Uma leitura de Os que bebem como cães

July 14, 2017 | Autor: Georgea Queiroz | Categoria: Pierre Bourdieu, Literatura Brasileira Contemporânea, Literatura Piauiense
Share Embed


Descrição do Produto

6

Uma leitura de Os que bebem como cães à luz de Pierre Bourdieu*

Georgea Vale de Queiroz**



Resumo: Escrito em uma época em turbulência política, Os que bebem como cães, de Assis Brasil, é um livro que narra a historia de Jeremias, um preso político, que não é dono de sua memória e nem de seu corpo, nem ao menos sabedor de seu paradeiro ou das razões que o levaram ao cárcere. Propõem-se a análise das relações sociais da obra sob a ótica de Pierre Bourdieu, sociólogo francês, fazendo uso dos conceitos de campo, campo de poder, poder simbólicos e capitais, por ele concebidos, bem como um estudo da interação entre os polos divergentes e das relações de poder encontradas na obra.

PALAVRAS-CHAVE: Campo de poder. Capitais. Poder simbólico. Relações de poder.

Durante o período da ditadura militar, Assis Brasil, piauiense de Parnaíba, escreveu o chamado Ciclo do Terror, composto por quatro obras: Os que bebem como cães (1975), O aprendizado da morte (1976), Deus, Sol e Shakespeare (1978) e Os crocodilos (1980). O romance objeto deste artigo é Os que bebem como cães, que relata a historia de Jeremias, um preso político da ditadura militar, que um dia se percebe preso em uma cela escura, fétida, sem lembranças, sem identidade, com suas mãos algemadas às costas, de modo que só podia beber e alimentar-se através de lambidas dadas numa tigela, tal qual um cão.
Busca-se fazer uma análise sociológica dos campos de poder e das relações de poder na obra parnaibana, sob a ótica de Bourdieu. Será observado o contexto social e como as relações entre os personagens se desenvolvem, relacionando-os com o campo de poder, ao mesmo tempo que emprega seus conceitos de campo de poder, capitais, dentre outros.
Em várias obras, Bourdieu usa o termo campo (campo de poder, campo de produção, campo intelectual, campo político, etc.), sendo este um conceito básico. Assim, o sociólogo define campo:
Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo e, ao mesmo tempo, por suas relações objetivas com outras posições (dominação, subordinação, homologia, etc.). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é constituído do conjunto destes microcosmos sociais relativamente autônomos, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade especificas e irredutíveis às que regem os outros campos. (BOURDIEU Apud BONNEWITZ, 2003, p.60).
O autor conceitua campo intelectual como um:
[...]universo relativamente autônomo relações especificas: com efeito, as relações imediatamente visíveis entre os agentes envolvidos na vida intelectual [...] tinham disfarçado as relações objectivas entre as posições ocupadas por agentes que determinam a forma de tais interacções. (sic) (BOURDIEU, 2001, p.65-66).
O campo é composto pelas relações entre os agentes e as instituições, por suas posições, seus interesses, as lutas entre ambos, o modo como interagem entre si. Este campo integra o espaço social e é diretamente influenciado pelos capitais nele existentes, levando a uma divisão entre dominantes e dominados, devido à quantidade/qualidade do capital que os polos possuem. O embate se dá pelo acúmulo de capitais disponíveis: capital econômico, capital simbólico, capital social e capital cultural. De acordo com Bonnewitz (2003, p. 60-61), "a razão destas lutas é a acumulação de formas de capital que garante a dominação do campo". O grupo que os tiver em maior quantidade fatalmente será o dominante.
Os campos possuem propriedades gerais, "cada campo é [...] dotado de um móvel de disputa específico e tem uma historia própria, que permite apreender a sua relativa autonomia em relação a outros campos" (BONNEWITZ, 2003, p. 62).
É possível distinguir quatro tipos de capitais nos estudos de Bourdieu:
- O capital econômico, que é constituído pelos diferentes fatores de produção (terras, fabricas, trabalho) e pelo conjunto dos bens econômicos: renda, patrimônio, bens materiais.
- O capital cultural, que corresponde ao conjunto das qualificações intelectuais produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família. Este capital pode existir sob três formas: em estado incorporado, como disposição duradoura do corpo (por exemplo, a facilidade de expressão em publico); em estado objetivo, como bem cultural (a posse de quadros, de obras); em estado institucionalizado, isto é, socialmente sancionado por instituições (como títulos acadêmicos).
