Para maiores referências sobre a Escola Peninsular de Direito, ver MERÊA, Manuel Paulo. Escolástica e jusnaturalismo: o problema da origem do poder civil em Suarez e Pufendorf. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1943 e também, BELDA PLANS, Juan. La Escuela de Salamanca: y la renovación de la teología en el siglo XVI. Madrid: Biblioteca de los Autores Españoles, 2000.

19

humana como movimento natural e independente da vontade do homem. Assim, caberá ao direito ser o facilitador dessa lei natural na sociedade que deve visar esse aperfeiçoamento dos indivíduos, estando o direito natural e o positivo conectados. “Funda-se assim um sistema de direito coerente e logicamente organizado, fundado na razão e instrumentalizável pelo Estado, sem, no entanto, preterir os princípios primeiros do direito natural”26. ***

A centralidade do poder nas mãos de um rei não foi tema facilmente disseminado na Europa, que já tinha um passado feudal e moderno em que a figura do monarca era clara, indiscutível e legítima, mas o poder não estava por completo em suas designações. O Absolutismo vai se gestando pouco a pouco e, no caso de Portugal, só no período pombalino é que se vai incorporando a imagem de um rei absoluto para depois captar as ideias democráticas de que era a unidade da nação que garantiria o poder unificado e a soberania dos povos27. Segundo G. Astuti28, é no momento em que o governo tenta suprimir as diferentes formas de relações de dependências e dos particularismos, herança feudal, que se gera uma centralização administrativa nos diversos Estados Modernos no intento de conservar o controle político das monarquias. Essa fase de centralidade trouxe ao direito um perfil de modernidade, e houve a tentativa de apresentar às leis um caráter mais homogêneo e de força, menos confuso e mais eficaz. Assim, com uma idéia de um direito baseado na razão combinava-se uma outra – a de um direito harmonicamente disposto numa compilação que escapasse à confusão e à transitoriedade da legislação corrente e que pudesse constituir, quer um repositório de base - „fundamental‟ – do direito do reino, que – ao mesmo tempo- o acquis inderrogável da ciência da legislação (...). Este monumento é „o código‟, entidade que se vai colocar como um objetivo estratégico da política e da ciência do direito durante mais de um século29.

26

SILVA, M. Op. Cit., p.74. HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004. 28 G. ASTUTI. “La Formacione dello Stato moderno in Itália. Lezioni di storia del diritto italiano”. I, Torino 1967. Em: HESPANHA, Op. Cit., 1984. p.294 e ss. 29 HESPANHA, Op. Cit., 2004. p.34. 27

20

Será o século XVIII que observará uma cultura ainda mais secularizada, disseminada e não mais encerrada. A religião passa a ser a natural, assim como a moral, o Estado e o direito se fundam nela e na razão do indivíduo. O Direito natural, por sua vez, será reflexo dessa lógica, pois valida o individualismo e converge para a teorização do Estado, naquele contexto histórico. Esta idéia de direito estava atrelada à liberdade do indivíduo, e aqui se trata de uma nova visão do Jusnaturalismo. Se antes se reconhecia a importância do indivíduo dotado de razão e apto para reconhecer o que era justo, agora se acresce ao caráter subjetivo dessa liberdade individual um caractere de objetividade através da lei; o contrato social será a base dessa relação. ...aos indivíduos sempre ficam, mesmo depois do pacto, uns certos direitos e entre estes, antes de tudo mais, o seu direito de liberdade de consciência, de liberdade jurídica, econômica e pessoal. Outra convicção do século é a de que já não é o rei que está acima da lei, mas sim está acima de todos, reis e súbditos, como expressão da verdadeira soberania da razão e como mais alta função do Estado e do poder político. Nasce assim a clássica e célebre teoria dos chamados „direitos individuais e originários’.30

Nesse contexto, o liberalismo de John Locke, em Two Treatises of Government (1689)31, será a ponta de lança para se compreender as transformações sobre a ideia de Estado e do direito e, portanto, do século das luzes. E o primeiro ponto tratado é sobre a própria liberdade que o homem tem quando em seu estado natural. Nesse estágio, o homem tem sempre a motivação humana de se entregar às paixões e, apesar de naturalmente tender a se conservar e a preservar o outro, funda através do pacto social um governo que é dotado para elaborar as leis que preservarão a propriedade, manterão a ordem no espaço (territorial) em que governa, inclusive protegendo de ataques exteriores. Assim, se moldaria o corpo político de um governo em uma sociedade também política. Mas, isso não significaria, como para a era absolutista, que o monarca fosse o representante maior de todos os interesses e direitos dos indivíduos daquela sociedade, pois que os homens teriam certos direitos aos que o Estado era um meio para os garantir. O que antes era a teoria do poder absoluto do rei, agora se converteria no poder limitado do Estado pela própria natureza do contrato estabelecido, partindo da premissa de que os homens são os portadores fundantes e fundamentais desses direitos inalienáveis (propriedade, vida e segurança), impondo,

30

MONCADA, Cabral de, Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.202. 31 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Editora, 2006.

21

portanto, condições a essa comunidade para a outorga de poderes32. O legislativo será o caminho para legitimar a vontade dessa maioria que decide e valida as decisões comuns em benefício de todos. Segundo Guido Astuti, o jusnaturalismo e o jusracionalismo determinaram o desenvolvimento de um novo conhecimento jurídico conforme aos ideais da nova consciência ética: nasce a ideia abstracta de uma humanidade sempre igual a si mesma e, portanto, susceptível de ser organizada segundo normas conformes à natureza e à razão33

e que garantem, de maneira estável, para qualquer nicho social, a felicidade geral dos povos. De todos os modos, já não se encontrava nos exemplos absolutistas de governo da Europa, como o de Luis XIV, inspirações para teorizações. Montesquieu, em 1748, apontava nessa direção em L'Esprit des lois34, quando questionava as relações entre lei, instituições, governo e seu contexto sócio-histórico. Já ali, explicitava o desconforto com que a doutrina jusnaturalista do século antecessor se desenvolvia ao excluir o cunho histórico dos planos teóricos. A estabilidade, a cientificidade matemática era a melhor forma para teorizar o Estado e justificar a legitimidade de suas leis. Será em Rousseau e seu Du Contract Social (1762)35, contudo, que essas ideias vão ganhar maior visibilidade. Convergindo em boa medida com Locke, Rousseau dará à ideia de vontade geral (la volonté de tous; la volunté à sa raison) o sentido de Estado que ganhará força na Revolução de 1789. A partir de sua obra, haverá as bases essenciais para se pensar essa mudança do estado do homem natural para o homem civil, e a liberdade, até então possível de correr riscos de perdê-la em seu estado anterior, agora ganhará status de liberdade política. Destarte, a possibilidade de representação parlamentar não teria sentido, já que o povo poderia confeccionar as leis e dar também ao rei um poder limitado como intermediário entre a vontade soberana (do povo) e dos súditos. Afinal, tudo o que fosse delegado e constasse no contrato social era uma parte dos direitos naturais que interessava à comunidade delegar. Esse caráter

32

Contudo, há de se lembrar que somente em Rousseau (1762) surge a idéia de que os indivíduos é quem criam o Estado e as leis, sendo ao mesmo tempo súdito e soberano. 33 G. ASTUTI. “La Formacione dello Stato moderno in Itália. Lezioni di storia del diritto italiano”. I, Torino 1967. Em: HESPANHA, Op. Cit., 1984. p. 254. 34 MONTESQUIEU, Charles de. O Espírito das Leis. 4 ed. São Paulo: Martins Editora, 2005. 35 ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

22

universal das teorias iluminadas e renovadas, de cunho individualista, ganhará terreno por toda a Europa36. No campo da ciência jurídica, pouco a pouco vai se afirmar teoricamente a soberania do Estado sendo o monarca o seu representante, porém com um caráter mais impessoal, consideradas suas funções como um ofício público para o bem público estatal. O Estado já não era guiado somente segundo a razão ou pelo poder despótico ilimitado dos monarcas, mas agora era a polícia (Polizeistaat) quem determinava (ou pelo menos criava os métodos) as atividades governativas que teriam de se relacionar diretamente com os fins (políticos) desse Estado37. Nesse sentido, o Estado era o detentor do poder julgador e assim o aparato jurídico era coordenado e edificado sobre as bases deste Estado, subordinando a administração e o exercício jurídico à lei. Ao mesmo tempo, segundo a lógica teórica dos juristas alemães38 sobre o Estado de polícia, havia uma intromissão cada vez maior, e, segundo a lógica do momento, justificável, do poder público nas diversas facetas da vida cotidiana da sociedade, sendo um dos poderes essenciais do príncipe efetuar “uma contínua e atenta vigilância sobre todas as formas de actividade privada que possa de qualquer modo apresentar um interesse, positivo ou negativo, em relação à consecução dos fins do Estado”39 e com isso a segurança pública estaria garantida, tanto interna, 36

Tal argumento pode parecer muito simplista, mas vale pontuar que apesar de boa parte do continente não ter acesso a todo esse arcabouço retórico e filosófico, através dos periódicos, das conversações e dos clubes, se podia alcançar, senão a grande massa da população, um contingente de interessados muito mais amplo que os círculos intelectuais onde transitavam esses pensadores. Astuti chega a falar de cosmopolitismo setecentista; e de maneira geral P. Hazard usa o termo crise de consciência européia. Para maiores esclarecimentos, ASTUTI, Op. Cit.; HAZARD, P., La crisis de la conciencia europea:1680-1715, Madrid:Pegaso, 1952. 37 Nesse sentido, merece por em destaque a contribuição teórica advinda dos juristas alemães. Através da ideia do poder de polícia do Estado se vão legitimando ações que serão próprias do monarca, em um primeiro plano, e depois conectarão esse monarca como um soberano representante do bem comum. Nesse sentido, cada vez mais se relacionará o poder soberano aos poderes executivo, judiciário, punitivo, mas também representativo e de câmara, trazendo grandes contribuições para se pensar o que era o direito público, naquele momento histórico, entre o iluminismo e as monarquias absolutas. A partir dos juspublicistas alemães já se pode vislumbrar o exercício legítimo do poder dos príncipes ligados a consciência não só do direito natural, mas também a subordinação às leis positivas do Estado, ou seja, as normas já contratadas outrora. Cf. MONCADA, Op. Cit.,1995; António Manuel HESPANHA, Op. Cit.,1984. 38 António Manuel Hespanha, em Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004, esclarece que a partir de 1837 os alemães pensam a teoria do estado e, apesar de seus juristas terem entabulado, de maneira contemporânea, o que seria este Estado, a palavra remonta, com o sentido de coisa pública, desde o século XV com os italianos e somente a finais do XVIII e inícios do XIX é que se pode falar de um estado nos moldes contemporâneos e ainda assim com dificuldades de abranger as diversas esferas do que chama articulações de poder em cada sociedade. (p. 27-28). 39 ASTUTI, Op. Cit., p.274. Nesse viés, conferir também a exposição que o autor faz das ideias do principal jurista nos moldes do Estado de polícia, Sonnenfels, no que aprofunda e detalha com maior riqueza os debates acima expostos.

23

entre seus

súditos,

quanto

externa,

salvaguardando

das possíveis

ameaças

internacionais. De todos os modos, o século XVIII trará tanto a perspectiva mais apegada ao absolutismo esclarecido como também a liberal e democrática, a posteriori, de influências inglesa e francesa. Trata-se de um período em que as teorizações giravam entre garantir a segurança através de um poder de polícia e de vigilância, oportunizados pelos príncipes, e um direito de resistência ante as ações arbitrárias e/ou fora dos pactos políticos acordados entre o monarca e seus súditos. No plano prático, apesar de grande poder supremo do monarca em decisões juridicionais, há uma sensível autonomia do setor judiciário nos estados absolutos e iluminados, estando os magistrados com a tarefa de reger as decisões concernentes à justiça criminal e civil do estado. Dependiam do rei, mas tinham alguma liberdade para gerir a justiça segundo as leis estatais, e confiavam no poder julgador desse monarca, na medida em que seus súditos tinham a possibilidade de apelação à justiça do príncipe 40. Nesse momento, o monarca ainda tinha a ampla autonomia de contradizer as decisões dos juízes, mas por outro lado, e apesar dessa prerrogativa real, é nesse momento que esse corpo de empregados do Estado será reconhecido como tal - assim como diversos outros empregados – e ganhará, ao menos, destaque. Apesar de não haver um elo juridicamente validado, pode-se dizer que esse é um caminho longo que se inicia já no XVIII. Essa relação de vínculo e dependência entre os funcionários e o Estado é estabelecida como servidores do príncipe. Ademais, havia um esforço estatal para promover uma unificação na forma de governar, quer sobre as vias da administração pública, quer sobre a unidade da legislação. O Estado moderno vai se definindo quanto ao seu direito público, o que também determinará as limitações do direito privado – tão poderoso e disseminado no campo jurídico à época medieval, o que justificava o esvaziamento do poder real centralizado até então, e dissolvia fortemente as noções de soberania e de Estado. Seria ainda nessa era, que o sistema de representação popular, através do parlamento, ganharia força. Duas figuras foram essenciais nesse processo: Benjamin Constant e Sieyès. Cada um reagia filosoficamente no plano político, sobre suas realidades históricas. O primeiro tentava anular o poder tirânico dos líderes de França; o

40

Sobre a ideia de justiça e do direito e sua flexibilidade no meio sócio-político: HESPANHA, António Manuel. Vísperas del Leviatán. Instituiciones y poder político (Portugal, siglo XVII). Madrid: Taurus, 1989.

24

segundo, frear muitos poderes da nobreza e da corte; ambos apostavam, através da democracia e da representatividade, descender o poder das minorias. Conforme Wolkmer, nesse contexto dos séculos XVIII e XIX, a teoria da representação legitimava a instauração da sociedade liberal-burguesa e o processo de institucionalização de uma democracia formal no Ocidente 41. A idéia sobre o Estado e sobre o direito ganhará contornos românticos para o século seguinte. E não somente se buscará em Rousseau, no século XVIII, como também se encontrará na metafísica uma concepção idealista, no sentido de entender o universo por meio de uma concepção mais integral, outra visão para o sentido de governo e da felicidade do povo. Nos oitocentos, a corrente romântica verá no homem a dotação de uma sentimentalidade e de uma vontade que o fará entender a vida relacionada à consciência e às realidades históricas circundantes. Foi um momento, nas primeiras décadas do século XIX, em que a Europa vivia, após o movimento revolucionário de 1789, “a expressão estético-religiosa do movimento de ressurgimento das nacionalidades européias (...), essencialmente nacionalista e tradicionalista, em política; católico em religião; e finalmente metafísico e idealista, inclusive com tendências místicas, em filosofia”42. A outra corrente para o XIX, que se observará melhor em Kant, é o idealismo alemão. Contudo, a expressão mais relevante para a discussão que aqui se apresenta é a de Hegel, em Grundlinien der Philosophie des Rechts (1821)43. A inovação mais forte de seu pensamento é a idéia da construção dialética para entender o mundo e as relações humanas que se travam no universo. Portanto, dentro dessa perspectiva, o pensamento hegeliano não vai de encontro ao racionalismo do século anterior, senão que via esse momento como essencial para deflagrar uma síntese, ou seja, um futuro que não seria igual ao seu passado imediato e tampouco igual ao seu presente, mas que para se chegar à novidade de outros tempos era necessário trazer algo dessas duas realidades. Para ele, o que antes era uma figura borrada, se modela e ganha uma imagem sintetizada e purificada. Assim, o direito natural, o contratualismo e o individualismo foram os elos imprescindíveis para que a visão dialética de Hegel tivesse lugar. 41

WOLKMER, António Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. pp. 90-91. 42 MONCADA, Op. Cit., 1995. p.275. Ver também: HOBSBAWM, Eric. Naciones y Nacionalismos desde 1780. Barcelona: Crítica, 1998; HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. (Coleção Pensamento Crítico). 43 HEGEL, Georg W. Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: ICONE, 1997.

25

Através da Filosofia jurídica, o filósofo relaciona a Idéia de direito, o conceito do direito e a realização dessa Idéia e desse conceito na história. Essa base irá compor também a lógica da importância e da constituição do Estado. “O Estado é, com efeito ensina Hegel – uma unidade ética substancial e, como tal absolutamente fim-de-si mesmo”44. Nesse sentido, para o pensador alemão, uma das ideias mais importantes sobre o Estado totalitário é ser a síntese dialéctica ideal de particularidade e generalidade45, tratando a instituição como um espaço de integração, constitucional e monárquica (generalidade), e que tinha em conta a sociedade com suas classes e corporações (particularidade). Essa visão denota, ao final, a separação entre o Estado e a sociedade civil, que no século anterior era expressa enquanto conjunto por seus contemporâneos. Nisso a lógica idealística de Hegel se afasta e rompe com a de seus antecessores. A posteriori, será Marx, em Das Kapital: Kritik der politschen Ökonomie (1867)46, quem articulará novamente essa unidade e relação. No século XIX, ambos os filósofos serão responsáveis por disseminar - para além de seu século - uma reflexão jurídico-política do Estado já existente47. Nesse sentido, o século XIX, traz ao Direito uma gama de conceitos e formas de teorizar e normalizar o Estado e, por conseguinte, gerir seu funcionamento, que vai potencializar a confecção das Cartas Constitucionais e Códigos pelas várias nações européias. Mesmo reconhecendo a forte influência do idealismo alemão, quer para sustentá-lo, quer para rechaçá-lo, não se pode negar que as lógicas inglesa e francesa estiveram no topo do pensamento ocidental. Assim, o Positivismo jurídico encontrava terreno fértil, para além das nações européias, isso é fato, e trazia para o direito positivo a total suficiência do Estado para a legitimação dos seus atos. Será dentro da justiça, da execução das leis que o Estado demo-liberal ganhará corpo desde meados do século XIX.

44

MONCADA, Op. Cit., 1995. p.292. Para uma visão mais ampla sobre o tema consultar também a obra desde a página 271 e ss. 45 Referência ao texto Grundlinien der Philosophie des Rechts (1821), parág. 260. Citação completa em: MONCADA, ibid., p.298. 46 MARX, Karl. O Capital. Edição condensada. 3 ed. São Paulo: EDIPRO, 2007. 47 BRITO, Op. Cit.. O autor também comenta que “enquanto a teoria hegeliana vai influenciar o pensamento jurídico sobre os elementos do Estado, os seus órgãos e as suas funções, incidindo sobre a „física‟ do Estado, a teoria marxista, (...), pelas suas relações com os grupos ou classes sociais e suas práticas políticas, e, ainda pelas suas relações com a economia, perscruta a „química‟ do Estado”. (p.290).

26

1.2. O caso Português

Através da simbiose entre a inovação, a técnica e as quebras dos mitos e dos medos versus a trajetória místico-religiosa escolástica, se pode compreender, minimamente, o caso luso48. Com um comportamento encerrado em si, e que, perpassados os séculos49, explicaria a resistência à absorção das idéias iluministas circulantes no cenário europeu, os portugueses tinham nos jesuítas um papel essencial de disciplinadores do fluxo intelectual no decorrer dos séculos XVI e XVII, sempre a favor do escolasticismo tomista 50. O ambiente político e mental que vai propiciar a Portugal, no século XVIII, uma mudança em relação às novidades iluministas envolve a princípio a abertura na tradição literária, significativamente aversa às teorias políticas liberais ou materialistas. O pensamento moderno, através de uma elite intelectual lusa, se incorporaria lentamente no reino, que se interessava pelo cartesianismo, pelos publicistas franceses e germânicos ou ainda por obras de juristas que cultivavam a linha jusnaturalista. Segundo Hespanha e Xavier, entre os eventos que marcam esse processo em Portugal, destacam-se concretamente, os fatos políticos da Restauração, a crise de 1667 e o atentado contra D. José; e, abrangendo ambos os séculos, a censura inquisitorial e política, bem como a permanência, até o terceiro quartel do século XVIII da ordem jurídica e institucional do Antigo Regime. Cada um destes fatos criou um ambiente

48

Sobre essa trajetória lusa para o período da União Dinástica com Espanha ver: VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal. Guerra e Restauração. Lisboa: Esfera dos Livros, 2006; de maneira geral para a relação poder político e estado português no XVII: HESPANHA, António Manuel. Vísperas del Leviatán. Instituiciones y poder político (Portugal, siglo XVII). Madrid: Taurus, 1989; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo. 2.ed. Lisboa: ICS, 2007. E para uma visão ainda no Antigo Regime de Portugal no debate historiográfico luso-brasileiro: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 49 Nesse sentido, Hespanha e Silva explicam sobre a construção da identidade portuguesa no decorrer da idade média fincando-se na modernidade. Destacam o papel central que tinha o catolicismo nesse processo mostrando essa vinculação com a religião na política e no direito como essencial para entender o ritmo que tomou Portugal para atingir um status identitário reinícola e gentílico para o reino. Uma das mostras do encerramento luso, segundo os autores, já no XVII quando a Europa não era mais eminentemente católica, foi fechar-se aos europeus como um todo e às suas novidades e descobertas, tendo uma postura longínqua e segregadora. Somente apartir do iluminismo é que se vai observar um ambiente reformista na intelectualidade lusa. HESPANHA; A. M.; SILVA, Ana Cristina. “A identidade portuguesa”. Em: HESPANHA; A. M. (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 04. Lisboa: Estampa, s.d. pp.18-37. 50 Cf. DIAS, José Sebastião da Silva. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973. Para tais discussões ver também: HESPANHA, A. M. (coord). História de Portugal. Quarto Volume: O Antigo regime (1620-1807). Lisboa: Circulo de Leitores, 1993.

27

político favorável ao desenvolvimento de certas doutrinas e, em contrapartida, inibitório de outras.51

O ensino universitário, como já se deduz, não estaria isento dessa lógica. Esse espaço intelectual era ideal para que o jusnaturalismo escolástico fosse disseminado, essencialmente, nos cursos de Cânones e de Leis, na Universidade de Coimbra. Enquanto muitos dos estados modernos introduziam cada vez mais rápido o saber propiciado pelas luzes, fomentado entre academias e círculos letrados, Portugal teria que esperar pelas influências pombalinas, em meados do século XVIII. Deste modo, os ecos das influências iluministas só se puderam sentir a partir da segunda metade do século 52, no reinado de Dom José I (1750-1777), período em que se notava a circulação maior de idéias e ao mesmo tempo uma era de riquezas53 para a Coroa. Ao mesmo tempo, essa apreensão de ideários iluminados convivia também com uma monarquia absoluta vinculada ao catolicismo. De todas as maneiras, vale recordar que o movimento da cultura na Europa, da segunda metade do séc. XVIII, tampouco desfrutou de homogeneidade: o iluminismo não seria o único esteio de todos os intelectuais da época, e mesmo dentro desta corrente se podia observar uma hetoregeneidade intelectual, o que abria guarida a momentos diferenciadores marcantes. Assim, o Iluminismo luso se abriu mais à influência italiana de Muratori e de Genovesi, por motivos que se relacionavam diretamente à presença de uma tradição intelectual cristã e católica, adversa aos princípios do deísmo e do materialismo que se vinham afirmando tanto em Inglaterra como em França 54. Pensando a segunda metade do XVIII, K. Maxwel aponta que, a chave para compreender Pombal no Portugal do século XVIII reside em parte na coincidência do Iluminismo com a luta de um antigo poder para se tornar hegemônico 51

HESPANHA; A. M.; SILVA, Ana Cristina. “A identidade portuguesa”. Em: HESPANHA; A. M. (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 04. Lisboa: Estampa, s.d. p. 122. 52 Segundo Calafate, os primeiros sinais de abertura ao pensamento iluminado que percorria a Europa, se notaram em Portugal já nos anos 40 do século XVIII: com expressão mais acentuada a partir de 1740, as primeiras manifestações de participação da cultura nacional na dinâmica do pensamento iluminista remontam à atividade intelectual e acadêmica de D. Rafael Bluteau e do 4.º Conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Meneses (Academias em Portugal), vindo a consolidar-se progressivamente através de outros marcos importantes. Dentre eles cumpre destacar a instituição, sob os auspícios de D. João V, da aula de Física Experimental no Palácio das Necessidades, a cargo da Congregação do Oratório, assim como as lições de Filosofia proferidas, no seio da referida Congregação, pelo Padre João Baptista e mais tarde impressas na sua obra Philosophia Aristotelica Restituia (1748). CALAFATE, Pedro (org.) História do Pensamento Filosófico português. vol.3. Lisboa: Editorial Caminho, 2001. 53 Para aprofundar a relação entre o pombalismo e a égide da economia ultramarina para Portugal, ver: MAXWELL, Kenneth. Marques de Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 54 Nesse sentido ver: CALAFATE,Op. Cit.; CUNHA, Paulo Ferreira da. Pensamento Jurídico LusoBrasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. (Estudos Gerais. Série Universitária).

28

outra vez, por meio da adoção e da adaptação autoconsciente das técnicas que, segundo acreditavam seus governantes, seus concorrentes haviam utilizado para sobrepujá-los. O papel da reconstrução intelectual é portanto, algo que somos obrigados a levar em conta para compreender Pombal e o Portugal do século XVIII 55.

Assim, a política pombalina proporcionaria um câmbio mais significativo ao reino56, principalmente por trazer para o Estado o controle das decisões, secularizando57 cada vez mais as malhas administrativas de governança. Era a reafirmação do absolutismo, mas, em finais do século XVIII. Nesse sentido, as medidas do ministro vieram a garantir a força do estado absoluto, dando privilégios a grupos menores de comerciantes e reprimindo a nobreza nobiliárquica tradicional. Aventava-se, então, “um objetivo de modernização, que suprimia ou reduzia a presença hegemônica da Igreja, e caminhava na direção do jurisdicionalismo” 58. Na intenção de laicizar a cultura e também de retomar o controle dos negócios do reino ultramarino, e assim fortalecer o aparato estatal, Pombal traz em suas reformas o plano matricial para o desenvolvimento de um líder iluminado: afastar a Companhia de Jesus dos domínios lusitanos (1759), a princípio, e das regalias que lhe eram outorgadas desde Roma (1773). Essa atitude, combinada com o controle sobre a Igreja e suas possessões, sobre a fiscalização e contábil dos seus domínios e o estímulo ao comércio, geraria para o aparato administrativo do Estado um status moderno, mais afinado com as políticas públicas do momento na Europa. Tais políticas exigiriam, por suposto, uma ação centralizadora nos moldes absolutistas, como já ressaltado, tirando a

55

MAXWELL, Op Cit., p. 186. Também: DIAS, José Sebastião da Silva. "Pombalismo e projecto político". Em: Cultura – História e Filosofia, vol. III, 1984, p. 135-259. 56 Vale ressaltar que o fato de que a Reforma de Pombal tenha oportunizado uma aceleração nos debates e da própria filosofia do Estado em sua época, não significa que Portugal estivera isolado ou não fosse conhecedor das discussões iluministas e da filosofia moderna. Segundo Cabral de Moncada, já os próprios jesuítas estudavam e/ou traduziam grandes pensadores modernos, a exemplo de Descartes ou Leibniz. Antes disso, é dado o consenso que Portugal era um reino que tinha adormecido para tais discussões. Cf. MONCADA, Luis Cabral de. Subsídios para a História da Filosofia do Direito em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. (Estudos Gerais. Série Universitária). p. 1925. 57 Durante o período pombalino, houve uma valorização do clero secular em detrimento do regular, mais claramente identificado pela expulsão dos jesuítas e do jurisdicionalismo. Essa centralidade, tão requerida pelo poder monárquico, se expressava através do ordenamento do setor eclesiástico efetuado pelo Estado, como os padroados (poder delegado através do vaticano aos reinos de Portugal e Espanha para administração da Igreja) ou o clero que teria um bispo indicado pelo Rei. A ação eclesiástica para o Estado estava atrelada à educação e à cultura, tanto que a Reforma da Universidade ou dos colégios menores estiveram sob direção de cardeais ou bispos. Cf. NEDER, Op. Cit. Ver também: MAXWELL, Op. Cit. 58 NEDER,Op. Cit., p.107. Ver também: MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Lisboa: Presença, 2001.

29

centralidade de uma nobreza tradicional por uma burocracia técnica e apta para administrar59. Do mesmo modo, durante o reinado de D. José I, com seu ministro reformador, se notaria por parte da coroa mudanças no âmbito político-legislativo visando convergir para as novas realidades sociais e político-econômicas lusas. 1769 será um marco nesse sentido, já que a Lei da Boa Razão entrará em vigor em Portugal para simbolizar a positivação de toda a concepção iluminista acerca do direito 60. Tal compilação reverberará diretamente sobre a formação acadêmica na Faculdade de Direito, através dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772) 61 que, como uma espécie de manual, visava tratar da própria confecção das leis e de suas interpretações. Sob o reinado de Dª. Maria I (1777-1816), as mudanças também se fazem sentir no campo jurídico, primeiramente, quando autoriza a revisão da legislação, que sempre esteve confusa e complexa. Além disso, cada vez mais se define o espaço destinado ao poder eclesiástico, mantendo o estado seu domínio através do padroado. No que toca ao ensino, incentiva a formação, promove Colégios e cria Academias de Artes, de Ciências, Bibliotecas entre outros estímulos visando disseminar o desenvolvimento científico e o pensamento intelectual em Portugal. Em contrapartida, esses pensadores mantinham uma dependência clara ao Estado, real mantenedor das suas produções intelectuais62. Em finais do século XVIII, ainda no reinado de Dª. Maria I, já se notava a tentativa de sintetização e objetivação das Ordenações portuguesas através de um Novo Código Criminal (1796). Apesar de não haver obtido êxito nos primeiros intentos, essas ações reformadoras e transformadoras no campo do direito eram a sinalização de que os antigos padrões legislativos do reino não conjugavam para a eficácia da centralização do

59

Conferir: MAXWELL, Op. Cit., 2001; ANTUNES, Manuel. (et al). Como interpretar Pombal? No bicentenário de sua morte. 2 vols. Lisboa: Brotéria/Porto, Livraria A.L., 1982. 60 “A Lei da Boa Razão incorpora o manancial jusracionalista propagado, entre outros, por Grócio, Descartes, Hobbes, Pufendorf e Locke. Consagra-se a crítica à autoridade e sacraliza-se a recta ratio como instrumento racional e lógico de aprender o Direito. Do ponto de vista estratégico da construção do „Estado Pombalino‟, a dita lei significava a materialização da concepção da aplicação do direito natural, baseada na razão e não na fé ou nos costumes”. Ver: SILVA, Op. Cit. E também: DIAS, José S. Silva. “Pombalismo e teoria política”. Em: Cultura - História e Filosofia. Lisboa: INIC, 1982. pp. 45-114. 61 Hespanha ressalta que essas ações no campo jurídico com Pombal vieram tanto a alinhar-se às novas demandas de uma camada burguesa-mercantil que ganhava espaço – pois que garantia a segurança e agilidade no que tocava seus negócios e propriedades – como também fortalecer a figura do monarca e como o intérprete das leis, assim como das leis nacionais. HESPANHA, A. M. A História do Direito na História Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1978, p. 70 e ss. 62 NEDER, Op. Cit.

30

Estado e menos ainda para fazer sentir o seu poder regulador63, tanto em Portugal peninsular como em suas possessões alhures. Nesse viés, o que havia de novidade nessa fase de constituição política do estado moderno português era a idéia de condensar os direitos e deveres gerais, tanto do monarca (absoluto e iluminado) quanto do povo, por meio de uma constituição escrita. Nesse patamar, o direito era o eixo fundamental para a confirmação das legitimidades do poder monárquico e de seu contrato com os súditos, pois confirmava sua soberania. Eram os Códigos a sistematização desse pacto político em uma sociedade já adepta às ideias racionalistas e laicizadas 64. Ao pensar no pacto político para esse período, pode-se afirmar que o jusracionalismo propicia a Portugal um ambiente intelectual distinto, pois que valoriza menos a influência religiosa 65, apesar de não haver se distanciado totalmente dela, e preocupa-se quanto a falta de definição sobre a forma de delegação de poderes e de sua constituição. Assim, apesar de não haver plena homogeneidade na relação entre direitos fundamentais, poderes reais dos soberanos absolutos e seus súditos, se gera, no século XIX, uma cultura política identificada como jusracionalismo tardo-contratualista. Tal perspectiva tira do centro a justificativa histórico-românica sobre a origem divina e/ou hereditária dos monarcas, e se foca essencialmente na soberania da nação, tendo os súditos, nesse contrato, algum poder66. Porém, essa perspectiva de centralização da soberania na nação pode ter sido conveniente, segundo Hespanha, por duas razões. Uma era barrar a possível intervenção

63

Sobre o tema, José Subtil em Os poderes do centro. Governo e administração, mostra toda a estrutura administrativa da coroa lusa, perpassando desde os órgãos centrais, como o Desembargo do Paço, até os mais periféricos, ou seja, mais equidistantes da metrópole, como o oficialato régio, juízes de fora, corregedores, etc., dando um panorama geral da organizaçao monárquica quanto aos seus aparatos administrativos no decorrer do século XVIII. Ver: SUBTIL, José. “Os poderes do centro. Governo e administração”. Em: HESPANHA, A. M. História de Portugal. O Antigo regime. Vol. 04. Lisboa: Estampa, s/d. pp.157-193. 64 Cf. HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004. 65 Vale lembrar a influência de Montesquieu, com O Espírito das Leis (1748). Segundo Paul Hazard, o teórico não elimina a religião do seio social, senão reconhece que o homem sendo um ser inteligente, mas limitado, se conscientiza através das leis da religião dos princípios do seu Criador, mas lembra que também as leis civis e políticas são as que “o reconduzirão aos seus deveres para com a sociedade. (...) Montesquieu sanciona o divórcio entre o direito natural e o direito divino”, valorando o princípio das leis como base fulcral para legislar no mundo. Cf. HAZARD, P. O Pensamento europeu no século XVIII. Lisboa: Presença, 1983, p. 150. 66 Nesse sentido a influência do aparato filosófico-político de Estado estará apoiada em Pufendorf, que dará à positivação das leis e ao distanciamento ao apoio da transcendentalidade os matizes para que a razão tome a centralidade das discussões sobre a constituição estatal, e em Locke que dará ao pacto social a conformidade direito e Estado, justificando uma sociedade política baseada num contrato preservador dos direitos inalienáveis do homem.

31

de outros grupos chamados genericamente de “povo”. E outra perspectiva era a de desvanecer o papel central do monarca garantidos agora - não a ele e nem por Deus - os “direitos inseparáveis conquistados pelos povos”. Assim, se eliminaria boa parte das chances de alguma recaída absolutista. Enfim, era através da nação que se poderia elaborar uma Constituição ou Lei Fundamental, isto é, por meio de uma representação legitimamente eleita. Isso será materializado nas leis, mais propriamente nas Constituições Portuguesas e nos Códigos no decorrer da primeira metade do XIX, com maiores ou menores nuances destes aspectos67. A racionalização e decodificação do que se deveria ser o Estado moderno em Portugal, teve relação direta com essa linha de pensamento. Nesse sentido, a Constituição viria a garantir os direitos individuais dos cidadãos. Era a Carta fundamental - criada para gerir a sociedade política - e os Códigos que garantiriam a estabilidade do poder na sociedade civil, sendo que o principal objetivo era o de afiançar o predomínio da lei sobre os direitos naturais do homem. Segundo Hespanha, o projeto político liberal é, portanto, dominado pela preocupação de restabelecer a positividade da ordem política. Restaurando, por um lado, o conceito de Nação, como ordem objectiva, superior a vontade e ao contrato, que definiria direitos e deveres, e que se concretizaria em instituições e em normas jurídicas. Redignificando, por outro lado, o conceito de Estado, ao qual se confere uma base não voluntarista e não contratualista, concebendo-o como um produto orgânico da história, idéia que não deixará de fazer curso durante todo o século XIX e se tornará hegemônica a partir de seus meados68.

Assim, os direitos seriam corporificados na nação e em sua história, por meio dessa centralidade que estará visível na lei “como lugares de emergência, de manifestação positiva, dos direitos que, correspondentemente, os constituintes não devem senão garantir”69, e que darão um sentido de inversão na lógica de primazia da Constituição como aparato construtor de toda a confecção legal em uma sociedade, que estaria submetida a ela. 67

Estes câmbios ocorrem dentro de um contexto revolucionário liberal, não somente em Portugal, como na Europa. Ver: ARAUJO, Ana Cristina Bartolomeu. “As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais”. e VARGUES, Isabel Nobre. “O processo de formação do primeiro movimento liberal: a Revolução de 1820”. Em: TORGAL, Luis Reis; ROQUE, João Lourenço. (coords.). Historia de Portugal. O liberalismo. Vol. 05. Lisboa: Estampa, s/d. pp. 17-43 e 45-63, respectivamente. 68 HESPANHA, Op. Cit., 2004. p. 75. 69 HESPANHA, Ibid. Vale destacar que, em finais do XVIII para o XIX já se podia identificar uma cidadania em que as distinções políticas se atenuavam, bem como as leis escravagistas. Contudo, as mudanças significativas vinham na forma de organização política liberal, cada vez mais atrelada às Assembléias e aparatos administrativos, como sistemas de créditos e bancos, ou ainda sistemas prisionais e repartições públicas. p. 76 e ss.

32

Contudo, para que boa parte das discussões filosóficas sobre a importância do Estado, de sua centralidade e sua conexão com o direito existisse, um outro processo foi fundamental: a formação filosófico-jurídica e o seu desenvolvimento acadêmico nas Universidades70. Graças a esse espaço intelectual, se imprimirão opiniões e se sedimentará a ideia de que o campo da jurisprudência era de fulcral importância para que a soberania e a nação tivessem sua base de legitimidade. Por isso, se amparado pelas leis o Estado se constituiria soberano, também pela importância destas, os manuais formadores desse corpo de magistrados faria com que essa máquina estatal fosse pensada e criada.

*** O ponto culminante para entender o pensamento filosófico do direito e seu papel para a legitimação do Estado estará em Coimbra, nos seus Estatutos da Universidade, de 1772. Por meio destes, se pode delinear toda a direção filosófica e acadêmica que a Faculdade de Direito deveria adotar. Eram essas indicações de livros, de sínteses/traduções, de enciclopédias, enfim do que deveria ser ensinado no espaço acadêmico que compunha a base reguladora e orientadora em que os futuros bacharéis deveriam ser formados71. Essa lógica universitária carecia refletir o pensamento ideal do governo, sobre o exercício do poder e da soberania a partir da justiça e de sua prática, obviamente, através de um dos campos mais influentes do aparato administrativo e político que era a magistratura e – por consequência – em suas diversas possibilidades de atuação. Efetivamente, através da Faculdade de Direito e de seus principais compêndios filosóficos, pode-se compreender acerca do pensamento jurídico, da lógica do Estado e dessa relação com o poder em Portugal e de Portugal para com seus domínios naquela altura. Assim, a marcação das diferenças ou das características próprias desse Estado

70

Linhares da Silva avalia esse movimento reformador, amplamente voltado para o pedagogismo. Afirma que “trata-se de um contexto em que as idéias novas buscavam lugar no pensamento e na tradição lusitana. (...) [era] um projeto mais amplo que um programa político de governo: situa-se no plano intelectual, cultural e também político”. SILVA, Op. Cit., p.94. Ver também: ANTUNES, Op. Cit.; SANTOS, Maria Helena Carvalho dos. “Poder, intelectuais e contra-poder”. Em: SANTOS, M. H. C. dos (coord.). Pombal revisitado. Vol. 01. Lisboa: Estampa, 1984. pp.123-129. 71 A Carta Régia de agosto de 1772, de D. José I, inaugurava oficialmente a nova regulamentação para a Universidade de Coimbra. Os Estatutos da Universidade tinham três tomos que tratavam não somente do curso de Direito (Leis), senão de mais cinco cursos (Teologia, Cânones, Filosofia, Matemática e Medicina) e de toda a parte administrativa da dita Universidade. Para a época, eram considerados o avanço e a atualização de métodos e administração do ensino necessários e que se harmonizavam com os princípios científicos do século XVIII.

