Uma leitura insolente de \"Em memória de Paulina\"

July 3, 2017 | Autor: A. Drummond | Categoria: Adolfo Bioy Casares
Share Embed


Descrição do Produto

Zunái - Revista de Poesia e Debates

1 de 6

http://zunai.com.br/post/96282949403/periscopio-6

GostarGostar (desfazer)ReblogarSeguirParar de seguirPainel

Volume 1 - N° 4 - Agosto 2014

Início

Aleatório

Arquivo

UMA LEITURA INSOLENTE DE “EM MEMÓRIA DE PAULINA” - Ana Luíza Duarte de Brito Drummond ( nota 1) ISSN 1983-2621

Expediente Editorial Sumário Esculturas Musicais

Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 28 de agosto de 1995, Adolfo Bioy Casares responde assim às seguintes perguntas de dois entrevistadores: Janer Cristaldo: E o que o senhor acha da afirmação de Borges de que a teologia é um gênero como a literatura fantástica? Bioy Casares:Acho que estou de acordo.

Manuscritos de Alexandria Torre de Babel

José Geraldo Couto: E também a psicanálise? O senhor concorda que a psicanálise é um gênero da literatura?

Galeria

Bioy Casares:Acho que é outra catástrofe. (BIOY CASARES, 1995)

Periscópio Especial Entrevista Opinião

Ciente dessa entrevista, a escritura deste trabalho não deixa de me parecer um pouco insolente. Que Bioy, então, perdoe-me. O motivo é que a releitura do conto “Em memória de Paulina”, presente na compilação intitulada Histórias fantásticas, levanta algumas questões bastante complicadas que parecem possíveis de serem analisadas sob um viés com um pé na psicanálise freudiana e outro na filosofia/historiografia/crítica de arte de Georges Didi-Huberman.

Cartas Contato RSS Feed Mobile

O conto seria basicamente uma história sobre um triângulo amoroso no qual o narradorpersonagem e Julio Montero (ambos jovens literatos e ambos ciumentos) são apaixonados por Paulina, não fosse uma problemática sobreposição de lembranças ou projeção fantasmática com um fim trágico e revelador. De início, cabe destacar, a título de resumo e levantamento de motivos, algumas passagens do conto. A primeira delas, já no primeiro parágrafo, aponta para a relação entre o narrador e Paulina e se assemelha ao caráter do duplo: “Nós nos parecíamos tão milagrosamente que, num livro sobre a reunião final das almas do mundo, minha amiga escreveu na margem: As nossas já se reuniram. ‘Nossas’, naquele tempo, significava a dela e a minha.” (BIOY CASARES, 2006, p. 7). E logo à frente: “Via (e vejo ainda hoje) a identificação com Paulina como a melhor possibilidade do meu ser, como o refúgio onde eu me livraria de meus defeitos naturais, da torpeza, da negligência, da futilidade.” (BIOY CASARES, 2006, p. 7). É interessante atentar aqui para o apontamento de Ceserani (2006), em seu estudo sobre o fantástico, do Eros e das frustrações do amor romântico como um dos temas recorrentes da literatura fantástica. Nesse estudo ele afirma que o amor romântico “é caracterizado, acima de tudo, por um forte elemento de autoprogramação ou autoafirmação do duplo. Dois indivíduos se escolhem tendo como base uma profunda e misteriosa afinidade” (CESERANI, 2006, p. 85). O tema possui ainda os vínculos com a vida material e com as convenções sociais: “por um lado, as pulsões do eros e os condicionamentos materiais e sociais; por outro, o novo modelo cultural sugerido pelo amor romântico (concebido como fusão e anulação total, quase magnética, de dois espíritos e dois corpos).”. Esses vínculos geram “uma temática do imaginário que é feita de projeções fantasmáticas, sublimações extremas, espiritualizações do eros” (CESERANI, 2006, p. 80), temas que servem muito bem à literatura fantástica e está bastante presente no conto em análise, como se verá. Na sequência do conto, há uma recepção para amigos na casa do narrador. Nela, ele presenteia Paulina com “uma estatueta chinesa, de pedra verde, que comprara pela manhã num antiquário. Era um cavalo selvagem, com as patas dianteiras no ar e a crina eriçada.” (BIOY CASARES, 2006, p. 8-9). É importante salientar esse trecho, pois essa estatueta retornará ao longo do conto. Dias após essa recepção, Paulina visita o narrador e avisa-lhe que deixará de vê-lo por um tempo, pois estavam “perdidamente apaixonados” e ele era muito ciumento. À pergunta “Quem?” do narrador ela responde com um nome não surpreendente, mas que não deixa de abalá-lo: “Julio Montero.”