- O capital social, que se define essencialmente como o conjunto das relações sociais que se dispõe um individuo ou grupo. A detenção deste capital implica um trabaçho de instauração e manutenção das relações, isto é, um trabalho de sociabilidade: convites recíprocos, lazer em comum, etc.
- O capital simbólico, que corresponde ao conjunto dos rituais (como boas maneiras ou protocolo) ligados à honra e ao reconhecimento. Afinal, apenas o credito e a autoridade conferem a um agente o reconhecimento e a posse das três outras formas de capital. Ele permite compreender que as múltiplas manifestações do código de honra e das regras de boa conduta são apenas exigências do controle social, mas são constitutivas de vantagens sociais com consequências efetivas. (BONNEWITZ, 2003, p. 53-54) (grifo da autora).
Não há modo de manter-se indiferente ao campo, pois, de uma forma ou de outra, todos que nele estiverem serão influenciados e sofrerão consequências das reviravoltas que se sucederem ou não. Todos aqueles inseridos no campo serão afetados pelo que dentro dele se suceder, desta forma, afirma Bourdieu:
Campos de forças possíveis, que exercem sobre todos os corpos que nele podem entrar, o campo do poder é também um campo de lutas, e talvez, a esse título, comparado a um jogo: as disposições, ou seja, o conjunto das propriedades incorporadas, inclusive a elegância, a naturalidade ou mesmo a beleza, e o capital sob suas diversas formas, econômica, cultural, social constituem trunfos que vão comandar a maneira de jogar e o sucesso no jogo [...]. (BOURDIEU, 1996, p. 24).
Segundo Bonnewitz (2003, p.52), "a expressão 'espaço social' assinala uma ruptura com as representações tradicionais da hierarquia social, fundadas sobre uma visão piramidal da sociedade".
Pode-se descrever o espaço social como um espaço multidimensional de posições tal que toda posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas, cujos valores correspondem aos valores de diferentes variáveis pertinentes. Assim, os agentes se distribuem nele, na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda, segundo a composição do seu capital – isto é, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto de suas possessões. (BOURDIEU Apud BONNEWITZ, 2003, p. 53).
O polo dominante é aquele que possui maior controle sobre os capitais, fazendo uso destes para disseminar ideias favoráveis a seus interesses, em busca da legitimação dessas ideologias junto à coletividade, criando uma falsa consciência.
As ideologias [...] produto colectivo e colectivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante [...] para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distorções. (sic) (BOURDIEU, 2001, p. 10).
Ter controle sobre os capitais e sobre o poder simbólico significa a possibilidade de fazer crer, fazer acreditar. Poder simbólico, segundo Bourdieu é:
[...] um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseologica: o sentido imediato do mundo [...], quer dizer, uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do numero, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. (BOURDIEU, 2001, p. 09).
Ainda nesse raciocínio, Bourdieu continua:
[...] É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados. (BOURDIEU, 2001, p.11) (grifo meu).
A expressão "domesticação dos dominados" é forte e bastante ilustrativa. É essa domesticação literal que os grupos dominantes almejam e tentam manter a todo custo, o que é possibilitado através do domínio dos capitais. O campo de poder não é homogêneo, existem opiniões e interesses conflitantes. Em decorrência dessa heterogeneidade inerente a ele é que ocorrem rebeliões, greves, protestos, guerras e todas as formas de manifestações contra o que não agrada a um grupo nele inserido.
[...] a cultura dominante dissimulando a função da divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela distância em relação à cultura dominante. (BOURDIEU, 2001, p. 10-11).
É impossível conciliar todos os interesses em jogo, eis que a prevalência de um deles implica na exclusão ou aniquilação do oposto. "Assim, com o espaço polarizado no campo do poder, o jogo e as apostas são estabelecidos: entre os dois extremos, a incompatibilidade é total, e não se pode jogar com todas as possibilidades, sob pena de perder tudo querendo ganhar tudo". (BOURDIEU, 1996, p. 28).