33

moderno se revela mais clara, pois que foi também nesse campo, o do conhecimento e da formação, que todo o processo de apropriação dos modelos filosófico-jurídicos estatais teve adaptação, significação e sistematização necessárias para solidificar o próprio poder, seja centralizado no monarca e abençoado por Deus, seja consolidado no povo e respaldado no direito natural. Nesse sentido, durante as reformas de Pombal, houve uma significativa abertura do que se entendia por iluminismo e com isso a “modernização” e atualização do pensamento e da história cultural lusitana. Conforme Carlos Guilherme Mota72, a reforma no campo do ensino refletia os anseios de uma elite lusa em se harmonizar com a Europa entendida como civilizada e sair de um atraso mental e intelectual, da periferia econômica e cultural73. A inspiração vinda de Descartes, Locke e Newton era ajudada ainda por traduções e estudos de doutores portugueses em temas tanto filosóficos como de botânica, de medicina e das matemáticas, que angariavam adeptos e eram subsidiados pelo ministro Pombal para executar suas pesquisas e ensaios. Todo esse esforço para a sistematização do ensino e a abertura às idéias iluminadas era uma forma de preencher ou recompor os quadros acadêmicos dominados pela Companhia de Jesus74. De todos os modos é importante frisar que Pombal, ao expulsar os jesuítas - e 1773 o Vaticano referenda e suprime a ordem - e promover o regalismo, não estava trazendo para Portugal uma cisão com a fé e com o catolicismo 75.

72

MOTA, Carlos Guilherme. “Do Império luso-brasileiro ao Império brasileiro”. In: MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na Formação do Estado Brasileiro. Vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. (Coleção Juristas Brasileiros). 73 Vale destacar, para por um contraponto a essa visão sobre o atraso português em relação às discussões filosóficas e apreensões das ideias políticas, a dissertação de CARVALHO, Flavio Rey de. Um Iluminismo Português? A Reforma da Universidade de Coimbra de 1772. Dissertação de Mestrado. Brasília: UNB, 2007. O autor traz essencialmente a discussão sobre a produção historiográfica portuguesa proposta no capítulo primeiro. Ali o autor observa dentro da própria lógica do pensamento português, desde 1940 em diante, as interpretações acerca do porquê de Portugal haver tido uma outra relação e apreensão das novidades filosóficas do XVIII, desde a aceitação do atraso ligado à religião, até a exaltação da religiosidade como elo de identidade e singularidade portuguesa face aos demais Estados. 74 Nesse sentido, Pedro Calafate, discutindo o iluminismo português, alerta sobre a dicotomia exposta muitas vezes quando se toca no tema jesuítas e o iluminismo. O filósofo observa que o que havia era uma qualificação negativa, associada a um obscurantismo ou atraso intelectual e pedagógico à ordem, sendo Pombal a figura salvadora dessa situação de isolamento e a reforma no campo educacional uma prova de seus feitos. CALAFATE, Op. Cit. Sobre tal tema, vale destacar os argumentos já citados de Cabral de Moncada, que não só relativiza essa dicotomia, como enumera uma gama de filósofos, inclusive religiosos, que já apontavam para a inovação ou para a necessidade de algumas mudanças. MONCADA, Op. Cit., 2003. p. 19-25. 75 Pombal estatiza a educação como um todo, não somente a Universidade. Os professores passariam por uma seleção e sendo aprovados poderiam exercer o professorado como funcionários do Estado e com méritos de nobreza. No Brasil, da formação dos indígenas, bem como do ensino secundário que existia, os jesuítas foram banidos já em 1758 e o ensino era efetuado por professores do Estado. Essa era uma das principais formas encontradas pela política pombalina de dar unidade ao Império. Cf. SILVA, MozartOp.

34

Segundo Paul Hazard, a lógica para a expulsão da ordem, não somente para Portugal, era: a de que os Jesuítas juraram obediência absoluta ao Papa, mesmo no domínio temporal; que o Papa delegou o seu poder no geral da Ordem; e que, deste modo a Ordem é contrária ao Estado, às leis do Estado, à própria essência do Estado. Era pois necessário condená-la, sendo mais urgente retirar-lhe das mãos a educação da juventude76.

Reconhecendo o domínio secular do meio eclesiástico nas formações acadêmicas, se forjará – apoiado por Oratorianos77 - todo um projeto acadêmico, expresso pelos Estatutos. Entre outras reformas, valorizava o estudo da língua portuguesa, o que tirava a centralidade do latim como língua essencial, assim como mudava a forma de ensinar, sobretudo contrapondo-se à pedagogia jesuítica. Esse momento de reformas no campo do pensamento e da filosofia do ensino estará diretamente relacionado ao padre oratoriano Antonio Luis Verney (1713-1792) e o seu O Verdadeiro Método de Estudar (1746). Sua obra viria a remodelar os estudos jurídicos na Universidade de Coimbra e sua pedagogia reverberaria inclusive para o império ultra-mar lusitano. Para Verney “o estudo das leis, feito pelo jurisconsulto, deveria, então, começar a partir da história. (...). Para ele, o importante na formação do jurisconsulto seria a introdução, pelo mestre, do método de leitura”78. Com o conhecimento das leis e o acompanhamento das mudanças na sociedade, o jurista teria a erudição necessária para exercer seu ofício. Observa-se, assim, um esforço para “modernizar” o regimento dos cursos jurídicos, apesar de não somente estes, investindo em um corpo intelectual de formação moderna79. Apesar disso, Neder relembra a persistência das práticas e regulações típicas do pensamento tomista herdadas dos jesuítas. Através do regimento da Universidade Cit., p. 94 e ss. Ver também: ANDRADE, Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva/EDUSP, 1978; MAXWELL, Op. Cit., 1996. 76 HAZARD, Paul. O Pensamento europeu no século XVIII. Lisboa: Presença, 1983, p.105. ANTUNES, Op. Cit. 77 A Congregação do Oratório, data de 1640, foi a ordem apoiada pelo Marquês de Pombal, após a expulsão dos jesuítas. Seus membros formaram várias academias em Portugal e tinham uma pedagogia afinada com a filosofia iluminada, sendo também tradutores de diversas obras, abrindo caminhos para leituras de Bacon, Descartes, e, entre outros pensadores, Genovese que será o inspirador de Luis Antônio Verney, também oratoriano. 78 Cf. NEDER, Op. Cit., p. 121; GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 79 Flávio Rey de Carvalho reafirma tais assertivas pois que “a reestruturação da Faculdade de Direito e a criação da Faculdade de Filosofia estavam em conformidade com as ambições da coroa lusa daquele momento. A reforma do ensino da Jurisprudência atendia ao interesse do fortalecimento do poder régio (...)”. CARVALHO, F. Op. Cit., p. 53.

35

analisa que: esta cultura jurídica tem alguns destes traços: leis muito bem feitas, para não serem cumpridas, ou serem burladas. O espírito que inspirou a reforma do ensino contido nos Estatutos espelhou, pois, uma disjunção significativa: a modernidade pretendida foi combinada com uma utensilagem mental pré-moderna, calcada no escolaticismo barroco80.

Será sobre essa mescla entre a resistência escolástica e a abertura a uma filosofia iluminada que uma parte significativa da filosofia do direito vai se apoiar para, já sob o reinado de Maria I, debater ou ainda revitalizar em boa medida o entendimento sobre de onde se emana a justiça, como se exerce o poder e a quem está demandada a soberania do Estado português. Essas questões, quando atreladas ao direito e à filosofia, trarão à tona os traços do escolasticismo acima mencionado resignificados, ou ao menos não ignorados, de toda a construção reformadora do período anterior, ao se elaborar os Estatutos da Universidade. Primeiramente, é importante lembrar que toda a lógica sobre o exercício da justiça e, por conseguinte, de seu ensinamento na Escola de Leis, no período prépombalino, esteve condicionada não somente às Ordenações (Afonsinas e depois Filipinas) como também a um corpo doutrinal, destacadamente as obras de Bártolo de Sassoferrato e de Acúrsio 81, inspiradas na tradição romana e escolasticista. Havia, então, um corpo de juristas formados para interpretar as leis segundo estas autoridades, o que doutrinava e dogmatizava as ações e decisões dos magistrados. O sentido direto das críticas iluministas se pautava na clara aversão ao passado, considerado obscuro e atrasado, da Baixa Idade Média. Era a reavaliação – via escolas racionalistas e neo-romanistas alemã e francesa – das doutrinas romanísticas para atender à demanda do que consideravam novos tempos. Uma das marcas dessas críticas acirradas contra os métodos interpretativos das leis, ou ainda de como isso se ressaltava no ensino, estava destacada no Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra. Um ano antes da publicação dos Estatutos de 1772, o Compêndio trazia à tona toda a discussão acerca da soberania absoluta do monarca, do uso da razão e da interferência papal no que tange o domínio do saber e do Estado. Portanto, como sinala Linhares da Silva, Não é tão paradoxal, nesse sentido, que o Estado luso tivesse que se transformar num Leviatã, para enfrentar forças tão poderosas como a Companhia de Jesus. Nesse 80

Cf. NEDER, Op. Cit., p. 134. Comentários e a Glosa, obras dos dois filósofos respectivamente, serão proscritas a partir da Lei da Boa Razão, de 1769. 81

36

sentido, Pombal parece ter seguido à risca a máxima de Bacon, segundo a qual, „não dar à fé mais do que aquilo que é da fé‟. Esse foi o vigor adotado na Reforma da Universidade, uma reforma pragmática e regalista sob a égide da secularização dos valores e do saber...82

Resulta que essa discussão dos teóricos portugueses do iluminismo não esteve desvinculada das justificativas de cunho divino, por assim dizer. António Ribeiro dos Santos, canonista de prestígio essencial no período pombalista, revalidava a importância do monarca, pois que conectava a autoridade real com a vontade de Deus e, vindo deste a autoridade, não haveria espaço para superiores na terra. Assim, uma vez mais, o afastamento da Cúria Romana se confirmava para dar lugar a um monarca que tinha com seus súditos um pacto de fidelidade quase inquestionável e que valorizava, como critério para suas ações, a razão e a lei natural acima de tudo. Pedro Calafate resume a idéia expressa nos Estatutos, no livro segundo, de maneira efetiva sobre essa relação de poder. Destaca que, proclamava-se, ainda, que os dois poderes [real e espiritual] procedem imediatamente de Deus, que a autoridade da Igreja apenas abarca as matérias espirituais, (...), e estabelecia-se o princípio da colaboração entre os dois poderes ou recíproca contribuição de cada um para os fins próprios do outro, ou seja: caberia à Igreja ensinar que quem resiste ao soberano resiste a Deus, e caberia às leis seculares assegurar que se desse a Deus o que é de Deus 83.

Por outro caminho, a Lei da Boa Razão não veio a erradicar a prática doutrinal como apoio às interpretações dos juristas modernos. Se antes o olhar estava voltado exclusivamente para o direito romano, agora se pensará no direito natural ou das gentes84 para dali sacar à luz as melhores deliberações possíveis. Abdicar dos comentários de Bártolo ou de Arcúsio significava também frear a força do romanismo e optar por um Estado moderno forte que teria suas próprias diretrizes legais e matizes interpretativos sem o amparo sempre presente da Igreja. Ao final, o resultado dessa possibilidade interpretativa do direito nacional, em construção, resultou em duas consequências: uma foi a importância dos Estatutos da Universidade como referência para as principais questões doutrinais desse direito romano, não totalmente repelido; e outra foi também a possibilidade de que “o direito romano, susceptível de aplicação subsidiária entre nós seria somente o que estivesse de 82

SILVA, Op. Cit. CALAFATE, Op. Cit., p. 62. 84 Tratando dessa relação com os Estatutos de 1772, vale lembrar que os seus tomos de II a V (308 a 335), enfatizavam, considerando o princípio da razonabilidade aplicado ao direito romano, que o mesmo fosse feito em relação ao direito natural e das gentes e, como ocorria nas diversas nações civilizadas, deveria ser inculcado aos alunos nos primeiros anos do ensino jurídico. 83

37

acordo com os princípios de direito natural ou das gentes em vigor nas nações cristãs e civilizadas”85. Talvez seja essa uma expressão síntese da mescla entre razão e cristianismo, direito e regalismo no pensamento filosófico do estado português dos oitocentos. O racionalismo para Portugal estava envolto a matizes sensualistas e empiristas 86, o que dava mais espaço para que a revelação divina assentasse suas bases nas construções filosóficas dos pensadores lusos. Deus seria a razão do direito natural e assim, as teorias contratualistas, como ressaltado anteriormente, teriam pouca força ou ainda se notariam tardiamente. Com António Verney se observará uma mudança da visão jusdivinista, jusnaturalismo escolástico, para cimentar, a posteriori, a concepção jusnaturalista iluminista87. De todos os modos, a união entre o Direito natural e a delegação divina da razão aos homens, não será descartada. Aliás, para que haja o direito natural é necessária a existência de Deus, tendo tal direito uma origem divina, portanto 88.

***

Dentro desse contexto mental, a Universidade de antes da reforma era tida como espaço de uma intelectualidade vazia e despropositada, que angariava os “prediletos” dos jesuítas e estes, por fazerem algum favor a um poderoso pai, podiam 85

HESPANHA, Op. Cit., 1978, p.81. Vale destacar também, segundo o autor, que no que toca a entrada dos referenciais estrangeiros no campo do direito em Portugal, ocorreu uma verdadeira subversão no sistema do direito: “a autêntica „bomba de sucção‟ da doutrina estrangeira constituída pelos processos tradicionais da dogmática jurídica, aplicados agora ao novo corpo doutrinal da literatura jurídica iluminista, deu lugar, em um pouco mais de trinta anos, a uma invasão maciça dos princípios jurídicos modernos”. (p.82). Esse movimento trará ao início do século XIX com força, os ideais individualistas e racionalistas, e o espaço aberto ao liberalismo. 86 Nesse sentido, vale conferir o capítulo intitulado “Período do Jusnaturalismo Woffiano e escolástico (1772-1843)” no trabalho de MONCADA, Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. Este capítulo versará sobre as principais obras jusfilosóficas da cadeira de Direito Natural, passando por Karl Anton Von Martini e seus seguidores, como José Fernandes Álvares Fortuna que posteriormente será adotado na Faculdade de Direito de Olinda, no Brasil independente. Também será possível perceber as apreensões filosóficas desses cátedras portugueses de pensadores como Wolff, Grócio, Pufendorf e Tomásio, explicitando toda a trajetória jusfilosófica, através das aulas na Universidade de Coimbra desde o estágio mais próximo ao pensamento escolástico, em sua fase moderna, até a readaptação dessas idéias mais distantes dos preceitos divinos mas, aliás, nunca deixadas totalmente. 87 Seria oportuno destacar, pelo menos mais dois nomes importantes para o desenvolvimento do pensamento filosófico e consequentemente do direito e do governo português: António Nunes Ribeiro Sanches, Cartas sobre a Educação da Mocidade (1760) e António Soares Barbosa, Tratado Elementar de Filosofia Moral (1792). 88 Essa premissa estará mais evidente em Tomás António Gonzaga em seu Tratado de Direito Natural (1768), onde sistematiza as doutrinas sobre o direito natural e civil, como também na mesma linha de pensamento António Barreto e Aragão e António Ribeiro dos Santos. Uma síntese de suas obras pode-se conferir em TEIXEIRA, António Braz. A filosofia jurídica. Em: CALAFATE, Op. Cit.

38

afrouxar os sistemas de avaliações e férias estudantis, por exemplo. É curioso notar que as críticas especialmente expostas no sobredito Compêndio de 1771, e confirmadas logo depois nos Estatutos, por um lado convergiam no sentido de justificar a mudança de métodos, mas por outro, sobretudo se considerar o tema da inclusão de um alunado mais diverso ou seleto, a proposta não era de revolução e sim de renovação: apostavam em uma elite que seguiria preenchendo os bancos da Universidade de Coimbra. Quanto à pedagogia inspiradora dos cursos jurídicos de Coimbra, vale lembrar – à parte do que já se destacou sobre Luis António Verney e suas obras – a profunda reflexão dos trâmites educacionais que foi estabelecida através dos Estatutos. Sobretudo quando pensaram o curso de Direito, tinham a preocupação de que o conhecimento, a compreensão e a sistematização fossem os pilares essenciais para a formação do bacharel. Nesse sentido, a necessidade não somente de aprender as leis como um requisito imprescindível para sua graduação, mas também a inclusão da história do direito e ainda da obrigatoriedade de cursar outras cadeiras como as do curso de Filosofia Moral, darão um mote completamente diferente ao perfil dos futuros magistrados. As disciplinas de Direito Natural aportavam a base fundacional dos ideais iluministas e de História do Direito, mas, em contrapartida, traziam o apoio do passado como forma de ensinar do que se deveria afastar. Nesse sentido, a reforma pombalina não reduziu o estudo do direito à aprendizagem de uma mera técnica de aplicação das leis (embora não perdesse de vista a importância desse aspecto) e não desconheceu a natural integração do direito no conjunto das restantes disciplinas culturais; assumindo, até, a idéia de que só a consideração conjuntas de todas essas disciplinas permite uma conveniente compreensão do direito89.

De maneira geral, algumas vertentes fundamentais precisam ser aclaradas sobre essa metodologia do ensino nos cursos jurídicos de Coimbra. O método da Escola de Cujácio – críticos do sistema jesuítico de ensino e de interpretação, adotado desde Itália – para a Universidade lusa será considerado o aparato ideal para a condução do ensino, haja vista se utilizar a síntese, os compêndios e a demonstração como as bases de sua metodologia. Portanto, graças a essa forma de ensino, se possibilitou a valorização do conhecimento das línguas, latim – sobretudo para leituras das obras e da retórica: elos fulcrais para serem empregados como instrumentos facilitadores do conhecimento jurídico desde suas fontes primárias 90.

89 90

HESPANHA, Op. Cit., 1978, p. 106. Para maior aprofundamento dessa discussão ver: SILVA, Op. Cit., em especial capítulo segundo.

39

Ao mesmo tempo, o entendimento de que a cadeira de Direito Natural era fundamental para a formação do jurista trazia a possibilidade de valorar as condições históricas e não mais as interpretações escolásticas. Além do mais, sua inserção incluía a lei natural e a razão entre seus pontos essenciais de formação para que, a partir desse conhecimento, se pudesse galgar o entendimento do próprio homem e deste relacionado à sociedade civil. Tal método proporcionava ao estudante um direcionamento aos textos das leis e provocava o futuro bacharel a uma atitude autônoma em relação às próprias leis que iriam utilizar a posteriori, enquanto magistrado. Essa era também, politicamente, uma forma de ressaltar o rechaço por um passado imediato, que obscurecia a possibilidade de contemplar a verdadeira aura lusa. O intento era, portanto, que através desse núcleo da inteligência portuguesa se pudesse promover uma atualização do tempo precedente, forte e glorioso dos quinhentos e associá-lo às conquistas e ao Império ultramar. Se, valorando o uso da história, ativavase um passado que se queria ressaltar, por outra parte, proporcionando a aproximação dos próprios textos das leis aos bacharéis, se solidificaria a lógica iluminista que preconizava, para esse momento histórico, as leis naturais sobre as civis. Com tal lógica disseminada, aclarado estava que o império era o da razão e que o Estado era o sancionador de qualquer ação contrária à lei maior, a da natureza. Se antes se formava sem uma objetividade clara, no período da razão, a ciência jurídica, que mais interessa destacar, existirá para promover uma formação de homens que preencherão funções no Estado e poderão com eficiência serví-lo. Afinal, “ninguém aprende o Direito para ficar nas Aulas; mas sim para os usos que dele deve fazer na vida Social, Civil e Cristã, com a aptidão necessária para poderem satisfazer as diferentes funções, e ministérios da sua profissão”91. Esse nexo se alinhava a uma demanda utilitarista integrada às políticas educativas do Estado português, que caminhava para o XIX. Enfim, os Estatutos haviam servido de base ao ensino jurídico até 1835, quando sofreram alguma alteração unindo a Faculdade de Cânones à de Leis. No geral, porém, a base formativa que visava um alto nível científico seguia em voga, dispondo do bom serviço profissional para os futuros bacharéis92. 91

Estatutos da Universidade de Coimbra, Liv. II, Tit. II, cap. II, 1772. A. M. Hespanha, em sua obra A História do Direito na História Social, já citada, traz uma leitura apegada a Marx, ou pelo menos tentando responder a inquietações a partir dele. Portanto, nesse trabalho aparecem categorias típicas como burguesia, visão de elite ou políticas liberais ou liberalistas, próprias do contexto historiográfico dos finais dos anos 1970. À parte disso, merecem destaque as discussões que 92

40

Fica patente, então, que esse corpo magistrado que se formava dentro desses manuais doutrinais da Universidade de Coimbra, através da Faculdade de Direito, era o que compunha toda a malha administrativa e judiciária do Estado moderno português 93. E esse aparato funcionaria não somente para a península lusa, como também para todas as possessões ultramarinas, como o Brasil. Foi dentro desse processo de apropriação e ressignificação do pensamento jusfilosófico da ainda capital do império português, que os filhos de ricos portugueses, nascidos no Brasil, assim como os portugueses comissionados a exercer seus cargos no além-mar se formariam e partilhariam de toda a lógica sobre o que era a justiça e o que era o Estado para si.

entabula acerca de toda a estrutura organizativa e política da Universidade de Coimbra, trazendo uma visão crítica, mostrando avanços e permanências, aproximando o leitor o máximo possível do pensamento político e ideológico daquele momento histórico. 93 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo. 2.ed. Lisboa: ICS, 2007. Especialmente o capítulo quarto: “Poderes e Circulação das elites em Portugal: 1640-1820”.

41

1.3. Fluxos luso-brasileiros

Conforme já exposto, na Península Ibérica como um todo não seria fácil a absorção das idéias iluminadas, considerando todo o filtro da Contra-Reforma que, ainda na segunda metade do século XVIII, combatia a física newtoniana, estando atrelada ainda à formação jesuítica dos séculos anteriores. Seria, como elucida Joaquim de Carvalho, uma luta “do conhecimento exacto das Ciências contra as concepções gerais sem outro fundamento que não fosse a coerência lógica dentro do sistema a que se articulavam”94. Essa luta se revela em sua síntese, na própria condução do pensamento da chamada segunda escolástica e das idéias iluminadas que, a primeiro momento foram interpretadas como contrárias à lógica contra-reformista. Portanto, o que se quer por em relevo tem relação direta com essa tentativa de adequar o circuito exterior e protestante no que toca às idéias filosóficas na Europa. Esse contingente de novidade não foi capaz de trazer a Portugal um arsenal combativo que desfizesse por completo a base tomista e aristotélica e configurasse uma explicação moderna da física, da filosofia e mesmo do Direito. E é por isso que, em grande medida, o caso luso passa por uma conjuntura peculiar, porque não ultrapassa a escolástica da Ratio Studiorium em sua totalidade95. As impressões deixadas pelos jesuítas marcariam uma síntese do que se chama o Iluminismo Católico. Ainda que homens como Tomás António Gonzaga, em Tratado de Direito Natural (1768) ou Matias Aires da Silva Eça, em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1752), tenham refletido sobre a lei natural ou ainda acerca da própria condição humana e da sociedade, estavam decididamente envoltos à tradição escolástica de seus predecessores e contemporâneos. Estes luso-brasileiros influíram tanto na metrópole quanto na colônia em que viveram, talvez não diretamente através de seus tratados, mas, sobretudo, pelas suas atuações políticas. 94

CARVALHO, Joaquim de. Subsídios para a História da Filosofia e da Ciência em Portugal. Vol. 2, Coimbra: Coimbra Editora, 1950. p.07. 95 Segundo o filósofo Antônio Paim, a Segunda fase da Escolástica na Península Ibérica pode ser dividida em duas fases: o período barroco (entre 1550 -1650) e que tinha como figuras centrais Suarez, Sanches e Vitória, influenciadores no pensamento na Europa central e nos Países Baixos no século XVIII; e o período escolástico propriamente (entre 1650 – 1750), adepto ao tomismo puro, melhor exemplificado na Ratio Studiorum, manual de ensino jesuíta em que a dúvida e a investigação dos princípios estudados eram proibidas. Ver PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio; Brasília: INL, 1984.

42

O que Verney propunha em O Verdadeiro Método de Estudar era uma reforma aguda no pensamento luso que se aproximasse do que era vivido em Inglaterra, contudo “essa tentativa era limitada não apenas pela ausência de um autêntico pensamento científico – de que resultava o invólucro escolástico da Física de Verney – mas defrontava-se com obstáculos mais profundos”96. Enquanto para os ingleses, o aparato da religiosidade estava totalmente apartado das discussões filosóficas e se valorizava a liberdade dos indivíduos, nessa matéria, a efetiva separação do poder temporal não se refletia nas estruturas do pensamento português. Grócio, como já exposto anteriormente, foi adotado pela escolástica e seu Tratado era a síntese do Direito natural gradualmente defendido desde então. A aparente atitude de aderência a tais ideais, se incorporava às leis transcendentais. Para ele, ainda que Deus não existisse, haveria um direito da natureza, já para António Gonzaga (1771 Tratado do Direito Natural) essa possibilidade era impossível, por exemplo. Sendo assim, é forçoso admitir que entre a era pombalina e a Viradeira de D. Maria I o que houve foi uma tentativa de renovação que perpassou o plano pedagógico, se inseriu no plano filosófico e abriu as portas para o que Joaquim de Carvalho chamou de empirismo mitigado, mas que não alcançou a ética política 97.

***

Para que se possa entender o raio de influência de toda essa conjuntura, se faz necessário pontuar, a partir do ensino e da formação em Portugal, as apreensões acerca da idéia de Estado e do Direito para além da matriz metropolitana. Nesse caso, as discussões se centrarão sobre o Brasil, pensando especificamente nas bases formadoras do pensamento luso-brasileiro oitocentista que culminará no processo independentista para a ex-colônia. Como é sabido, o ensino estava, desde o período anterior ao Iluminismo português, voltado à preparação de uma elite gerada desde a Universidade, em Coimbra basicamente. A idéia protestante de que deveria haver um ensino popular através de um sistema público de instrução não teria muitos adeptos, principalmente nas zonas mais

96 97

PAIM, Ibid., p. 226. CARVALHO, J. Op. Cit.

43

católicas da Europa98. Desde o ensino secundário até a formação universitária o que havia era um investimento familiar e não estatal. Sem os jesuítas, tanto na metrópole lusa quanto em suas colônias, se observa um esforço no sentido de suprir essa falta no campo da educação e da cultura aos mais jovens 99. A reforma do ensino secundário, em 1759, efetuada por Pombal foi transladada ao Brasil tal como era em Portugal e, inicia-se com dois passos distintos que apenas são convergentes, a medida em que ambos se dirigem intencionalmente a eliminar os jesuítas e, quanto possível, a curto prazo,os religiosos em geral, substituindo a sua ação educativa por nova dinâmica racionalista, que ainda respeita a hierarquia eclesial, mas subordinada ao Estado 100

O Compêndio e os Estatutos da Universidade viriam a reger, num plano macro, toda a organização do ensino nos domínios lusos, formando uma geração de naturalistas e estudiosos, como José Bonifácio de Andrada e Silva 101. Era dentro desse ambiente que boa parte do corpo científico formado na Universidade, nascido ou não no Brasil, acudia à Colônia para efetuar suas pesquisas o que, a posteriori, será um terreno fértil para que o empirismo e o cientificismo se constituam como práticas típicas da atmosfera científica e acadêmica no Brasil102. Esse ambiente, vale pontuar, não se sustentou graças a uma vida universitária na própria colônia. Sobre esse ponto, em contraposição ao que sucedeu na América 98

Stephen Mason estudou o fenômeno do desenvolvimento das ciências entre as nações modernas protestantes e católicas na Europa e observou como, por exemplo, a maioria das Academias literárias (e científicas) se localizava na zona protestante bem como a própria Academia de Ciências de Paris premiou, no decorrer do século XVII, apenas 16 católicos enquanto os protestante perfaziam um total de 71. MASON, Stephen. Historia de las ciencias: 2. La revolución científica de los siglos XVI y XVII. 4 ed. Madrid: Alianza editorial, 1996. 99 Carlos Guilherme Mota elucida, nesse sentido, que “a expulsão dos jesuítas deixara Portugal sem professores de nível secundário e universitário. Por esse motivo, um novo sistema de educação secundária e a reforma da Universidade de Coimbra tornaram-se pedras-de-toque da administração pombalina, e os oratorianos – críticos dos jesuítas – forneciam o instrumental conceitual e ideológico do governo reformista”. Ver MOTA, Carlos Guilherme. “Do Império luso-brasileiro ao Império brasileiro”. In: MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na Formação do Estado Brasileiro. Vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. (Coleção Juristas Brasileiros). p. 62. 100 Para uma visão mais aprofundada do tema, ANDRADE, Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva/EDUSP, 1978. p.4. 101 José Bonifácio, a parte de sua participação política no processo de independência do Brasil, produziu sua tese na área de química, sendo reconhecido internacionalmente. Cf. FILGUEIRAS, Carlos A. L. “A Química de José Bonifácio”. Em: QUÍMICA NOVA. Vol.09. n.04, 1986. p. 263-268. 102 Vale destacar que já no XVIII para o XIX, houve um grande interesse, começado já nos bancos da Universidade, pelas ciências naturais, os cursos de Matemática e Filosofia. Agregaram disciplinas como a de História Natural, mas também uma gama de laboratórios de química, física, observatório astronômico, além de um interesse por mineralogia. Todo este estudo também reverberará às colônias, como campo de estudo, lugar de interesse aos viajantes e aos científicos, o que abrirá espaço para o futuro incentivo de D. Maria I para tais ações científicas no Brasil.Cf. PAIM, António. “O Iluminismo no Brasil”. Em: CALAFATE, Pedro (org.). História do Pensamento Filosófico português. vol.3. Lisboa: Editorial Caminho, 2001.

44

espanhola, a lógica lusa mesmo em Portugal era a de concentração do saber de nível superior, no caso através da Universidade de Coimbra. Se assim acontecia na própria metrópole, resultaria difícil pensar em alguma atuação de gestão acadêmica no Brasil. De todas as maneiras, não se pode excluir algumas atitudes nesse sentido. Ainda no período que antecede a saída da família real do Brasil, sob reinado de Dª. Maria I, havia já sinais desse interesse e estímulo 103, considerando as diversas aulas de primeiras letras, como gramática e latim, ou ainda o incentivo pelas investigações e ensino no campo das ciências naturais e das belas-artes. Além do maior incentivo às publicações de cunho científico, que inclusive quase triplicaram no período iluminista, várias academias se incorporaram ao contexto das discussões filosófico-científicas e literárias, a exemplo da Academia Científica do Rio de Janeiro ou da Academia Literária de Ouro Preto. A Universidade de Coimbra se configurava, então, como plano referencial para os que podiam investir no ensino superior de seus filhos 104. Assim, boa parte da intelectualidade do Brasil, ainda sob o domínio português, desfrutava da formação conimbricense, sobretudo na área do Direito. Tanto esses futuros bacharéis iam para a metrópole estudar, quanto portugueses nascidos em Portugal e formados ali em Coimbra podiam exercer sua profissão no Brasil, seja a mando do governo ou por opção. Isto significa afirmar que, esse trânsito de idéias entre a Europa e a então colônia lusa no Atlântico, ganhava sentido, sobretudo através desse processo de formação que a Universidade propiciava. Independente de como reagissem, seja pela demonstração de rechaço, inovação ou aceitação, os egressos de Coimbra passavam essencialmente pela mesma fonte que de alguma maneira unificava e fortalecia os ideais filosóficos e científicos gerados na metrópole. A delimitação territorial do Brasil colonial, feita por cientistas muitos já nascidos no Brasil - , assim como as primeiras idéias acerca da independência

103

CUNHA, Paulo Ferreira da. Pensamento Jurídico Luso-Brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. (Estudos Gerais. Série Universitária). O autor inclusive reflete sobre a existência desses pólos de ensino e investigação como sinais já do que denomina uma proto-universidade. No trabalho de Ruth Maria Chittó Gauer também há referência a toda a formação, através de Academias, especialmente a Militar, criada em 1779, que fora permitida na colônia do Brasil. Cf. GAUER, R. M. C. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001. p. 147 e ss. 104 A Universidade de Coimbra foi o ancoradouro principal para que essa elite nascida ou criada no Brasil tivesse acesso ao ensino superior. Contudo, vale pontuar que não foi a única. Segundo Maria Odila Dias, havia bacharéis e científicos formados em Montpellier, Edimburgo, Paris e Estrasburgo, grandes incentivadores também da investigação e dos estudos de ciência moderna da época. Ver em DIAS, Maria Odila da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Em: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. N. 278. Rio de Janeiro, 1968. pp. 105.

45

política e por fim a própria construção da nacionalidade do país moderno que se apontava, teve como nascedouro primordial essa passagem pela Universidade 105. Ruth M. Gauer resume de maneira objetiva tal síntese quando afirma que: A participação de muitos brasileiros Egressos de Coimbra em missões científicas pode ser considerada a gênese da nossa produção científica. Não vemos em suas atuações dicotomia entre política e ciência. (...). A mudança de mentalidade provocada pela Reforma de 1772 levou a uma nova apreensão do real. (...). Essa nova geração pode ser considerada como autênticos discípulos das ciências modernas, ou pelo menos, os que se propuseram a continuar no Brasil as primeiras pesquisas científicas, embora muitas das vezes refutando alguns pontos considerados importantes no conhecimento científico moderno106.

O importante é lembrar que toda a trajetória de incentivo, por parte da coroa lusa, para que se explorasse, demarcasse e se ensinasse em alguma medida no Brasil, foi a base lançada para que a intelectualidade formada no além-mar, seja em Portugal ou em outros países modernos107, tivesse não apenas como transmitir o conhecimento mas também, a partir da realidade em que foi criada, ultrapassar esse momento de formação e definir as bases ideológicas do que seria um país ao século seguinte. Em 1808, quando a família real transmigrou-se com sua corte ao Brasil – o que muda o status de colônia (principado, desde 1634) para Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (Congresso de Viena, 1815) – a vida cultural tomará mais fôlego e se notará que as reformas pombalinas surtiram efeito e já davam seus frutos. A Real Academia Militar 108 (1810) foi o ponto de apoio principal para que esse desenvolvimento do cientificismo tivesse lugar. Grandes nomes da filosofia, medicina e matemáticas, e posteriormente da Faculdade de Direito 109, começaram justamente por essas Academias e Escolas. 105

Acerca desse processo de formação e posterior atuação desses médicos, físicos, botânicos no Brasil não somente sob a perspectiva profissional e técnica como também política no processo de independência e conscientização da população nativa conferir GAUER, Op. Cit. 106 GAUER, Ibid., p. 171. 107 A lógica do Iluminismo português estava voltada para o pragmatismo de suas ações investigadoras. Este estímulo estaria vinculado diretamente ao progresso do Estado e, nesse sentido, o Brasil se configurava como um dos pontos de apoio para o desenvolvimento dessas experiências que, segundo Maria Odila Dias, encarnavam a revolução, pois que o incentivo aos estudos naturais visando fins práticos para o desenvolvimento da agricultura, por exemplo, denotava o contraponto às idéias jesuíticas que tomavam tais conceitos como „ignóbeis e suspeitos‟. Cf. DIAS, M. Op. Cit., p. 115 e ss. 108 A Academia Real Militar dedicava-se ao ensino das ciências exatas e da engenharia em geral. Propiciava a formação de oficiais para as armas e ainda engenheiros, topógrafos e geógrafos objetivando gerar estudos e elaborar trabalhos em minas, portos, caminhos, canais, pontes, conforme estipulava sua lei de criação. Ver MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. “Astronomia na regência de dom João”. Em: R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442), jan./mar. 2009. pp. 319-335. 109 A presença da realeza oportunizava o fortalecimento do pensamento e da cultura local o que reverberaria sobre a vida política e a ascensão de uma elite no Brasil. A instalação da corte no Brasil gerava uma forte demanda de profissionais para administrar tanto uma estrutura educativa para a já ex-

46

Aliás, precisamente o fomento aos estudos técnicos – visando uma base empírica do conhecimento, entendido como moderno – será a prática que marcará suas insígnias sobre o pensamento filosófico e pedagógico luso-brasileiro. O empirismo mitigado - a prática experimental da filosofia baconiana aligeirada ou abrandada – irá compor umas das heranças fundamentais da construção do pensamento e do método de ensinar no território luso e posteriormente brasileiro. As bases desse empirismo estavam pautadas na repulsa à filosofia anterior ao pombalismo, o que traz à ciência um lugar de centralidade. Contudo, tal atitude vai permitir que a filosofia, ou a teorização da experiência e sua reflexão, seja um subproduto, diminuindo seu valor ou aprofundamento pela prática empirista. O mais interessante é que, apesar da valoração da experimentação, como comprovação da verdade, o feixe da tradição retorcia e significava a lógica do pensamento moderno de então. Assim como a filosofia natural estava para os modernos, a moral estava no terreno da permanência. No Brasil, a particularidade distintiva da espécie de empirismo que gozava as simpatias da maioria, em nosso país, das últimas décadas do século XVIII aos anos trinta do século seguinte, consiste pois na eliminação de toda a problematicidade que a nova física trouxera ao saber filosófico. (...). Em síntese, vigorava a suposição de que a incorporação do pensamento moderno podia dar-se sem uma discussão profunda das doutrinas a que se contrapunha 110.

O ainda Reino Unido de Portugal, Algarves e Brasil tinha em suas rédeas o desenvolvimento e o estímulo ao pensamento científico moderno. Esse era o espaço legado ao conservadorismo ético que não aceitava nem uma política liberal sem o monarca ilustrado e absoluto, e nem um corpo doutrinário distante do catolicismo. E, nesse sentido, a filosofia que chegou aos bancos das Academias e dos cursos universitários em geral, foi a do uso da ciência como saber de tipo operativo. No que toca aos assuntos éticos-políticos, se passaria ao largo de muitas das discussões que circulavam fervorosamente entre boa parte de Europa e do norte da América. O corolário da revolução em França e na América inglesa não chegaria com a mesma força e nem com a mesma fluidez e agilidade que em outras nações ocidentais. Como resultado, “o empirismo mitigado levou a um entendimento unilateral e faccioso da colônia, como para promover uma malha administrativa digna de receber as cortes. Portanto, o título de Doutor garantia um status na vida social de um jovem, mas, sobretudo poderia lhe garantir um cargo de respeito junto à coroa. Para tal discussão Cf. PAIM, António. “O Iluminismo no Brasil”. Em: CALAFATE,Op. Cit.. 110 PAIM, Op. Cit., 1984. p. 236.

