Uma leitura de \"História como Conhecimento\" de H-I. Marrou.

May 31, 2017 | Autor: L. Santos Brandão | Categoria: Teoria e metodologia da história
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Universidade de Brasília Instituto de Humanas; Departamento de História. Disciplina: Teoria da História (1º/2014)

Professor: Arthur Alfaix Assis

Aluno: Luiz Henrique Santos Brandão

Matrícula: 11/0016301

Position paper: MARROU, Henri-Irénée. Do Conhecimento Histórico. Capítulo 1: A História como conhecimento

"Partiremos de uma definição e perguntaremos: O que é a história?". É assim que o historiador francês Henri-Irénée Marrou abre o seu trabalho sobre o conhecimento histórico, apresentando logo o que será o eixo norteador de sua argumentação durante o capítulo que se segue. Importa de início analisar esses dois elementos centrais no enunciado de Marrou: 1) não obstante a recusa da validade de uma definição especulativa, totalizante, que tente abarcar a essência da História a priori e o autor se propor a apresentar uma reflexão não normativa, ou seja, negando a prerrogativa de definir qual seria a "melhor história concebível como possível", ele oferece uma definição do que seria na sua visão a História 2) a reflexão que se segue durante o capítulo aqui tratado parte de tal definição, que se pretende objetiva e "que não pode ser posta em dúvida" (p. 25). O ponto de partida do autor é, como já foi dito, a constatação de seu objeto como um dado real: a História existe. Ou seja: existe uma disciplina constituída, com o seu campo de conhecimento específico e um corpo de profissionais que a ela se dedicam. Cabe, portanto "analisar o comportamento racional dos seus especialistas e apurar assim a lógica do seu método" (p. 25). Como então se define esse objeto, que existe, e a que nos propusemos a estudar? Eis como o define Marrou: setor da cultura humana explorado por um corpo especializado de técnicos, a ordem dos historiadores; [...] prática reconhecida como válida pelos especialistas competentes [a qual] se encontra na posse de uma tradição

metodológica vigorosa que, para nós, ocidentais, começa com Heródoto e Tucídides. (p. 25-26)

Tal delimitação é, como Marrou aponta, necessariamente generalizante e delicada, sendo apresentada nesse ponto do texto apenas à guisa de introdução. Essa delimitação inicial mais geral deve admitir, nos limites que a encerram, certo nível de permeabilidade tendo em vista o caráter mutável da própria tradição metodológica em questão. O desenvolvimento do próprio conceito de história, como foi estudado por Koselleck et al, se nos apresenta como um diagnóstico dessa condição de mutabilidade que dificulta o trabalho de encontrar uma definição, uma resposta para o “enigma da História”1. Para além das mudanças no campo decorrentes da sua evolução no tempo, a História é ocupada por "um grupo de investigadores que abrem em leque" (p. 26) que vão desde o erudito minucioso ocupado em fazer a exegese de documentos obscuros até aqueles dedicados às grandes sínteses, em busca da História Universal. Como sustentar uma definição tomando como critério o juízo dos especialistas do campo quando os próprios especialistas divergem (muitas das vezes radicalmente) entre si? Marrou admite que, apesar de reconhecer nos historiadores antigos - notadamente Tucídides e Políbio -, quanto ao essencial, o modus operandi da história, é só no século XIX, com Niebuhr e Ranke, que se constituirá a história "verdadeiramente científica", a História strictiori sensu, ou como se pretendia no século XVIII, a “História como tal” ou a “História propriamente dita”. Tendo identificado e delimitado o seu objeto tal como ele se apresenta – por meio da prática dos historiadores – e reconhecendo a fragilidade de sua definição, o autor passa a sua pergunta: o que é então a História? Propondo-se a resumir numa breve formula as discussões tratadas em vasta bibliografia, Marrou nos apresenta a sua síntese, dessa vez numa definição ontológica: A História é o conhecimento humano do passado (p. 28). Vamos agora nos deter nessa definição e nos argumentos que a justificam. CONHECIMENTO: O historiador já tem a História elaborada em seu pensamento antes que a possa escrever. Essa primeira diferenciação aponta para duas atividades logicamente distintas: escrever e conhecer. É pela precedência do conhecimento em relação ao ato de escrever que se justifica aqui a escolha do termo 1

KOSELLECK, Reinhart; et al. O Conceito de História. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2013. p. 225

"conhecimento" ao invés de outros como “narração” ou “escrita” do passado. Justificase também a opção pelo termo “conhecimento” em detrimento de “pesquisa” ou “investigação” (como sugere o sentido original da palavra grega usada por Heródoto para nomear a sua obra) porque, segundo ele, seria confundir o fim com os meios. É através da pesquisa que se chega ao conhecimento histórico, mas o procedimento não constitui um fim em si mesmo. Quando se diz “conhecimento” pretende-se, antes de tudo, “conhecimento válido”, em oposição ao que seriam representações falsas, idealizadas ou irreais do passado. A História define-se assim, segundo Marrou, em oposição à utopia, à tradição popular, vulgar, a experiência quotidiana, primária e não-crítica no sentido de que a história constitui um “conhecimento elaborado em função de um método sistemático e rigoroso, aquele que se mostrou capaz de representar o facto optimum de verdade” (p. 30) . PASSADO: assume no texto o significado de dimensão temporal que abarca toda a experiência humana, inclusive o passado imediatamente próximo que é o que conhecemos como história do tempo presente. Como o professor Estevão Martins aponta – em consonância com a referida obra de Koselleck – este é o significado mais primário do próprio termo “história” designando a própria existência humana no tempo2. HUMANO: o autor faz uma distinção entre dois “passados” ou duas modalidades de passado humano: a evolução biológica e a história. Da primeira se ocupam a paleontologia e a biologia enquanto a segunda é objeto da antropologia e da própria histórica sendo a pré-história uma espécie de disciplina fronteira que atua no limiar entre as duas. É através dos vestígios deixados pelos antigos humanos que podemos apreender a existência destes. Criações materiais ou espirituais de sociedades do passado nos dariam acesso ao seu criador: o homem enquanto homem, o homem já tornado homem por oposição ao seu passado biológico, assumindo a definição aristotélica de homem enquanto animal social e político. A definição ontológica do “homem” estabelece, no texto, a própria distinção da disciplina histórica como parte de um conjunto de conhecimentos do espírito ou de 2