Os que bebem como cães foi escrito durante um período em que os militares estavam no poder. O tempo não é determinado, embora não haja como não associar o tempo vivido pelo personagem à época do regime militar, tempo marcado por séries de protestos e atos em razão da insatisfação de parte da população com a política do governo. Bonnewits diz que os conflitos simbólicos "[...] visam impor uma visão do mundo de acordo com os interesses dos agentes, esta [...] se refere tanto à posição objetiva no espaço social [...] quanto às representações que os agentes fazem do mundo soacial"(BONNEWITZ, 2003, p. 98).
No campo de poder, há a interação entre dois grupos antagônicos, com interesses opostos, coexistindo e combatendo um ao outro, em busca da libertação ou da manutenção da situação existente. A disposição dos agentes no espaço das classes sociais é diretamente proporcional ao volume e estrutura do seu capital (Bonnewitz, 2003).
No livro, o encontro entre dois polos diferentes causa a situação de enclausuramento de Jeremias, sua tortura física e psicológica, sua redução à condição de verme (modo como os guardas se referem a ele e aos outros presos). Os "fardas amarelas" estão no controle da situação, Jeremias era professor, escreveu um livro e incitou os alunos, daí observa-se esse conflito de interesses: de um lado, os controladores do poder simbólico, do outro, pessoas que pensam diferente manifestando-se, na tentativa de alteração da ordem vigente.
A definição daquilo que é legítimo é uma questão de primeira importância para todo o grupo social, para todo agente, pois o seu móvel é a manutenção ou a mudança da ordem estabelecida, isto é, a manutenção ou a subversão das relações de forças. A realidade social é também uma relação de sentido, e não somente uma relação de força: toda dominação social, a menos que recorra pura e continuamente à violência armada, deve ser reconhecida, aceita como legitima. Isto supõe a mobilização de um poder simbólico, poder que consegue impor significações e as impor como legitimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da sua força. (BONNEWITZ, 2003, p.99).
Na posição de detentores do poder, os governantes foram responsáveis pela disseminação da doutrina militar, época em que as ideologias nacionalistas, ufanistas, foram fortemente impostas à população. Clássico exemplo era o slogan de 1964: "Brasil, ame-o ou deixe-o". A propaganda da época visava justamente essa legitimação da qual fala Bourdieu.
Os polos estão claramente definidos: de um lado o governo militar, do outro os chamados comunistas. O Brasil é palco da luta de interesses entre militares e a parcela da população, insatisfeita com a situação do país. No romance, aqueles primeiros são representados pelos "fardas amarelas", que são os guardas da prisão onde está Jeremias, responsáveis pela "ordem", pela censura e disciplina. O outro polo tem como representantes o próprio Jeremias e os demais presos, os quais eram tratados com truculência e impedidos de se comunicarem uns com os outros. O personagem principal era professor de literatura, foi encarcerado por difundir idéias tidas como subversivas, contrárias àquelas pregadas pelo governo. Além dos personagens humanos, há também os personagens animais, os dois ratinhos que fazem companhia a Jeremias em sua cela, que partilham de sua comida: César e Julieta.
Inicialmente, Jeremias não sabe quem é, onde está, quem são as pessoas que o conduzem ao pátio nem quem são os outros presos que nesses curtos momentos fora de sua cela, encontra-se totalmente dominado física e psicologicamente àqueles. Mas não só tortura psicológica e a violência física causou o esquecimento do personagem: a alimentação que lhe era dada continha substâncias que confundiam seus sentidos. Ele não era capaz de discernir tempo, não sabia dizer com que frequência era alimentado ou levado ao pátio. Passava boa parte do tempo dormindo, completamente dopado.
Há a clara divisão de "mundos", estão em lados opostos, separados não apenas pelas grades: um lado domina, tem o poder, e outro é o dominado.
O poder.
Nova palavra nascida ali para o seu novo vocabulário. Mas esta não nascera de uma reflexão, fora vomitada pelo corpo, assim como se esvaia em merda e urina, para matar as necessidades mais próximas.
O poder. Aqueles vermes tinham o poder sobre os outros – algo estranho acontecera para que alguns deles, fardados como uma unidade de guerra, dominassem os outros, esfarrapados como um bando de mendigos.
O poder era aquilo – uma voz mais poderosa e que tinha meios mais poderosos para o domínio. O poder e o domínio – o confinamento de uma parcela de homens, o poder nas mãos de uma parcela de vermes. (BRASIL, 1975, p.40-41).