47

idéia liberal, ao inspirar-se nas idéias políticas francesas e simplesmente sobrepô-las ao todo incoerente em que se apoiava” 111. Somente a partir da terceira década do século seguinte ao de Pombal, é que a elite do Brasil independente poderá aceder com outras perspectivas às idéias políticas francesas e desfrutar de uma filosofia desapegada dessa herança lusa, portanto.

111

PAIM, Ibid., p. 240 e ss.

48

Capítulo Segundo O estudo para o Estado: a formação jurídica como suporte da nova estrutura no país independente Considerando que a concepção do pensamento filosófico e jurídico do Brasil foi de fundamental importância para entender a formação do estado nacional, este capítulo questionará em que medida a formação jurídica, como base para compor uma estrutura ideológica e de profissionais aptos, cooperou no projeto nacional de uma monarquia constitucional e que necessitava fortalecer-se em suas estruturas. Para tanto, além da recopilação de alguns dos estudos mais significativos sobre o tema, os Discursos Parlamentares e os Estatutos para os Cursos jurídicos serão utilizados como meios para as análises postuladas. Se o ensino passou a ser uma preocupação somente deste lado do Atlântico, como seria gerado o aparato pedagógico para criar ou reordenar o que havia de instituições, assim como para subsidiar e preparar essa geração nacional? Nesse sentido, se criarão os Cursos jurídicos no Brasil e, se o Estado determinaria as diretrizes positivas nas leis, também seria ele a reger a formação dos que iriam manejar seus Códigos. Portanto, o ensino jurídico será, também, o canal para que o plano de construção do Estado seja viável. Essa tarefa necessitaria de grandes esforços de diversas naturezas, como a de financiar sua estrutura, afinal, a conquista da independência não resultaria aos cofres públicos uma imensa soma para administrar as despesas públicas, muito pelo contrário. Enfim, caberá aqui enquadrar as principais preocupações em torno da construção de uma pátria através da sustentação filosófica, política e espacial dos Cursos jurídicos no Brasil. A educação superior, neste caso, focada nos cursos de Direito, será o caminho para compreender a fusão entre a estratégia de unidade e centralidade do governo brasileiro e a formação do bacharelado. Aqui se poderá observar que a autonomia intelectual, a reafirmação do sentido do Estado e a civilidade estavam, neste jovem país, diretamente ligadas à formação jurídica.

49

2.1. Pressupostos jusfilosóficos Para entender as opções filosóficas sobre o pensamento luso-brasileiro é necessário ter em conta seu processo político e a mentalidade construída sobre esse tema. A Europa ocidental, desde o século XVIII, com Locke, Bacon e outros, levantava a bandeira do empirismo como forma de adquirir conhecimento, de um lado, mas também essa experiência necessária aos indivíduos vazava aos campos da política e da filosofia conquanto temas como cidadania, povo, liberdade e propriedade estavam na pauta do dia. Os princípios liberais tomavam força desde Inglaterra, e em França já se notava a adequação do liberalismo à sua própria política econômica 112. Portugal retardou esse processo de captação do liberalismo inglês e com a Viradeira de D. Maria I, houve uma atitude de encerramento ou pelo menos de não valorização dos ideais revolucionários francês e norte-americano. Esse distanciamento também foi provocado num plano geográfico. A Corte no Brasil propiciava também um certo isolamento de todas as possíveis pressões da Europa. Nem a revolução em Espanha e as Constituintes em Cádiz, em 1812, afetaram a reflexão portuguesa sobre seu sistema de representação e somente com o retorno à península, em 1814, com a convocação das Cortes, era que se podia notar algum feixe de preocupação sobre os temas circulantes na Europa e já na América Inglesa 113. Enquanto isso, em plano geral, o Brasil tinha uma formação intelectual prioritariamente forjada aos moldes lusos e encontrava-se com um corpo intelectual demasiadamente integrado àquelas idéias caras ao patrimonialismo 114 estatal português. Assim sendo, podia-se encontrar extremismos por todas as partes: os defensores do absolutismo de um lado e, de outro, os defensores de um republicanismo extremado. O aparato filosófico do empirismo era a solução mais plausível para toda a complexa trajetória que o jovem país estava vivenciando em vários trâmites de sua 112

Para tal discussão ver: TORGAL, Luis Reis; ROQUE, João Lourenço. (coords.). Historia de Portugal. O liberalismo. Vol. 05. Lisboa: Estampa, s/d; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo. 2.ed. Lisboa: ICS, 2007. 113 Nesse sentido ver PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil.São Paulo: Convívio; Brasília: INL, 1984; ARAUJO, Ana Cristina Bartolomeu. “As invasões francesas e a afirmação das idéias liberais”. e VARGUES, Isabel Nobre. “O processo de formação do primeiro movimento liberal: a Revolução de 1820”. Em: TORGAL; ROQUE (coords.). Ibid. pp. 17-43 e 45-63, respectivamente. 114 Wolkmer sintetiza a categoria: ela “deve ser interpretada sob a ótica do referencial weberiano, ou seja, como um tipo de dominação tradicional em que não se diferenciam nitidamente as esferas do público e do privado. Sua prática, no Brasil, ocorre quando o poder público é utilizado em favor e como se fosse exclusividade de um extrato social constituído por oligarquias agrárias e por grandes proprietários de terra”. Em: WOLMER, Luis Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 35. Ver também: FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato político brasileiro. 11 ed. São Paulo: Editora Globo, 1997.

50

independência, ou pelo menos da consolidação dela. Era importante manter o caminho iniciado por Pombal, mas também não ignorar toda a lógica do liberalismo inglês que se espalhava já ao ocidente. Portanto, no Brasil houve uma clara aceitação da ciência experimental e sua valoração exprimia essa necessidade de se harmonizar com a ciência moderna que se apontava desde dois séculos na Europa. Em outra perspectiva, os traços herdados da matriz portuguesa permitiam que a religiosidade ainda fosse tomada como elo fundamental para a identidade do Estado e o seu direito natural, atrelado aos termos escolásticos. Essas marcas serão observadas desde a formação intelectual conimbricense até a reflexão universitária em solo brasileiro.

***

No início do século XIX, o Seminário de Olinda podia ser considerado o protótipo de uma organização universitária. Reunidas as aulas régias 115 ali, se garantia a utilização de todo o corolário pombalino, com aulas a partir da leitura de Genovesi e a organização do ensino copiava os Estatutos da Universidade de Coimbra. Na terceira década deste mesmo século, seria o Colégio D. Pedro II e as Escolas Estaduais que se responsabilizariam em propagar a base do pensamento filosófico no Brasil, já independente. Como já enfatizado, houve nessa passagem do século XVIII ao XIX uma clara absorção do empirismo, tentando convalidar a tradição escolástica ao método científico moderno, do que se tomaria a base empirista e cientificista e abarcaria de maneira menos profunda os debates de cunho filosófico que o próprio desenvolvimento do pensamento europeu havia ensejado em décadas anteriores. De todos os modos, um reflexo positivo dessa incorporação do pensamento moderno pode ser considerado o gradual interesse em sistematizar e hierarquizar o pensamento científico: uma busca pela ontologia e uma nova concepção do homem116.

115

As aulas régias podem ser compreendidas como a primeira sistematização de ensino público no Brasil. Implantadas efetivamente em 1774, estavam voltadas ao estudo das humanidades mas que, em geral, contemplavam um seleto público, restrito às elites locais na colônia. Para aprofundar o tema: CARDOSO, Tereza Fachada Levy. As Luzes da Educação: fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro. (1759-1834). Bragança Paulista: EDISF, 2002; STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara. Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Vol I – Séculos XVI-XVIII. Petrópolis: Vozes, 2004. 116 Nesse viés, Cruz Costa sintetiza sobre a herança lusa: “a filosofia portuguesa é essencialmente prática. Nela prepondera o sentido prático e positivo da vida. Não é a Razão Pura, mas o homem que pensa, o homem que sente, que age, o homem vivo, que interessa o português. Nunca foi a contemplação o

51

Por outro lado, as motivações para o estímulo às investigações e incursões científicas no Brasil estiveram, desde sempre, submetidas ao apoio governamental, o que legitimava também a força do poder monárquico, quer durante o período de Reino Unido, quer posteriormente, como país independente. Nesse sentido, pode-se comprovar que os vários lentes que compunham o corpo docente no Império, e que ministravam nesses espaços de ensino, e refletiam sobre o pensamento filosófico e político no Brasil, foram os mesmos que marcariam o processo independentista. Para além de seus papéis como formadores de uma intelectualidade no país, transversalmente os seus cargos políticos ensejariam os ideais ético-políticos. O que foi incorporado do empirismo inglês em terras lusas chegaria, através da base formadora dos bancos de Coimbra, à elite brasileira. Durante as últimas décadas do século XVIII até inícios de 1830, o chamado empirismo mitigado justificaria as bases do pensamento filosófico e político no espaço luso-brasileiro. Porém, será ainda neste mesmo período que as sementes do pensamento filosófico nacional de Silvestre Pinheiro Ferreira começarão a ganhar terreno no espaço ainda luso-brasileiro. O ecletismo trará à filosofia seu lugar e em boa medida graças às aulas de Silvestre Pinheiro na cadeira de filosofia no Rio de Janeiro, o que inspirará a intelectualidade já formada no novo país aos debates de temas modernos e ensejará as concepções de instituição e projeto de governo brasileiro. Os escritos de Silvestre Pinheiro foram utilizados como leitura obrigatória nos cursos de filosofia durante muitos anos, sendo sua obra atualizada e editada várias vezes117. O seu intento principal era o de equilibrar de forma sistemática o aristotelismo utilizado pelos empiristas a Locke e Codillac, ganhando por um lado com a tradição escolástica e por outro com os avanços de Verney. A característica essencial de seu pensamento foi o ato de evitar os choques abruptos e descontínuos. Portanto, ele traz uma base já sedimentada no pensamento luso-brasileiro, o sensualismo, e também incorpora uma teoria do conhecimento, baseado na ontologia, na ordenação do saber e

principal característico da alma portuguesa”. CRUZ COSTA, João. A filosofia no Brasil – ensaios. Porto Alegre: Globo, 1945. p. 25. 117 Para aprofundamento da questão assim como outras referencias, ver “Ecletismo esclarecido e primórdios do kantismo” em PAIM, Op. Cit. pp. 253-279. Nesse sentido, Cruz Costa avalia o perfil intelectual de Pinheiro: “educado nos princípios de Aristóteles e seus continuadores, Bacon, Leibniz, Locke e Condillac e é uma mistura desses filósofos que ele expõe nas trinta longas aulas que fez e que constituem o livro aparecido em 1813 na Imprensa Régia(...). Ver: CRUZ COSTA, João. “A universidade latino-americana: suas possibilidades. Contribuição brasileira ao estudo do problema”. Em: Revista História. São Paulo: UNESP, n. 46, 1961. p.377.

52

no próprio processo do conhecimento para, a partir daí, entender a Ética e o Direito Natural. No plano político-jurídico, e de maneira geral para esse período, o filósofo português pode contribuir de forma destacada para revitalizar o papel das liberdades no seio da sociedade civil e ao mesmo tempo resguardar o que havia de tradicional na organização política portuguesa. Nesse sentido, aos princípios liberais adequou a monarquia constitucional e priorizou a confecção de uma filosofia sistematizada que condissesse com a lógica ibérica a que estava imerso. Nesse contexto, elabora várias obras que retratam a sua preocupação com a ordenação jurídica no território lusobrasileiro: Observações sobre a constituição do Império do Brazil e a carta constitucional de Portugal (1831), Manual do Cidadão para um governo representativo (1834), além do Curso de Direito Público (1830). As doutrinas de Pinheiro denotavam o claro interesse por aclarar suas bases filosóficas sobre os elementos constitucionais atrelados à representatividade e, em realidade, amparar de maneira jusfilosófica o sistema político mais adequado para gerir um país moderno que havia vivido entre o escolasticismo e o sensualismo. Os princípios liberais, mais do que o idealizado, eram evocados para necessidade específica dos países ibéricos 118. Em fins do XVIII, cruzando já as primeiras décadas do século seguinte, o pensamento político e o rearranjo das instituições na península já eram uma urgência que significava não a ruptura, mas uma harmonização de teorias de estado modernas e teorias de estado absoluto. Para que tal empreitada tivesse sentido, homens como Silvestre Pinheiro tiveram de engendrar a justificação de uma monarquia apoiada por um corpo político, aplicada ao contexto liberal. O resultado parece muito familiar ao que veríamos no herdeiro luso no Atlântico: valorização da instrução como égide primordial para a representação do „povo‟, quer nas Cortes ou na Assembléia, assim como o rearranjo com a tradição por meio da conexão monarquia-liberalismo 119, cooptados por um tipo de cidadania

118

Sobre os matizes liberais no seio filosófico lusitano, Cruz Costa afirma que “o ecletismo correspondia precisamente ao desejo de evitar os excessos dos revolucionários e de reacionários. Filosofia do justo meio condizia com os ideais do liberalismo burguês.E (...) deriva do fato de ele haver fornecido ao liberalismo as teses filosóficas de que este necessitava. Insuficientemente crítico e prudentemente progressista, ligou-se à forma monárquica, constituindo-se como filosofia das elites liberais...”. CRUZ COSTA, João. “A universidade latino-americana: suas possibilidades. Contribuição brasileira ao estudo do problema”. Ibid. p.377. 119 Os principais matizes destas características, assim como os referenciais bibliográficos, podem ser observados no capítulo primeiro.

53

diretamente associado ao pacto social e que garantiria direitos políticos, diferentemente do homem. A este lhe tocaria acesso aos „direitos inalienáveis‟ da natureza. Contudo, apesar dessas idéias serem consideradas o primeiro passo para que a inteligência brasileira pudesse tomar um caminho de referências próprio, será a corrente eclética que abrirá sendas para o desenvolvimento das ideias no Brasil independente, fomentando bases políticas para a consciência conservadora da elite magistrada e/ou engajada no processo formador do país. A corrente eclética foi em boa medida predominante porque também eleita pela intelectualidade brasileira, elite restrita naquele contexto, ainda mais por estar conectada a Dom Pedro II. As obras de Victor Cousin 120 eram a expressão primeira do ecletismo, no entanto será Maine de Biran quem dará maior aprofundamento às questões filosóficas pontuadas pelo seu fundador. O sistema filosófico, considerado o autêntico formulado no recente país, contava com traduções para o português e suas principais obras eram os temas de leitura obrigatórios nos liceus e institutos à época. Para Machado Neto, o sistema eclético é uma reunião de teses conciliáveis tomadas de diferentes sistemas de Filosofia, e que são justapostas, deixando de lado, pura e simplesmente as partes não-conciliáveis destes sistemas. Foi a Filosofia oficial no Brasil entre 1840 e 1880, numa tentativa de hegemonia filosófica única em toda a nossa história das idéias121.

A razão primordial de seu êxito tem relação direta com a possibilidade de agregar em seu sistema duas ideias já familiares ao contexto mental do Brasil, graças à base incorporada pela tradição lusa: o empirismo e a valorização da ciência 122. Ao mesmo tempo, o ecletismo chamado de espiritualista tinha a missão de contrapor-se aos lustres do pensamento filosófico do XVIII, o enciclopedismo e o sensualismo. Era a volta do eu com nuances psicológicas e historicizantes, valorando mais a Fé que a Razão. Como sintetiza Gérard, ainda no XIX:

120

O sistema de Cousin estava embasado em um método eclético, historicista, inspirado de Hegel, e psicológico que tinha como fim o espiritualismo, no que alegava ser sua principal bandeira. O ecletismo não era uma doutrina original em si, mas uma reunião de outras que se podiam harmonizar. 121 MACHADO NETO, Antônio Luis. História das Idéias Jurídicas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1969. p. 16-18. 122 Silva Dias observa algumas das características da ilustração no Brasil oitocentista do seguinte modo: “Traço de continuidade... uma inclinação pragmática, que se exprime no culto as ciências e aos conhecimentos úteis; dedicavam-se a busca, consciente e pragmática, dos instrumentos da nova nacionalidade. (...). Punham no culto a Ciência o mesmo fervor com que admiravam a arte. (...). Os problemas da mão-de-obra e a evolução da consciência social brasileira, assim como a preocupação em fomentar o progresso material, foram os dois pólos da atividade desses liberais racionalistas do século passado”. Ver DIAS, Maria Odila Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Em: RIHGB, 278, 1968. p.167.

54

A filosofia de Maine de Biran é eclética, pois que busca restabelecer o acordo entre doutrinas opostas e a concluir um tratado de aliança entre a metafísica e a experiência. Mas é um ecletismo de natureza toda particular, que não se limita, para conciliar os termos opostos, a depurá-los do que tem de extremo, negligenciando ou atenuando as contradições, dando maior ênfase aos pontos de contatos e às relações possíveis123.

Esse nível de abstração incorporado ao pensamento filosófico no Brasil abriu caminho para que os debates sobre o Estado e o próprio Direito tivessem um matiz filosófico mais distanciado do empirismo anterior, o mitigado. Seria a oportunidade de adotar uma escola que não contradissesse a religião e resultasse eficaz aos problemas políticos que os primeiros anos da independência, seja no âmbito da educação, das instituições ou da administração pública, teriam de solucionar. A questão essencial, também postulado de Maine, era que fosse possível, por meio dessa visão psicologizante, trazer à liberdade um status aceitável aos postulados filosóficos. Esse fato se observava diretamente subministrado no Brasil e adotado ao seu sistema de idéias. Segundo Paim, “a questão do pensamento brasileiro não consistia no reconhecimento da ciência, (...), equiparável à que desfrutara a filosofia escolástica. O problema consistia em integrar a liberdade e assim incorporar o liberalismo político num sistema empirista coerente”124, que a falta de uma doutrina anterior impossibilitava sistematizar e legitimar. Nesse sentido, homens como Eduardo Pereira França seriam reconhecidos como filósofos que ajudaram a trazer, por uma visão espiritualista, as bases filosóficas para reconhecer a força da liberdade no âmbito político 125. Esse ambiente mental que o Brasil desfrutava é de fundamental importância para que se possa compreender as escolhas que seus dirigentes fizeram no que toca suas próprias instituições. À parte de todo o arcabouço que se apreendia da formação lusa, outras matrizes foram condensadas e aperfeiçoadas no pensamento filosófico e jurídico para possibilitar a gestão de um país independente. A identidade filosófica, nesse sentido, direcionará as bases políticas em amplo sentido, coordenando formação institucional administrativa e jurídica o que ordenará, ou ao menos pretenderá fazê-lo, os rumos ideológicos do país. 123

GÉRARD. J. La Philosophie de Maine de Biran. Paris, 1876. p.234. APUD: PAIM, Op. Cit.. p. 296-

97. 124

PAIM, Op. Cit. p.300. Outra obra clássica que também dá conta de uma descrição do processo de capturação das idéias estrangeiras por parte do Brasil, incluso acrítica segundo o filósofo, é a de CRUZ COSTA, João. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956. 125 RODRÍGUEZ, R. V. A filosofia brasileira, marco epistemológico para a gestão do conhecimento. Juiz de Fora: Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”: UFJF, 2007.

55

O Brasil, vale advertir, não se livrará por completo do passado que Silvestre Pinheiro se esforçou em engessar e tampouco se encontrará completamente saciado com a sistematização miscelânica de Maine Biran. Os matizes ibéricos como o patrimonialismo, a forte conexão com o catolicismo ou ainda a difícil adoção do liberalismo inglês com seu discurso abolicionista, dificilmente denotaria outra que não fosse a herança do pensamento luso. As influências francesa e inglesa são notórias, há que se afirmar, regerão boa parte dos câmbios e motivarão as adaptações no sistema político e jusfilosófico no Brasil. Não se pode negar também que o kantismo, em seu momento, o hegelianismo e ainda a colônia inglesa na América e seu ideário, tiveram sua cota de inserção na história das ideias na antiga colônia lusitana. Porém, o jogo que se faz para adequar tais ideias e utopias contemporâneas é que será conservador. Os intentos considerados efetivamente revolucionários, antes mesmo da independência, a exemplo da Confederação do Equador de 1824, serão, além de confusos na absorção desses pensamentos estrangeiros, um campo minado pela atuação conservadora que via na manutenção da monarquia e de um imperador de sangue português a solução para a unidade do Brasil126. Por isso que, para se pensar a atuação já brasileira nos oitocentos, é crucial voltar a toda a construção do pensamento de justiça, de Estado e da filosofia lusobrasileira e suas posteriores influências, pois serão essas as bases que darão o mote para compreender as escolhas no que tange o exercício do poder através dos ideais do sistema de justiça no recém formado país luso-atlântico.

***

Dom Pedro I, em 1827, ao criar as Faculdades de Direito em Pernambuco e em São Paulo, abria caminho para que jusnaturalismos entrassem no debate acadêmico através das cadeiras de Direito Natural. Inicialmente, antes mesmo da criação, seria Tomás Antônio Gonzaga responsável por assegurar noções fundamentais para a teoria geral do Direito no país, fazendo as primeiras incursões sobre o jusnaturalismo ilustrado. Com as faculdades, Pedro Autran e Avelar Brotero se destacariam como os 126

Nesse sentido, vale conferir os trabalhos historiográficos que discutem esse movimento político em Pernambuco, como SOBRINHO, Barbosa Lima. Pernambuco, da Independência à Confederação do Equador. Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979; LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco, 1824: a Confederação do Equador. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1989.

56

principais professores responsáveis por difundir o racionalismo liberal de finais do XVIII para o XIX, superando o precursor Gonzaga mas, ao mesmo tempo, apegados ao sensualismo de Condillac. O jusnaturalismo que será mesclado a esta tendência interpretativa do Direito Natural no Brasil chama-se escolástico e ultramontanista. José Soriano de Sousa, cátedra da Faculdade de Recife, e Sá e Benevides, professor em São Paulo, terão maior destaque. Seria o momento de contraporem-se ao

jusnaturalismo

moderno

reinterpretando as doutrinas filosóficas vigentes com o filtro do cristianismo. Soriano e Sá e Benevides valorizarão a religião sobre a filosofia rechaçando o individualismo e o liberalismo como reflexo da valorização dessa lógica mais espiritualista que materialista. E, por fim, como remate da expressão da adoção relativizada do ecletismo e ao mesmo tempo adaptação, como será já para muitos cátedras nos três últimos quinhões dos novecentos, das ideias de Krause, se destaca João Teodoro de Mattos em uma clara adequação do Direito Natural ao Catolicismo 127. Se, em um princípio, o recém independente país luso-americano tinha ainda alguma interferência do liberalismo e materialismo inspirados em ideias de liberdade ou de equidade política entre suas províncias, com a consolidação das Faculdades de Direito, o que houve foi a possibilidade de sufocar ou pelo menos atenuar o debate que mais parecia revolucionário e isolado. Abriu-se espaço para ratificar não apenas o ecletismo como a nova face do pensamento político e jusfilosófico do Brasil, mas também, no decorrer do século, o panenteísmo, caro aos ibéricos mais que aos próprios alemães, que ganhava adeptos nas cadeiras universitárias do Direito. Na lógica ultramontana, o ecletismo foi o primeiro passo para que a presença de Deus ganhasse forma no cenário filosófico e ao mesmo tempo seria, como afirmava Sá e Benevides, “os princípios da ciência do direito Natural em sua harmonia com o Cristianismo”128 que dariam à sociedade e ao direito a inspiração divina necessária para que a lei natural e a razão operassem beneficamente em seus meios. A lei era revelação e reflexo da lei eterna e, portanto, divinal e universal. O krausismo, já nas últimas décadas, viria a arrematar essa linha de pensamento colocando Deus em um plano superior e ressaltando que os seres humanos finitos, quando em sociedade, tendiam para

127

Sobre essa discussão ver MACHADO NETO, Op. Cit. especialmente o Capítulo primeiro. Várias dessas ideias estarão expressas no Prefácio de SÁ E BENEVIDES, Philosophia Elementar do Direito Publico – Interno, Temporal e Universal. São Paulo, 1887. 128

57

o bem. O Direito será, nesse viés, o eixo regulador da harmonia tendencial da coletividade. Portanto, como se nota, a concepção do pensamento filosófico e jurídico do Brasil será de fundamental importância para se entender a formação do estado nacional. A Faculdade de Direito se enseja entre os debates constitucionais e será uma preocupação eminente ao processo de independência que se gestava. O título de bacharel, como também outros a exemplo do curso de Medicina, seria a consolidação difusora do Estado legal que se queria independente e positivado. Como lembra José Eduardo Faria, a lógica dos cursos jurídicos correspondia mais a “interesses do Estado do que às expectativas judiciais da sociedade. Na verdade a finalidade básica não era formar advogados, mas, isto sim, atender as prioridades burocráticas do Estado”129, estando focalizada para difundir os ideais liberais na cultura jurídica dessa nova camada letrada que saía dos bancos acadêmicos já brasileiros130. Nesse contexto mental, não se pode relegar o papel estrutural e formador lusitano, tanto da primeira geração de estadistas, educada em Coimbra eminentemente, de filósofos do direito e das doutrinas mais pungentes no cenário intelectual, como também da primeira geração formadora e formada nas Faculdades de Olinda e São Paulo131. Era o momento de lidar com a marca herdada da metrópole e com as novidades de um futuro projetado para a disseminação da modernidade e liberdade, ainda que para as elites, de pensamento jurídico e político para o Brasil.

2.2. A criação dos Cursos Universitários

A fala do deputado Almeida e Albuquerque, nas discussões da Assembléia Constituinte, em 1823, denotava dúvidas sobre a formação universitária no Brasil. Ele, como outros parlamentares, relevava a viabilidade e coerência dos chamados estudos maiores para o país. Os cursos universitários no Brasil, apesar de ser revelado por alguns dos autores já citados, como quase que concomitante ao processo independentista, não significaram uma adesão total e irrestrita entre os estadistas que pensavam a formação do país independente. Antes mesmo das polêmicas em torno do 129

FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: crise do direito e práxis política. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 158. 130 WOLMER, Op. Cit., 2003. 131 Nesse viés vale conferir SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003, especialmente capítulos segundo e terceiro.

58

lugar onde se instalaria os pólos principais do conhecimento, entre os debates em meio à construção da Carta constitucional, se discutia a viabilidade de que instituições de ensino superior, por assim dizer, funcionassem positivamente para o novo país. Antes mesmo que Pernambuco, São João Del Rei, Bahia ou São Paulo e Rio polemizassem as discussões sobre as sedes dos cursos jurídicos, caso que mais interessa, havia uma preocupação parecida ao que a própria Coroa Portuguesa evidenciava para períodos coloniais: a possibilidade de promover a liberdade do pensamento em províncias era também a probabilidade de liberdade emancipatória ou perigo à unidade do país132. Por mais que os discursos da Coroa lusa girassem muitas vezes em torno da unidade do pensamento, das relações amistosas entre a América portuguesa133 e a Península, é inegável que essa centralidade corroborava para que o fluxo de ideias se tornasse mais independente. Era importante que a formação dos futuros servidores do rei estivesse no mesmo nascedouro e, portanto, imersa na mesma cultura acadêmica e, sobretudo, jurídica dos futuros bacharéis luso-brasileiros. Nesse sentido, observando a experiência lusitana, não era de surpreender que alguns lustres daqueles veementes debates sobre os rumos constitucionais do país independente relacionassem perigo à unidade e à estabilidade, com a fundação de escolas livres. Entenda-se por livre a relação ensino-controle, isto é, a base de formação, ainda que necessária, deveria ser nacional e, se nacional, por conseguinte controlada pelo Estado. Assim, os debates acerca da formação acadêmica no território 132

Nesse sentido, Venâncio Filho reúne uma série de discursos da Coroa lusa em resposta às insistentes petições por cursos universitários na colônia. Em uma das citações, o governador do Maranhão, Fernando de Noronha, por exemplo, ressaltava que o conhecimento de gramática e saber ler e escrever era o suficiente para a colônia e o Conselho Ultramarino; negava a Minas Gerais o ensino superior afirmando que se podia relaxar a dependência que as colônias deveriam ter do reino, sustentando que manter o ensino centrado pelo Estado e em Portugal garantia os vínculos político e cultural entre si. Ver VENANCIO FILHO, Alberto. “A Criação dos Cursos Jurídicos, símbolo da independência nacional”. Em: RBIHG, vol. 299, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, abr/jun 1973. pp. 76-80. 133 Merece destacar a questão da América espanhola nesse contexto de difusão do pensamento através das instituições universitárias. A citação de Holanda expressa a diferença: “em 1538 cria-se a Universidade São Domingos; a de São Marcos, em Lima, com privilégios, isenções e limitações de Salamanca, é fundada por cédula real de 1551, vinte e um anos apenas de iniciada a conquista do Peru por Francisco Pizarro. Também em 1551 é a cidade do México que 1553 inaugura seus cursos (...) ao encerrar-se o período colonial, tinham sido instalados nas possessões de Castela nada menos que vinte e três universidades...”. Ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 62. Também: RODRIGUÉZ-SAN PEDRO, Luis Enrique Bezares. “Universidades europeas del renacimiento: Coimbra y Salamanca”. Miscelánea Alfonso IX. N.2000, Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. pp.43-58; RODRIGUEZ CRUZ, Agueda. “El modelo universitario salmantino y su reconversión en Hispanoamérica”. Em: Miscelánea Alfonso IX. N.2000, Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. pp. 151-165; RODRIGUÉZ-SAN PEDRO, Luis Enrique. (coord.). Historia de La Universidad de Salamanca. Vols. III.1; III.2: Saberes y Confluencias. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2006.

59

independente deveria demarcar a coesão e a coerência do ensino e de sua pedagogia, evitando a independência intelectual dos lentes das faculdades e dos formandos que sairiam delas. Essa tensão ao redor dos lugares do saber e da reflexão filosófica e jurídica no Brasil pode, uma vez mais, ser observada como uma continuação do controle do Estado para com esse corpo intelectual docente e em formação. Ainda no período em que o Ministro da Guerra D. Rodrigo governava, sob o reinado de Dom João, a promoção dos estudos científicos e o apoio às Escolas e Academias eram subsidiados pelo Estado 134. Como ressaltado anteriormente, não seria de muito espanto que os “herdeiros intelectuais” dessa prática estatal associassem o que se entendia por “apoio” ao controle, e em consequência, à unidade e estabilidade do país. Era mais uma vez, a herança ibérica permeando as diretrizes do novo Estado americano. Nesse sentido, era conveniente pensar que se o Estado promocionava o direito no país, em consequência também o controlaria desde a formação de seu próprio corpo de funcionários, harmonizando o dever-ser jusfilosófico com a garantia do desenvolvimento da sociedade civil135. De todos os modos, apesar de boa parte dos representantes políticos constituintes crerem nessa necessidade, o país iria esperar até o ano de 1827 para ter seus cursos jurídicos. ***

Será o Marquês de São Leopoldo a figura parlamentar que desenvolverá o Projeto de Lei, entre outros que surgiriam, que inspirará os Estatutos de 1827. Na Assembléia Constituinte de 1823, antes de ser dissolvida por Dom Pedro I, o tema da criação de cursos universitários no Brasil tomou corpo, ganhou visibilidade e o debate amadureceu as várias questões que repercutiriam no ensino nacional das leis e do direito pátrio. Portanto, a preocupação tanto em saber onde se deveria sediar o ensino superior,

134

O mais interessante é que, apesar do incentivo à criação da Academia Militar ou ainda incentivo às pesquisas científicas, como as botânicas, ou ainda a criação de Biblioteca Real no Brasil já Reino Unido de Portugal e Algarves, não houve por parte da coroa o interesse em criarem-se centros universitários. E, à época da independência, essa visão para o monarca ainda não era óbvia. Conferir VENANCIO FILHO, Alberto. “A Criação dos Cursos Jurídicos, símbolo da independência nacional”. Em: RBIHG, vol. 299, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, abr/jun 1973. pp. 76-80; SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003, especialmente capítulo 3. 135 GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001. p.307 e ss.

60

como o que se ensinar nessas instituições seriam pontos de análise e reflexão entre os estadistas do país136. Venâncio Filho, por exemplo, pondera que o ano de 1827 pode ser considerado “o símbolo da independência cultural do Brasil” 137, configurando a representação da independência intelectual, agora direcionada para a realidade nacional desapegada da dependência de “nossos concidadãos atravessar os mares, e à custa de despesas e outros sacrifícios ir aprender à universidade de Coimbra” 138. Mas, ao mesmo tempo, admite que a necessidade expressa pelo Visconde de Cachoeira, autor dos Estatutos, de “formar homens hábeis para serem um dia sábios magistrados e peritos advogados de que tanto se carece e dignos Deputados e Senadores para ocuparem os lugares diplomáticos e mais empregos do Estado”139, se tratava de um esforço magnânimo de um país que carecia de todo o aparato funcional e docente para promover tal empreitada. Como afirma Dallari, Alguns líderes políticos perceberam muito cedo que era necessário formar no Brasil uma elite intelectual e política, que tivesse sentimentos nacionalistas, conhecesse a realidade e pensasse as instituições em termos brasileiros. E pelo que sabiam da experiência de outros povos, os cursos jurídicos cumpriam esse papel 140.

Muito dessa tendência discursiva observada entre as reuniões da Assembléia de 1823 e 1827, denota essa valorização do estudo como artefato da construção da unidade por parte desses estadistas-intelectuais. José Martiniano de Alencar, deputado pelo Ceará, defendendo a necessidade da formação de universidades no Brasil, afirmava: Precisamos, Sr. Presidente, de uma universidade, e já, como de pão para a boca, temos mui poucos bacharéis para os lugares da magistratura (...) temos igualmente necessidade de homens capazes para o empregos públicos, e até para entrarem nesta augusta assembléia e é indispensável que haja onde eles vão adquirir as luzes necessárias141. [grifo meu] 136

Sobre essas questões merece conferir VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1982; GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001; e SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003, onde dão um panorama importante sobre os debates em torno da constituição dos cursos jurídicos no Brasil. 137 VENANCIO FILHO, Alberto. “A Criação dos Cursos Jurídicos, símbolo da independência nacional”. Em: RBIHG, vol. 299, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, abr/jun 1973. p. 80. 138 Luis José de Carvalho e Melo. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 165. 139 Conferir VENANCIO FILHO, Ibid., p. 31 e 36. 140 DALLARI, Dalmo de Abreu. “O Brasil colonizado: raízes da sociedade e do Estado”. Em: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta. A experiência brasileira. A grande Transação. São Paulo: SENAC, 2000. p. 460. 141 José Martiniano de Alencar. Sessão 28 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 183.

61

Como ressalta Silva Dias, a partir dessa lógica se pode ter ideia dos rumos políticos, sociais e culturais que o país tomaria. Assim sendo, no decorrer do XIX, se gerava a valoração do diploma como passaporte para cargos no aparato funcional do Estado. “Elite reduzida, falta de homens capazes, eram, em virtude de tais circunstancias, freqüentemente levados a trocar os gabinetes de estudo, por ocupações administrativas ou cargos políticos e judiciários” 142, uma versatilidade gerada também pela escassez. Aliás, o tema da insuficiência percorreria vários âmbitos nas preocupações parlamentares. Primeiramente porque o tema do ensino era trazido como responsabilidade eminentemente pública. A máquina administrativa teria que pensar, cedo ou tarde, no que tangia ao tema da chamada Instrucção Pública. Ou seja, se antes, quando tinha o Brasil o status de colônia e reino unido, essa atribuição aos nascidos deste lado do Atlântico seria uma questão de âmbito privado, ainda que tomadas as proporções quanto aos incentivos futuros do governo luso para a vida profissional, agora a questão passaria a ser de responsabilidade pública. No entanto, quando o Brasil teve sua situação política definida trouxe como obrigação para si propiciar um aparato educacional para os concidadãos, como diziam. Sejam adeptos à constituição imediata ou não do que chamavam de ciências maiores, as penas para lograr sua execução era um consenso. Talvez, em boa medida, as justificativas para que pelo menos uma Universidade fosse montada na capital do Império fossem bastante previsíveis para aquele contexto político, econômico e intelectual. Almeida e Albuquerque 143, um dos primeiros a pontuar sobre o projeto das universidades, defendia que ali, na corte, se poderia rapidamente efetuar um curso jurídico, já que teria uma concentração de jurisconsultos que não se encontraria em outras províncias do país. Os estabelecimentos científicos, quanto mais próximos desses círculos de poder intelectual, também refletiam uma preocupação com a manutenção das despesas que se condensariam nessa zona. Por outro lado, cabe-se pensar, quem almejava um pólo de conhecimento em sua província não estaria longe de desejar que a movimentação das receitas de sua área fosse mais próspera ou reflexo disso. Contudo, vale lembrar que os parlamentares evitaram ressaltar esse tipo de vantagem, defendendo 142

DIAS, Maria Odila da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Em: RIHGB, 278, 1968. p. 151. Frederico de Almeida e Albuquerque, sessão 27 de Agosto de 1823. Em: ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p.164. 143

62

a viabilidade econômica, viária e estrutural de cada província destacada para sediar os cursos universitários. Os primeiros discursos sobre o tema recaiam em torno das questões orçamentárias de um recém formado país, que sabia da necessidade em arregimentar seu próprio corpo profissional e se via também envolto às impossibilidades materiais e financeiras para tal cumprimento. A idéia de uma única Universidade, ou de um curso jurídico na capital do Império conviria, pelo que se aponta nos discursos dos parlamentares, porque concentraria os gastos públicos, tanto pela ausência de um vasto corpo docente, como também pela necessidade de manter-lhes em distantes pólos do conhecimento no país. A capital também podia ser o espaço da civilidade, da vida sadia, do progresso e da estrutura, não somente física. Portanto, pode-se inferir também que essa lógica não era de todo destoante considerando que o arsenal intelectual incentivado por D. Maria já estava fincado na Corte, como foi o caso da Biblioteca Nacional ou ainda da Academia Literária ou Militar. Enfim, essa estrutura que fomentaria a vida intelectual do país poderia ser uma das fortes justificativas para que os cursos maiores pudessem ser sediados na Corte brasileira. José Luis Carvalho e Melo ressaltava, entre outros argumentos, que a Corte seria o ambiente ideal para os estudantes, por ali ter concentrados maiores ares de civilidade para a instrução e também pela maior circulação de cópias, ou seja, livros no mercado. Além disso, percebia que estando ali os cursos já de matemáticas, filosofias, teologia e médico-cirúrgico, haveria uma estrutura mais apropriada para receber os jovens universitários. O deputado Montezuma argumentando sobre a inviabilidade de centros universitários no país alegava que “se a nação ainda não está preparada, se ainda suas rendas públicas não estão tão florescentes que possam sustentar duas universidades, que necessitam somas não só para a sustentação de mestres, mas para muitas outras coisas, como são livrarias, museus, instrumentos, etc., que tudo custa cabedal, como se assenta que as devemos estabelecer?” E Jose da Silva Lisboa apontava claramente para essa lógica quando afirmava que nesta Corte do Rio de Janeiro já estão os alicerces de um grande estabelecimento literário. Temos por assim dizer, bom casco de navio. (...) com aulas das ciências maiores, da academia da marinha, medicina, com biblioteca, e tipografia pública,

63

jardim botânico e de plantas exóticas e museu. (...) Eis pois já uma universidade quase formada.144

De todos os modos, as questões orçamentárias eram por todos os lados, os argumentos mais convincentes para se pensar na viabilidade desses cursos. O deputado Manuel José de Souza França, representando o Rio de Janeiro, admitia que uma estrutura universitária, ainda que não completa, era necessária, mas que ainda considerando „algumas rendas ou consignações públicas‟, somente se subsidiaria uma, em um assento no país, pois “é mister atender-se ao estado de nossas rendas” 145. Ao final se decidem por escolher duas províncias. E, merece destacar, tal eleição nas dimensões do Brasil era reflexo também dessas questões 146. O próprio Visconde de Cachoeira, férreo defensor da abertura dos estabelecimentos universitários, reconhecia a impossibilidade de manter grande número de cursos maiores no país, pois que “no estado atual não se pode nem se devem estabelecer mais, porque nem a povoação é tanta que exija maior número de universidades, nem a falta de mestres e de cabedais para as suas despesas permite número maior” 147. O deputado baiano Montezuma, Visconde de Jequitinhonha, ainda era mais incisivo em seus argumentos, relacionava à falta de estrutura na formação primária, como a falta de mestres, à impossibilidade de formação universitária, da qual o Império não poderia suportar os imensos gastos já referidos e necessários para a sua manutenção 148. Há outro ponto importante a abonar sobre essas estratégias espaciais e econômicas na inserção da Universidade no Brasil149. A necessidade de sua existência, em plano geral, era bastante clara e majoritária entre os congressistas do governo imperial e a relação de unidade e centralidade do poder monárquico se confundia com a formação superior no território. Portanto, a criação dos cursos jurídicos se inseria no bojo dessas intenções. O eixo de poder já havia saído da Bahia e o deputado

144

Ver: Luis José de Carvalho e Melo; Francisco Jê de Acabaia Montezuma; José da Silva Lisboa. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 166, 168 e 171 respectivamente. 145 Manuel José de Souza França. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 165. 146 Para uma referência sobre tais questões, ver: VENANCIO FILHO, Op. Cit.; SILVA, Op. Cit., 2003. 147 Luis José de Carvalho e Melo. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 165. 148 Francisco Jê de Acabaia Montezuma. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 168. 149 Sobre essa relação da formação dos bacharéis e o lugar para estabelecer as instituições de ensino, conferir: BEVILACQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1927; GAUER, Op. Cit.