08/09/2014 20:14

Zunái - Revista de Poesia e Debates

2 de 6

http://zunai.com.br/post/96282949403/periscopio-6

jacaina reblogou esta postagem de revistazunai revistazunai publicou esta postagem

(BIOY CASARES, 2006, p. 11). O narrador, então, decide aceitar uma bolsa de estudos na Inglaterra e passa a se ocupar dos preparativos da viagem. Nesse ínterim, como a notícia vazou, recebe outra visita de Paulina, que lhe diz que sempre o amou, que sempre o amará, de algum modo, mais que a qualquer pessoa, mas que isso não conta, pois estava apaixonada por Julio. Depois de despedir-se dela, o narrador vê um homem com a cara contra sua porta de vidro, era Montero. Na Inglaterra, ele evita qualquer coisa que pudesse recordá-lo de Paulina, desde encontros com conterrâneos a telegramas e jornais de Buenos Aires. Mas não consegue se livrar dela de todo: “É verdade que ela me aparecia em sonhos, com uma avidez tão persuasiva e tão real que me perguntei se minha alma não compensava de noite as privações que eu lhe impunha na vigília.” (BIOY CASARES, 2006, p. 13). Após dois anos, ao retornar da Europa, o narrador-personagem recebe, novamente, Paulina em sua casa. Alguns trechos dessa visita merecem destaque singular, pois servirão à análise adiante: Como num sonho, passei de uma afável e equânime indiferença à emoção, à loucura, que me produziu a aparição de Paulina. Ao vê-la caí de joelhos, afundei a cara entre suas mãos e chorei pela primeira vez a dor de tê-la perdido. […] Paulina me ordenou que a seguisse. Compreendi que ela estava corrigindo, com a persuasão dos fatos, os antigos erros de nossa conduta. […] Quando me pediu que lhe desse a mão (“A mão!”, disse. “Agora”!) eu me entreguei à sorte. Olhamo-nos nos olhos e, como dois rios confluentes, nossas almas também se uniram. Do lado de fora, sobre o teto, contra as paredes, chovia. Interpretei essa chuva – que era o mundo inteiro surgindo, novamente – como uma pânica expansão do nosso amor. / A emoção não me impediu, contudo, de descobrir que Montero havia contaminado a conversação de Paulina. Por instantes, quando ela falava, eu tinha a ingrata impressão de ouvir meu rival. […] / Com esforço consegui me dominar. Olhei o rosto, o sorriso, os olhos. Ali estava Paulina, intrínseca e perfeita. Ali não a tinham mudado. / Então, enquanto a contemplava […], ela me pareceu diferente. Foi como se eu descobrisse outra versão de Paulina; como se a visse de um modo novo. (BIOY CASARES, 2006, p. 14) Depois, Paulina se despede e sai sem que o narrador-personagem perceba. Ele corre até à rua, mas não a encontra. Ao voltar, sente frio e diz a si mesmo: ‘“Esfriou. Foi só uma pancada rápida’. A rua estava seca.” (BIOY CASARES, 2006, p. 15). Inquieto, sem saber se a procurava em sua casa ou se ia à casa de um outro amigo saber sobre o que aconteceu em sua ausência, o narrador decide-se deitar e descansar para ver tudo com mais clareza. Já na cama, começa a se questionar sobre o rosto de Paulina, no qual via “algo estranho e hostil” que o distanciava dela. Acaba dizendo a si, em tons de consolo e confusão, que ‘“[h]á uma fidelidade nas caras que as almas talvez não compartilhem’. / Ou seria tudo um engano? Estaria eu enamorado de uma cega projeção de minhas preferências e repulsas? Será que eu nunca conhecera Paulina?” (BIOY CASARES, 