“chama-se de história o conjunto (mesmo desconhecido) da existência humana no tempo, ainda que não se saiba quando começou ou quando há de terminar. Nesse sentido, a história recobre qualquer ação humana” MARTINS, Estevão de Rezende. O Renascimento da História como ciência. In: A História pensada. Teoria e Método na historiografia européia do século XIX. Editora Contexto. São Paulo, 2010. p.8

ciências humanas em relação às ciências naturais. Ao homem “compreendemos pelo interior” enquanto as ciências físicas compreendem fenômenos estranhos à essência humana. Num raciocínio bem próximo ao desenvolvido por Droysen em sua reflexão sobre o método histórico3, Marrou conclui que “é o nosso conhecimento interior do homem, das suas possibilidades, que nos permite compreender [o homem] nesse sentido perfeitamente histórico” (p.32). Depois de justificar as escolhas terminológicas presentes em sua fórmula para a história – que, aliás, ele chega e elaborar mesmo no sentido matemático (h=P/p) – para ilustrar essa ideia de história como a relação ou conjunção estabelecida pelo historiador entre os dois planos temporais em que se insere a humanidade (presente e passado), Marrou passa à clássica distinção entre “realidade histórica” e “conhecimento histórico” (res gestae e historia rerum gestarum, na distinção presente em Hegel). A solução para o impasse semântico da história (ou seja: o que de fato aconteceu/ discurso sobre o que aconteceu) é, para o autor, a síntese presente na sua própria formula: o “real”, que não pode jamais ser designado pela linguagem, é a tomada de consciência do passado humano, advinda do esforço intelectual realizado pelos historiadores. O sentido da “realidade histórica”, a verdade que ela é capaz produzir, não se situa nem nas res gestae e nem na historia rerum gestarum (oposição objetividade/subjetividade na história em geral) mas na “relação, na síntese que a intervenção ativa, a iniciativa do sujeito cognoscente, estabelece entre presente e passado” (p. 35). Isso ocorre porque o passado, esse que realmente aconteceu e que Ranke queria apenas descrever (wie es eigentlich gewesen), se nos apresenta como “númeno” pois desde que é apreendido, é como conhecimento que o é, e nesse momento sofreu uma metamorfose completa, encontra-se como que remodelado pelas categorias do sujeito cognoscente, ou melhor, pelas servidões lógicas e técnicas que se impõem à ciência histórica (p. 36).

Marrou apresenta assim o problema epistemológico em captar esse passado factível e que existe como coisa-em-si, independente da perspectiva necessariamente parcial do entendimento humano4. O autor aproxima esse “passado em si mesmo” da ideia biológica de evolução no sentido de que “designa a confusa meada de relações 3

“o homem só compreende totalmente ao homem” DROYSEN, Johann Gustav. Histórica. Leciones sobre la enciclopedia y metodología de la historia. Editorial Alfa. Barcelona. 1983. p. 31 4 HOUAISS, Dicionário. Númeno.

causais, desdobrada no tempo, que liga o ser vivente aos seus antecedentes diretos” (p. 36). É precisamente a distinção entre essa “evolução da humanidade”, esse passado realmente vivido que Marrou quer diferenciar do que ele chama de história quando ele diz que “ao readquirir vida na consciência do historiador, o passado humano torna-se outra coisa, depende de um outro modo do ser” (p. 38). O historiador é, nesse contexto, o agente racional responsável por tornar esse passado inteligível no presente, ordenando, dando sentido aos acontecimentos de forma a tornar esse “dado bruto” de que dispõe, vestígios esparsos de um presente que não existe mais, algo pensável, raciocinável lançando ao passado alguma espécie de olhar racional que compreende, apreende e explica. A história se encontra, portanto, na condição de produto de um esforço intelectual do historiador de fazer o passado dos homens de outrora dialogar e responder questões do presente no qual escreve. Como disse o professor Estevão de Rezende Martins em sua exposição na I Jornada de História da Historiografia realizada pela Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul “a ação humana inscreve a racionalidade no agir e com isso grafa a historia no tempo e a historiografia inscreve esta racionalidade inscrita no tempo de forma escrita – ela extrai de volta”.

BIBLIOGRAFIA: DROYSEN, Johann Gustav. Histórica. Leciones sobre la enciclopedia y metodología de la historia. Editorial Alfa. Barcelona. 1983. HOUAISS, Dicionário. Númeno MARROU, Henri-Irénée. Do Conhecimento Histórico. Editorial Áster. Lisboa. MARTINS, Estevão de Rezende. O Renascimento da História como ciência. In: A História pensada. Teoria e Método na historiografia européia do século XIX. Editora Contexto. São Paulo, 2010. ___________________________. Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia. I Jornada de História da Historiografia - 22 de junho de 2012 Pantheon do IFCH - UFRGS Mesa I: Teoria da história e história da historiografia: definições de campo KOSELLECK, Reinhart; et al. O Conceito de História. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2013

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