64

Montezuma150, entre outros, por mais que insistisse em toda a tradição e centralidade geoespacial da antiga capital, não conseguia sustentar sua posição diante da obviedade: a zona política e econômica da novo Estado já estava na parte sul-sudeste e a polarização dos debates mais fortes e com mais adeptos estaria entre São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. De todas as formas, o mais antigo pólo econômico e intelectual do nordeste seguia sendo Pernambuco e, portanto, entre tantas petições possíveis, como Bahia, Maranhão e Paraíba, os parlamentares não tinham muitas dúvidas quanto a Olinda151 ser a sede dos Cursos, afinal como se dizia à época, um império em tamanhas dimensões e com representantes de todas as partes, teria que compartir seus pólos de ensino e saber. A posição estratégica nordeste-sul era uma das formas de corroborar com a ideia de unidade imperial, afinal, como lembra Neder, “os juristas que tomaram tal decisão enxergaram com os olhos do passado (metropolitano) o futuro do Império; refletiram sobre a importância desta localização como sendo também uma estratégia de „construção da nação‟”152 e dessa maneira afastavam perigos de insurreições e forjavam um elo como corta fogos de movimentos separatistas, já que Pernambuco 153 sempre foi uma forte ameaça. Assim, as faculdades de Direito propiciariam mais um veículo motor para compor uma estrutura profissional e acima de tudo ideológica para a construção da nação e por conseguinte o fortalecimento das estruturas imperiais no Brasil.

***

Visconde de São Leopoldo, defendendo a formação dos cursos em Olinda e São Paulo, afirmava: “a mocidade que das províncias circunvizinhas concorrer para elas, encontrará, além de outros cômodos da vida, temperatura análoga, o que muito 150

Para uma síntese das discussões acerca dos pronunciamentos sobre a criação das Universidades, ver: VALLADÃO, Alfredo. “A Creação dos Cursos Jurídicos no Brasil”. Em: RBHIG. Tomo 101, vol. 155, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928. pp. 299-342. 151 Olinda havia sediado um dos mais importantes cursos de Direito Canônico. O seminário de Olinda, organizado por Azeredo Coutinho, era considerado por muitos, inclusive, uma pré-universidade, com toda estrutura física e intelectual herdada das Reformas pombalinas e dos ensinamentos de Verney. Conferir CHACON, Vamireh. “Olinda e Coimbra”. Em: Universidade(s), histórias, memórias, perspectivas. Actas I do Congresso de História da Universidade de Coimbra: VII Centenário, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1991. 152 NEDER, Gizlene. Iluminismo Jurídico-penal Luso-Brasileiro. Obediência e submissão. RJ: REVAN, 2007. p.137. 153 SOBRINHO, Barbosa Lima. Pernambuco, da Independência à Confederação do Equador. Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979; MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste, 1817, estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972.

65

cooperará para a conservação da saúde, e identidade de hábitos e costumes...” 154. Para além da justificativa do Visconde, essa estratégia organizacional do ensino superior no Estado foi mais uma característica visando à centralização, como já exposto. Segundo Mozart Linhares da Silva, “a regionalização dos cursos funcionava, assim, como elo de ligação entre o norte e o sul do país. A centralização política era inseparável da centralização cultural, que permeava toda a pedagogia do Estado”155. Assim sendo, a educação seria o elo fundamental para que a ideologia pensada para a formação da consciência de nação 156 tivesse lugar para ser disseminada aproveitando-se da unidade dita moral e intelectual do país e para fomentar a lógica política que direcionaria os rumos liberais-conservadores. Sobretudo no ensino das leis. O conhecimento do regimento da nação era a cartilha primeira de reconhecimento da autoridade já independente do e no país. Portanto, os cursos jurídicos tinham o peso de abranger uma vasta gama de assuntos governamentais, tratando de ser o mais eclético de todos os demais cursos superiores. Era necessário ter uma opção de formação jurídica nacional, antes mesmo de pensar outros temas. Nas discussões parlamentares, não havia como pensar uma autonomia intelectual no Brasil sem oportunizar aos jovens brasileiros uma formação jurídica nacional. Ainda que os exemplos seguissem sendo os já conhecidos, como os dos ingleses, franceses ou mesmo portugueses, a conotação nacional à formação superior era uma tarefa necessária e urgente para “uma difusão das luzes e conhecimentos úteis 154

Visconde de São Leopoldo, XVII Sessão da Assembléia. 22.05.1827. Em: PEREIRA, Nilo. A Faculdade de direito do Recife. Vol.1. Recife: Universidade do Recife, 1977. (Documentos Parlamentares). p. 517. 155 SILVA, M. OOP. Cit. p. 182. 156 Vale destacar, entretanto, que apesar de haver claramente expresso por parte da Assembléia Constituinte do Império um projeto de fortalecer as estruturas ideológicas no Brasil enquanto Estado independente e com liberdade de eleição de suas formas, moldes e inspirações jusfilosóficas, verbalizadas muitas vezes como um constructo nacional, há pela historiografia um consenso de que essa consciência de nação começa a ser amadurecida após 1831, com a abdicação de um monarca nascido em terras lusas. Barman, por exemplo, sustenta que até 1840 se tinha uma nação oficial e não real, restrita à uma elite letrada, mas que foi essencial para que, a partir do Segundo Reinado, pudesse obter uma lealdade ao pacto político ensejado no 1822. E, como recorda István Jancsó e Paulo Pimenta, essas identidades tinham um ancoradouro em um passado que não foi forjado na própria terra e sim nas tradições européias do Antigo Regime. Essa co-relação tanto apegada aos padrões tradicionais quanto ao seu perfil mais revolucionário, como o caso das primeiras manifestações em Pernambuco de 1817, traz uma visão de experiências prénacionalistas para o que seria o país independente. Seja como for, se através dos rituais cívicos da monarquia, dos levantes contra o regime político ou ainda a consagração do controle via códigos e implementação da justiça, é sentido comum que se presumia de uma ideia de Brasil e de sua existência desassociada dos laços lusitanos, ao menos politicamente. Conferir: BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University Press, 1988; MOTTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta. A experiência brasileira. A grande Transação. São Paulo: SENAC, 2000; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: HUCITEC, 1987; JANCSÓ, Istvan (org). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2003.

66

e, portanto mais rápida civilização, melhores costumes, pelo acesso mais fácil, pela proximidade das fontes de instrução(...)”157. A dignidade de ser um cidadão brasileiro estaria veiculada a necessidade de projetar homens no seio intelectual nacional, o que fomentaria a identidade entre os pares e preencheria a lacuna do conhecimento emprestado do além-mar158. Nesse sentido, tanto o Visconde de Cachoeira, quanto o de São Leopoldo deixaram claro que o projeto tinha uma pertinência inequívoca quanto à organização dos cursos jurídicos, ainda antes que se formasse o ensino universitário no país. Praticamente de costas para os exemplos de seus vizinhos latinoamericanos, visualizavam os exemplos de nações européias para estimular a criação dos cursos de direito, como os de Alemanha ou de França. Assim, ancorados nas experiências transatlânticas, esses estadistas acreditavam que a utilidade na formação jurídica para a recente nação era indispensável “pela necessidade em que estamos de homens letrados e hábeis neste gênero de saber. (...). Todos sabem que para estes empregos é mister ter grande cópia de estudos de direito natural, público e das gentes, de política e economia política...”159. A necessidade de ilustração nacional estaria diretamente ligada ao conhecimento das leis e de sua funcionalidade no aparelho estatal, como já exposto, e o título superior, ao que um galgava o status de doutor, era o caminho legítimo, em muitos casos, para estar habilitado à construção das codificações positivas da nova nação da América160. O conhecimento da estrutura jurídica nacional era, segundo as falas parlamentares, fundamental para formar um cidadão, em sentido amplo, que reconhecesse seus direitos e deveres e, em sentido restrito, que os aproximassem da norma, da diplomacia, economia política que regeria o Brasil161. 157

José Feliciano Fernandes Pinheiro. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 167. 158 Uma das falas que sintetizam estas ideias está no pronunciamento do deputado Almeida e Albuquerque: “é preciso tirar os brasileiros da penosa necessidade de irem mendigar luzes nos países remotos, para que a nação tenha filhos dignos dela, é indispensável facilitar-lhes todos os médios deles adquirirem conhecimentos; sem o que os homens pouco ou nada são...”. Ver: Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 169. 159 Luis José de Carvalho e Melo. Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 166167. 160 Ver GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001. p. 172 e ss. E também CARVALHO, Jose Murilo de. A Construção da Ordem. Teatro de Sombras. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 161 Nesse sentido, note-se as falas de Fernandes Pinheiro: “...a legislação é sem dúvida o primeiro e mais importante dos conhecimentos humanos, aquele que tem por objeto ensinar aos homem seus direitos e a

67

Assim, o projeto de construção de uma ou mais universidades no Brasil, em muito se reduziu ao que, de fato até aquele momento, não se tinha iniciação alguma: os cursos jurídicos. Foram esses cursos que ao final de tantos debates entre os parlamentares, se tornaram o eixo da discussão. As Faculdades de Direito, que se estruturariam no decorrer dos anos seguintes, foram reflexos dessa conexão entre a necessidade da ordem e o reconhecimento dela, através do conhecimento das leis que se tencionavam nacionais. Apesar de muitos cursos serem valorados como importantes para a nova nação, como os de artes ou de medicina, o tom discursivo foi canalizado para o imperativo dever de se desvencilhar da lógica jurídica do ensino superior conimbricense. Desejo por uma parte esclarecido por motivos econômicos ou de motivação patriótica, mas que ao fim e ao cabo, seria um processo difícil e quase hercúleo entre os organizadores dessa base formativa dos cursos jurídicos no Brasil. Os Estatutos de Coimbra não poderiam ainda ser desconectados facilmente. Importante lembrar, portanto, que o conhecimento no âmbito jurídico fazia parte dessa reafirmação patriótica entre os estadistas e refletia uma preocupação com que a civilização, outrora espelhada pela metrópole, tivesse seu lugar no seio do país. A cultura jurídica era o caminho possível para que esse projeto fosse amplamente viável trazendo em seu bojo caracteres de racionalidade e de modernidade para as mentes nacionais, que como se dizia, necessitavam das luzes 162. Ser um jurista, advogado, deputado ou ministro no Império poderia ser não somente um homem afincado às leis, mas necessariamente um amplo conhecedor da cultura geral, das línguas e da política que envolvia seu entorno referencial, como seria a França, Inglaterra ou Alemanha. Segundo o próprio Visconde de São Leopoldo, reafirmar a centralidade da nova nação e sua soberania era imprescindível para que “se difunda entre os juristas e magistrados a natureza dessas normas, de que depende a tranqüilidade e a ordem públicas. O soberano zela pela tranqüilidade e progresso, e os povos se colocam na obrigação de auxiliá-lo nessa tarefa (...)”163. Assim, não era uma mera coincidência que a preocupação do Estado sobre a formação jurídica no país tivesse diretamente seu apoio, sendo formal e praticamente ordenada por ele. A centralização do saber norma de seus deveres” e Manuel Jacinto Nogueira da Gama: “Falta-nos somente um curso jurídico em que se ensine a indispensável ciência da legislação em geral, e em particular(...)” Conferir: Sessão 27 de Agosto de 1823. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. p. 167 e 173, respectivamente. 162 SILVA, Mozart Linhares da. Do Império da Lei às Grades da Cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. 163 Luis José de Carvalho e Melo. ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO, Sessão de 08 de agosto de 1826.

68

normativo refletia a política e a justiça que deveriam ser exercidas no Brasil. Portanto, se faz imprescindível que se atente sobre qual a lógica pedagógica e estatutária que esses homens formularam visando atender a essa demanda profissional na construção ideológica, intelectual e profissional em seu próprio país.

2.3. O papel do ensino A composição curricular dos cursos de Direito no Brasil 164 não foi um tema meramente acadêmico. As discussões sobre os seus Estatutos já davam conta da importância e visibilidade que os cursos jurídicos teriam para o país 165. Quais as cadeiras, quais as leituras necessárias e qual a linha jusfilosófica que esta formação superior iria levar, seria a marca espelhada de uma tentativa de síntese do pensamento dos dirigentes brasileiros. Nesse sentido, e considerando a grande gama de estadistas bacharéis formados que compunham a banca parlamentar, muitos tinham, pelo conhecimento e experiência, do que ou porque falar acerca dos cursos jurídicos. À parte de ser amplamente declarado entre os deputados constituintes que era um curso a serviço da nação e peça-chave de seu aparelho burocrático, estava em debate a necessidade de encontrar uma zona de conforto entre um passado jurídico considerado arcaico e colonial e a identidade normativa e positiva nacional. Contudo, observa-se que não havia maneira de se criar algo original sem que o que fosse mais familiar tomasse a cena. Era a pedra inicial de maior domínio para conhecer o que aplicar ou o que rechaçar. Portanto, a inspiração coimbrã, menos que um grande incômodo, poderia servir de suporte filosófico e pedagógico para a consolidação dos Cursos Jurídicos de Pernambuco e São Paulo. Ainda que houvesse, por parte dos organizadores dessa matriz ideológica e jurídica do país, algum receio em utilizar as 164

A criação dos cursos jurídicos no Brasil, instalados em São Paulo e Olinda, foi aprovada pela Assembléia Geral Legislativa em Agosto de 1826 e pelo senado em Agosto de 1827. 165 Sobre o tema conferir BEVILACQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1927; VENANCIO FILHO, Op. Cit.

69

bases lusas de ensino ou que se pensasse que poderia ser um caminho para ratificar o poderio ideológico da antiga metrópole, não parece que ao fim e ao cabo tais receios abarcassem o sentido geral entre os parlamentares sobre o ordenamentos dos cursos. Em realidade, ao que muito pode custar admitir àquele momento, era possivelmente a afinidade tanto com a regulação dos cursos de Coimbra, como com as Ordenações Filipinas que garantiriam a habilidade para recompor, unir, dissociar e excluir o que lhes parecia arcaico, antinacional ou pouco liberal. Ainda que se fosse buscar em outros exemplos a codificação ou mesmo o ensino jurídico para inspirar-se, será ao final uma referência tácita e clara ao que viveram e viviam enquanto administradores da lei e da ordem. Assim, se pode notar que, no que toca a formação jurídica para as primeiras gerações de bacharéis no Brasil, a independência parece ter sido uma aproximação quase utópica de uma nação que se queria constitucionalista e liberal junto à estabilidade do conhecimento conimbricense, ao que estavam familiarizados já durante décadas. Como observou Linhares da Silva, era uma tentativa de “lidar a um só tempo, com um passado de que éramos tributários e um novo tempo que deveríamos projetar”, pois que ao final “construirão essa soberania com um instrumental político [e jurídico] herdado de Portugal, nomeadamente sob a influência do Iluminismo pombalino” 166.

***

A inspiração pedagógica e estatutária dos cursos jurídicos no Brasil foi originada pelos Estatutos conimbricenses. Os Estatutos da Faculdade de Direito de Olinda e São Paulo, elaborados pelo Visconde de Cachoeira, desde 1825, guardavam em si a forte característica da transposição do que regia o ensino superior na antiga metrópole. Apesar de não ser uma cópia fiel, a preocupação, ao menos idealizada, com os pressupostos teóricos do ensino, estariam ali presentes em boa medida, como os da Universidade de Coimbra. E a matriz curricular que regeria os cursos jurídicos no

166

SILVA, M. Op. Cit. pp. 169 e 168 respectivamente. Emilia Viotti argumenta, já para o período de abdicação ao trono no Brasil, por D. Pedro, que “a concentração do poder nas mãos dessa [elites sóciopolítica] minoria que disputaria ao imperador o privilégio de dirigir a nação, levando-o à abdicação em 1831, explica a sobrevivência das estruturas tradicionais de produção e das formas de controle político caracterizadas pela manipulação do poder local pelos grandes proprietários e a marginalização e apatia da maioria da população”. COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. Momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: UNESP, 1999. p..58.

70

Império traria uma estrutura semelhante, mas não de todo167, ao que se havia aprendido esses mesmos estadistas-bacharéis, no além-mar. Os tons mais típicos, pelo que aponta a historiografia balizada no tema do ensino jurídico do período168, que caracterizariam o ensino no país independente se balizavam pelo rechaço à predominância nos estudos do Direito Romano, deveras enfatizado no ensino lusitano e que, para os estudos nacionais, era mais uma cadeira para a erudição discente, segundo alguns parlamentares, do que uma necessidade para a constituição do conhecimento de suas leis nacionais. Assim, a cadeira de Direito Pátrio era considerada ensino apropriado às novidades dos tempos e à nova configuração política que viviam. Apesar de não haver uma história jurídica no país que estimulasse os alunos a observar toda a trajetória do uso das leis em âmbito nacional, constituia-se o tema do Direito Pátrio como uma das principais necessidades de atenção e predicação para os futuros bacharéis. E essa foi a tônica dos Estatutos de Cachoeira que prevaleceram, a princípio até 1831, em sua essência durante boa parte do século XIX, quando Couto Ferraz, em 1854 e Leôncio de Carvalho, em 1879, atualizam-na com reformas de algumas das normas do citado regimento169. De maneira geral, o curso trazia uma configuração, em suas nove cadeiras, bastante apegada à lógica coimbrã. Se por uma parte incorporavam Economia Política e Teoria e Prática do Processo adotado pelas Leis do Império, por outra convivia Direito Público Eclesiástico com Direito Natural e Direito Público. Ou seja, os Estatutos do Visconde eram também uma expressão da ambígua e até eclética base jurídica e política a que os bacharéis do Brasil teriam que se ambientar. Afinal, o conteúdo programático das diversas disciplinas que compunham o currículo do curso de Ciências Jurídicas e Sociais expressava tanto as antinomias do pensamento liberal quanto as correntes filosóficas que se sucediam, uma a uma, na vã esperança de conciliar tendências opostas. Não sem motivos, o ecletismo filosófico encontrou no autodidatismo dos bacharéis a sua razão de ser 170. 167

Linhares da Silva lembra que os Estatutos de Cachoeira não se equiparam à complexidade dos de Coimbra, mas assinalam muito de sua disposição no que toca a composição das cadeiras e suas principais leituras, por exemplo. Vale destacar também que o autor observa, através dos debates parlamentares, a necessidade de atualização dos Estatutos de 1772 com as discussões contemporâneas sobre o pensamento jurídico no Brasil, mostrando uma clara renuncia à sua total incorporação. SILVA, Op. Cit., p. 196-198. Ver Anexo A. 168 BEVILACQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1927; VENANCIO FILHO, Op. Cit.; ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. Bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na constituição da República brasileira. São Paulo: HUCITEC-USP, 1998, entre outros. 169 Sobre o tema, afirma Venancio Filho que “Os Estatutos do Visconde de Cachoeira representam, assim, a matriz de onde se originaram os textos regulamentares do nosso ensino jurídico, perdurando muitos dos seus princípios até a República”. Ver VENANCIO FILHO, Op. Cit., p.36. 170 ADORNO, Ibid., p.96.

71

Manteve-se o arcaísmo nas relações com a igreja e o Estado mas também absteve-se de ressaltar o passado colonial, quando do Direito Romano é tirado a centralidade, pois que se relacionava diretamente à formação jurídica lusa, e portanto trazido ao papel secundário. Por outro lado, “é o Direito Pátrio um corpo formado por instituições próprias deduzidas do gênio, e costumes nacionais, e de muitas Leis romanas já transvertidas ao nosso modo...”171. Vale considerar que a referência do Visconde de Cachoeira sobre a relevância dos estudos de Direito Pátrio se entrecruzava também com uma tensão: se havia uma valoração do ensino da história do Direito através desta cadeira, isso significava que os futuros bacharéis teriam que estudar o seu próprio passado colonial, já que em matéria de constituição de uma história nacional se carecia totalmente de dados. Destaca-se aqui, para melhor compreensão, um dos trechos do Estatuto sobre como o Direito Pátrio deveria ser ensinado: Por dar em resumo a história do direito pátrio, remontando-se às origens da monarquia portuguesa, e referindo as diversas épocas do mesmo direito, os diversos códigos, e compilações que tem havido, sua particular história, e tudo mais que for necessário para que os estudantes conheçam a fundo a marcha, que tem seguido a ciência do Direito pátrio até o presente172.

Antes mesmo que o Projeto do Visconde de Cachoeira pudesse entrar em vigor de maneira provisional para os Cursos Jurídicos, os parlamentares já haviam evidenciado o descontentamento que os ensinos desta cadeira ofereciam para a construção da ideologia de uma nação independente. A mais emblemática, entre tantas, foi a fala do deputado Almeida e Albuquerque pois trazia em seu bojo o reflexo do Estado mediador entre o passado e o futuro idealizado. Em certo trecho de suas argumentações sobre que História Legislativa se pode ensinar no Brasil recém independentizado, alega: ...se não pode ensinar o que não existe. Onde esta a História da Legislação Pátria? Será a História da Legislação Portuguesa? Eu já mostrei que a nossa legislação, posto que tivesse a origem portuguesa, não pode contudo ser explicada pelos mesmos princípios daquela legislação, mas deve ser iluminada, demonstrada pelos princípios de nossa Constituição173. [grifo meu].

171

Estatutos da Faculdade de Direito de Olinda e São Paulo de Visconde de Cachoeira. Em: Criação dos Cursos Jurídicos no Brasil. (Documentos Parlamentares). Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977. Ver também: BEVILACQUA,Op. Cit. 172 Capítulo V, art. 2º dos Estatutos da Faculdade de Direito de Olinda e São Paulo de Visconde de Cachoeira. Anexo A. 173 Conferir em BASTOS, Aurélio Wander. (org). Os Cursos Jurídicos e as Elites Brasileiras. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977. p.53.

72

Assim, mesmo havendo a contextualização às linhas doutrinais em voga à época, a base estatutária dos cursos jurídicos no Brasil seguiu demonstrando uma forte inspiração aos cursos da faculdade de Direito de Coimbra. As cadeiras mais clássicas, como a de Direito Natural, seguiam instruídas para as leituras de Grócio ou de Wolff, e a de Direito Pátrio, para Melo Freire e outros tantos que também compunham os regimentos lusitanos. Ainda assim, merece ser destacado que toda essa estrutura básica modular idealizada como a melhor forma de educar um bacharel, não pode negar o caráter liberal e constitucional que os estadistas do império tentavam impregnar em seus próprios cursos jurídicos. A cadeira de Economia Política, por exemplo, foi considerada uma inovação à época, antecipando-se inclusive à França, e se direcionavam os docentes a ministrarem com base em Ricardo, Malthus ou Smith. Adorno analisa: Um exame da relação de fontes recomendadas sugere que a organização dos cursos jurídicos reproduziu, no âmbito acadêmico, a difícil síntese entre patrimonialismo e liberalismo que marcou a nascença do Estado brasileiro. (...) [havia] uma preocupação em conciliar, sem grandes conflitos, e de modo harmônico, o tradicional e o moderno, 174 o teórico e o prático (...) ..

O importante a destacar é que, apesar de contar o país com uma gama de juristas e homens capacitados para conduzir sua mocidade pela formação jurídica já em solo nacional, a prática foi deveras distinta. O ambiente acadêmico dentro dos cursos jurídicos não sofreria grandes mutações e com algumas ressalvas, não houve grandes compêndios produzidos entre os lentes das Academias. Pelo menos até a primeira metade do século XIX, Bevilácqua observa, “o instituto do ensino jurídico ainda não havia adquirido a força, a autoridade, que dá a tradição continuada, nem tinha podido formar um ambiente propício a produções, senão originais, ao menos capazes, por seu valor, de vencer a ação destruidora do tempo”175. Venâncio Filho, nos estudos sobre o ensino superior no Império avalia que se “qualitativamente, o ensino jurídico

174

ADORNO, Op. Cit., p. 96 e 149. Interessante ver também BEVILACQUA, Op. Cit., especialmente o capítulo terceiro. 175 BEVILACQUA, Ibid., p. 07. Nesse sentido, merece destacar a síntese do relatório sobre as Academias, de 1841, entregue ao Ministro do Império Antonio Carlos. Dizia sobre as causas porque avaliava o pouco proveito dos cursos: “a) mal preparo dos estudantes admitidos à matrícula; b) Ensinarem os professores do Colégio de Artes em suas casas por dinheiro, as matérias de sua cadeira; c) Pouca autoridade do diretor, em face aos Estatutos; d) reduzidos número de lições, em parte em conseqüência dos Estatutos, que facultam quarenta faltas no ano(...), em parte pelo escasso interesse dos lentes, alguns dos quais tem dado, em épocas anteriores apenas dez ou doze lições(..)”. Ver citação no volume primeiro de Bevilácqua, p. 79-80.

73

permanecia na mesma posição de 1827, pode-se afirmar, com consulta às fontes idôneas (...), que qualitativamente a situação também não se modificara” 176. Por outro lado, o que não se alcançava dentro dos cursos jurídicos era possível vislumbrar com algum êxito fora deles. O ambiente extra-acadêmico era um importante elo que unia o direito à literatura, jornalismo e a política. Principalmente depois da primeira metade do século, os periódicos como Imprensa Acadêmica ou Kaleidoscópio se tornaram peça fundamental para a circulação do saber jurídico, mas não somente. Eram os institutos e associações acadêmicas que contrabalanceavam a carestia no terreno das doutrinas e do conhecimento jurídico177. Como revela Adorno, De fato, funcionando como tribuna livre para o debate e discussão dos problemas nacionais – fossem no plano imediato da cidade ou no plano macro-estrutural da sociedade – a imprensa supriu com maior eficácia o fracasso a que as salas de aula se viram relegadas, durante longas décadas178.

Aliás, a imprensa seguirá sendo o canal essencial, não somente para a maior difusão das ideias durante o processo de formação desses intelectuais. Ela será um dos veículos mais fortes para a expressão de uma elite que se não estava no poder, almejaria ali estar. Era o ambiente ideal para que os debates a parte da tribuna parlamentar tivessem seu lugar e a voz dos que pouco espaço tinham nesse cenário, sendo a imprensa o lugar do político e, quase essencialmente, componente dessa inteligência nacional179, restrita e elitizada no Brasil. De todos os modos, vale ponderar que a base argumentativa desses impressos acadêmicos, seja por ironia, dúvidas ou por evidenciar uma carência, perpassava obviamente esses ensinamentos que, escassos ou não, eram o cimento ao que se fortaleciam os estudantes em suas publicações. E essa formação oferecida, apesar de não ser a única fonte a que os futuros bacharéis se apoiavam, foi essencial para que o corpo funcional do Estado tivesse um preparo. Apesar de não haver sido, como muitos relatos de época ajudam a pensar, uma estrutura curricular posta em prática na

176

VENANCIO FILHO, Op. Cit., p.113. ADORNO, Op. cit. O autor avalia que houve, a partir da vida acadêmica, a possibilidade de promover uma ampliação do conhecimento não fixando-se apenas no Direito propriamente dito os debates e a própria produção desses acadêmicos dos cursos jurídicos. Se por um lado se demonstrou um interesse por refletir sobre temas que tocavam a vida pública e civil, por outro a literatura em suas várias expressões foi uma das produções intelectuais que mais se notava a “importante prática na construção dos fundamentos morais da elite política”. Ver p. 145. 178 ADORNO, Ibid., p.155. 179 Ver CARVALHO, Jose Murilo de. A Construção da Ordem. Teatro de Sombras. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.54-55. 177

74

totalidade e ainda que tivesse nela uma série de temas controvertidos, como a forma de avaliações ou ainda de ingresso, mais interessa ressaltar que esse alicerce estava montado para atender a um tipo específico de funcionário, o público, e sua formação estava pensada para diplomar um administrador e/ou político para o Estado. O lente da Faculdade do Recife em 1860, Braz Florentino, pontuava em sua aula inaugural essa ambiguidade de interesses pelos alunos de Direito, entre o interesse pelo conhecimento das leis e o bom manejo do ofício como futuros políticos: Toda a matéria, que não se presta, francamente, à elaboração de discursos políticos, é, mais ou menos, negligenciada, como seca e maçante, vendo sua preferência recair sobre aquelas que maior número de lugares comuns lhes podem oferecer, para esses longos exórdios e intermináveis discursos, que, muitas vezes, abrilhantam as discussões parlamentares, e enchem as maiores gazetas, com aplausos do vulgo 180.

Terreno de vaidades ou não, o meio acadêmico era uma porta de entrada para que esses jovens estudantes pudessem se preparar para o campo de atuação que o Estado lhes garantiria, com alguma confiança, aceder. Nesse sentido, São Paulo e Pernambuco atendiam à dita demanda. Mesmo que necessitassem de um emprego para realmente aprender o ofício ao qual foram preparados por pelo menos 5 anos, esse processo de consolidação de um grupo de intelectuais que pensava a justiça e o ensino como fulcrais para a conformação estatal seria gerada no decorrer do século XIX e, vale recordar, inúmeros estadistas do Império e posteriormente da república no Brasil saíram desse ambiente acadêmico, comprovando que, de algum modo, o ideal ansiado por aquelas primeiras reuniões constituintes não seria desapontado: formar juristas-políticos aptos para atuar em uma ampla gama de tarefas na administração estatal.

***

Nesse processo, as heranças lusas poderiam ser observadas de diversos matizes. O mais geral era a conexão curso superior em Direito e emprego público, amplamente reconhecido pela historiografia, porque deveras debatido entre os estadistas. Essa prática não era uma solução genuína, era uma alternativa plasmada da realidade lusa. Quantos filhos de ricos fazendeiros existiam, queriam mais que administrar as terras dos pais, tanto mais estariam ocupando as cadeiras dos cursos jurídicos em Coimbra, a princípio, e posteriormente em terras nacionais. Ao que

180

BEVILACQUA, Op. Cit., p.37.

75

desejava mais que posse e prestígio local, teria que galgar um diploma em terras lusas para conectar sua posição local com a intercontinental. Trabalhar para o governo, circular entre seus diferentes domínios metropolitanos como seu representante forjou uma mentalidade que ratificava a necessidade do título, em plano geral, e mais ainda possibilidades se fosse o de bacharel em direito. Assim sendo, a relação entre a funcionalidade da formação em ciências jurídicas e sociais 181 e sua associação a ampliação ou acesso ao prestígio social e político no país, seria uma marca que percorria as veias luso-brasileiras. A elite política que vai existir no Brasil não será homogênea e tampouco dentro dela se encontrará a harmonia de intenções para o que seria o progresso iluminado do XIX. Contudo, há de se lembrar que, o tema da formação, da raiz comum na constituição do pensamento político e jurídico do país perpassava o mesmo ancoradouro: uma elite política que tendia à manutenção dos status e do privilégio que já levavam anos em suas mãos, e sob essas mesmas máximas éticas, ansiadas pela própria sobrevivência e manutenção do poder social, conseguiriam se unificar quando, dos momentos mais conjunturais de tensão ou de sacrifícios políticos e ideológicos, colocava-se em xeque seus valores essenciais. Portanto, as vias da educação, ocupação e carreira política 182 foram de fundamental importância para estabilizar os eixos destoantes objetivando ao que os dirigentes do poder estatal visavam conservar: o latifúndio e o trabalho escravo. De momento, se percebe que a educação era uma promotora da ocupação de cargos governamentais o que poderia ou não gerar uma vida política no Império. A exemplo da pátria metropolitana, o ingresso ao aparelho estatal era sinônimo de uma vida estável, bem colocada socialmente, reflexo de seu êxito político e, em alguns casos, econômico183.Vale recordar, entretanto, que a característica geral do ensino da elite política seria a preferência por uma carreira que facilitasse o acesso à vida política, ou 181

Vale destacar um dos artigos que compunha o Capítulo I dos Estatutos de Cachoeira, quando tratava da necessidade de o ingresso no curso jurídico ter conhecimentos, entre eles “4° O estudo de Retórica é também indispensável aos que se dedicam à Jurisprudência, porque o advogado deve pelo menos saber a eloqüência do foro; e a arte de bem falar, e escrever muito necessária é aos que houverem de ser Deputados nas assembléias, ou empregados na Diplomacia...”. Estatutos da Faculdade de Direito de Olinda e São Paulo de Visconde de Cachoeira. Anexo A. 182 Ver: CARVALHO, Op. Cit. O autor observa que “em geral, a homogeneidade ideológica funciona como superadora de conflitos intraclasses dominantes e leva a regimes de compromisso ao estilo da modernização conservadora”. (p.35). 183 Carvalho observa, tratando do tema em Portugal, que a formação de sua elite política foi distinta de outras nações européias, pois tinha uma nobreza dependente dos cargos políticos e do aparelho burocrático para manter status e sobreviver. Abordando o Código Afonsino, de 1446, como o primeiro redigido em Europa, destaca que os juristas e magistrados exerceram um papel de grande importância na política e na administração portuguesa e brasileira: “tratava-se de uma elite sistematicamente treinada, sobretudo graças ao ensino do direito na Universidade de Coimbra”. CARVALHO, Op. Cit., p.36.

76

seja, o direito. Ademais, principalmente na segunda metade do XIX, para aceder a um cargo político a instrução seria fundamental, ainda que fosse somente o ensino secundário, como era considerado o ensino das escolas militares, sendo que antes desse período, se podia chegar ao cargo de senador um homem sem formação, mas com prestígio político local. Portanto, no Brasil, a valorização da formação superior pela via jurídica se tornou a tônica pela qual o país ordenaria sua missão centralizadora e ordenadora do Estado. O fenômeno do bacharelismo, deveras estudado por historiadores e estudiosos de história e filosofia do direito, se consagrava como veículo para a legitimidade do Estado e sinônimo de civilização 184.

184

SILVA, Op. Cit.

77

Capítulo Terceiro Uma justiça para o Estado: produção legislativa enquanto esforço de normalização Este capítulo busca dar prosseguimento ao debate anterior, conectando a realidade sócio-histórica aos ideais de justiça e de Estado planejados durante as primeiras décadas após a Independência do Brasil. Aqui, se demarcará dois momentos considerados importantes para entender esse processo de consolidação jurídica e política do Brasil enquanto Império. Primeiro os quatro anos anteriores à emancipação, observando a relação política do vintismo com a decisão pela Independência. Depois se analisará, a partir dos principais documentos jurídicos, Constituição e Códigos, Criminal e do Processo, a atuação dos estadistas-juristas nesse caminho de formação do Estado pela via da lei. Portanto, os anos de 1824 até os de 1841, serão tomados como parâmetro para entender o momento histórico em que estava inserida essa trajetória de elaboração, sistematização e reforma do aparelho judiciário em conexão com o movimento político da época. Nesse sentido, o processo de amadurecimento do projeto político do país caminhava passo a passo com os diplomas jurídicos visando a codificação como sentido para a legitimação do Estado. Estado de Direito, que através de sua Carta e seus Códigos, pôde dar materialidade à nação. Portanto, a questão central é em qual panorama se encontravam imerso esses documentos legais, que iriam amparar a construção do próprio país e convergir para a ampliação do poder imperial. Entende-se, assim, foram anos bastante turbulentos. Essa época foi aquela em que se debatia sobre que Constituição se queria para o Brasil, bem como que formação seria necessária para preparar seu corpo de funcionários que dariam forma e prática ao que se produzia nas bancadas legislativas sobre o judiciário, por exemplo. O período regencial e já a retomada do trono por Dom Pedro II serão dois momentos que requererão do Estado repensar suas estratégias de controle e administração de seu território. Era necessário solidificar as estruturas de comando e consolidar a política e a administração. Os ideais liberais ganharão terreno em todo este percurso, mas será a força conservadora que terá espaço para dominar os campos abertos pela política liberal e autonômica. Durante todo esse caminho de adaptações e câmbios, o poder judiciário não estará incólume. Portanto, dentro desta perspectiva, se pretende discutir quais os principais veios de atuação do setor judiciário e a importância

78

do bacharelismo para a conformação da política estatal e de seu dispositivo judiciário nos primeiros anos de independência.