Esta relação entre os polos é o que Bourdieu define como luta simbólica:
As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais.
[...]
O campo de produção simbólica é um microcosmos de luta simbólica entre as classes: é ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção. (sic) (BOURDIEU, 2001, p.11-12).
Parte da rotina de Jeremias consistia em ir ao pátio, numa frequência que ele não sabia qual nem por quanto tempo. Essa era a oportunidade que era dada a ele e aos demais presos de terem o mínimo de higiene, em que podiam lavar-se e beber água, sempre amordaçados por um esparadrapo, de modo a evitar a comunicação. Até seu campo de visão era limitado, sendo apenas permitido que olhassem na direção da água ou do intransponível muro branco. A posição dele, a princípio, era de se submeter e se deixar ser guiado.
Quando os dominados nas relações de força simbólicas entram na luta em estado isolado, como é o caso nas interacções da vida quotidiana, não têm outra escolha a não ser a da aceitação (resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição dominante da sua identidade ou da busca da assimilação q qual supõe um trabalho que faça desaparecer todos os sinais destinados a lembrar o estigma [...] e que tenha em vista propor, por meio de estratégias de dissimulação ou de embuste, a imagem de si o menos afastada possível da identidade legítima. (sic) (BOURDIEU, 2001, p. 124).
Em uma ida ao pátio, o personagem se surpreende com um grito dado por outro preso, chamando pala mãe. Percebeu dentro de si uma vontade de gritar também, sentiu vergonha e desespero por não lembrar um nome pelo qual gritar.
Tentou por sua vez gritar, e deixou escapar apenas um grunhido – a articulação de uma única frase lhe era difícil. Mas logo descobriu, naquela fração de segundos em que os guardas tapavam as bocas, que não conseguiria gritar porque não tinha nome algum em mente. Nenhuma lembrança. Mãe... lhe parecia um nome estranho e distante. Os homens gritavam nomes de mulheres: Maria, Conceição, Margarida. Ouvira o nome de Matilde no pátio ou em suas entranhas? (BRASIL, 1975, p. 15).
Sozinho, antes de ouvir o grito do preso companheiro, Jeremias era apático. Porém, o grito ouvido despertou algo dentro dele, fazendo-o quere reagir também, manter-se lúcido, recobrar aquilo que lhe havia sido roubado, sua memória, sua identidade, sua dignidade. Encontrou naqueles que gritavam incentivo, um convite a participar desta forma de protesto, ir de encontro ao polo dominante, "estava em jogo a conservação ou a transformação das relações de forças simbólicas e das vantagens correlativas[...]". (BOURDIEU, 2001, p. 124).
O Estado está no papel de detentor do monopólio da violência simbólica, contrapondo-se a ele, está o particular que tenta impor seu ponto de vista, correndo o risco de reciprocidade, a qual efetivamente aconteceu, vez que os demais presos, ao ouvirem o grito do primeiro, colocaram-se a gritar também, para logo serem calados e oprimidos pelos guardas.
[...] a luta colectica pela subversao das relações de forças simbólicas- que tem em vista não a supressão das características estigmatizadas mas a destruição da tabua de valores que as constitui como estigmas -, que procura impor senão novos princípios de d-visão, pelo menos uma inversão dos sinais atribuídos às classes produzidas segundo os antigos princípios, é um esforço pela autonomia, entendida como poder de definir os princípios de definição do mundo social em conformidade com os seus próprios interesses. [...] a revolução simbólica e os efeitos de intimidação que ela exerce tem em jogo não, como se diz, a conquista ou a reconquista de uma identidade, mas a reapropriação colectiva deste poder sobre os princípios de construção e avaliação da sua própria identidade de que o dominado abdica em proveito do dominante enquanto aceita ser negado ou negar-se [...] para se fazer reconhecer. (BOURDIEU, 2001, p.125).
Concomitante ao processo de recuperação de sua memória, Jeremias sente o impulso de influenciar os outros presos, tem a intenção de chama-los a lutar também:
"E levantou a cabeça resoluto, vivaz, feliz, e gritou um grito de seu âmago, como se fosse a última coisa que faria: - Vivam, homens. [...] sentiu o alvoroço ou a esperança nos outros seres silenciosos, preocupados com sua tarefa de pequenos cordeiros."(BRASIL, 1975, p. 67).
Em outro trecho:
E de volta à cela, conduzido por dois guardas, tentava descobrir por que gritara.