3.1. O Contexto luso-brasileiro

Em 1820, Portugal requeria a convocação das Cortes. Desde o século XVII o monarca abdicou dessa alternativa para governar seus súditos. Eram os tempos do privilégio das luzes esclarecedoras a que o próprio e absoluto monarca poderia lançar mão para conduzir seu reino. Contudo, nos idos dos oitocentos, a história já seria outra para a Península Ibérica. Portugal e Espanha compactuavam com os demais estados modernos da Europa e com os seus ideais liberais. Tentariam, portanto, confeccionar um novo rumo político e, para o caso luso, regenerar o modo de conduzir os seus domínios. A opção, a via constitucional, foi tomada como símbolo de avanço e de modernidade mas, para quem? O projeto constitucionalista que se materializará em Espanha com a Carta de Cádiz será um marco no que toca ao processo de influências liberais, racionalistas e iluminadas e durará menos de dois anos ali. Apesar disso, seu raio de abrangência alcançaria as Américas e Portugal185. Nesse contexto, as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa traziam um sentido de atualização do país às demais nações modernas que tinham na Carta constitucional a síntese de sua racionalidade e iluminação, portanto. Era através das Cortes Gerais que, pensava-se, o povo estaria representado por meio de seus deputados, para ordenar e repartir os poderes, sobretudo, para manter o monarca, ainda que sem seu matiz absolutista. Portanto, a questão aqui era de que o poder fosse repensado sem perder de vista seu caráter centralista e ao mesmo tempo legitimado em um perfil liberal. O alvo, sendo assim, era o de uma monarquia constitucional para Portugal: a volta do rei fugitivo nos trópicos e a confecção de uma Constituição para a Nação Portuguesa. Contudo, os ideais liberais para essa nação não incluíam todo o seu Reino Unido. Unido, sim, porém sem equidade política e centralizado fortemente em sua base lisboeta. Ademais, a relação política e econômica que a coroa lusa mantinha com 185

Sobre a relação do vintismo e suas repercussões: ALEXANDRE, Valentin. Os sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1993. também conferir. PEREIRA, Miriam Halpern. (et.al.). O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. 2 Vols. Lisboa: Sá da Costa, 1982. Também João Pimenta sintetiza o tema na historiografia do Brasil pontuando a relação do nascimento do Brasil independente como desdobramento do nascimento do liberalismo político em Portugal. Ver: PIMENTA, João Paulo G. “A Independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção acadêmica”. Em: HIB. Revista de Historia Iberoamericana [en línea], vol. 01, 2008. pp. 70-105.

79

Inglaterra, sobretudo desde o apoio dado para a mudança da Corte para o Brasil, em 1808, era um sinal de que o controle das autonomias políticas dadas ao além-mar deveria ser revisto. Afinal, como se sabe, Inglaterra tinha uma séria pretensão mercantil e, portanto, uma simpatia notória pela formação de estados independentes na América e pela abolição dos pactos exclusivos do antigo sistema colonial 186. O movimento constitucionalista estava associado ao progresso, à modernidade, e a liberdades e, nesse sentido, quando tais ideias chegam ao outro lado do Atlântico são tomadas com simpatia e o que há é uma adesão ao movimento, principalmente de pequenos e médios comerciantes que viam uma oportunidade de coesão de interesses, antes marginalizados, e de domínio político em suas zonas de atuação que estavam amplamente saturadas pela burocracia lusitana. Era a chance de que outros extratos sociais com poder econômico tivessem espaço na cena política no Reino Unido. Dentro dessa aura de descontentamentos com a política de D. João e a pressão para que ele voltasse à Lisboa, Dom Pedro se mantém no Brasil como príncipe Regente submergido em uma confusão de ideais e de reações às novidades. Sim, porque se ali o movimento teve um caráter de retomada da centralidade do controle e do poder para Lisboa, no além mar se tomava a novidade de outras maneiras. Não querendo se alongar nessa importante trajetória, pois não é ela o foco do estudo, o que se quer pontuar, antes de mais nada, é que esse processo de retomada de controle, transfigurado como uma ideia de regeneração às origens do poder, ou seja, geoespacialmente demarcada desde sempre em Portugal, reverberaria no além-mar como uma ação de anulação das autonomias conquistadas tanto pela ida da corte ao Brasil, quanto ao status que se havia adquirido enquanto Reino Unido. Ali, junto à ideia de Constituição viria também, entre os diversos grupos sociais, a de libertação, não dos laços lusos, senão dos laços escravistas que estavam postos no sistema há séculos, como foi o caso dos maranhenses, para os quais a subversão à ordem poderia resultar na perda de posições políticas e de vantagens conquistadas no seio de sua província 187. Também, as mudanças podiam trazer a

186

Sobre o sistema colonial e seu processo de debilitação na América Portuguesa conferir: HOLANDA, Sergio Buarque de. Herança Colonial - sua desagregação. Em: História Geral da Civilização brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico. São Paulo: Difel, 1960; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. A formação do estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1987; DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial. Origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005, entre outros. 187 Para uma síntese dos casos de insurgência provincial e para um panorama sobre o processo de independência ver: SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo. O ‘nascimento político’ do Brasil, as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro. DP&A, 2003. E para o período posterior à

80

oportunidade de ascensão política e aquecimento das relações comerciais com Portugal, visualizado como melhor e mais vantajoso mercado, em algumas províncias, que o interno, com péssimas comunicações e de pouca amplitude, ate então. Nessa confusão de interesses e de interpretações sobre o sentido do vintismo para os Trópicos, os representantes do Brasil nas Cortes podiam vislumbrar a incompatibilidade

de

interesses188.

Enquanto

os

portugueses

de

Portugal

arregimentavam uma regulamentação que tirava poderes do Brasil, pedia o retorno do regente e a supressão dos Tribunais ali existentes; os portugueses do Brasil apresentavam um Estatuto para o Reino Unido do Brasil, sendo o Rio de Janeiro seu centro político regido por Dom Pedro. A ideia de submissão às Cortes, então, era mais ampla do que se imaginaria. O rearranjo luso não interessava mais aos dirigentes políticos, bem como à boa parte dos negociantes do Brasil, principalmente os do centrosul. O projeto de regenerar a Nação Portuguesa não objetivava a equidade no Reino Unido e o Brasil se via em desvantagem nesse contexto. Por isso, vale pontuar, quando Dom Pedro nega o juramento feito à Lisboa e não volta à Portugal – apoiado por uma forte articulação política no Brasil 189 - estava não atuando como um monarca independente mas, ao contrário, se opondo à ordem de retornar e deixar de ser o Regente do Reino Unido do Brasil como uma parte da chamada Nação Portuguesa, de um Império Luso-brasileiro190. O sentido de independência para esse contexto era o de autonomia, um governo do Brasil e não uma monarquia brasileira. Quando, por fim, a irredutibilidade das Cortes se mantém é que se produz o ato de coroação de Dom Pedro e que não era reflexo de uma paz concordante no seio da nova sociedade política americana. A independência, agora efetiva em 1822, traria em seu bojo uma série de contradições e uma delas era seu próprio passado Independência: MOREL, Marco. O período das regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Coleção Descobrindo o Brasil). 188 Acerca da participação dos deputados do Brasil nas Cortes ver: BERBEL, Márcia R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1820-1822. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 1999. 189 Graham sustenta a ideia de que nesse momento havia menos um triunfo nacionalista que uma necessidade de lograr a autonomia que se via ameaçada. Sobre essas elites: “eles simplesmente preferiram o domínio dele, com a promessa de autonomia local, ao domínio das cortes portuguesas, que ameaçava essa autonomia. A unidade do Brasil inteiro não se destacava entre suas aspirações na época.”. Ver: Graham, Richard. “Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre classe, cultura e Estado”. Em: Diálogos. DHI/UEM, v. 05, n.01, 2001. p. 22. 190 Eduardo de Oliveira traz uma contribuição nesse sentido, quando aborda os sentidos de Império civil para Portugal e como essas noções políticas e filosóficas, desde o reinado de Dom José I, vão se transformando e migram para o Reino do Brasil. Com a ida da Corte, se revigoram as questões de soberania política acerca do papel do Brasil no Império e seu nível de autonomia em relação a Lisboa. Ver: OLIVEIRA, Eduardo Romero de. “A idéia de Império e a fundação da Monarquia Constitucional no Brasil (Portugal-Brasil, 1772-1824)”. Em: Revista Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005. pp.43-63.

81

imediato, notadamente os laços mercantis de séculos, entabulados com a coroa lusitana, e que se apresentavam muito mais rentáveis que dentro do imenso e incomunicado Brasil. E não longe de seu espelho 191, o Império do Brasil também buscará no ato da convocação de uma Assembleia Constituinte promover um marco político para legitimar seu novo pacto. Essa tarefa não seria também de fácil manejo nessa sociedade política. As diversidades do vasto território refletiam-se em dimensões políticas divergentes e o que poderia ser a união de representantes por uma única causa em jogo, a formação institucionalizada de um Estado, se conturbava por que cada província conseguia ver-se menos integrada com o Rio de Janeiro que com Lisboa, por exemplo, ou ainda se via menos dependente de uma integração “nacional” que de reforçar seus laços políticos e comerciais localmente. A essa realidade, a coesão política e de interesses mercantis das províncias do centro-sul reagiu apoiando Dom Pedro para a suspensão da Assembleia. Assim, 1823 poderia ter sido um marco no que toca aos princípios liberais e à síntese de um espírito de unidade rumo à independência, mas não foi possível. O ideal de consolidar um só país, uma só coroa, estava fadado ao fracasso principalmente porque o projeto constitucional visava relativizar a posição central e estratégica do monarca e promover autonomia, que em realidade já era praticada, nas províncias. Assim, a etapa primeira desse processo de constituição do Brasil como corpo político era a de convencer a si próprio, as suas próprias fronteiras internas de que ter seu próprio cetro era melhor que seguir submisso ao de outros. A saída para a dissensão foi a repressão. A violência e a deportação foram as soluções encontradas para controlar os estados de ânimo controversos. Contudo, apesar de atenuada a situação e da aceitação do novo pacto político de independência, os problemas persistiram durante tempos, como a Balaiada (1838-41), no Maranhão e a Cabanagem (1835-40), no Pará192. Estas tensões que de alguma maneira foram evidenciadas desde o início através da Assembleia Constituinte denotam o quanto era importante considerar a grande rede local que tinha seus poderes constituídos e forjados em acordos de dimensão provincial. Submeter-se ao governo central e prestar contas, pagar-lhe 191

GUERRA, François-Xavier. “A nação moderna: nova legitimidade e velhas identidades”. Em: JANCSÓ István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: Hucitec, 2003. pp 33-60. Também: MORSE, Richard M. O espelho do Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 192 Para mais referências e uma visão geral desse período e dos movimentos políticos e de revoltas no país, ver. MOREL, Op. Cit.

82

tributos, responder por eles e, sobretudo, depender de sua legitimação para seguir ou não seus domínios políticos locais, não eram ideias de fácil aceitação. Outro centro de poder demandaria câmbios nas estruturas e tal processo requereria tempo e debates para ser efetivado. Portanto, considerando as pressões do além-mar e a necessidade de efetivação do acordo político para o Brasil, Dom Pedro, apoiado pelos seus, suspende a Assembleia e toma para si, conjuntamente com um restrito Conselho de Estado, a tarefa de outorgar uma Carta constitucional para o país. Isso não significou o pleno rechaço ao trabalho da Assembleia, porém, significou a possibilidade de remanejar a estrutura política altamente centralizada em suas mãos. Reação centralizadora para um contexto político instável. Como lembram Pimenta e Jancsó, o que se pode perceber daquele contexto eram as múltiplas identidades políticas que interpretaram o momento presente de diferentes formas, pois sintetizavam o passado e o futuro de maneiras diversas. As referências de territorialidade, nesse sentido, estavam mais amparadas pelos caminhos do costume, das trocas e dos pontos de tráfego muitas vezes estabelecidos pelo excolonizador/colono. O que mostra a complexa teia que se instalava nos debates e nas resistências efetivas no processo de independência era reflexo de um sentido de identidade mais apegado às redes locais, em um plano micro, e à fluidez (mais funcional e rentável) das transações comerciais com a matriz lusa e/ou européia193. O marco identitário, longe de ser brasileiro, era o de ser filho de uma pátria, mineira ou baiense, ligado a um passado comum, ao da Nação Portuguesa em um solo, o americano 194. O pensamento em se independentizar não estava associado a uma ideia de Brasil, e às manifestações que existiram, ocorreram no sentido de promover às suas províncias atuações independentes. O que estava bastante distante de um discurso nacional 195, portanto. Contudo, o Brasil não seguiu o rumo da fragmentação. E essa sociedade política, combinada de portugueses de variadas pátrias, acostumada há anos de práticas mercantis, por gerações ganhou terreno no solo americano. Boa parte da explicação para 193

Sobre essa transição no processo do Antigo Sistema Colonial, sua crise e suas heranças vale referir: HOLANDA, Sergio Buarque de. Op. Cit. pp.9-39; NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. 194 JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. “Peças de um Mosaico (ou apontamentos para o estado da emergência da identidade nacional brasileira)”. Em: MOTA, Carlos Guilherme.(org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: 2000. pp.129-174 e, também, ALEXANDRE, Valentin. Velho Brasil, novas Áfricas. Porto: Afrontamento, 2000, que trata do processo internacional ocorrido para o reconhecimento da independência e de toda a política implementada. 195 Graham, Op. Cit. pp.11-47.

83

a unificação apesar dos desagrados podem estar no fato de que a cômoda relação de submissão das populosas massas de escravos, aliadas ao controle da população pobre livre, tenha sido um dos principais vetores para o processo de emancipação unificada. O monopólio português e o perigo de que as notícias de avanços liberais se mesclassem ao discurso libertário e/ou abolicionista conseguiram promover uma elite política que restaurava as bases mercantilistas da antiga matriz lusitana e rompia com ela promovendo seu próprio espaço de autonomia para articular o que chamava de progresso. O intento era o de manter as autonomias regionais, assegurar as elites em seus postos, ainda que fosse necessário chamar os baixos escalões sociais a participar desse intento. A ideia não persistiria por muito tempo em todas as províncias. Se ao princípio, as intenções eram de se afastar do controle centralizador do Rio de Janeiro e mantê-lo, seja por uma monarquia federada ou pela república, logo a maior ameaça, como lembra Graham, era as noções de cidadania que perpassavam às ideias de liberdade, o que seria um perigo para os escravocratas. Portanto, a ideia de coesão urgia e a centralização era vista como um mal necessário para afugentar a ameaça de uma desordem social e/ou rebelião escrava 196. A figura do monarca podia também ser vista como reforço dos poderes locais, realçando as legitimidades conquistadas para facilitar o governo. E nesse caminho, as identidades nacionais iam sendo forjadas, ao redor desse manto real. A Coroa teve papel importante para a construção desse sentimento, graças à troca de lealdade entre as elites espalhadas pelo Brasil, convergindo interesses em manter deferência ao Estado monárquico e centralizador. Nesse sentido, o clientelismo e o patrocínio formaram a base estrutural para esse apoio recíproco. Esses aristocratas locais e regionais se sentiam brasileiros e o Brasil era local e regional. Em realidade, desde o movimento revolucionário do Porto, as elites provinciais se conformavam que, mais do que simples gestores dos negócios, passariam, a partir das Juntas, a ter a oportunidade de se organizarem e agregarem o controle político em suas principais funções, oportunizando um status distinto do anterior, vinculado às Câmaras municipais apenas. Essa ampliação do raio de atuação política, aberta com a nova fase lusitana pode ser vista como uma janela para compreender os passos políticos que o país tomaria posteriormente, quando já independente. O período posterior à Independência do Brasil, como já ressaltado, trouxe esse misto de 196

GRAHAM, ibid. Ver também: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: HUCITEC, 1987.

84

inconformidade e resistências às mudanças, em boa medida porque a atuação política das elites nessas províncias, possibilidade relacionada muitas vezes diretamente às Cortes lisboetas, era satisfatória ou não era ponto questionável para transformações, ainda mais se de caráter restritivo. E, no trajeto de consolidação da independência, o tema da centralização com perfil liberal teria que ser uma opção real e viável para o Brasil. Ao fim e ao cabo, essas primeiras décadas configuraram um processo de emancipação política que atingia variadas facetas da ordem institucional para o país. O federalismo foi uma solução arrojada dentro de um contexto bastante conservador, principalmente no que tocava ao regime de governo instituído. Deveria-se instaurar no Brasil uma monarquia constitucional e federativa? Não se tratava de uma tarefa simples, seriam necessários rearranjos para abarcar a multiplicidade. Como 197

Dolhnikoff

lembra

, o federalismo que se experimentará no Brasil após a saída de Dom Pedro

I, em 1831, sairá de uma ala política liberal que confrontava-se ao redor de qual arranjo institucional seria o mais eficaz para o contexto pulverizado dos poderes provinciais. Era o lugar destas elites que se tentava arranjar. E a palavra autonomia será o termo chave, tanto num plano macro, com a insustentabilidade do projeto junto às Cortes, como num plano micro, com a gestão política e administrativa do território americano. Isso explicaria, em boa medida, os conflitos de interesses e as eclosões de revoltas em várias partes do território brasileiro após a Independência.

***

Todo esse percurso que configurou a emancipação política do Brasil primeiramente demonstra que o que houve foi uma trajetória de conflitos e contradições, aspectos tumultuados de um complexo e polarizado espaço colonizado. Isso significa que a trajetória política do Brasil teve em seu bojo aspectos herdados de sua matriz colonizadora que, quando mesclados aos novos ideais de novos tempos, tendeu a uma síntese de múltiplas facetas a que se tentou embutir em sua Carta um sentido de Império. Esses matizes, além de serem demonstrados em várias perspectivas historiográficas, conectando temas como política, fiscalidade, movimentos populares e questões diplomáticas, também ofereceram análises no campo da administração pública e da justiça.

197

DOLHNIKOFF, Op. Cit.

85

Portanto, não evitando a correlação dos temas e a necessidade de lançar mão de suas transversalidades, se privilegia dar importância ao direito para essa constituição política no Brasil. Por meio desse processo de codificação que ocorreu no Brasil, se percebe a valorização da cultura jurídica para a América portuguesa, que teve seu nascedouro, como já discutido, nas principais matrizes jusfilosóficas recebidas, doutrinadas e também ressignificadas advindas de Europa e da América Inglesa. O que se configurará para o Brasil após 1822, se vincula a uma ideia de Império que se justifica por dois vieses. O primeiro tem a ver com uma tradição, que se parece às suas heranças: a de conectar à figura real um caráter divino, ou pelo menos facilitado pela Providência. E o outro estaria interligado ao que mais interessa a este trabalho, e que se emaranha ao poder ilimitado do monarca: a Lei Fundamental. O báculo e a mitra que levava o Imperador do Brasil eram símbolos do poder que ele garantia na defesa dos direitos Constitucionais. Era o direito das gentes apoiado pela ordem universal divina que outorgava o direito de justiça. E nesse sentido, a ideia de centralidade e de controle que Dom Pedro tinha sob seu resguardo se relaciona a um Estado de Direito, ao que as nações modernas se apoiariam, através das Cartas confeccionadas pelo “povo”. O monarca seria o zelador dessa lei e de sua efetivação entre os seus. O poder político do imperador era superior porque se coadunava também a uma vontade superior, seja dos céus ou do seu povo, que estaria expressa na Constituição. Portanto, esse processo de concessão da representatividade através de uma Assembleia não poderia destoar da noção de um poder político supremo, o do imperador. A confecção tanto da carta constitucional do Brasil quanto de seus Códigos não poderia olvidar destas máximas que, dentro da lógica da autoridade e da justificação da autoridade que unificaria o país, garantiria a estabilidade política e o status de novo país para o Império do Brasil. Essa imagem de Império e da função do governante em garantir o exercício da lei, em que ela de fato impere sobre qualquer outra prerrogativa, torna toda a trajetória da organização normativa, da positivação que ocorrerá nesse processo de efetivação da autoridade do monarca do Rio de Janeiro, de grande importância para entender toda a movimentação política e jurídica que ocorrerá nas primeiras décadas da Independência do Brasil. A função real de ser um garantidor do cumprimento da lei, de sua Constituição e das normas legais que implementa, será reflexo da maduração que a própria sociedade política irá alcançando no percurso pós independência. O papel das leis, portanto, será o reflexo dos câmbios do país, indubitavelmente. 86

Como analisa Oliveira, (...) juridicamente nos modernos termos constitucionais, está a idéia de um poder de império civil: um poder político supremo, exclusivo do monarca e instituído para resguardar a sociedade civil, por isto inquestionável em sua autoridade. A idéia de império civil redefine-se, aqui, como um poder político constituído em prol da sociedade. Não por remissão a um direito divino, mas pelo vínculo originário do poder político com a sociedade. Isto é o que fundamenta este poder de império exercido por D. Pedro I; e o que, na Constituição do Império do Brasil, de 1824, materializa-se no poder moderador198.

Esta noção de poder, delegada em boa medida ao monarca, era herdeira das concepções modernas de uma filosofia jusnaturalista composta tanto de uma noção divinal para a concepção de autoridade imperial, como também revigorada através do pacto social que delegava, através de sua Carta, o poder político. Era o Imperador, portanto, a figura mantenedora da justiça e viabilizadora da paz pública, resultando em uma autoridade quase absoluta, pois que garantida pela própria Carta, através do poder moderador. Acima de tudo deveria estar o Estado e suas leis. Dentro desta lógica se manejará a política, as próprias leis e todo o aparato administrativo estatal. O imperador era o máximo garantidor para que esse funcionamento fosse harmônico ou efetivo para o bem do Estado. E, se não fosse possível a figura do Imperador, uma regência daria conta de ser o elo entre os quatro poderes que rezava a Constituição: suporte moderador para o legislativo, executivo e o judiciário, portanto. E, de fato, a toda esta sucessão de movimentos e revoltas que as primeiras décadas da Independência sofreram tinha a ver com essa forma política e legal que o Estado se implantou: deu poder de representatividade, por um lado, e ao mesmo tempo teve um monarca com tão amplos poderes que se confundiam absolutismo e direito das gentes em um mesmo documento jurídico.

198

OLIVEIRA, Op. cit. p.60.

87

3.2. A Política e o Sistema Judiciário

O Brasil, já que independente, deveria prover para si um direito nacional, mais propriamente um direito público que espelhasse a situação política e jurídica do novo país. O misto de ilustração, direito natural e constitucionalismo caracterizaria o perfil jurídico estatal brasileiro incorporando em seus Códigos e na sua Carta ideais liberais que mais se ajustavam a uma história conservadora das instituições do Antigo Regime. Como esclarecido anteriormente, essa centralidade na soberania monárquica se relacionava com um elo antigo que divinizava e justificava o poder central e praticamente absoluto do imperador. Por outro lado, ainda que se possa muito discutir sobre a natureza dos câmbios ocorridos durante os primeiros anos da Independência do Brasil, o que se pôde perceber foi um claro rearranjo institucional com os meios que já possuíam. Tradição herdada de vários âmbitos da matriz lusitana, por suposto, mas também dos ecos napoleônicos de constituição e ingleses de ordenação de seu corpo representativo. As novidades em torno do tema liberalismo dentro do contexto brasileiro, serão ressignificadas como uma equivalência ao constitucionalismo para seu sistema político e liberdade mercantil para seu sistema econômico. Ao mesmo tempo, as influências federalistas da América Inglesa não poderiam ser ignoradas, a ideia de autonomia e unidade monárquica era um reto de difícil assimilação e que convivia com um padrão institucional que admitia um quarto poder, que dificultava o pleno entendimento entre elites agrário-exportadoras e a administração pública estatal. Estava claro que era necessário ordenar o país, expor suas ideologias políticas, deixar claro qual era a vontade soberana “do povo” e que houvesse homens que os representassem, que a sociedade já do Brasil, fosse organizada. No caso aqui apresentado, se nota já a tendência, desde a formação coimbrã, de que o ideal para um Estado como o do Brasil era o de administrar o poder, ordená-lo, tirá-lo ou agregá-lo aos diversos setores encarregados de representá-lo pelo país. E, nesse sentido, a lógica dessa administração do poder será uma das funções essenciais sobrepostas aos juristas no Império brasileiro. É dada uma importância crucial à legitimidade das ações estatais. A legalidade, como antes lembrado para o caso do monarca, deve imperar e justificar os atos do Estado e para o Estado. O funcionamento da máquina administrativa estava ligado ao desenvolvimento de um direito público eficaz e, pensava-se, moderno que pudesse dar conta da institucionalização do regime monárquico e constitucional.

88

Os juristas que elaboram ou reelaboram um direito público para o Brasil são herdeiros da cultura jurídica que os inspiraram desde a época pombalina, pelo menos. Os principais políticos que estiveram ligados a todo o processo de emancipação política e logo da elaboração dos documentos jurídicos para o Estado foram os mesmos que ocuparam as cadeiras de formação superior em Coimbra, ou em França ou em Inglaterra. Pode parecer algo óbvio, mas será essa mesma geração que, como elucidado no capítulo anterior, ordenará os cursos jurídicos no país e confeccionará o Código criminal e do Processo, fazendo reformas na Constituição a favor de uma acomodação entre elites no Brasil. Assim como o imperador do Brasil deveria estar submetido à Lei Fundamental do Estado (e precisamente por isso a refez e outorgou para garantir à sua própria função legitimidade de ação e controle), o corpo político do país e seus cidadãos deveriam também atrelarem-se à ela e coadunar para a estabilidade nacional. Como analisa José Reinaldo Lopes199, a modernização que se sofre na forma de interpretar a função do direito para o Estado, teve seu nascedouro desde as reformas pombalinas que começaram com a reordenação das fontes do direito através da Lei da Boa Razão de 1769 e depois com os Estatutos reformadores da Universidade de Coimbra (1772). A primazia da lei sobrepassaria os costumes, e quando sistematizada seria um compêndio de princípios universais que teria a competência de, inclusive, revogar o costume. Dessa lógica os legisladores e juristas no Brasil imperial seriam herdeiros, portanto. A Carta nacional demandaria a codificação, estímulo direto para que a lei fosse equivalente a um Código, dentro do princípio jusnaturalista, e que demandaria a sistematização como veículo de exercício da soberania e do Estado de Direito. Reforma-se, ordena-se o Estado no sentido de acomodar um Império que se queria liberal, dentro das esferas jurídicas, portanto. Era a faculdade de legislar que se tornava a máxima estatal liberal. Era necessário preparar homens capazes de fazer política, que também era fazer as leis, vale dizer. Por isso, o Estado imperial do Brasil em suas primeiras décadas, intentou garantir preparo a seu território, através de seus cursos superiores, de câmaras municipais menos independentes e de uma administração judiciária forte que denotasse o esforço de unidade que se almejava.

199

LOPES, José Reinaldo de Lima. “Iluminismo e Jusnaturalismo no ideário dos juristas”. Em: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Fapesp/Hucitec/Unijuí, 2003. p. 200.

89

Dentro deste contexto de acomodações, o que se percebe no Brasil é uma coexistência de normas legais, elaboradas pela Assembleia legislativa imperial, de um lado, e de normas estrangeiras, de outro. Sim, porque desde 1822 se supunha que o que vinha de Portugal era já exterior aos interesses do Brasil. Ainda assim, se entendeu legítimo manter, não somente uma dinastia que não era nativa, como também as Ordenações do Reino que seguiam funcionando como matriz jurídica para exercer a justiça. É necessário lembrar que não apenas as leis, mas o próprio preparo dos futuros juristas estava todo circunscrito à normalização conimbricense. Em todo caso, o direito nacional sofre, pois, de uma tensão inicial em duas vertentes: (a) não pode ser exclusivamente nacional, já que não se pode fazer o sistema ab ovo, rejeitando-se a prática anterior, colonial e de origem portuguesa e (b) não pode ser totalmente liberal-constitucional (no seu conteúdo, mas também na sua forma) e voluntarista, pois há de conviver com a ordem tradicional e suportar ainda alguns privilégios, (..), como o próprio patrimonialismo que sobreviverá 200.

Assim, tinha-se um direito público que se queria nacional e que, ao mesmo tempo, ignorava a existência de seus próprios nativos, e os primeiros, sobretudo. A supressão do direito chamado de alienígena, da população nativa e, posteriormente, a anulação de direitos aos trabalhadores negros trazidos de África, comporão o nexo da produção legislativa no Brasil. A assimilação cultural advinda do contato entre o europeu branco, o africano e o índio nativo, não pode ser observada no que tange as normas nacionais. Aos índios lhes incorporavam como protegidos no direito real, e aos negros, como escravos, suprimindo o que era molesto, no plano cultural e no legal, privava-os de direitos pessoais ou de qualquer outro tipo, como o uso de suas próprias organizações e estamentos201. Essa é mais uma mostra de que a marginalização do direito costumeiro era a máxima estatal e de sua ordem em construção. Valorizava-se, portanto, a matriz romana, entendida como a mais avançada e principal motor de ordenamento jurídico no território. Como pondera Wolkmer, “desde o século XVII, a elite dominante e seus letrados servis buscaram justificar, sob aspecto religioso, moral e jurídico, um projeto cristão-colonialista, colocando em relevo a legitimidade da escravidão e a fundamentação das normas que institucionalizassem o controle” 202, e como era previsível, esse aspecto permaneceu como estrutura para a formação institucional do país independente.

200

LOPES, Ibid., p. 200. MACHADO NETO, Antonio Luís. Sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. pp. 307-310. 202 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 53-54. 201

90

Eram momentos difíceis de ajustes para os projetos liberais, pois era ocasião também de repensar o escravismo no contexto dos discursos sobre raça 203, próprios do XIX. Para uns, acabar com o tráfico e abrir o país para imigração branca seria um vetor de avanço para o Império. Assim, entre debates de várias naturezas, a escravidão se tornava um calcanhar de Aquiles dentro da ideologia liberal e de seus adeptos, principalmente os mais radicais, já que era uma das armas principais para o ataque político reacionário, ainda mais porque, ao tentarem promover uma nação homogênea, se debatiam com a distinção social e de raça que claramente estava posta. De todos os modos, o que se quer pontuar aqui é que além de todo o esforço estatal para preparar seu corpo administrativo, de proporcionar uma jurisprudência convincente com a estrutura moderna requerida naqueles tempos, a prerrogativa maior que dá o mérito ao investimento efetuado pelo Estado imperial é a de admitir a convivência com as estruturas de um ordenamento anterior subjacente ao seu passado e que conectava diretamente com privilégios herdados, elites com seus postos de poder definidos e uma gama de jogos políticos que teriam de abarcar para garantir a soberania de seu território. Se para esta geração de políticos e dirigentes nacionais era necessário codificar para legitimar sua atuação, pois então, ainda que à custa de uma convivência incômoda com as matrizes lusas, a saída era reformar os dispositivos estrangeiros e coloniais, ajustar o que interferiria mais imediatamente do perfil de um país constitucional e moderno, e seguir um rumo liberal sintonizado com o presente. Nesse caminho, como já ressaltado, haveria muitos outros incômodos que a própria legislação daria conta de suavizar, suprimir ou relativizar, como o caso do direito alienígena. Em todo caso, ainda que atento a estas nuances, o que se quer destacar aqui é essa centralidade que o direito toma para o Estado, pensado como instrumento para a transformação no seio social ou adequador da realidade já existente. Para esses homens, a lei era a conformadora do que o Estado queria de si e para si, era ela quem refletia o caráter racional estatal e sua política. Nesse contexto, ser liberal no Império, em boa medida, era ser constitucionalista, dispor de um Estado que levasse em uma mão a Carta e em outra o controle unificador para um grande mosaico que ali se apresentava. E, “o

203

No que toca tais questões ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Sobre o tema direitos e índios ver: SOUZA FILHO, Carlos F Mares de. “Índios e Direito: o jogo duro do Estado”. Em: Negros e índios no cativeiro da terra. Rio de Janeiro: AJUPIFASE, jun.1989. pp. 85-98.

91

direito constitucional foi entendido como o direito fundamental, do qual toda a legitimidade legislativa procedia” 204. Como já sublinhado, para garantir que o Estado estivesse já preparado minimamente para seguir um rumo próprio, não foi necessário romper com o passado. As elites do jovem país confeccionaram, desde sua estrutura política herdada de tempos coloniais, uma malha administrativa que conservava, em boa medida, as características sociais, e sobretudo econômicas, que já existiam. Nesse sentido, o arcabouço jurídico-político estatal deveria, portanto, adequar-se à economia agrícola de exportação e à manutenção dos interesses das oligarquias, objetivos que implicavam a preservação da exploração da mão-de-obra escrava, do patrimonialismo, do clientelismo, consistente na troca de favores entre as elites e seus 205 clientes, desempenhava um papel fundamental .

A burocracia do Estado teve que adaptar-se a esse sistema, ainda que inspirada nos princípios liberais, que convivia com a forte tradição gerada pela secular relação colonial. A formação de funcionários para servir ao Estado, os operadores jurídicoburocráticos206, estava diretamente relacionada com a manutenção do equilíbrio entre essa elite agroexportadora e os setores responsáveis por comercializar essa produção no país e fora dele. Assim, se a lógica do Império esteve associada à garantia da estabilidade política e econômica, cabe pensar que essa relação entre o funcionalismo burocrático do Estado e a base formativa, oferecida pelo do cursos de Direito de Pernambuco e de São Paulo, teria que atender a tais expectativas e assim, acatar às necessidades do maior empregador naquele momento. O ideal para os liberais no Brasil era que o sistema Judiciário fortalecesse o pacto social liberal, atuando como a garantia da manutenção dos direitos individuais em

204

LOPES, Op. Cit., p. 204. FREITAS, Ricardo Brito A. P. As Razões do Positivismo Penal no Brasil. São Paulo: Lúmen Júris, 2002. p. 247. 206 Antonio Candido, tratando sobre os profissionais que saiam tecnicamente preparados para exercer outro oficio, como medico, químico ou matemático, afirmava que eles se viam isolados em suas funções, em boa parte devido a essa restrição ao que era importante para abarcar a notoriedade estatal e, em consequência, social e científica. O autor comenta que “o motivo se prende em parte à própria estrutura social, pois a inexistência dos estratos intermédios entre o homem culto e o homem comum, bem como a falta de preparação dos estratos superiores, os forçava às posições de liderança administrativa ou profissional. Eram por assim dizer aspirados pelos postos de responsabilidade, quaisquer que fossem...”. Com isso, quer-se destacar que efetivamente era o Estado o catalisador da mão-de-obra com qualificações no Brasil e mesmo em Portugal, e que a mentalidade à época fomentava uma associação entre o grau de bacharel, por exemplo, com uma possibilidade de ascensão nos quadros administrativos do governo imperial. Ver: CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Oro sobre Azul, 2006. p.110. 205

92

face do poder político do Estado207. Contudo, esse ideal projetado e requerido para o aparato jurídico no país não teve a convergência almejada tanto em sua formação acadêmica, quanto no seio de boa parte de sua elite política. O caso brasileiro demonstra uma tendência em buscar mesclar as fronteiras entre a segurança da identidade nacional, ao forjar seus próprios Códigos, e a estabilidade que um passado dependente ainda lhe podia oferecer. Nesse sentido, a função idealizada para os bacharéis estava diretamente vinculada com a harmonização desses dois momentos que convergiam para seu presente. Mediariam o costume da prevalência do privado sobre o que era de todos e deveriam lidar desde o domínio e autoridade pública com os poderes particulares que não vislumbravam a necessidade de delegar à ordem para o domínio público. De todas as formas, as funções desses bacharéis em direito será de fundamental importância para demarcar com sua presença a importância do Estado e dessa separação necessária entre o domínio privado e o público. Idealmente, será projeção do aparelho estatal que os juristas formados representem as normalizações que se instituíam pelo e para o Império. A relação estabelecida estava em entender que através desses agentes de poder, intelectualmente preparados e afinados com a filosofia legal e política do país, pudessem manter sua presença em diversos rincões do extenso território e promover sua marca como controladores das regras. Por mais que pareça algo utópico para o caso do Império do Brasil, é importante entender a dualidade de intenções nos ideais projetados para e pelos magistrados e bacharéis ingressos no funcionalismo jurídico estatal: era de interesse do Estado que sua autonomia não fosse impositiva, mas conciliada com os interesses das elites agrário-exportadora e comercial. E eram nessas mesclas de intenções que os representantes do jurídico deveriam se mover, entre condutores ideais da ordem e da civilidade liberal e amortizadores das discrepâncias do passado colonial persistentes em meio aos que dominavam a cena econômica e, por suposto, política no país. Conforme Carlos G. Mota averigua, “ao mundo jurídico e político caberia adaptar – mais raramente inovar – os valores do

207

FREITAS, Op. Cit., p.244 e ss; SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Império do Brasil (1822-1834). Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.

93

mundo capitalista emergente ao legado do sistema colonial escravista. Essa era a principal tarefa do jurista naquele contexto” 208. Como anteriormente discutido, o ecletismo no Brasil não esteve vinculado somente aos seus matizes filosóficos, mas compunha adequadamente o que os estadistas necessitariam lançar mão para sua política e na consolidação do poder centralizado. E, portanto, não seria de impressionar, que ante a uma legislação liberal, cooperasse uma atuação judiciária e política ambivalente, que, como os ecléticos, se intentava harmonizar. Wolkmer, sobre essa nova síntese, observa que o Brasil se acomodou “à tradição de um patrimonialismo sociopolítico autoritário (de inspiração lusitana) com uma cultura jurídica liberal burguesa (de matriz francês, inglês e norte-americano)”209, o que garantiu eminentemente o conservadorismo em primeiro plano e os ideais liberais de modo menos prático que o almejado nos seus próprios escritos jurídicos. Essa significação do que deve ser público e privado no espaço brasileiro perpassava campos vastos e múltiplos e cabia à administração do Estado fortalecer-se, ainda que cedendo margem para que o já estabelecido pelo costume seguisse persistindo. Como analisa Sergio Adorno, durante o século XIX, o corpo profissional do ramo jurídico ganhava centralidade, pois que era responsável, entre suas várias funções no aparelho do Estado, pelas demarcações do que era patrimônio público e do controle dos grupos tradicional e localmente poderosos. Sobre essa importância, o autor comenta que, através desse grupo de intelectuais, se promoveu a ampliação dos quadros políticos e administrativos, sedimentou a solidariedade intra-elite de modo a rearticular as alianças entre grupos sociais representantes do mundo rural e do mundo urbano e, sobretudo, possibilitou a separação entre o poder doméstico e poder público, fundamental para a emergência de uma concepção de cidadania210.

Será dentro desse contexto de responsabilidades e prestígio-recompensa que se tecerá as bases éticas e jusfilosóficas da nova nação, por meio de um aparato burocrático, não muito distante da matriz lusa, mas com a aderência aos ideais liberais que tornariam a sua Carta e seus Códigos uns dos mais avançados e atuais dos oitocentos.

208

MOTA, Carlos Guilherme. “Do Império luso-brasileiro ao Império brasileiro”. Em: MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na formação do Estado-nação brasileiro. Vol.I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p.133. 209 WOLKMER, Op. Cit., p. 102. 210 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do Poder. Bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 78.

94

***

Dois anos após a proclamação da independência do Brasil, em 1824, era outorgada a Carta constitucional. A Constituição, como primeiro marco jurídico do país, evocava a união e legitimava-se como Código dos códigos. Menos que um pacto211, a exemplo dos franceses, a soberania da Carta era sinônimo de Lei Fundamental da nação, inviolável, a que se submeteria toda a consequente legislação nacional ou se adaptaria a que já existia, como as Ordenações Filipinas portuguesas ainda vigentes. Em síntese, a Constituição de 1824 de perfil moderado 212, considerava o Império indivisível e garantidor de liberdades e direitos aos cidadãos brasileiros. Sua forma de governo era a monarquia constitucional dotada dos poderes moderador, executivo, legislativo e judiciário e o Imperador, à parte de seu poder de sanção no que tange à confecção das leis, também era o gerenciador do Executivo e efetuava seu governo através dos ministros e, por meio do poder moderador213, centralizava em si todo o ordenamento político do Império, com o auxílio de um Conselho de Estado 214. 211

Slemian lembra, partindo da experiência de codificação em França de Napoleão, sobre o caráter legalista que o meio jurídico vai adquirindo com uma forte conexão entre lei e direito. Nesse sentido, apesar de o monarca ter seu papel, o parlamento ganhará centralidade nas atribuições legislativas. Essa base normativa ensejará os novos códigos nacionais e firmará um direito positivado e exercido no cotidiano, sendo essa lógica a base dos estados liberais do XIX. A Constituição, nesse viés, será a tutela matricial para que essa prática se tornasse um atributo perene para a administração estatal. No Brasil pontua que “nossos primeiros legisladores usaram „a faculdade de legislar‟ como primeira fonte de todo o direito, consolidando um ideário de Estado...”. Conferir: ver SLEMIAN, Op. Cit., pp. 27-29. Também, Paulo Bonavides, ressalta que a nova lógica que o liberalismo entremeava aos regimes políticos no XIX, teve no seio da burguesia sua significação mais triunfante e foi precisamente, segundo o jurista, a Constituição e a lei os instrumentos utilizados para concretizar novos interesses que no Brasil trariam após o Primeiro Reinado, a consolidação da unidade nacional e estabilidade da elite. Ver: BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002. p.102-103. 212 A Assembleia Constituinte no Brasil independente, primeiramente começou a formular uma primeira Constituição, que nos idos de 1823 foi suspensa e a Assembleia fechada por D. Pedro I. Considerando o perfil liberal e pouco centralizador do primeiro intento, entendia o Imperador como um ato de traição com o acordo feito entre os constituintes e a Nação, entre aqueles e ele próprio. Assim sendo, no ano de 1824 se promulgará a Carta com a nuance moderada e a adição do poder moderador que promovia a requerida centralidade ao monarca. Para compreender esse processo em viés histórico, ver SLEMIAN, Op. Cit. e em sentido jurídico, entre outros, ver BONAVIDES; ANDRADE, Op. Cit. 213 Nesse sentido, os constituintes no Brasil se apropriam da base filosófico-política de Benjamin Constant, no que toca o Poder Constituinte, para dar este arremate centralizador na figura do Imperador. Portanto, no caso brasileiro, se saía da esfera originária de que o Moderador era a força que equilibraria os demais poderes, um poder neutro ou o judiciário dos demais poderes, para ser a própria chave da organização política. Ver: BONAVIDES; ANDRADE, Op. Cit., especialmente capítulo terceiro; e também FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato político brasileiro. 11 ed. São Paulo: Editora Globo, 1997. p. 290 e ss. Ver também Constituição de 1824, art.98. 214 O Conselho de Estado era o apoio consultivo do Imperador. Amparado pela Constituição, esses conselheiros deveriam fazerem-se ouvir pelo monarca antes de tomar decisões consideradas de gravidade

95

Este padrão constitucional, assim como em outras partes do Ocidente, tendia a assemelhar-se ao modelo de Carta francesa contra-revolucionária. Ainda que não adotasse o poder moderado, as premissas da Constituição de 1814 subsidiaram, para muitas nações de tendências moderadas, os princípios vitais de controle e legitimação de direitos. Nesse sentido, não somente no Executivo, mas também no Judiciário, o monarca teria a autonomia para nomear, controlar e tirar de cargos, conforme a necessidade, como os magistrados215, por exemplo. Portanto, vale recordar que esse perfil moderado que a Carta ganha no país foi reflexo de uma ação de Dom Pedro I, imperador, que considerando os destinos que os debates tomavam rumo à sua confecção, tendiam para um projeto muito menos centralista do que o próprio cetro poderia sustentar. Como avaliado no início deste capítulo, a outorga da Carta feita pelo imperador, apoiado por grupos políticos contrários a um rumo federalista poderia ser um dos primeiros sinais de tirania de um monarca de sangue lusitano e de perfil autocrata. Sérgio Adorno traz à discussão uma brilhante análise sobre a efetividade da Carta Constitucional e seus ideais liberais quando analisa como o teor legal da constituição era um arranjo entre modelos ingleses e franceses e os interesses patrimoniais que o Estado deveria preservar, demonstrando avanço em seu ideário, mas ao mesmo tempo quitando o que poderia desvirtuar o controle sobre as liberdades, e eliminando assim os sentidos de igualdade que as matrizes inspiradoras poderiam incutir de princípios liberais em sua legislação 216. Até o ano de 1831, em que Dom Pedro abdica ao trono em favor de seu filho, Pedro II, menor de idade, terá de enfrentar uma complexa e larga jornada de tensões intra e extra território. Primeiramente porque dois anos após a outorga da Carta, o monarca reabre a Assembleia Legislativa. Será a partir do ano de 1826 que o processo de reavaliação da Carta, através dos intentos reformadores visando a mesma e polêmica descentralização imperial, gerará pressões fortes em torno da figura do monarca. A parte disso, a política econômica privilegiando a Inglaterra e posteriormente os demais países com os quais se tinha acordos comerciais de importação, geraria um grave déficit aos cofres internos que, cooperados com a circulação de moedas falsas e os enormes gastos

ou quando necessitassem exercer atributos próprios do poder Executivo no governo. Esse Conselho será extinto em 1834 com o Ato Adicional. Conferir Carta Constitucional de 1824, Tit. 5. Cap. 7º; Ato Adicional de 1834, Art. 32. Anexo B. 215 Cf. Carta Constitucional de 1824. Tit. 5. Cap. I. Art. 101, inciso VII. 216 Ver: ADORNO,Op. Cit., p. 60 ss.

96

com a Guerra Cisplatina217 (1825 a 1828), produziriam um caos financeiro ao jovem país governado por Dom Pedro I. Acresce-se aos fatos, a morte de Dom João VI, em 1826, em terras portuguesas e a pressão de Dom Miguel, irmão de Dom Pedro, que reivindicava a coroa para si e não para Dona Maria da Glória, sua filha. Assim, questionado em sua administração autoritária, em sua política econômica e exterior, Dom Pedro I decide resolver as questões dinásticas que em teoria já não lhe pertenceria, mas que na prática, segundo sua visão e de seus partidários lusitanos, era o único caminho de salvaguardar o trono à sua filha e livrar o reino português das sombras do absolutismo de Dom Miguel. Contudo, ainda nesse ínterim, antes que o período das regências se implementasse no Império, os juristas e políticos começam a mover seus braços reformadores em prol de uma solução legislativa e judiciária que atendesse aos anseios da heterogênea elite provincial espalhada no território. Como lembra Miriam Dolhnikoff, desde a primeira tentativa de conformar uma Carta constitucional para o país, o estímulo para que pontos de vista divergentes intra-elite se reunissem no Rio de Janeiro para formular um pacto social e político para o Brasil, estava assentado nas esperanças de que se pudesse coincidir em um arranjo institucional a possibilidade de autonomia, ainda que unificada, ou melhor, intermediada pela figura monárquica. Para os estadistas daquele período seria possível, sem a presença de Dom Pedro, por exemplo, reformar a Constituição do país sem derrubar a monarquia: “tratava-se de conferir a esses governos [provinciais] atribuições que não estivessem sujeitas à sanção do governo central, deixando, assim, de ser simples agências deste último” 218. Esses dados são importantes porque justificam em boa medida tanto o caráter conservador que se tem discutido ao longo deste trabalho, como também as tentativas de renovações, transformações nas leis e na administração da justiça no Império. O terreno das legalidades, da confecção das normas e o fato do dever de estar submetido a elas, era o espaço ideal para que as tensões, bem como os arranjos aparecessem e conformassem rumos políticos e administrativos novos para o país. Em 1826, por fim, o legislativo se reúne e as primeiras medidas começam a ser implementadas visando primeiramente desenvolver esse direito público que necessitava ser ordenado. Assim sendo, a legislatura desenvolve várias medidas que se coadunavam 217

PIMENTA, Joao Paulo G. Estado e Nação no fim dos impérios ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo: HUCITEC, 2002. 218 DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial. Origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. p.16.

97

com os princípios gerais estabelecidos e demandados pela Constituição: reordena-se as Câmaras, os municípios, portanto, suprime-se os Tribunais anteriores à emancipação, como a Casa de Suplicação e a Mesa da Consciência; cria-se o Supremo Tribunal de Justiça do Império e os cursos jurídicos. Além do que, nos idos da primeira legislatura, se começava a notar uma mudança, ou a institucionalização da autonomia das Câmaras municipais para a eleição dos juízes locais 219. Por isso Thomas Flory220 considera que o período efetivamente liberal do Império não começava a contar desde a ida de Dom Pedro I ou das reformas na Constituição. Para ele, a partir de 1827, desde que os juízes de paz ganham espaço no cenário jurídico com plena autonomia policial e até certo ponto judiciária, já se podia considerar os primeiros passos para a efetivação da chamada década liberal. Ou seja, antes mesmo da primeira reforma na Carta (1834), o Império já começava a ganhar feições liberais e, sobretudo o que mais interessa aqui, em seu aparato judiciário. O mais interessante é que o Estado toma para si uma forma de gestão de suas leis, de sua justiça precisamente, mais federativa, democrática e autogestionada localmente. A princípio, pode em nada parecer a todo o ideal entabulado pelos seus estadistas quando pensavam a importância das leis, da submissão e do conhecimento das mesmas para o desenvolvimento do Império. É por isso que, apesar da Reforma de 1834 e das críticas feitas, na época, sobre a forma como foi concluída e outorgada a Carta constitucional no Brasil, os historiadores observam que em seu âmago o seu perfil seguiu sendo o mesmo de 1824. Apesar de em 1840 haver uma reação conservadora, iniciada, aliás, desde 1837, conhecida como Regresso, muitas das autonomias que foram pensadas e elaboradas durante a década liberal de Flory221, seguiriam coexistindo com os câmbios propostos pela ala conservadora. O que pode significar duas coisas. Uma é que os liberais estavam longe de serem extremistas em defesa de suas ideologias e que os conservadores tampouco levavam a ferro e fogo seu conservadorismo, como alienados do ideário de sua época. E a outra é que, nesse momento, o que mais parecia

219

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias. Rio de janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: FAPERJ/Civilização Brasileira, 2008. 220 FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, 1808-1871. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. 221 Seguindo a lógica do autor: “estos reformadores liberales y sus aliados nativistas unieron fuerzas para que se aprobara la primera de las medidas que tanto apreciaban: una ley que creaba jueces de paz electivos a nivel de la parroquia. Puede considerarse que la década liberal de la historia brasileña se inició con ese suceso. Esas reformas patrocinadas por la oposición hicieron que el emperador se sintiera celoso de sus prerrogativas, y así exacerbaron el conflicto entre Dom Pedro y los legisladores”. FLORY, Ibid,. p. 22.

98

aceitável para que a soberania estatal funcionasse era que as elites tivessem seus espaços políticos. De diversas naturezas, se se pode assim dizer, a prática do poder local-provincial dessas elites, que antes estavam conectadas diretamente a Lisboa, parecia reviver e fazer total sentido para que o argumento político da unidade tivesse razão de existir. Nesse sentido, o período que se segue a 1827 (da segunda legislatura, em 1830) terá em seu bojo essas pressões. Em direção ao monarca, as queixas reivindicando mais espaço para as províncias, seguiam sendo um dos carros-chefe entre os representantes da Assembleia. Ao mesmo tempo, pensando no objeto deste estudo, desde 27, Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Clemente Pereira, juristas e deputados do Império, apresentavam os projetos para a Câmara do que poderia ser o Código Criminal para o Império. Era um contexto liberal para ideias de ordem e de justiça e, apesar de nessa mesma época se observar a importância do magistrado e do bacharel para compor os quadros governamentais, o que se notará, é uma valorização do cidadão comum, respeitável e com algum poder local para exercer a justiça nos mais diversos rincões do Império. Portanto, é importante agora pontuar, para além da importância da Lei Fundamental do Estado, a relação que o trabalho legislativo e político, do período posterior à abdicação, teve na conformação do sistema judiciário e em consequência do bacharelado no Brasil até 1841.

3.2.1. O Código Criminal

Dentro deste contexto político em que se forjavam as bases organizativas e legislativas para a consolidação do Império do Brasil, três documentos legais foram essenciais para a ratificação do Estado enquanto corpo político e centralizador das demandas administrativas, jurídicas e políticas estatais. O primeiro deles, como já observado, foi a Carta constitucional, em 1824; logo se elaboraria o Código Criminal do Império, em 1830, e o Código do Processo Criminal do Império, em 1832. Em síntese, partindo destas positivações se poderá demarcar as formulações e reformulações que o Estado implementa para si e para sua estrutura judiciária. Ao considerar a estrutura que o poder Judiciário no Estado deveria comportar, os estadistas projetavam o tipo de controle que queriam ter sobre o país. Nesse sentido, assim como o Legislativo e o Executivo, as malhas administrativas do aparato judicial, partindo da própria 99

Constituição nacional, tiveram refletidas as tendências descentralizadoras e liberais que prevaleceriam durante as primeiras quatro décadas do XIX. Primeiramente vale observar que cada um dos Códigos elaborados não sofreu nenhuma alteração até o ano de 1834, quando à própria Constituição se agregaria a emenda chamada de Ato Adicional. Em todo o caso, a intenção política para as mudanças outorgadas neste ano, não irão afetar o Código Criminal do Império. Este, em linhas gerais, dizia respeito aos delitos e às penas imputadas aos infratores e sua implementação e foi reflexo de uma sintonização com as discussões mantidas entre as nações modernas do ocidente que iam de encontro aos métodos punitivos do passado regime. O Código Criminal do Império de 1830 vinha a substituir o Livro V das Ordenações Filipinas, assim como em 1832, o Código do Processo Criminal se incumbiria de matizar as atribuições de todo o funcionalismo policial e judiciário. Para reformar o sistema judiciário era preciso resignificar as funções, delegar tarefas, e principalmente repensar, dentro de um quadro de influências de Bethan e Beccaria 222, entre outros, as penas e suas aplicações quanto aos delitos. De todos os modos, o feixe principal de atuação era que esse braço do Estado funcionasse a favor da tendência descentralizante que, nos primeiros anos da independência, se erigia política e ideologicamente. Esse panorama nacional, que visava estruturar o Estado de Direito apoiado nas codificações, se inseria em um movimento codificador do ocidente apoiado pelas teorias modernas jusnaturalistas, como anteriormente explicitado. As bases para a confecção dos Códigos nacionais estavam assentadas nas garantias do indivíduo, de sua propriedade assim como na atenuação das formas de punibilidade 223, reflexo de influência humanista desde finais do XVIII inícios do XIX224.

222

Refere-se às obras Dos Delitos e da Penas (1763), de Beccaria e Teoria dos castigos e das recompensas (1811), de Bethan. Nesse sentido, sintetiza Silva: “a concepção da punição adotada no Código de 1830 revela, com nitidez, o ideário da Escola Clássica, sendo os princípios de Beccaria e Betham verdadeiros corolários (...) as idéias de correção, de exemplariedade, utilidade e de prevenção são alardeadas como o fim das penas”. Ver: SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003. p. 232, conferir especialmente o capítulo terceiro. Para aprofundar os debates sobre Bethan, ver: MORESCO, Jose Juan. La teoria del derecho de Bethan. Barcelona: PPU, 1992. 223 Conferir: SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003. 224 O humanismo oitocentista tinha perfil filantrópico e seus maiores expoentes saíram das matrizes americana, francesa e inglesa no que tange às reformas penais. Conferir: PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; SILVA, Mozart Linhares da. Do Império da lei ás grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

100

Essa linha de raciocínio, sobre a correção e suas penas, traz em si matizes de uma filosofia jusracionalista. A ideia de uma proporcionalidade às penas e de prevenir o crime para que não seja necessário aplicá-las, também faz parte de toda essa lógica moral de que o pensamento penal iluminista era a maior inspiração para os juristaslegisladores dos Códigos criminais nos oitocentos. Por outro lado, pelo menos no que toca essas mudanças na Europa, a intenção era clara: quitar o poder do monarca, ou ao menos minimizá-lo, pois que o próprio rei podia revogar as decisões dos magistrados, neutralizando suas decisões. À parte, os poderes localizados evidenciavam-se por ações ilegais que atingiam principalmente a propriedade, e afetava, assim, uma vasta gama de interesses que necessitava de uma nova e “civilizada” forma de preservação. Reformar o judiciário, nesse sentido, era recolocar os poderes e reordená-los a favor não somente do Estado, mas dos direitos individuais que sua própria Lei Fundamental promulgava no pacto social. O Código Criminal do Império vai ganhar boa parte desses contornos com a influência direta de Beccaria e de Bethan. Terá também como base o próprio Código Penal luso de Pascoal José de Mello e Freire, de 1786. As ideias do jurista serão de forte apoio aos elaboradores do Código no Império, tanto por esta codificação, quanto pelas aulas na cadeira de História do Direito Pátrio, em Coimbra 225. Contudo, ter sido considerado um dos códigos criminais mais avançados do ocidente, dotado de uma perfeição técnica reconhecida à época, antecipando-se a Portugal e Espanha entre outras nações, não significou que em seu bojo se excluíssem as contradições226. Como aclarado no início deste capítulo, a sociedade política que se desenhava no país convivia com um sistema escravista, ao mesmo tempo em que ignorava o direito alienígena dos povos autóctones. A força da tradição dos séculos colonizadores tampouco poderia deixar de ser evidenciadas em seus Códigos, afinal, o Código Criminal de 1830 “reflete, em boa medida, a estrutura e a organização social de uma sociedade de economia dependente, ainda colonial, escravocrata e patriarcal, temerosa do sistema e da forma política recém-instaurados, e que por isso cautelosa de resguardá-los, cerceando-os de proteções legais”227. Nesse sentido, a própria confecção do Código Criminal no Império era a retomada do pensamento entre a crença de que se 225

NEDER, Gislene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000 2ª edição, Revan, 2007. pp. 148-160. 226 Nesse sentido conferir a discussão em GAUER, R. M. C. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001. 227 MACHADO NETO, Zahidé. Direito penal e estrutura social: comentário sociológico ao Código Criminal de 1830. São Paulo: saraiva-Editora da Universidade de São Paulo, 1977; NEDER, Gislene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000 2ª edição, Revan, 2007.

101

poderia experimentar novos tempos e a realidade do passado e do presente herdados de tempos coloniais. Como aclara Mozart Linhares, a exemplo do uso da pena de morte, “percebese uma intenção bifurcadora nos debates: por um lado se contemplava, segundo o princípio das luzes, a sociedade civilizada; por outro, se alcançava no mesmo Código, a outra metade social, considerada imoral, refratária à civilização pela própria natureza social”228, denotando uma clara percepção de que o panorama no novo país era heterogêneo e diverso dos exemplos que os inspiravam. A escravidão era, portanto, o perigo social extremo do qual não se poderia livrar rapidamente e durante a maior parte do período imperial, o sistema de punições será reflexo da dualidade entre os cidadãos e os escravos. Nesse viés, penas para escravos não eram equivalentes à prisão, galés ou trabalhos forçados, pois que sinônimo de um ritmo de trabalho inferior ao que levavam na condição de escravos229. Portanto, como já observado, junto aos alentos da Escola Clássica, viriam também as contradições de uma situação econômica e social bastante diversa às suas raízes inspiradoras. Como conclui o historiador: Embora as tentativas de organização do sistema penitenciário baseado em técnicas moralizadoras, afeitas sobretudo aos países protestantes, norteadas pelo rigor disciplinar e também religioso, o sistema correcional brasileiro seguiria um viés eclético, procurando experienciar modelos que melhor se adequassem à sociedade da época230.

228

SILVA, M. Op. Cit., p. 240. Tratando sobre as penas no Código Criminal, Luciano Pinto explica: “As piores penas recaíam sobre os escravos. Para eles estava prevista a pena de morte em caso de insurreição (CCIB [Código Criminal do Império do Brasil] art. 113), homicídio (CCIB art. 192) e roubo com morte (CCIB art. 271). Os livres também seriam punidos com morte em caso de insurreição (CCIB art. 114). Na pena de morte o patíbulo se transformava em palco. O condenado era conduzido pelas ruas até a forca acompanhado pelas autoridades civil e militar. O executado não poderia ser enterrado com pompa (CCIB, arts 40-42). Como exibição de força, a pena capital é o cerimonial de triunfo da ordem que, mesmo depois de executado, imprime as marcas do poder. As galés secundavam-se em ordem de severidade. Essa pena sujeitava os condenados a andarem acorrentados pelos pés exercendo trabalhos públicos a serviço do governo (CCIB, art. 44). Normalmente era atribuída aos escravos. Eles só podiam sofrer as penas de morte, galés e açoite (CCIB, art. 60)”. PINTO, Luciano Rocha. “Sobre a arte de punir no Código Criminal Imperial”. Em: ANAIS DO XIV ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-RIO: Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro: NUMEM, 2010. p. 06. Vale recordar, também, que havia o temor de boa parte da elite escravista que ocorresse no Brasil algo similar parecida ao levante escravo no Haiti. Sobre esse temor e as discussões em torno da idéia de haitinismo ver SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001; GOMES, Flávio dos Santos. “Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista”. Revista Tempo. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 2002, pp. 209-246; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. "Sedições, haitianismo e conexões no Brasil: outras margens do atlântico negro". Novos Estudos, nº 63, 2002, pp. 131-144. 230 SILVA, M. Op. Cit.,.p.256. O autor observa a herança da Segunda Escolástica mesclada aos conceitos modernos e liberais de positivação através dos códigos: “No Código de 1830, essa versão escolástica recebe uma roupagem moderna, positivando, num código jusracionalista e utilitarista, a questão da escravidão sem que ela manche a inspiração liberal. Ibid. p. 266. 229

102

Ainda tratando sobre o Código Criminal, vale relembrar que, apesar de lido e reelaborado por uma comissão composta pelas duas Câmaras do Império, teve uma composição projetada por Bernardo Pereira de Vasconcelos e aprovada em 1830. De modo geral, como já matizado, os 313 artigos contidos e subdivididos em quatro apartados, tinham uma estrutura similar ao projeto de Pascoal de Mello Freire. E, menos que descrevê-lo, merece ser lembrado que tanto o professor de Coimbra quanto os seus alunos juristas no Brasil trouxeram em suas letras avanços e permanências. Primeiro porque reordenava as formas de punir e agregava contornos mais humanistas, como já explicitado, e segundo que, dentro da lógica monárquica e do que se entendia por cidadania, ainda se podia perceber traços do Antigo Regime em sua formatação. Principalmente quando, tanto na Constituição como no Código Criminal, o imperador tinha ainda para si o poder de decidir perdoar crimes. Absolvição real, escravos „enfeitados‟ com gargantilhas ou acorrentados nas galés, degredos, banimento e morte... Convivências próprias, para um contexto impróprio: uma sociedade escravista e agrárioexportadora que visava ajustar-se aos ecos de modernidade e civilidade mantendo a cômoda situação de dirigir os rumos jurídicos e políticos do novo país. Pereira de Vasconcelos, principal autor do projeto de codificação penal do Império, era um estadista-jurista reflexo de todo este ecletismo intelectual vivido àquela época. Para um país repleto de bacharéis que viviam rumo aos postos do legislativo, da política ou a exercer algum cargo no judiciário, Vasconcelos parece ser um exemplo emblemático sobre este perfil de estadista das primeiras décadas do Brasil independente. Entre o período de 1826 até 1850, ano de sua morte, o estadista esteve como parlamentar, figura política nos ministérios do Império e na imprensa de maneira ativa. Transitou, portanto, entre a Regência e o Segundo Reinado, a fase liberal e a era do Regresso. Apesar de sempre se considerar a relevância política de Bernardo Pereira para o retorno conservador dos anos 1840, sua trajetória política durante o período liberal também foi importante. Como lembra José Murilo de Carvalho 231, seu talento como legislador para o poder judiciário era inquestionável à época, não somente pelo projeto do Código Criminal para Império como também pelas diversas tentativas de ordenar e reformar o sistema no país. Em sua era liberal, à parte da clara adesão aos princípios econômicos que o liberalismo trazia, via na instituição dos juizados de paz um progresso institucional para a ordem jurídica. 231

VASCONCELOS, Bernardo Pereira. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Org. e introd. De José Murilo de Carvalho. São Paulo: Ed. 34, 1999.

103

Ao mesmo tempo, o egresso dos Cursos Jurídicos de Coimbra carregava em seus discursos as contradições entre o que via e o que deveria ser projetado para o Império. Durante sua proximidade maior aos ideais liberais, via na escravidão uma marca clara de falta de civilização. Em uma de suas falas de 1827, argumentava: “o homem livre produz mais que o escravo, segundo os cálculos dos economistas; os escravos, senhores, não tem o estímulo da recompensa, nem segurança em seu estado, e o temor dos castigos não podem suprir estas faltas232.” Já passado um ano, sua postura política se mostraria menos arrojada vinculando a extinção do tráfico como interesse de uma política inglesa para defender interesses econômicos próprios. Ainda assim, Vasconcelos seguia na ala dos liberais e apresentaria o projeto de reforma na Constituição: o Ato Adicional de 1834 233. Uma resposta constitucionalista e moderna contra o passado absolutista que era personificado em Dom Pedro I.

3.2.2. O Código do Processo

Para entender o significado jurídico e político que o Código do Processo Criminal do Império refletiu no período regencial (1831-1840), é importante valorar a reforma constitucional de 1834. Neste período, quando Dom Pedro I já voltara ao seio dinástico dos Bragança e abdicara de um governo nos trópicos, se efetivará esse caráter reformador que tomará corpo nos debates políticos. Nos idos de 1830-31, se consolidaria a necessidade de rever as esferas de poder do Estado que, ainda tentando direcionar-se, deveria se institucionalizar, primando por um lado pela efetivação das liberdades, que mais pareciam estar coladas ao papel, sem efetivação, e também pela manutenção do legado da monarquia que garantia estabilidade política interna e internacional. Na época, entre debates constitucionais e reformas no plano político, a nação tentava erguer-se. Nesse momento, propostas de conservadores e liberais ganham feições mais claras junto ao governo imperial e estes últimos auferirão a centralidade no manejo e confecção do corpo de leis do Estado, como foi o caso de figuras da ala liberal, Pereira de Vasconcelos e Evaristo da Veiga. Conforme remata Adorno, 232

Bernardo Pereira de Vasconcelos, Câmara dos deputados. Sessão de 3 de jul. 1827. Em: VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Org. e introd. De José Murilo de Carvalho. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 54. 233 Ver anexo B

104

esse partido perfilou uma prática política sustentada em uma visão jurídicoconstitucionalista do poder que pudesse assegurar, por intermédio de um legislativo autônomo, o controle rígido sobre a sociedade política e notadamente criasse obstáculo às intervenções excessivas do imperador na condução dos negócios públicos. 234

O Legislativo, mais que o poder Judiciário, seria a esfera chave para a legitimidade desse processo garantindo a materialidade para a nova nação. O grande passo que diferenciava o Brasil de outros modelos ocidentais em suas Cartas e seus Códigos era o fato de que o Império mantinha um governo monárquico - e seus quatro poderes - e, ao mesmo tempo, ao menos até quase a metade do século XIX, oportunizava a institucionalização dos governos provinciais, o que lhe dava contornos descentralizantes235. Como afirma Slemian, tal movimento reformador, essa onda liberal que o Brasil experimentou, era também um jogo de forças e interesses pela legalidade e para que isso reverberasse, sobretudo, na eficiência da administração do Império 236. E estes políticos-juristas não estiveram alheios a estas necessidades. Não era uma medida despropositada. Ao contrário, a ideia de autonomia se vinculava a de controle estatal como caminho para a soberania. O senador Vergueiro, já nos debates parlamentares de 1832, argumentava: “o único meio de conservarmos unidas todas as nossas províncias consiste em poder habilitá-las para poderem curar de suas necessidades (...)”237 e Pereira de Vasconcelos, explicando da inviabilidade em se copiar o modelo norte-americano de federalismo, concluía: “estou que se deve diminuir os laços da centralização, mas não de um jato que faça dar um grande salto” 238. Medidas que pareciam convincentes, para um país em vias de consolidação. A política era a de manter as províncias controladas pelo Imperador (já que era o monarca quem indicava os presidentes), num plano mais geral, e ao mesmo tempo dar autonomia para que se pudesse manejar a administração regional. Essa parecia ser a proposta mais adequada para evitar possíveis esfacelamentos da unidade. Assim, o Ato Adicional de 1834 irá trazer em seu bojo um perfil legal de maior autonomia em relação às províncias. No que toca o poder do imperante, diferente do promulgado uma década antes, se suprimia o Conselho de Estado 239, mas se 234

ADORNO, Op. Cit., p. 65. Sobre esse perfil federativo que toma o Império do Brasil, ver DOLHNIKOFF, Op. Cit. 236 SLEMIAN, Op. Cit., 2006. 237 Nicolau de Campo Vergueiro. Anais do Senado, Vol. 02. Sessão de 07 de jul. de 1832, p. 71. 238 Bernardo Pereira de Vasconcelos. Anais da Câmara dos Deputados. vol 02. Sessão de 01. jul. de 1834, p. 11. 239 Ato Adicional. Art. 32. Ver Anexo B. 235

105

mantinha o poder moderador do monarca. Uma vitória não somente dos liberais, mas das elites políticas que formavam a representatividade nacional, pois que garantia à Assembleia Legislativa seu lugar no palco das decisões. De todas as transformações positivadas no Ato, sem dúvidas, a autonomia como redisposição institucional das elites foi o traço mais evidente e de maior importância para a conformação dos quadros políticos à monarquia constitucional no Brasil. Como analisa Dolhnikoff, os “governos provinciais autônomos eram sinônimo de eficácia administrativa, por terem eles recursos para impor a um território longínquo demais para ser alcançado pela burocracia da Corte”240. As Assembleias provinciais foram, portanto, a solução encontrada para os percalços administrativos e políticos do Império. Um arranjo que deixaria as elites provinciais dentro de um conforto autonômico para legislar 241, arrecadar tributos242, exercer poder de polícia e decidir sobre a suspensão ou demissão de magistrados 243. Desde 1831, em realidade, é que as discussões acerca da emenda à Constituição já vinham sendo entabuladas tanto no que concerne às sobreditas autonomias, quanto sobre a regência do país, por conta da menoridade de Dom Pedro II. Quando da legislatura de 32, se podia notar o perfil menos combativo e mais implementador das mudanças na estrutura administrativa do Império. À época da confecção do Código criminal, os debates giravam em torno de questões que iam de encontro ao perfil centralizador-absolutista de Dom Pedro I. Entrando no período das regências era necessário, então, colocar em marcha as ideias que sustentavam o Império idealizado. O Código do Processo Criminal de 1832 244, nesse contexto, era o documento jurídico que mais balizaria sobre a normalização liberal do sistema judiciário. Por meio dele que se pôde notar mais nitidamente o afastamento à lógica lusa 245 e a aproximação

240

DOLHNIKOFF, Op. Cit. p. 64. Ver Ato Adicional. Art. 9º e 11º. Anexo B. 242 Ver Ato Adicional. Art. 10, parag. 5º. Anexo B. 243 Ver Ato Adicional. Art. 11, parag. 7º. Anexo B. 244 Este documento jurídico foi elaborado, em boa medida, por Manuel Alves Branco, o Visconde de Caravelas, formado em Direito e ciências naturais em Coimbra. Foi deputado liberal e defensor de uma monarquia federalista para o Império do Brasil. Tanto ele como o autor do Código Criminal, Pereira de Vasconcelos, eram homens de seu tempo, imersos à lógica jusfilosófica que inspirava os liberais no Ocidente. Também, foram juristas imersos a um contexto político próprio e conviveram com limitações reais que faziam com que os ideais projetados, na filosofia sobre a justiça e o Estado, nem sempre pudessem se concretizar. Cf. SISSON, S. A. Galeria dos Brasileiros Ilustres. Vol. I. Brasília: Senado Federal, 1999. (Coleção Brasil 500 Anos). 245 Thomas Flory argumenta que “el espíritu reformador que persistió y se difundió después de la Independencia incluyó una oposición muy fuerte al sistema legal portugués en conjunto”. Ver: FLORY,Op. Cit., p. 66 e 175-180. 241

106

aos modelos inglês e francês 246. O interesse dos liberais do Império era o de dar ao país um caráter de controle localista, visando valorizar a diversidade do vasto território e comandá-lo com maior eficácia247. O objetivo, portanto, era de que as reformas feitas em um plano local refletissem na sociedade como um todo, dando nessa primeira fase os contornos federalistas paroquiais e não provinciais. Nesse contexto é que a figura do juiz de paz, criada desde de 1827, ganha destaque como um elemento da administração e da organização do Império. E esta função não somente ganharia peso jurídico, como também eliminaria quase a totalidade da estrutura anterior do antigo sistema judicial 248. Para compor a nova base organizativa do aparelho 249 surgirá o habeas-corpus250 e o Conselho de Jurados nos quadros do judiciário. A princípio, a intenção de afastar a herança portuguesa se centrava nos dois representantes essenciais da ideologia liberal, o juiz de paz e o tribunal do júri, como já matizado. A Constituição de 1824251 já previa a existência de ambas as figuras judiciais. E esse entendimento tinha sua lógica. Segundo Flory, as críticas de corrupção e sobre o inchaço de demandas judiciais eram pungentes no discurso reformador nessa primeira década liberal no Brasil imperial. Por isso, se supunha que tendo um corpo de funcionários do judiciário uma formação profissional advinda de Portugal, com a Universidade de Coimbra, seria importante ter outro dispositivo nas estruturas administrativas que não trouxesse tão claramente a herança portuguesa. Ademais, à primeira década da Independência, o Brasil tinha um escasso quadro de juízes profissionais gerando a lentidão no desenlace dos processos e o espaço para que se seguisse a impunidade, já que o braço da lei se não tardava em chegar, tardava em 246

Nesse sentido conferir WOLKMER, Op. Cit. FLORY, Op.Cit., p. 54 e ss. 248 Observar Código do Processo Criminal. Tit. I. Cap. I. Art. 8º. Anexo C. 249 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. São Paulo: Max Limonad, 2002. Também Wolkmer pontua que com o Código do Processo se extingue o sistema inquisitório filipino o que também se muda a lógica hierárquica do judiciário além de anular as figuras do ouvidor e dos juízes de fora na estrutura judiciária. WOLKMER,Op. Cit. Mozart Linhares também afirma que “o recurso do habeascorpus é embasado pela concepção liberal da defesa do indivíduo frente ao Estado, como uma garantia pessoal contra o arbítrio injusto ou ainda injustificado. Sendo assim, a adoção desse recurso pelo Código de 1830 assinala a atenção aos princípios constitucionais do liberalismo”. E comenta que os escravos teriam também direito a esse benefício, desde que uma pessoa livre fizesse a petição. Ver: SILVA, M. Op. Cit., p.260. 250 Koerner, tratando especificamente do habeas-corpus como dispositivo legal para entender as práticas jurídicas no Segundo Império, analisa que “o habeas-corpus foi criado no Código do Processo como uma garantia judicial, como um instituto de caráter político. Sua principal utilização no período regencial aparentemente relacionava-se às lutas políticas”. KOERNER, Andrei. Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999. p.60. 251 Constituição de 1824. Titulo 6º. Cap. Único. Art. 162. Interessante destacar o art. 163, também, pois que traz a referência a Juízes Letrados para compor os quadros das relações e do Tribunal Superior de Justiça, mantendo, para os altos cargos, a necessidade da formação e do conhecimento das leis. 247

107

resolver os delitos e os crimes, o que se relacionava não somente à justiça, mas também ao poder de polícia que era cada vez impotente ante aos saques, roubos e homicídios que cresciam252.