A primeira resposta que encontrou foi a mais óbvia: gritei porque os homens não gritaram. Gritei porque esperei que eles gritassem e não gritaram. Gritei porque poderia gritar qualquer coisa para completar meu tempo no pátio. (BRASIL, 1975, p. 26).
A disputa pelo poder os agentes e as instituições, em uma maioria esmagadora de vezes, leva ao uso da violência, como meio coercitivo, modo de dominação, de subjugação. Sendo Os que bebem como cães uma obra essencialmente de cunho político, fica evidente o afinco do Estado em manter-se no controle, a fazer com que seus interesses prevaleçam sob a fachada de que o fazem pelo bem da coletividade, calando aqueles que a ele se opunham. Em nome do bem do povo e da ordem da nação, o governo militar foi responsável pelo cerceamento dos mais variados tipos de liberdades, sendo a liberdade de expressão a mais evidente de todas.
O fato concreto: todo poder central, todo Estado, teme o que não se submete, seja do ponto de vista ideológico ou estético. Quando um individuo ou grupo saem da norma, do estabelecido, o poder reage por meio de seus organismos de repressão, sendo a Censura o mais sintomático. (BRASIL, 1984, p. 42).
Depois de um longo processo de reaprendizado sobre si mesmo, Jeremias descobre que seus gritos no pátio não eram a primeira vez que se manifestou contra os guardas. Ele lembrou que em um tempo, há muito passado, tinha sido professor, que lecionava literatura, que escreveu um livro, que agitou os alunos. Sua atitude contrariava os interesses do Estado, que interveio, levando-o preso, censurando-o e dopando-o.
Hoje é o dia de meu aniversario, tenho quarenta e dois anos, me chamo Jeremias, sou professor de literatura, tenho uma mulher e uma filha, minha mãe ainda está viva, a casa em que moramos é alugada, tem um jardim onde cultivo flores, hortências, margaridas, tem um quintal cheio de mangueiras, todo dia saio de casa pela manhã e vou para a escola, não tenho carro, pego o ônibus das nove horas [...]
mas por que agitou os estudantes? [...]
não queremos saber de seus amigos ou de sua família. Diga de uma vez: agitou ou não os estudantes? [...]
é verdade que está escrevendo um livro? O que está escrevendo? [...]
o que contém esse livro? [...]
quer dizer que agita os estudantes dessa maneira? [...] (BRASIL, 1975, p. 132-133).
Jeremias não saberia dizer o que causou a prisão dos seus companheiros de cárcere, contudo é possível o leitor concluir que todos tenham, de alguma maneira, agido contra a doutrina do Estado. Havia homens que estavam lá a mais tempo, ele observou que estes corriam para o muro branco, raspavam seus pulsos e morriam, seus corpos levados pela maca branca dos guardas. A morte desses homens representa a tão desejada liberdade ou significa que o Estado venceu?
À sua frente saiu um homem da fila e correu em direção ao muro: parou e começou a esfregar furiosamente os pulsos ainda não algemados na parede áspera.
A fila parou, os homens ficaram em expectativa – haviam acordado da sua letargia – os pulsos sangrando no muro de pedra, o vivo vermelho passado ali como um pincel de carne.
[...]
A maca já levava o homem ensanguentado. Os dois guardas carregadores passaram a seu lado e notou que o companheiro ferido ainda se mexia – o sangue abundante descendo para o chão, formando uma estranha cinta vermelha, e ninguém o socorria. Apenas o removiam do pátio, como algo que se remove para o monturo – ali estava a fuga impossível após marcar com o próprio sangue o muro branco. (BRASIL, 1975, p. 98-99).
É como Bourdieu (2001) escreve: a política é o lugar, por excelência, da eficácia simbólica. Estes são os conflitos do campo de poder no livro de Assis Brasil.



REFERÊNCIAS

BONNEWITZ, Patrice. Primeiras Lições sobre a Sociologia de P. Bourdieu. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996.
________, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 15 ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2001.
BRASIL, Assis. Os que bebem como cães. 2 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1975.
________, Assis. Dicionário do Conhecimento Estético. Rio de Janeiro: Tecnoprint S.A., 1984.



* Artigo requerido pelo Prof. Dr. Wander Nunes Frota como requisito para última nota da disciplina Bourdieu: Arte e Mercado, ministrada no primeiro período de 2012.
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí, biênio 2012/2014. E-mail: [email protected]




Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.