*** O Código do Processo Criminal reforçava ainda mais a instituição do juizado de paz. Com tal significação, os poderes dos juízes de paz, eleitos253 dentro de seu meio social e comunitário, se ampliavam os poderes deste em um momento em que as figuras do delegado, do subdelegado e de outros tipos de juizados eram evitados. O juiz de Paz acumulava funções fiscalizadoras, policiais e em alguma medida judiciais em sua zona de atuação; tinha “poderes para atuar na formação de culpa dos acusados, antes do julgamento, e também de julgar certas infrações menores, dando termos de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por vício, meretrizes escandalosas e baderneiros” 254. Contrastando o sistema judiciário colonial com o novo sistema, Kant de Lima observa que “este Código acabou com as devassas, transformou as querelas em queixas, tomando-se a denúncia o meio de ação do Ministério Público. A iniciativa do processo ex-officio- era mantida para todos os casos em que era cabível a denúncia” 255. O juiz de paz, como lembra Dolhnikoff, “nada devia fosse ao governo central, fosse ao próprio Imperador. Podia, portanto, exercer suas funções de maneira autônoma e, devido a amplitude delas, tornar-se uma poderosa exceção no interior da centralização político-institucional que caracterizava o Primeiro Reinado”256. Localmente, essa figura tinha um poder grande e influente o que, posteriormente, seria usado como justificativa para uma reação de cunho mais conservador nos rumos da justiça no Império, pois se argumentava que a ocupação dos postos, tanto de juiz como outros cargos que dependiam da indicação dele, tinha direta relação com a conservação de interesses próprios. Ainda seguindo o rumo da sistematização prevista no Código do Processo, a divisão política do Império que servia para organizar as províncias, também era a base 252

FLORY, Op. Cit., p. 71 e ss. Conferir Código do Processo Criminal. Tit. I. Cap. I. Arts. 9, 10 e 11. Anexo C. 254 Além desses crimes, as demais infrações deveriam ser julgadas pelos juízes criminais. As infrações da alçada dos juízes de paz eram chamadas de crimes de polícia. Ver: LIMA, Roberto Kant de. “Tradição Inquisitorial no Brasil, da colônia à república”. Em: Revista Religião e Sociedade. 16/1-2, 1992. pp.16113. Ver também: Código do Processo Criminal de 1832. Cap. II, artgs. 12 e 13. Anexo C. 255 LIMA, Roberto Kant de. Tradição Inquisitorial no Brasil, da colônia à república. Em: Revista Religião e Sociedade. 16/1-2, 1992. p. 102. 256 DOLHNIKOFF, Op. Cit. p. 84. 253

108

para a organização judiciária. Nesse sentido, dentro das três subdivisões - distrital, de termos e de comarcas257 - o juiz de paz atuaria na esfera menor, ou seja, no âmbito dos distritos e tinha a assistência de inspetores de quarteirão, escrivão e oficiais de justiça258 para realizar sua função. Nos Termos, já se podia contar com um Conselho de Jurados, presidido por um juiz de paz. Contudo, aqui as figuras do juiz municipal e do promotor público apareceriam259. Já no plano nas Comarcas, havia as Juntas de Paz compostas por juízes de paz, para avaliar os pedidos de recursos que os demais faziam. Os juízes de direito, esses sim, com outro parâmetro de eleição, deveriam ocupar o cargo se fossem bacharéis, maiores de 22 anos e com um ano de prática no foro. Sua função tampouco era muito central, presidia os Júris tendo basicamente o papel de ditar a sentença caso fosse o acusado culpado pelo tribunal do júri260. Em um plano macro, segundo a própria Constituição, o poder Judiciário tinha duas instâncias: a primeira formada por essa ala de juízes de direito, Júri e juízes de paz e seus auxiliares, conforme acima citado. Já a segunda instância compunha-se das Relações que só existiram nas quatro províncias de Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão. Esse órgão do judiciário se responsabilizava por julgar o mérito ou a forma dos julgamentos ocorridos na instância primeira. Segundo a Carta, deveria haver um Supremo Tribunal261, dotado de magistrados com formação e retirados, segundo o grau de antiguidade, das Relações262. Como se observou, basicamente a lógica da administração do poder de justiça imperial, em seus primeiros anos, tinha a intenção de articular um braço estatal mais independente e articulado com as forças locais. A figura do juiz de paz tinha o peso e a autonomia que refletia boa parte da ideologia liberal que se intentava solidificar no país. O que não significou que, enquanto construção ideológica nacional, não houvesse a 257

Ver Código do Processo Criminal de 1832. Tit. I, Cap. I, art.1º. Anexo C. Ver Código do Processo Criminal de 1832. Tit. I. Cap. II, Secção Segunda, Terceira e Quarta, respectivamente. Anexo C. 259 Ver Código do Processo Criminal de 1832. Tit. I. Cap. III. 260 FLORY, Op. Cit., p. 187. Conferir também Constituição Política do Império do Brasil de 1824, Cap. Único, Titulo 6. artgs. 151 a 164; e também Código do Processo Criminal de 1832. Título I, Capítulo I artgs.4º a 11º. E sob o mesmo título, Capítulos II e III, tratam das atribuições dos funcionários do judiciário no que toca cidades e vilas do país. Ver Anexo C. 261 Ambrosini sintetiza esses passos na nova ordem jurídica no Brasil: “se extinguiu os tribunais superiores herdados do Reino Unido (Casa de Suplicação, Desembargo do Paço e Mesa de Consciência e Ordens) e [se] criou o Supremo Tribunal de Justiça, o que era o mesmo que substituir o antigo sistema jurídico em que vigorava uma pluralidade das fontes do direito por um novo sistema, unificado e centralizado”. Ver: AMBROSINI, Diego Rafael. „A Interiorização da Metrópole‟: atores e instituições. Em: MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na formação do Estado-nação brasileiro. Vol.I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 248. LOPES, José Reinaldo de Lima. Supremo Tribunal de Justiça do Império – 1828-1889. São Paulo: Saraiva, 2010. 262 Ver Organograma da Justiça. Anexo F. 258

109

preocupação em formar esse corpo de funcionários do Estado. Como antes discutido, uma das facetas dessa primeira década do país independente, observada nas discussões parlamentares, se tratava da necessidade de que houvesse no Brasil núcleos universitários e, sobretudo cursos jurídicos. Vale lembrar também que toda essa marca descentralizadora do Estado em seu período liberal foi refletida tanto na ordem política como jurídica do Brasil. Assim como a figura do juiz de paz colocava em destaque a prática da justiça emanada do próprio meio em que viviam seus cidadãos, o esmaecimento das estruturas mais ligadas à Corte, ou pelo menos do poder de decisão mais próximo dos que acudiam a Justiça, também fora um dos pontos fortes na caracterização desse aparato do governo. Como Flory analisa, a rápida sanção do Código do Processo, sintetiza o significado do documento para o momento político vivido: “simbólicamente, el código de 1832 fue la constitución de los liberales: una contribución nativa, no contaminada por el mandato imperial, a la base filosófica y organizativa del país. Como cualquier constitución, desempeñó un papel legitimizante para el régimen que la introdujo (...)”263. Dois anos depois da confecção do Código do Processo, o Ato Adicional mudaria a Carta nacional a favor de uma ordem política nesse mesmo sentido, o da autonomia. As autonomias provinciais, reflexo dessa política liberal, afetaram diretamente o poder judiciário. Os presidentes de cada província eram nomeados pelo Imperador, mas apesar disso, suas atribuições denotavam maior força política e a ampliação da capacidade de decisão provincial, através de suas Assembleias. Por meio desta última, a malha judiciária local era toda regulada e elegida. Era através da Assembleia que os cargos deveriam ser criados ou pessoas serem nomeadas, assim como o sistema de maneira geral era regulado. Mais uma vez, a lógica liberal de abonar autonomia às províncias nacionais e ajustá-las a um modelo mais afastado de padrões absolutos e lusos ganhava espaço na ordem política e jurídica, naquelas primeiras décadas de independência. Contudo, dentro do contexto de autonomias provinciais e de inspirações liberais para o governo, o país não desfrutava de estabilidade. Era necessário reordenar a unidade, fortalecer o aparato militar único, com as tropas da Guarda Nacional e evocar a presença do monarca como o ponto de conexão e equilíbrio no território brasileiro.

263

FLORY, Op. Cit. p. 178.

110

Dentro dessa perspectiva a ala conservadora volta a tomar a cena e ganha força, e o poder Judiciário não estará inerte a tais mudanças.

111

3.3. As Reformas

Entre os anos de 1837 e 1840, o Ato Adicional vai ganhar uma forte adequação conservadora. A chamada Lei de Interpretação dará ao Ato um caráter mais restritivo no que tocava aos poderes das Câmaras Municipais, o que visava, seguramente, asseverar a centralidade da Corte e reafirmar que a Carta era a Lei Fundamental do país, a que não se podia violar ou contradizer. Nesse sentido, o Regresso da ala conservadora ao centro da cena política brasileira se mostrou ainda mais claro e fortalecido, já que o ambiente político nacional também estimulara tal situação, com diversos focos de rebeldias quanto à submissão à Corte e à centralidade do governo, que não abria espaço ao federalismo. A manutenção da unidade do Brasil nesse momento resultou na força conservadora e a Lei de Interpretação de 1840 foi o passo mais concreto nesse sentido. Como afirmam Paulo Bonavides e Paes de Andrade, a Lei veio, com efeito, resumindo inspirações e medidas que conduziram à edição da lei restritiva, cujos efeitos logo diminuíram a amplitude autonomista do Ato Adicional, em proveito do unitarismo imperial triunfante contra os interesses da autodeterminação das províncias...” 264. Esses passos foram sendo dados desde a regência do padre Feijó (1835-37). O regente teve uma postura pouco aberta em relação aos princípios constitucionais, ou seja, o parlamento tinha em sua autoridade mais um exemplo de presidente que de um monarca consultor de sua Câmara. Assolado pelas pressões das elites políticas que não eram chamadas a opinar sobre a condução do governo, pelas revoltas no Pará e no Rio Grande do Sul à época, e sem grandes apoiadores, resolveu renunciar ao cargo e em seu lugar, foi eleito o conservador Araújo Lima (1837-40). Essa troca de regentes coincidia com a seguinte legislatura, a de 1838, palco ideal para rediscutir os rumos tomados e os idealizados para o país. A maioria conservadora, que tomava assento na Assembleia naquele momento, definiria consideravelmente as mudanças que se queria implementar ao projeto governamental do Império. Acresce-se ainda o fato de que algumas figuraschave da ala liberal mais moderada começavam a dar sinais de simpatia às medidas

264

Ver: BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002. p.131. Ver também: MOTA, Carlos Guilherme. (coord.). Os Juristas na formação do Estado-nação brasileiro. Vol.I. São Paulo: Quartier Latin, 2006; ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder. Bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

112

propostas pelos conservadores. Pereira de Vasconcelos, como lembra Carvalho 265, foi um exemplo emblemático de líder liberal que pendeu para a ala conservadora. Quando dos momentos mais tensos, com as revoltas civis instaladas na Bahia (Sabinada) e no Sul (Farroupilha), o então Ministro da Justiça pretendeu incluso reformar Código Criminal, de sua autoria, e o do Processo, pois para ele não se adequavam à realidade dos tempos em que vivia o Estado imperial. O descontrole, que o governo central não administrava mais com tanta eficiência, gerava a ideia de que a instabilidade provinha de suas próprias positivações. Os liberais não estavam seguros dessa linha de argumentos. Coincidir que o Império passava por uma forte maré de instabilidade e que ameaçava romper com a unidade idealizada, era inegável. A solução encontrada, portanto, menos que reformar o corolário liberal e autônomo conquistado, foi a de repor a figura símbolo da centralidade e, por isso, se apressa a maioridade do monarca. Nesse contexto, a Reforma do Código do Processo, no ano de 1841, seria uma mostra das adaptações e mudanças para que o processo de centralização se fortificasse e tomasse corpo no país. Apesar de ser uma iniciativa conservadora, a reforma não apagou de todo as “marcas” liberais impressas em suas linhas. Uma das permanências a ser citada era que a ideia da nomeação listada em três indicados para ocupar os cargos seguia sendo uma prática habitual com a Reforma. Tudo começaria no ano anterior com a Lei de Interpretação do Ato e, segundo Miriam Dolhnikoff, poucas características autonômicas existentes no Ato Adicional mudariam com a Lei de Interpretação 266. Composta por oito artigos, a Lei de Interpretação267, no que toca aos poderes do judiciário, mudava a Polícia Judiciária para a responsabilidade de âmbito imperial e, apesar de ter três artigos tratando dos magistrados, o tema suspensão ou demissão da magistratura não mudava na essência, pois que seguia sendo uma decisão das Assembleias Provinciais, consideradas como Tribunais de Justiça. O que não se podia negar, entretanto, era que o Código que moldava o poder judiciário era um flanco central para o eixo das reformas e do equilíbrio entre o poder central e provincial. Se, segundo Dolhnikoff, a maior promoção nos atos reformadores de 1840 se constatou no reordenamento das funções judiciárias, pode-se inferir, portanto, que a 265

CARVALHO, José Murilo de. Introdução. Em: VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Org. e introd. De José Murilo de Carvalho. São Paulo: Ed. 34, 1999. 266 DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial. Origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005, especialmente capítulo segundo. 267 Ver Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834. Anexo D.

113

reação contra o sistema era a melhor maneira de questionar as falhas liberais implementadas desde a primeira legislatura, em 1827, com a demarcação mais pormenorizada dos poderes do juizado de paz. O que o Código do Processo representava para os avanços liberais no campo jurídico também estava posto nas raias da política. Como reflete Flory268, o Código era na verdade uma nova Carta liberal, expressão ideológica da autonomia nativa reivindicada desde 1823, quando suspendida a Assembleia constituinte. Nesse sentido, toda a lógica de recolocação dos poderes e dos cargos públicos, essencialmente do sistema jurídico, expressa na Lei de Interpretação e depois na reforma do próprio Código do Processo, se mostrou uma clara ressignificação do que deveria ser o poder central e do que não deveria ter o poder Provincial. A intenção não era a de quitar poderes provinciais, mas sim a de reprojetar o que a experiência liberal não havia dado conta de resolver. O artigo primeiro da Lei de Interpretação garantia ao Estado a escolha e a administração de quem iria exercer e como iria executar os atos de justiça no Império. O Estado toma para si a exclusividade desses atos o que, dentro do contexto liberal, não havia logrado, até então. Tanto que, no que tangia ao controle dos empregados da Província e do Município 269, seguia como uma competência local e não do governo geral. Em linhas gerais, as medidas tomadas previstas no Código visavam trazer de volta aos magistrados com formação as decisões judiciais e policiais em seus vários níveis (províncias, comarcas, termos, vilas). Como antes ressaltado, a pedra angular dos liberais se via enfraquecida: os juízes de paz que de concentradores locais de uma diversidade de atribuições punitivas-jurídicas e policiais, se recolhiam ao papel de conciliadores locais 270. Como afirma Carvalho, as malhas coercitivas do Estado puderam ganhar maior terreno graças a esse movimento reformador do Código do Processo. Segundo o historiador, a lei foi um dos pontos culminantes do Regresso e seu item mais polêmico foi a retirada da maior parte dos poderes do juiz de paz eleito e passá-la para os delegados e subdelegados de polícia nomeados pelo ministro do Império. Os delegados e subdelegados, criados pela reforma, tinham poder para dar buscas, prender, formar culpa, pronunciar e conceder fiança. Eram eles que dividiam os distritos de paz em

268

FLORY, Thomas. El Juez de Paz y el Jurado em el Brasil Imperial, 1808-1871. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. 269 DOLHNIKOFF, Miriam. Op. Cit. 270 Na Reforma do Código do Processo, anexo E, se pode observar como as principais atribuições do Juiz de Paz estarão diluídas entre Chefe de Polícia, Delegado e Subdelegados. Caps. I ao V.

114

quarteirões, decidiam sobre os escrivães de paz e ainda faziam as listas dos jurados. Essa situação durou em plenitude até 1871(...).271

Ademais, o Júri também sofria mudanças quanto a sua eleição. Os conservadores aumentaram a renda anual (em realidade a duplicaram nas principais capitais) para eleição dos cargos entre os que sabiam ler e escrever, restringiram a origem dos ingressos e ao final deixaram nas mãos dos delegados a condução da eleição, assessorados pelo Juiz municipal, promotor ou presidente da câmara municipal. Isso significaria dois alvos alcançados. Um deles era a centralização do poder. O controle estava totalmente sob a direção dos agentes imperiais ali representados. O outro seria que a restrição propiciaria a condensação do corpo de jurado, deixando os grandes proprietários e os ricos comerciantes ou industriais nas fileiras únicas de candidatura. Essas medidas tinham a intenção de ratificar, via aparato judiciário, a administração central e monárquica para o Brasil ao longo do XIX. Eram as velhas heranças reverberando no presente. Como lembra Wolkmer, no que toca a valorização da formação por exemplo, estimulava-se a prepotência dos magistrados gerados por princípios lusitanos de um exclusivismo intelectual, dando espaço a uma lógica elitista e distante da população. Os liberais haviam vencido em princípio essas barreiras elitistas e intelectualizadas para a administração da justiça e seu sistema. Codificando e legislando para seu país e formando profissionais dentro do terreno nacional se intentava projetar um aparato judiciário mais fluido, eficiente e profissional272. Contudo, o esforço liberal teria um tempo curto de atuação, logo que puderam “los conservadores invocaron las antiguas ideas ibéricas de la relación entre la magistratura y la soberanía real al enlazar sus planes judiciales con la meta que habían manifestado de fomentar el prestigio del monarca”273. E apesar das críticas liberais os conservadores seguiam confirmando, através dessa conjunção de poderes de diferentes naturezas, a unificação centralizadora do aparato judicial e policial nas mãos do governo imperial.

271

CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem. O teatro de sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p.152. 272 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 273 FLORY, Op. Cit., p.270.

115

Segundo Flory, a reforma do Código do Processo, em 1841274, foi menos uma atitude centralizadora e reformadora das leis que uma ação política de condensação do controle do país pela monarquia instituída. A ação reformadora tendia ao fortalecimento da magistratura, dependente do aparato estatal, pois que “el control del gobierno sobre sus nombramientos, transferencias y carreras, hizo que la reforma pareciera consumar la “magistocracia” patrocinada por el gobierno, misma que los liberales habían temido desde la Interpretación del Decreto Adicional” 275.

***

A situação geradora dessa reviravolta nos domínios políticos da ala liberal para a conservadora era de cunho prático. Não fazia falta uma gama de explicações teóricas sobre o Estado e o Direito e tampouco que se assomasse uma nova estratégia liberal para a administração da justiça e de polícia no país. Como antes referido, as tensões em diversas partes do Brasil já denotavam que a ideia descentralizada de controle do território nos moldes projetados não havia logrado êxito pleno. Desde os primeiros anos de independência e logo depois, no período regencial, havia no país uma Guarda Nacional débil ainda e uma estrutura policial muito frouxa 276. Nesse contexto, a economia cafeeira ganhava ascenso e destacavam-se seus maiores representantes no campo político. Se o café, que correspondia a cerca de 44% das exportações do país, estava no auge como sustentação econômica, já na terceira década do XIX sua „presença‟ no campo político se fazia notar e a estabilidade dessa oligarquia refletia na imagem do Brasil nos mercados estrangeiros. O partido conservador ganhava força de oposição. As reformas liberais não vingaram e os conservadores surgiam com suas ferozes críticas às debilidades que os próprios liberais não podiam negar. Depois das revoltas periféricas, mas não despercebidas, no Grão 274

As modificações do Código do Processo através da Reforma do Ato Adicional de 1840 que vieram a uniformizar o sistema judiciário do Império: - Proibiu as províncias de demandar sobre a natureza dos cargos públicos criados pelo império; - Proibiu que as províncias tratassem de temas de polícia judiciária, como formação de culpa; - Restringia as províncias quanto à possibilidade de suspender ou despedir magistrados. Conferir: FLORY. Op. Cit., p. 255 e ss. 275 FLORY, Ibid., p. 274. 276 Nesse sentido Raymundo Faoro destaca que “o estatuto processual, conjugado com a guarda nacional, municipalista e localmente eletiva no seu primeiro lance, garante a autônoma autoridade dos chefes locais, senhores da justiça e do policiamento. De outro lado, a incapacidade financeira das câmaras municipais, mal que a regência não cuidou de remediar, deixava-as inermes diante do poder econômico concentrado, no interior, nas mãos dos fazendeiros e latifundiários”. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato político brasileiro. 11 ed. São Paulo: Editora Globo, 1997. p. 307.

116

Pará, Maranhão ou Rio Grande do Sul, ou ainda a clara corruptibilidade tanto de magistrados locais e das eleições geridas localmente, como a própria impunidade que o sistema de Júri denotava, não foi difícil para que o partido conservador ganhasse terreno277. O alvo era, como antes relevado, os juízes de paz do Império. A crítica conservadora sobre eles entrava em cena com maior obviedade quando relacionava administração e preparo como vínculos fulcrais para a execução da justiça. Segundo os objetantes, as situações tanto do ato das eleições como das atuações dos juízes representavam o resultado de desempenhos pessoais, de influência particular e de concentração de poder no entorno onde atuavam. Aliado a isso, como já exposto, a função de juiz de paz era efetuada por um não-profissional, o que gerava um flanco a mais para as críticas da oposição 278. Como argumenta Flory, “todas esas preocupaciones reflejaban una creciente incredulidad respecto a la capacidad del discernimiento popular para elegir hombres que sirvieran em un puesto judicial” 279, o que confirmava a tendência de que quem deveria conduzir os assuntos judiciários do Império era a magistratura formada e especializada e não cidadãos comuns eleitos da própria localidade. Assim, o partido conservador e sua defesa à magistratura fortalecia-se cada vez mais e compunha uma forte oposição ao partido liberal e seus juízes de paz e Júri. Assim sendo, as próprias falhas do sistema foram o eixo fortalecedor para que os argumentos conservadores tivessem espaço e credibilidade para cambiá-las. Ademais, os argumentos sobre as deficiências, a falta de conhecimento, de esclarecimento ou de preparo, admitidos pelos estadistas conservadores sobre o povo, justificavam em boa medida que a maquinaria liberal descentralizada não funcionasse adequadamente280. O Código do Processo reformado, de 1841, veio a condensar essas preocupações, determinando as funções e as especificidades de cada cargo no sistema judiciário e policial para o Império. Como analisa Faoro, criar um império, mostraria a tormentosa realidade, não será obra das leis e das doutrinas. O novo governo, sem tradição, sem carisma, num ensaio de um sistema racional, seria devorado pelas suas contradições e voltaria, depois de muitos ensaios,

277

FLORY, Op. Cit.; DOLHNIKOFF, Op. Cit., entre outros. Para tal discussão ver também CARVALHO, Op. Cit. 279 FLORY, Op. Cit., p.211. 280 FLORY, Ibid. p. 219. 278

117

ao único leito possível: à monarquia reformada, tuteladora da nação, agrilhoada às estruturas que ela criaria281.

E dentro dessa estrutura reformadora, a figura dos juízes profissionais se tornava o foco de atenções nas estruturas do judiciário. Como antes avaliado, era esta classe de profissionais o elo imprescindível para que o Estado tivesse seus mediadores perante o poder local. Assim sendo, a Lei de Interpretação de 1840 e o Código reformado foram uma espécie de acerto de contas com a realidade, já que a ideia de uma administração judiciária partindo de uma eleição popular estava resultando uma estrutura viciada e facilmente manejável pelo entorno local 282. De todos os modos, esse momento de busca de uma estabilidade política no Brasil teve também, pelo caminho da valoração da profissionalização de seu corpo administrativo, uma consequência: o perfil dos próprios funcionários foi cada vez mais se desapegando de uma matriz estamental ou nobiliárquica, de indicações e tradições intra-familiares de ocupação dos cargos. O sistema não mudaria com o Regresso. A ocupação e o prestígio-recompensa seguirão fazendo parte da composição do status social e político no império conservador. Contudo, dos profissionais liberais, entre todos os que poderiam ascender a cargos públicos, o advogado era a figura mais requerida e solicitada dentro de um panorama estatal apegado ao legalismo formal, sendo os bacharéis encarregados de edificar os campos burocráticos do Império 283. E ao final, era o bacharelismo resultado de uma estrutura agrário-escravista. A figura do bacharel conseguia transitar entre o Legislativo e o Judiciário porque trazia em sua formação a viabilidade de atender ao perfil liberal-conservador de Estado, que primava pelo individual sobre o coletivo 284.

***

A partir de 1841, os poderes que antes podiam ser decididos pelas Câmaras locais passaram a ser controlados pelos representantes provinciais mais próximos ao 281

FAORO, Op. Cit., p.303. Flory analisa: “Es posible interpretar el célebre decreto Adicional de 1834 como la primera expresión institucional de este deseo liberal de volver a centralizar la administración. (…). Por lo tanto, el efecto del Decreto Adicional no fue centrifugo; a nivel local tuvo una influencia centralizante que privó a los consejos municipales, ya en decadencia, de la autoridad que les quedaba”. FLORY, Op. Cit. p.245. Ver também: KOERNER, Andrei. Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo: IBCCrim, 1999. 283 CARVALHO, Op. Cit., p. 78. 284 Ver: ADORNO, Op. Cit., e WOLKMER, op. Cit. 282

118

governo central, integrando mais fortemente este último, os políticos representantes e os chefes locais. No nível da magistratura, ou seja, os estratos mais altos dentro da política imperial, para alguém que tivesse um diploma de bacharel, o que existia era mais uma onda de indicações, ascensos e mobilidades desde o trono, que uma categoria de prestígio elegida e conduzida por um estatuto normativo. Ao contrário, era a magistratura um caminho, mais que ideal, de mostrar fidelidade política com o centro e, por esse caminho, o da justiça, lograr ingresso na carreira política. Essa elite do judiciário tinha funções exclusivas, que não abarcava as atividades dos demais funcionários do aparelho judicial do Império. Se antes de 1841, o cargo podia reduzir-se somente a revisar e decidir sobre casos extremos ou averiguar sobre a conduta de seus iguais, após 41, sua função se ampliava não no sentido de efetuar maior número de tarefas dentro do poder Judiciário, mas sim por abrigar em sua competência mais do que atribuições do seu mundo. Aliás, não podia ser somente esse seu universo. Sua política podia ser ainda o elo mais forte para alçar a estabilidade tanto nos meandros jurídicos, quanto assegurar sua carreira nos bancos das Assembleias. Como analisa Koerner, “os magistrados exerciam a mediação entre o poder central e as localidades, como representantes do poder imperial, como integrantes dos partidos políticos, como aliados dos interesses dominantes da sociedade escravista, e também como juízes” 285. Nesse viés, entre os ideais de justiça, do exercício de sua filosofia jusracionalista e a sociedade, o próprio erguimento do papel do magistrado no Império denotava em si uma contradição: deveria ponderar conflitos e executar, a partir de seu poder, a justiça necessária. Necessária, claro, para quem tinha o poder para enfrentar os desmandos e perpetuar suas posições de domínio. Não resta dúvida de que o projetado aparato técnico-jurídico que inspirava os debates sobre a construção do Estado, assim como sua codificação, foi útil para que o Brasil pudesse erguer uma Constituição, seus Códigos e para posicionar-se técnica e teoricamente sobre as principais questões que abarcavam sua relação com o Ocidente. Este modelo ocidental serviu de arsenal ideológico, em que os que pensavam o país tiveram de encontrar, quando contrastados à sua realidade social, econômica e política, um lugar no cenário internacional. Encontrarse perante os demais, desde logo, não significou condensar ou cambiar velhos costumes.

285

KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na constituição da República. Hucitec/departamento de Ciência Política, USP, 1998. p.35.

São Paulo:

119

O eixo de poder, para que o país pudesse ser implementado, deveria permanecer mais como estava e menos como deveria ser. Dos quatro poderes que a estrutura política e administrativa do Brasil podia desfrutar para ordenar-se, sem dúvida, o braço da justiça e do poder militar seria, entre todos, o poder mais prático e mais mobilizável perante os cidadãos e os que nem humanos poderiam ser considerados. Era a lei, a filosofia liberal e quiçá libertária de um lado e, de vários outros, a mão do governo equilibrando-se entre fronteiras de tradição e de novos ideários pelo controle imperial. Contudo, o poder judiciário não era composto somente por magistrados que ocupavam os altos postos e efetivavam politicamente as estratégias do governo ou da elite do Império. Havia, a partir do Regresso Conservador, uma gama de cargos e funções que, à parte dos estudos jurídicos e históricos já efetivados, necessita ser revisitada e estudada. Voltam à cena os juízes, e não somente um tipo. Haverá juízes de direito, municipal e de órfãos, dos tribunais e de paz. Entrarão, também, os Chefes de Polícia, os delegados, os subdelegados. Seguirão existindo outras figuras como a do promotor de justiça, do escrivão, por suposto, e dos inspetores de quarteirão. No nível mais alto, o das Relações ou o do Supremo Tribunal, os desembargadores seguirão mesclando suas atribuições judiciais ao panorama político. O que é importante destacar, acerca do sobredito, é que esse corpo de funcionários do aparelho judiciário no Império voltava ao eixo do sistema, como atores atuantes e não mais coadjuvantes (ou nem isso) dos juízes de paz. Eles eram os que praticamente conheciam as malhas do poder local, que interagiam com a população em seus distritos, povoados, e mesmo administravam as duas palavras essenciais para o equilíbrio do Império: a ordem e a justiça. Esse funcionalismo podia mesclar-se ao que se entendia por justiça em seu entorno. Podia assentir verdades de justiça, e sobre justiças herdadas, mas podia, também, moldar tais verdades ao entorno intelectual idealizado pelo Estado de Direito. Essas brechas, entre a jusfilosofia e a prática jurídica, devem ser aprofundadas e estudadas. Mas será, por certo, tema para reflexão posterior, e claro, consideradas as projeções estudadas até o presente.

120

Conclusão Os estadistas no Império do Brasil, menos rousseaunianos e mais lockeanos, buscaram convergir o liberalismo à sua realidade social e política. Mais apegados a uma modernidade conservadora, estes líderes se assustaram quando os focos de revoltas pelo país ganharam contornos populares. Portanto, o caminho trilhado para a garantia da soberania nacional esteve envolto a uma construção legal que tentava ocultar o escravismo e os direitos dos nativos. Essa forma de apreender o liberalismo tem suas bases na formação intelectual, filosófica e política dos estadistas que acreditavam que o bacharelismo era o caminho ideal para a profissionalização dos futuros políticos e funcionários de seu país imaginado. Ao lado das contradições aparentes, no ideário do Estado, a institucionalização do poder de justiça e suas codificações matizaram de singularidade o caso do Brasil império. A elite unificada diante do princípio de que era necessária a centralização e a burocratização do aparelho estatal, conseguiu com que a ocupação de cargos no Estado fosse o ponto de fusão e de acordos internos visando a estabilidade dos interesses de grandes proprietários e exportadores agrários do país. Portanto, dentro da inspiração liberal, o agente interlocutor dessas mesclas de interesses privados e públicos, dotado de uma formação técnica e arauto do Estado, seria o conhecedor dos Códigos o que manipularia toda a ação de justiça, ou seja, o que tinha eminentemente uma formação profissional jurídica. A base formadora desse corpo de profissionais, não se poderia negar, advinha de matriz colonial e seguia colonizando e marcando as matrizes filosófico-jurídicas de quem fora, há pouco, um Reino Unido. Até meados do século, ainda podíamos contar com políticos e magistrados da geração de 1790, formada em Coimbra. Quando o país podia conscienciar-se como independente, também se inauguravam os Cursos Jurídicos, que tinham em suas próprias estruturas orientações filosóficas e políticas destoantes entre si. O ecletismo resultou como linha mestra para o desenvolvimento do pensamento jusfilosófico mais desapegado da pátria-lusa, com a ilusão de conciliar um passado e um presente considerado dos mais modernos, como o utilitarismo dos ingleses. Entre a onda liberal e o regresso conservador, para ambos os casos, há uma matriz ocidental colhida da parte ibérica, católica e escolástica. Centralista, monárquica

121

e amante das leis e da burocracia. Essa matriz chegou não somente pela administração colonial e suas práticas pelo território americano, mas teve na filosofia da chamada Segunda Escolástica, mesclada às luzes pombalinas, sua associação ao espírito moderno e liberal que circulava na Europa. A associação entre política e administração pública gerou a necessidade de formar, dentro de sua filosofia, um corpo de funcionários aptos a mover e promover o Estado. Nesse sentido, o direito e o Estado se conectam e o conhecimento do primeiro era situação sine qua non para ser incorporado às malhas estatais. O bacharel em Direito trazia de Coimbra o esteio intelectual e técnico imprescindível para seguir gerindo o controle português. Dessas marcas o Brasil não se livraria tão cedo. Como antes matizado, formar-se-ia no além-mar uma grande parte dos estadistas que fomentariam a independência e que posteriormente ordenariam o jovem país. Seguiu-se a tradição, temperada aos ecos franceses, ingleses e norteamericanos de modernidade, cientificismo e liberalismo. Seguiu-se o centralismo, o unitarismo quase absolutista e um ecletismo mitigado mesclado à atualidade dos tempos. Ainda que se formasse um pólo próprio de conhecimento, alternativa clara para uma construção de identidade adaptada às necessidades do Estado independente, o Brasil imperial e seus Cursos Jurídicos seguiam em marcha coimbrã ainda que incorporados a novos temas. Mais que plasmar da universidade lusa seu pedagogismo herdado dos tempos pombalinos, os próprios Estatutos brasileiros denotavam uma preparação política para velhos fins: manter a lógica centralista do Estado e a ordem através da lei e de sua aplicação. Pernambuco e São Paulo foram herdeiros dessas marcas, formaram um corpo político e administrativo que o país necessitava. Portanto, não é de espantar que, junto à tônica de unificação administrativa do Estado, o grupo da magistratura fosse seu reflexo e apoio. A magistocracia, como categorizou Flory, formada e incorporada ao Estado que a projetou, seguiria de mãos dadas com o conservadorismo e a centralidade do governo. Isso, como visto, porque o aparato judiciário do país os sustentava, os mantinha e garantia um status que, fora dele, não se poderia alcançar. O esforço liberal de trazer ideais novos para o país visava precisamente anular essa força da erudição e da distância. Buscavam a essência que um pacto político, fundamentado na vontade e representação do povo, poderia propiciar. Seus intentos estariam plasmados aos Códigos, Criminal e do Processo, na Carta nacional, e também em seus discursos junto ao parlamento. No entanto, de que valia exercer a justiça 122

partindo do princípio da autonomia local, se o princípio liberal do poderio econômico era o que ditava as leis em uma sociedade que tentava se adaptar ao capitalismo? Nesse ponto, a estratégia da renovação não convergia para os braços da ideologia liberal ou da federação americana. Mesmo o intento de gerar uma administração de justiça autônoma não poderia escamotear que havia um passado que não deveria ser ignorado. Os juízes de paz eram eleitos dentro de uma esfera de poder local. Sua atuação e permanência no cargo tinham a ver com esses laços que precediam sua admissão ao cargo. Entre essas realidades quase invisíveis para se avaliar em detalhes, o projeto macro submergiu graças ao esforço micro dos poderes locais. Em proporção, tais práticas afetariam muito mais que o ideário gigantesco de salvar, pela civilização exemplar de outros povos, o país independente. As críticas conservadoras não incorriam em equívocos, porém, se observou que as críticas vertidas eram na verdade a força de suas argumentações e de suas práticas também. Trazer um profissional, um funcionário mais qualificado para mostrar mão estatal nos vastos rincões brasileiros, não significou, como se analisou, que os seus representantes estivessem mais ou menos seduzidos pelos poderes localizados, menores, porém eficientes, espalhados pelo país. Estar aliado ao Estado era uma das facetas necessárias para atuar e seguir uma carreira no funcionalismo público. Mas, vale-se dizer, isso não denotou que as conexões políticas não fossem imprescindíveis para a manutenção de seu status no plano local e, logo, nacional perante o governo.

***

Alberto Venâncio Filho, jurista e historiador do Direito, em um artigo publicado em 1973 na Revista do IHGB, condensava suas ideias num título curioso: A criação dos cursos jurídicos, símbolo da Independência nacional. Este enunciado chamava a atenção e denunciava um caminho por onde seguir. Após ler o artigo, era inevitável pensar o quão sedutoras são as fontes parlamentares e como efetivamente, através delas, algo de elementar para a conexão direito e Estado se forjava poderosamente através dos sobreditos cursos. Não há a certeza de que as faculdades de direito fossem um grande símbolo e menos ainda nacional, nos idos de 1828. Havia uma idéia, um sentido e sobretudo uma prática função para que os cursos de Direito existissem ao tempo em que a independência passasse para o papel. Sim, a lógica das

123

discussões da Assembléia não era outra que promover ideais, desenhar arquétipos legais e estatutários de uma pátria idealizada. A sobrevalorização do direito, reverberado no título de Venâncio Filho, era um reflexo antigo de filosofias pouco ilustradas e mais ajustadas a uma realidade peculiar. Importa-se muitas ideias e há quem afirme que não se encontrará no Brasil um pensamento filosófico e jurídico próprio durante muitos séculos, já que, como bons herdeiros, se soube administrar com destreza os bens a que foram dotados. Se se importou (não só) pensamento, ideias e filosofias, isso não significou que se trouxe na bagagem um homem civil com suas vontades como símbolo de liberdade política. Como antes visto, de todo o raio de influências, tanto no espaço luso quanto no Atlântico, o que mais merecia ser traduzido, ressignificado, era precisamente a delegação dos direitos naturais ao Estado, leia-se ao monarca. Por certo, todas estas tramas jusfilosóficas transitadas e transpassadas no contexto estudado, tenderam a incorporar ao aparato estatal autonomia e legitimidade soberana. O poder julgador caberia ao seu aparelho judiciário, que coordenava e edificava as bases jurídicas, apoiado no acordo de segurança /policiamento/justiça para seu povo. Ao fim e ao cabo, o que se quer concluir é que a justiça era uma questão pública, delegada ao monarca que, dentro desse concílio entre direitos e justiças, ia fortalecendo sua própria hegemonia. Como balizou Hespanha, era necessário compor a positividade da ordem política e, nesse sentido sim, os casos luso e brasileiro logram concretar o paradigma liberal. Para tanto, normalizar e institucionalizar o Estado estaria, tanto nas reformas de Pombal como nos movimentos políticos do Brasil, em vias de independência, entre os projetos essenciais para viabilizar uma concepção de justiça e de legitimidade em seus territórios. Esse ideal, sim, é que se condensava, num plano macro, aos cursos e à formação do bacharel no Brasil. Se pôde, por um lado, trazer à lógica do preparo jurídico como uma das formas de arregimentar os funcionários e políticos em potencial no Brasil, por outro, os temas que podiam ser efetivamente revolucionários para a América portuguesa. Ou seja, no que toca à ética política, não se fez questão de se preparar, de se refletir e de se fomentar os debates, ainda mesmo que fossem os acadêmicos. A produção legislativa refletiu algo parecido ao que havia de mais moderno e a Carta Constitucional era todo um marco para a solidificação do deve-ser do Estado. Mas, claro, entre este campo e a prática aplicadora destes diplomas jurídicos é que se 124

apresentará o grande dilema, principalmente para a ala liberal no Brasil. Até o período regencial, o movimento de ideias projetadas para garantir um Estado forte e autônomo através de uma espécie (muito própria) de federalismo foi uma mostra de que, ainda que composto por uma elite segregadora, havia um ideal inovador para a ordenação política e jurídica no país. E, como se demonstrou em boa parte das leituras feitas, havia uma matriz a qual não se poderia apagar e que ressoava entre os poderes locais, os juízes de paz e, soberanamente, entre a ala conservadora. Poderiam ser cópias até perfeitas dos ideários importados, não era essa a questão. O ponto crucial era outro. O que existia no país antecedia a codificação, por assim dizer, o direito era anterior às leis. E, nesse sentido, a própria formação jurídica estava assentada em bases dessintonizadas que não refletiam o ideário de seus Códigos nacionais. Sendo assim, como se adequar a essa realidade? As metas, as trajetórias do pensamento sobre o poder e a justiça sofreram, mais que um fluxo, um refluxo mitigado que matizava poderosamente o que seria o Império por anos: viveiro de consevadoresliberais, buscadores de uma justiça sólida para garantir a estabilidade patrimonial e um lugar no status político. O que, em alguma medida, a formação do bacharel serviu como um bom auxílio. As instituições criadas para o Brasil imperial em seus primeiros tempos, foram realidades instituídas, sim, não somente um rearranjo de imagens projetadas sem um palco onde se assentar. Não se desmerecesse isso. A máxima das leis como o ponto máximo da submissão para que o Estado funcionasse foi uma das principais formas do Brasil manter e garantir o controle e a soberania em seu imenso território. Tanto prova que os momentos de maior instabilidade e de questionamento da autoridade central, no período pós-independência passando pelo primeiro reinado, regência e até depois, no segundo reinado, tinham estreita relação com as mudanças estatuídas pelo governo. Mudar o espaço das autonomias, os limites de mando, legislar sobre a autoridade local, reordená-la em formas de leis, era também fazer com que se tragasse o que não queria, mas, como estava em forma de lei, deveria ser admitido. Por isso a construção da ordem, do acordo entre as elites, da necessidade que os pactos fossem instituídos, normatizados, firmados. E nesse fio condutor, os juristas tomavam uma das posições elementares (mais que essenciais) pois trabalhavam no sentido de constituir, de estatuir sobre uma realidade que se queria incorporada a novas acomodações institucionais para um rearranjado país nos trópicos. *** 125

Assim, o ponto de observação elegido para aproximar-se do Brasil oitocentista em seus primeiros anos foi o caminho tomado pelo Estado para ordenar o seu sistema judiciário. Ao perceber que essas trilhas tinham conexão com a história do pensamento político e jurídico europeu, mais precisamente da lógica portuguesa, a aproximação ao estudo dos matizes filosóficos e jurídicos sobre o papel do Estado e do direito para a legitimação estatal moderna foi inevitável. Nesse sentido, se pôde perceber o quanto os laços referenciais com a ex-metrópole foram importantes para a confecção do sistema político e jurídico no Brasil. Essa influência, que percorre obviamente mais que os tempos reformadores de Pombal, não teve caráter meramente coadjuvante. Como visto, o intuito dos estadistas no recém formado Império era o de promover algo diverso, em alguma medida, mas não empreenderam uma sistematização em seus Códigos e em seu aparelho funcional judiciário que destoasse do que aprenderam em séculos. Portugal tampouco tinha um sistema igual, já havia bebido também doutras fontes e o Brasil não esteve alheio a isso. As permanências no que tange a manutenção das Ordenações Filipinas podia ser uma primeira indicação, mas havia outras. Seguiu-se com a lógica do aprimoramento técnico e acadêmico como componente essencial para a gestão do aparato judicial, também, ainda que olhando para França ou para Alemanha, construiuse normativas legais que já haviam passado pelo olhar lusitano, como o Código Criminal de 1830. Essa trajetória não significa que os estadistas no Brasil estiveram alheios ao que se passava em outras nações do Ocidente. Conforme se analisou, a experiência de cunho federalista e republicano dos primeiros anos de regência arremata a ideia de um país com uma elite consciente de suas tipicidades. Como uma busca em compreender-se a si próprios e tendo como meta maior manter-se em unidade, a sociedade política que se constituía no Império arrimava-se em parâmetros autonômicos para sustentar-se enquanto tal. O judiciário, nesse percurso, refletiu essa gama de interesses pela unidade e pela autonomia, e o sistema dos juizados de paz foi um exemplo desse interesse em convergir para o equilíbrio entre forças locais e a unificação do governo. Mas, como balizado, a via para a unidade se viu comprometida. O projeto liberal para o ordenamento do Estado imperial enfraquecia-se e o seu maior trunfo descentralizador afundava-se com ele: os juízes de paz e sua política autonômica para a consecução da ordem não deu conta de controlar as guerras civis que em boa medida era reflexos dos focos de tensões mal resolvidas intra-elites. Foi necessário retroceder às fórmulas que, ao que parece, davam certo. Reestruturaram as leis, com o Código do Processo sendo a 126

maior evidência para o sistema judiciário, no sentido de garantir o que para esses homens seria a unidade, a hegemonia unitária do Estado. Nesse sentido, o motivo principal ao que se buscou por em relevância a figura do magistrado e do bacharelismo no Brasil teve relação com a importância que esse ator do mundo jurídico refletiu no sistema político e organizativo do Estado. Estudar sobre a volta dos bacharéis ao centro das funções do Poder Judiciário foi uma das formas, entra tantas possíveis, de acercar-se dessa força do Estado para se consolidar e demonstrar uma política para a justiça que denotasse centralidade e preparo, tal como projetava ser. Por fim, importa destacar também que, a justiça que se buscava ordenar para atender ao vasto Império do Brasil foi promovida dentro de um contexto social e político que dialogou com os movimentos e jogos de poder no decorrer do amadurecimento do aparato estatal brasileiro. As demandas deste Estado, quanto às codificações e a organização do sistema judiciário, foram reflexo das lutas de uma sociedade política de perfil agrário, exportador, herdeira colonial de uma administração pública que lhes dava espaço e autonomia. Por isso, enquanto essas elites tentaram encontrar seu lugar na nova posição política no além-mar, as leis e suas formas de organização no tecido administrativo do país eram gestados, transformados e acomodados, tal como os movimentos pela e para a efetivação dos poderes locais e nacionais do Império do Brasil.

127

FONTES

ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléa Constituinte.1823. Tomo 4. Rio de Janeiro: Typ. de H.J. Pinto, 1879. Anais da Assembléia Constituinte de 1823. Versão Eletrônica. Site da Câmara dos Deputados. Anais do Senado. Versão Eletrônica. Site do Senado Federal do Brasil. Ato Adicional de 1834. Apud: BONAVIDES Paulo; PAES DE ANDRADE. História Constitucional do Brasil. 3ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Versão Eletrônica. Site do Planalto do Brasil. Código Criminal do Império do Brazil de 1830. Versão Eletrônica. Site do Planalto do Brasil. Código do Processo Criminal do Império do Brazil de 1832. Versão Eletrônica. Site do Planalto do Brasil. [versão inclui as reformas]. Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1841. Apud. MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na Formação do Estado Brasileiro. Vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. (Coleção Juristas Brasileiros). Projeto de Regulamento ou Estatuto para o Curso Jurídico Creado pelo Decreto de 09 de Janeiro de 1825, organizado pelo Conselheiro de Estado Visconde de Cachoeira. Apud. MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na Formação do Estado Brasileiro. Vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. (Coleção Juristas Brasileiros).

128

BIBLIOGRAFIA A) ARTIGOS BEZARES RODRIGUÉZ-SAN PEDRO, Luis Enrique. “Universidades europeas del renacimiento: Coimbra y Salamanca”. Miscelánea Alfonso IX. N.2000, Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. pp.43-58. BIEBER, Judy. “A vida do sertão”: Party Identidy and Political Honor in Late Imperial Minas Gerais. In: Hispanic American Historical Review, 81, n. 2, mai, 2001. BRAGA, Pedro. “O sistema Jurídico no Brasil Império: alguns problemas teóricos”. In: Brasília. 40, n. 160, out/Nov 2003. p. 95-105. CARVALHO FILHO, Luís Francisco. “Impunidade no Brasil: Colônia e Império”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 51, Ago. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142004000200011&script=sci_arttext. Acesso em 08 fev. 2011. CHACON, Vamireh. “Olinda e Coimbra”. Em: Universidade(s), histórias, memórias, perspectivas. Actas I do Congresso de História da Universidade de Coimbra: VII Centenário, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1991. COSTA, Wilma. “O Império do Brasil: dimensões de um enigma”. Almanack, n.1, mai. 2005. Disponível em: . Acesso em: 08 Fev. 2011. CRUZ COSTA, João. “A universidade latino-americana: suas possibilidades. Contribuição brasileira ao estudo do problema”. Em: Revista História. São Paulo: UNESP, n. 46, 1961. pp. 369-411. DIAS, Maria Odila da Silva. “Aspectos da Ilustração no Brasil”. Em: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. N. 278. Rio de Janeiro, 1968. p.105-170. DIAS, José Sebastião da Silva. “Pombalismo e projecto político”. Em: Cultura – História e Filosofia, vol. III, 1984, p. 135-259. DIAS, José S. Silva. “Pombalismo e teoria política”. Em: Cultura - História e Filosofia. Lisboa: INIC, 1982. pp. 45-114. FALCI, Miriam Knox. “Mulheres do Sertão Nordestino”. In:, Mary Del Priore (org). História da Vida Privada no Brasil. 5 ed. São Paulo: Contexto, UNESP, 2001. p.241277. FILGUEIRAS, Carlos A. L. “A Química de José Bonifácio”. Em: QUÍMICA NOVA. Vol.09. n.04, 1986. p. 263-268.

129

FONSECA, Fernando Taveira da. “História da Universidade de Coimbra. Estado da Questão”. Em: RODRÍGUES-SAN PEDRO BESARES, Luis E.; POLO RODRÍGUEZ, J. L. (eds.). Miscelânea Alfonso IX. Universidades Clásicas de La Europa Mediterrânea: Bolonia, Coimbra y Alcalá. Salamanca: Ed. Univ. de Salamanca, 2005. pp. 109-137. GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio Líbano. "Sedições, haitianismo e conexões no Brasil: outras margens do atlântico negro". Novos Estudos, nº 63, 2002, pp. 131-144. GOMES, Flávio dos Santos. “Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista”. Revista Tempo. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 2002, pp. 209-246. GRAHAM, Richard. “Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre classe, cultura e Estado “. Diálogos, América do Norte, 5, mai. 2010. Disponível em: http://www.uem.br/dialogos/index.php?journal=ojs&page=article&op=view&path%5B %5D=252. Acesso em: 08 Fev. 2011. HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Herança Colonial - sua desagregação”. Em: História Geral da Civilização brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico. São Paulo: Difel, 1960. pp. 9-39. HESPANHA, António Manuel. “Depois do Leviathan”. Em: Almanack Braziliense. N. 05. mai. 2007. pp.55-66 Memória da Justiça brasileira. “Do condado portucalense a D. João de Bragança”, Salvador,Tribunal de Justiça da Bahia, s/d, vol.1. In: http://www.tj.ba.gov.br/publicacoes/mem_just/volume1.htm. Acesso em 16/11/2008. Acesso em 08 fev. 2011. MATTOS, Ilmar. “Construtores e Herdeiros: a trama dos interesses da construção da unidade política”. Almanack Braziliense. n.1, mai. 2005. Disponível em: . Acesso em: 20 Jan. 2011. LIMA, Roberto Kant de. “Tradição Inquisitorial no Brasil, da colônia à república”. Em: Revista Religião e Sociedade. 16/1-2, 1992. pp. 94-113. MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. “Astronomia na regência de dom João”. Em: R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (442), jan./mar. 2009. p. 319-335. NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. “Os filhos da lei”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 16, n. 45, fev. 2001. OLIVEIRA, Eduardo Romero de. “A idéia de Império e a fundação da Monarquia Constitucional no Brasil (Portugal-Brasil, 1772-1824)”. Em: Revista Tempo. Rio de Janeiro, n.18, 2005. pp.43-63.

130

PIMENTA, João Paulo G. “A Independência do Brasil e o liberalismo português: um balanço da produção acadêmica”. HIB. Revista de Historia Iberoamericana [en línea], vol. 01, 2008. p. 70-105.[fecha de consulta: 05 de octubre de 2010 ]. Disponible en: http://revistahistoria.universia.net/pdfs_revistas/articulo_83_1224649242546.pdf PINTO, Luciano Rocha. “Sobre a arte de punir no Código Criminal Imperial”. Em: ANAIS DO XIV ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH-RIO: Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro: NUMEM, 2010. pp. 01-09. RODRIGUEZ CRUZ, Agueda. “El modelo universitario salmantino y su reconversión en Hispanoamérica”. Em: Miscelánea Alfonso IX. N.2000, Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000. pp.151-165. ROLIM, Rivail Carvalho. “Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro; obediência e submissão”. (Comentário da Obra de NEDER, Gizlene. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000). Em: Diálogos, DHI/UEM, v.5, n1, 2001. p.221-225. SANCHES, Nanci Patrícia Lima. “O Crime e a História na Jurisdição no Império do Brasil”. ANAIS DO XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. História e multidisciplinaridade: territórios e deslocamentos. ANPUH. São Leopoldo: UNISINOS, 2007. http://snh2007.anpuh.org/resources/content/anais/Nanci%20Patr%EDcia%20Lima%20 Sanches.pdf. Acesso em 08 fev. 2011. SILVA, Celia Nonata da. “Banditismo Rural: paradigmas conceituais e novas tendências historiográficas”. In: Fundação Joaquim Nabuco. http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?p ublicationCode=16&pageCode=377&textCode=7876&date=currentDate. Acesso em: 22/09/2009. SIQUEIRA, Lucilia. “O ponto em que estamos na historiografia sobre o período de rompimento entre Brasil e Portugal”. In: Almanack Braziliense, São Paulo, n.03, mai., 2006. p. 81-104. SOUZA FILHO, Carlos F Mares de. “Índios e Direito: o jogo duro do Estado”. Em: Negros e índios no cativeiro da terra. Rio de Janeiro: AJUPIFASE, jun.1989. pp. 85-98. SOUZA NETO, Nilton Soares De. “A relação do Rio de Janeiro no Brasil Imperial”. In: ANAIS DO XVIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. ANPUH, Londrina, 2008. http://ricafonte.com/historia/textos/historiografia/A%20RELA%C3%87%C3%83O%20 DO%20RIO%20DE%20JANEIRO%20NO%20BRASIL%20IMPERIAL.pdf. Acesso em 08 fev. 2011. STANDNIKY, Hilda Pivaro. “Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX”. [Comentário do trabalho de PERARO, Maria Adenir. São Paulo: Contexto, 2001]. In: Diálogos, DHI/UEM, v.5, n1, 2001. p.223-235. VALLADÃO, Alfredo. “A Creação dos Cursos Jurídicos no Brasil”. Em: RBHIG. Tomo 101, vol. 155, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928. pp. 299-342.

131

VELLASCO, Ivan de Andrade. “A cultura jurídica e a arte de governar: algumas hipóteses investigativas sobre a Seção de Justiça do Conselho de Estado”. In: Almanack Braziliense, São Paulo, n.05, mai., 2007. p. 37-45. VELLASCO, Ivan de Andrade. “Os predicados da ordem: os usos sociais da justiça na Minas Gerais 1780-1840”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, n.50, 2005. p.167-200. VENANCIO FILHO, Alberto. “A Criação dos Cursos Jurídicos, símbolo da independência nacional”. Em: RBIHG, vol. 299, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, abr/jun 1973. pp. 76-80. BRITO, Wladimir. “Do Estado. Da construção à desconstrução do conceito de EstadoNação”. Em: Revista da História das Ideias. Vol.26. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2005. p.259-306. WOLKMER, Antonio Carlos. “El Humanismo en la tradición de la cultura jurídica latino-americana”. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/libros/derecho/wolk1.rtf. Acesso em 08 fev. 2011.

132

B) LIVROS ADORNO, Sérgio. Os Aprendizes do Poder. Bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. ALEXANDRE, Valentin. Velho Brasil, novas Áfricas. Porto: Afrontamento, 2000. ALTHUSIUS, Johannes. La política, Metodicamente concebida e Ilustrada com Exemplos Sagrados e Profanos. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1990. ANTUNES, Manuel. (et al). Como interpretar Pombal? No bicentenário de sua morte. 2 vols. Lisboa: Brotéria/Porto, Livraria A.L., 1982. ANDRADE, Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva/EDUSP, 1978. ARAÚJO, Douglas. A morte do sertão antigo no Seridó: o desmoronamento das fazendas agropecuaristas em Caicó e Florânia (1970-90). Fortaleza: BNB, 2006. BARMAN, Roderick J. Brazil: the forging of a nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University Press, 1988. BARREIRO, José Carlos. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo: UNESP, 2002. BASTOS, Aurélio Wander. (org). Os Cursos Jurídicos e as Elites Brasileiras. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1977. BATISTA, Dimas José. A administração da justiça e o controle da criminalidade no médio Sertão do São Francisco, 1830-1880. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Vol. 1. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. BERBEL, Márcia R. A nação como artefato: deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 182-1822. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 1999. BERMAN, Harold J. La formación de la tradición jurídica de occidente. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. BETHELL, Leslie (ed.). Historia de América Latina. Vol.6, América Latina independiente, 1820-1870. Barcelona: Crítica, 1991. BEVILACQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves, 1927. BODIN, Jean. Los seis libros de la república. 3. ed. Madrid: Tecnos, 1997.

133

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002. BRAUDEL, Fernand. La historia y las ciencias sociales. Madrid: Alianza, 1982. CALAFATE, Pedro (org.). História do Pensamento Filosófico português. vol.3. Lisboa: Editorial Caminho, 2001. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Oro sobre Azul, 2006. CARDOSO, Tereza Fachada Levy. As Luzes da Educação: fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro. (1759-1834). Bragança Paulista: EDISF, 2002. CARVALHO, Flavio Rey de. Um Iluminismo Português? A Reforma da Universidade de Coimbra de 1772. Dissertação de Mestrado. Brasília: UNB, 2007. CARVALHO, Joaquim de. Subsídios para a História da Filosofia e da Ciência em Portugal. Vol. 2, Coimbra: Coimbra Editora, 1950. CARVALHO, Jose Murilo de. A Construção da Ordem. Teatro de Sombras. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania do Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação Rio de Janeiro (1918-1940). São Paulo: Editora da UNICAMP, 2000. COSTA, Emilia Viotti da. Da Monarquia à República. Momentos decisivos. 6 ed. São Paulo: UNESP, 1999. CRUZ COSTA, João. A filosofia no Brasil – ensaios. Porto Alegre: Globo, 1945. CRUZ COSTA, João. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956. CUNHA, Paulo Ferreira da. Pensamento Jurídico Luso-Brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. (Estudos Gerais – Série Universitária). DIAS, José da Silva. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973. DOLHNIKOFF, Miriam. O Pacto Imperial. Origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: crise do direito e práxis política. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

134

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato político brasileiro. 11 ed. São Paulo: Editora Globo, 1997. FLORY, Thomas. El Juez de Paz y el Jurado em el Brasil Imperial, 1808-1871. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. FOUCAULT, Michel. El orden del Discurso. Argentina: Tusquets Editores, 1992. FOUCAULT, Michel. La palabra y Las Cosas. Argentina: Siglo XXI, 1968. FOUCAULT, Michel. Microfisica del Poder. Madrid: La Piqueta, 1992. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. FREITAS, Ricardo Brito A. P. As Razões do Positivismo Penal no Brasil. São Paulo: Lúmen Júris, 2002. GAUER, R. M. C. A Construção do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2001. GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia das Letras, 2002. GROCIO, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Ijuí: Unijuí, 2004. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias. Rio de janeiro, 18221889. Rio de Janeiro: FAPERJ/Civilização Brasileira, 2008. HAZARD, Paul. O Pensamento europeu no século XVIII. Lisboa: Presença, 1983. HAZARD, Paul., La crisis de la conciencia europea:1680-1715, Madrid:Pegaso, 1952. HEGEL, Georg W. Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: ICONE, 1997. HESPANHA, A. M. A História do Direito na História Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. HESPANHA, António Manuel. Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, Colectânea de Textos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984. HESPANHA, António Manuel. Vísperas del Leviatán. Instituiciones y poder político (Portugal, siglo XVII). Madrid: Taurus, 1989. HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível. Direitos, Estado e Lei no Liberalismo monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004.

135

HESPANHA; A. M. (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Vol. 04. Lisboa: Estampa, s.d. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs). A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984. (Coleção Pensamento Crítico). HOBSBAWM, Eric. Naciones y Nacionalismos desde 1780. Barcelona: Crítica, 1998. JANCSÓ, István. (org). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: HUCITEC/FAPESP, 2003. KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na constituição da República brasileira. São Paulo: HUCITEC-USP, 1998. KOERNER, Andrei. Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (18411920). São Paulo: IBCCrim, 1999. LEITE, Glacyra Lazzari. Pernambuco, 1824: a Confederação do Equador. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1989. LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. São Paulo: Max Limonad, 2002. LOPES, José Reinaldo de Lima. Supremo Tribunal de Justiça do Império – 1828-1889. São Paulo: Saraiva, 2010. MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. Rústicos cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do Seridó (Séc. XVIII). Tese de Doutorado. Natal, RN, 2007. MACHADO NETO, Antônio Luis. História das Idéias Jurídicas no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1969. MACHADO NETO, Antônio Luis. Sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. MACHADO NETO, Zahidé. Direito penal e estrutura social: comentário sociológico ao Código Criminal de 1830. São Paulo: Saraiva/Editora da Universidade de São Paulo, 1977. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1997. MASON, Stephen. Historia de las ciencias: 2. La revolución científica de los siglos XVI y XVII. 4 ed. Madrid: Alianza editorial, 1996. MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808 a 1821). São Paulo: Cia das letras, 2000. MARTINS, Rui Cunha. O método da fronteira. Coimbra: Almedina, 2008. MASON, Stephen. Historia de las ciências: 2. La revolución científica de los siglos XVI y XVII. 4 ed. Madrid: Alianza editorial, 1996.

136

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: HUCITEC, 1987. MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe 1850/1890: sertão do Seridó – um estudo de caso. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1985. MAYER, Arno J. A Força da Tradição. A persistência do Antigo Regime. São Paulo: Cia das letras, 1987. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010. MARX, Karl. O Capital. Edição condensada. 3 ed. São Paulo: EDIPRO, 2007. MAXWELL, Kenneth. Marques de Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Lisboa: Presença, 2001. MERÊA, Manuel Paulo. Escolástica e jusnaturalismo: o problema da origem do poder civil em Suarez e Pufendorf. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1943. BELDA PLANS, Juan. La Escuela de Salamanca y la renovación de la teología en el siglo XVI. Madrid: Biblioteca de los Autores Españoles, 2000. MIETHKE, Jürgen. Nascimento da Modernidade, História das Idéias Políticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. MONCADA, L. Cabral de. Subsídios para uma história da filosofia do Direito em Portugal. Coimbra: Coimbra Editora, 1938. MONCADA, Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado, vol. I, 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo. 2.ed. Lisboa: ICS, 2007. MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da resistência. Natal, 2004. MORGAN, Edmund Sears. Invención del pueblo: el surgimiento de la soberanía popular en Inglaterra y Estados Unidos. Buenos Aires : Siglo XXI Editores, 2006. MOREL, Marco. O período das regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. (Coleção Descobrindo o Brasil). MORESCO, Jose Juan. La teoría del derecho de Bethan. Barcelona: PPU, 1992.

137

MORSE, Richard M. O espelho do Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. MOTA, C. G. (coord.). Os Juristas na Formação do Estado Brasileiro. Vol I. São Paulo: Quartier Latin, 2006. (Coleção Juristas Brasileiros). MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste, 1817, estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva, 1972. MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta. A experiência brasileira. A grande Transação. São Paulo: SENAC, 2000. NEDER, Gizlene. História & Direito - Jogos de Encontros e Transdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Revan, 2007. NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil. Vol.2. São Paulo: Cia das letras, 1999. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (17771808). São Paulo: Hucitec, 1979. OCKHAM, Guilherme de. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Petrópolis: Vozes, 1988. PADUA, Marcilio de. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997. PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio; Brasília: INL, 1984. PEREIRA, Miriam Halpern. (et.al.). O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. 2 Vols. Lisboa: Sá da Costa, 1982. PEREIRA, Nilo. A Faculdade de direito do Recife. Vol.1. Recife: Universidade do Recife, 1977. (Documentos Parlamentares). PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. PIMENTA, João Paulo G. Estado e Nação no fim dos impérios ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo: HUCITEC, 2002. RODRÍGUEZ, R. V. A Filosofia brasileira, marco epistemológico para a gestão do conhecimento. Juiz de Fora: Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”: UFJF, 2007.

138

RODRIGUÉZ-SAN PEDRO, Luis Enrique. (coord.). Historia de La Universidad de Salamanca. Vols. III.1; III.2: Saberes y Confluencias. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2006. SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (coord.). Pombal revisitado. Vol. 01. Lisboa: Estampa, 1984. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Cia das Letras, 2002. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001. SILVA, Mozart Linhares da. Do Império da lei ás grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis. Curitiba: Juruá, 2003. SISSON, S. A. Galeria dos Brasileiros Ilustres. Vol. I. Brasília: Senado Federal, 1999. (Coleção Brasil 500 Anos). SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: constituição e unidade nacional na formação do Império do Brasil (1822-1834). Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo. O ‘nascimento político’ do Brasil, as origens do Estado e da nação (1808-1825). Rio de Janeiro. DP&A, 2003. SOBRINHO, Barbosa Lima. Pernambuco, da Independência à Confederação do Equador. Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979. SPINOSA, Vanessa. Pela Navalha: cotidiano, moradia e intimidade (Belém 1930). Dissertação de Mestrado, PUC: São Paulo, 2005. STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara. Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Vol I – Séculos XVI-XVIII. Petrópolis: Vozes, 2004. TEIXEIRA, António Braz. O pensamento filosófico-jurídico português. Lisboa: Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua portuguesa, 1983. TORGAL, Luis Reis; ROQUE, João Lourenço. (coords.). Historia de Portugal. O liberalismo. Vol. 05. Lisboa: Estampa, s/d. TOUCHARD, Jean. História das Idéias Políticas. Vol.02. Lisboa: Europa-América, 1970. VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Imperial, 1822-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

139

VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal. Guerra e Restauração. Lisboa: Esfera dos Livros, 2006. VALLESPIN, Fernando (org). Historia de la Teoria Política. Vol.02. Madrid: Alianza, 2002. VASCONCELOS, Bernardo Pereira. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Org. e introd. De José Murilo de Carvalho. São Paulo: Ed. 34, 1999. VENANCIO FILHO, Alberto. Das Arcadas ao Bacharelismo. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1982. VIEIRA JUNIOR, Otaviano. Entre paredes e bacamartes. História da família no sertão (1780-1850). Rio de Janeiro: HUCITEC, 2004. VILLAR, Pierre. Hidalgos, amontinados y guerrilleros. Barcelona: Editorial Critica, 1982. VITORIA, Francisco de. Sobre el poder civil; Sobre los indios; Sobre el derecho de la guerra. 2 ed. Madrid: Tecnos, 2007. WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. WOLKMER, António Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

140

ANEXOS

141

Anexo A: ESTATUTO PARA O CURSO JURÍDICO de 1825 Projeto de Regulamento ou Estatuto para o Curso Jurídico Creado pelo Decreto de 09 de Janeiro de 1825, organizado pelo Conselheiro de Estado Visconde de Cachoeira, e mandado observar provisoriamente nos Cursos Jurídicos de S. Paulo e Olinda pelo Art. 10 desta lei [de 11 de Agosto de 1827]

142

143

144

145

146

147

148

149

150

151

152

153

Anexo B: Ato Adicional de 1834 A Regência permanente, em nome do imperador o sr. d. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Câmara dos Deputados, competentemente autorizada para reformar a Constituição do Império, nos termos da carta de lei de 12 de outubro de 1832, decretou as seguintes mudanças e adições à mesma Constituição: Art. 1 - O direito reconhecido e garantido pelo art. 71 da Constituição será exercido pelas Câmaras dos distritos e pelas Assembléias que, substituindo os Conselhos Gerais, se estabelecerão em todas as províncias, com o título de Assembléias Legislativas Provinciais. A autoridade da Assembléia Legislativa da província em que estiver a corte não compreenderá a mesma corte, nem o seu município. Art. 2 - Cada uma das Assembléias Legislativas Provinciais constará de 36 membros nas províncias de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas e São Paulo; de 28, nas do Pará, Maranhão, Ceará, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Sul; e de 20, em todas as outras. Este número é alterável por lei geral. Art. 3 - O Poder Legislativo Geral poderá decretar a organização de uma segunda Câmara Legislativa para qualquer província, a pedido de sua Assembléia, podendo esta segunda Câmara ter maior duração do que a primeira. Art. 4 - A eleição destas Assembléias será feita da mesma maneira como a dos deputados da Assembléia Geral Legislativa e pelos mesmos eleitores, mas cada legislatura durará só dois anos, podendo os membros de uma ser reeleitos para as seguintes. Imediatamente depois de publicada esta reforma proceder-se-á em cada uma das províncias à eleição dos membros das suas primeiras Assembléias Legislativas Provinciais, as quais entrarão logo em exercício e durarão até o fim do ano de 1837. Art. 5 - A sua primeira reunião far-se-á nas capitais das províncias, e as seguintes nos lugares que forem designados por atos legislativos provinciais; o lugar, porém, da primeira reunião da Assembléia Legislativa da província em que estiver a corte será designado pelo governo. Art. 6 - A nomeação dos respectivos presidentes, vice-presidentes e secretários, verificação dos poderes de seus membros, juramento, e sua polícia e economia interna, far-se-ão na forma dos regulamentos e interinamente na forma do regimento dos Conselhos Gerais da província. Art. 7 - Todos os anos haverá sessão, que durará dois meses, podendo ser prorrogada quando o julgar conveniente o presidente da província. Art. 8 - O presidente da província assistirá à instalação da Assembléia Provincial, que se fará, à exceção da primeira vez, no dia que ele marcar; terá assento igual ao do presidente dela e à sua direita; e aí dirigirá à mesma Assembléia a sua fala, instruindo-a do estado dos negócios públicos e das providências que mais precisar a província para seu melhoramento. Art. 9 - Compete às Assembléias Legislativas Provinciais propor, discutir e deliberar, na conformidade dos artigos 81, 83, 84, 85, 86, 87 e 88 da Constituição. Art. 10 Compete às mesmas Assembléias legislativas: § 1 - Sobre a divisão civil, judiciária e eclesiástica da respectiva província, e mesmo sobre a mudança da sua capital para o lugar que mais convier. § 2 - Sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreendendo as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias atualmente existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que, para o futuro, forem criados por lei geral. § 3 - Sobre os casos e a forma por que pode ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial. § 4 - Sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das câmaras. § 5 - Sobre a fixação das despesas municipais e provinciais, e os impostos para elas necessários, contanto que estes não prejudiquem as imposições gerais do estado. As câmaras poderão propor os meios de ocorrer às despesas dos seus municípios. § 6 - Sobre a repartição da contribuição direta pelos municípios da província e sobre a fiscalização do emprego das rendas públicas provinciais e municipais, e das contas de sua receita e despesa. As despesas provinciais serão fixadas sobre orçamento do presidente da província, e as municipais sobre orçamento das respectivas câmaras. § 7 - Sobre a criação, supressão e nomeação para os empregos municipais e provinciais, e estabelecimentos dos seus ordenados. São empregos municipais e provinciais todos os que existirem nos

154

municípios e províncias, à exceção dos que dizem respeito à arrecadação e dispêndio das rendas gerais, à administração da guerra e marinha e dos correios gerais; dos cargos de presidente de província, bispo, comandante superior da guarda nacional, membro das relações e tribunais superiores e empregados das faculdades de medicina, cursos jurídicos e academias, em conformidade da doutrina do § 2 deste artigo. § 8 - Sobre obras públicas, estradas e navegação no interior da respectiva província que não pertençam à administração geral do estado. § 9 - Sobre construção de casas de prisão, trabalho, correição e regime delas. § 10 - Sobre casas de socorros públicos, conventos e quaisquer associações políticas ou religiosas. § 11 - Sobre os casos e a forma por que poderão os presidentes das províncias nomear, suspender e ainda mesmo demitir os empregados provinciais. Art. 11 - Também compete às Assembléias Legislativas Provinciais: § 1 - Organizar os regimentos internos sobre as seguintes bases: 1) nenhum projeto de lei ou resolução poderá entrar em discussão sem que tenha sido dado para ordem do dia pelo menos 24 horas antes; 2) cada projeto de lei ou resolução passará, pelo menos, por três discussões; 3) de uma a outra discussão não poderá haver intervalo menor que 24 horas; § 2 - Fixar, sobre informação do presidente da província, a força policial respectiva. §3 - Autorizar as câmaras municipais e o governo provincial para contrair empréstimos com que ocorram às suas respectivas despesas. § 4 - Regular a administração dos bens provinciais. Uma lei geral marcará o que são bens provinciais. § 5 - Promover, cumulativamente com a assembléia e o governo geral, a organização da estatística da província, a catequese, a civilização dos indígenas e o estabelecimento de colônias. § 6 - Decidir quando tiver sido pronunciado o presidente da província, ou quem suas funções fizer, se o processo deva continuar, e ele ser ou não suspenso do exercício de suas funções, nos casos em que pelas leis tem lugar a suspensão. § 7 - Decretar a suspensão e ainda mesmo a demissão do magistrado contra quem houver queixa de responsabilidade, sendo ele ouvido, e dando-se-lhe lugar à defesa. § 8 - Exercer, cumulativamente com o governo geral, nos casos e pela forma marcados no § 35 do art. 179 da Constituição, o direito que esta concede ao mesmo governo geral. § 9 - Velar na guarda da Constituição e das leis na sua província, e representar à Assembléia e ao governo geral contra as leis de outras províncias que ofenderem os seus direitos. Art. 12 - As Assembléias Provinciais não poderão legislar sobre impostos de importação, nem sobre objetos não compreendidos nos dois precedentes artigos. Art. 13 - As leis e resoluções das Assembléias Legislativas Provinciais sobre os objetos especificados nos artigos 10 e 11 serão enviadas diretamente ao presidente da província a quem compete sancioná-las. Excetuam-se as leis e resoluções que versarem sobre os objetos compreendidos no artigo 10, parágrafos 4, 5 e 6 na parte relativa à receita e despesa municipal, e 7, na parte relativa aos empregos municipais, e no artigo 11, parágrafos 1, 6, 7 e 9, as quais serão decretadas pelas mesmas Assembléias, sem dependência da sanção do presidente. Art. 14 - Se o presidente entender que deve sancionar a lei ou resolução, o fará pela seguinte fórmula, assinada de seu punho: “Sanciono, e publique-se, como lei”. Art. 15 - Se o presidente julgar que deve negar a sanção, por entender que a lei ou resolução não convém aos interesses da província, o fará por esta fórmula: "Volte à Assembléia Legislativa Provincial", expondo debaixo de sua assinatura as razões em que se fundou. Neste caso, será o projeto submetido a nova discussão; e se for adotado tal qual, ou modificado no sentido das razões pelo presidente alegadas, por dois terços dos votos dos membros da Assembléia, será reenviado ao presidente da província, que o sancionará. Se não for adotado, não poderá ser novamente proposto na mesma sessão. Art. 16 - Quando, porém, o presidente negar sanção por entender que o projeto ofende os direitos de alguma outra província, nos casos declarados no §8o do art. 10, ou os tratados feitos com as nações estrangeiras, e a Assembléia Provincial julgar o contrário por dois terços dos votos, como no artigo precedente, será o projeto, com as razões alegadas pelo presidente da província, levado ao conhecimento do governo e assembléia geral, para esta definitivamente decidir se ele deve ser ou não sancionado. Art. 17: Não se achando nesse tempo reunida a assembléia geral e julgando o governo que o projeto deve ser sancionado, poderá mandar que ele seja provisoriamente executado, até definitiva decisão da assembléia geral. Art. 18: Sancionada a lei ou resolução, a mandará o presidente publicar pela forma seguinte: "F......., presidente da província de........, faço saber a todos os seus habitantes que a Assembléia Legislativa Provincial decretou, e eu sancionei, a lei ou resolução seguinte: (a íntegra da lei nas suas

155

disposições somente); mando, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei ou resolução pertencer, que a cumpram e façam cumprir tão inteiramente como nela se contém. O secretário da província a faça imprimir, publicar e correr". Assinada pelo presidente da província a lei ou resolução, e selada com o selo do Império, guardar-se-á o original no arquivo público, e enviar-se-ão exemplares delas a todas as câmaras e tribunais e mais lugares da província onde convenha fazer-se pública. Art. 19 - O presidente dará ou negará a sanção no prazo de dez dias, e não o fazendo, ficará entendido que a deu. Neste caso, e quando, tendo-lhe sido reenviada a lei como determina o artigo 15, recusar sancioná-la, a Assembléia Legislativa Provincial a mandará publicar com esta declaração, devendo então assiná-la o presidente da mesma assembléia. Art. 20 - O presidente da província enviará à Assembléia e governo geral cópias autênticas de todos os atos legislativos provinciais que tiverem sido promulgados, a fim de se examinar se ofendem à Constituição, os impostos gerais, os direitos de outras províncias ou tratados, casos únicos em que o poder legislativo geral os poderá revogar. Art. 21 - Os membros das Assembléias Provinciais serão invioláveis pelas opiniões que emitirem no exercício de suas funções. Art. 22 - Os membros das Assembléias Provinciais vencerão diariamente, durante o tempo das sessões ordinárias, extraordinárias, e das prorrogações, um subsídio pecuniário marcado pela Assembléia Provincial na primeira sessão da legislatura antecedente. Terão também, quando morarem fora do lugar da sua reunião, uma indenização anual para as despesas de ida e volta, marcada pelo mesmo modo e proporcionada à extensão da viagem. Na primeira legislatura, tanto o subsídio como a indenização serão marcados pelo presidente da província. Art. 23 - Os membros das Assembléias Provinciais que forem empregados públicos não poderão, durante as sessões, exercer o seu emprego nem acumular ordenados; tendo, porém, opção entre o ordenado do emprego e o subsídio que lhes competir como membros das ditas assembléias. Art. 24 - Além das atribuições que por lei competirem aos presidentes das províncias, competelhes também: § 1 - Convocar a nova Assembléia Provincial, da maneira que possa reunir-se no prazo marcado para suas sessões. Não a tendo o presidente convocado seis meses antes deste prazo, será a convocação feita pela Câmara Municipal da capital da província. § 2 - Convocar a nova Assembléia Provincial extraordinariamente, prorrogá-la e adiá-la quando assim o exigir o bem da província, contanto, porém, que em nenhum dos anos deixe de haver sessão. § 3 -: Suspender a publicação das leis provinciais, nos casos e pela forma marcados nos artigos 15 e 16. § 4 - Expedir ordens, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis provinciais. Art. 25 - No caso de dúvida sobre a inteligência de algum artigo desta reforma, ao Poder Legislativo Geral compete interpretá-lo. Art. 26 - Se o imperador não tiver parente algum que reúna as qualidades exigidas no artigo 122 da Constituição, será o Império governado, durante a sua menoridade, por um regente eletivo e temporário, cujo cargo durará quatro anos; renovando-se para esse fim a eleição de quatro em quatro anos. Art. 27 - Esta eleição será feita pelos eleitores da respectiva legislatura, os quais, reunidos nos seus colégios, votarão por escrutínio secreto em dois cidadãos brasileiros, dos quais um não será nascido na província a que pertencem os colégios, e nenhum deles será cidadão naturalizado. Apurados os votos, lavrar-se-ão três atas do mesmo ter que contenham os nomes de todos os votados e o número exato de votos que cada um tiver. Assinadas estas atas pelos eleitores e seladas, serão enviadas, uma à Câmara Municipal a que pertencer o colégio, outra ao governo geral por intermédio do presidente da província, e a terceira diretamente ao presidente do Senado. Art. 28 - O presidente do Senado, tendo recebido as atas de todos os colégios, abri-las-á em Assembléia Geral, reunidas ambas as Câmaras, e fará contar os votos; o cidadão que obtiver a maioria destes será o regente. Se houver empate, por terem obtido o mesmo número de votos dois ou mais cidadãos, entre eles decidirá a sorte. Art. 29 - O Governo Geral marcará um mesmo dia para esta eleição em todas as províncias do Império. Art. 30 - Enquanto o regente não tomar posse, e na sua falta e impedimentos, governará o ministro de Estado do Império, e na falta ou impedimento deste, o da Justiça. Art. 31 - A atual Regência governará até que tenha sido eleito e tomado posse o regente de que trata o art. 26. Art. 32 - Fica suprimido o Conselho de Estado de que trata o título 5o, capítulo 7o da Constituição.

156

Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução das referidas mudanças e adições pertencer, que as cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nelas se contém. O secretário de Estado dos Negócios do Império as faça juntar à Constituição, imprimir, promulgar e correr.

Francisco Lima e Silva João Bráulio Moniz Antônio Pinto Chichorro da Gama

157

Anexo C: Código do Processo Criminal de 1832 (Excerto referente à organização judiciária)

158

159

160

161

162

163

164

Anexo D: Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1840 Lei nº 105, de 12 de maio de 1840

165

Anexo E: Código do Processo Criminal de 1841 (Reforma) (Excerto referente à organização judiciária)

166

167

168

169

170

171

ANEXO F: Organograma Judiciário-Funções (Antes da reforma de 1841)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Rio de Janeiro Bahia

Pernambuco

Tribunal das RELAÇÕES DESEMBARGADORES

Maranhão

Comarca

Juntas de Paz

Juiz de Direito

Distritos de Paz

Termos Promotor

Juiz Municipal

Escrivão

Elaboração própria. Fonte: Código do Processo Criminal de 1832.

Conselho de Jurados

Oficial de Justiça

Juiz de Paz

Escrivão

Inspetor de Quarteirão

Oficial de Justiça

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.