2006, p. 15). Elegendo, então, uma imagem daquela tarde, evoca uma de “Paulina diante da obscura e lisa profundidade dos espelho” (nota 2). Enquanto procurava se fixar na imagem, o narrador-personagem descobre, num ângulo do espelho, o cavalinho de pedra verde que dera de presente à amada. A visão, quando se produziu, não me causou estranheza; só depois de uns minutos recordei que a estatueta não estava em casa. Eu a havia presenteado a Paulina dois anos antes. / Disse a mim mesmo que se tratava de uma sobreposição de lembranças anacrônicas […]. Logo me dei conta que minha lembrança da estatueta no espelho do quarto de dormir não era justificável. Nunca a coloquei no quarto de dormir. Em casa, eu a vi unicamente no outro aposento […]. (BIOY CASARES, 2006, p. 16) Confuso, sem encontrar o contato de Paulina ou Montero na lista telefônica, o narrador decide falar com o amigo Luis Alberto Morgan, e é quando descobre que Montero está preso e Paulina morta, assassinada por Montero, por ciúmes, no dia em que ela fora à casa do narrador-personagem na noite anterior à viagem deste à Inglaterra, dois anos antes. O narrador ainda descobre por Morgan, depois de lhe fazer perguntas triviais em um dos momentos mais terríveis de sua vida, uma cena de Montero se olhando no espelho de sua casa na noite da recepção. A primeira explicação que encontra, então, para a visita de Paulina à sua casa na noite anterior é a de que ela voltou da morte “para completar seu destino, nosso destino”. Recordou da frase que ela escrevera no livro: “Nossas almas já se reuniram” e concluiu que era indigno dela por sentir ciúmes, pois, para o amar, “ela voltou da morte” (BIOY CASARES, 2006, p. 18). Depois, no entanto, embriagado de amor, seu cérebro, “levado pelo simples hábito de propor alternativas, se perguntou – se não haveria outra explicação para a visita de ontem à noite. Então, como uma fulminação, a verdade me atingiu.” (BIOY CASARES, 2006, p. 19). A verdade, no entanto, embora pareça mais racional para o narrador-personagem, já que foi percebida por seu cérebro, é tão estranha para nós, leitores, quando a primeira explicação. Ela

08/09/2014 20:14

Zunái - Revista de Poesia e Debates

3 de 6

http://zunai.com.br/post/96282949403/periscopio-6

evidencia uma interligação insólita entre os três personagens do triângulo amoroso: A imagem que entrou em casa, o que depois aconteceu ali, foi uma projeção da horrenda fantasia de Montero. Não o descobri então, porque estava tão comovido e tão feliz que só tinha vontade de obedecer Paulina. Entretanto, os indícios não faltaram. Por exemplo, a chuva. Durante a visita da verdadeira Paulina – na véspera de minha viagem – não ouvi a chuva. Montero, que estava no jardim, sentiu-a diretamente sobre seu corpo. Ao nos imaginar, acreditou que a havíamos ouvido. Por isso ontem à noite ouvi chover. Depois me deparei com a rua seca. / Outro indício é a estatueta. Só a tive em casa por um dia: o dia da recepção. Para Montero ficou como um símbolo do lugar. Por isso apareceu ontem à noite. […] A imagem projetada por Montero se conduziu de um modo que não é próprio de Paulina. Além do mais, falava como ele. (BIOY CASARES, 2006, p. 19) Não comentando o aspecto estranho de estar envolvido em uma projeção de Montero, o narrador foca-se, no fim, à sua descoberta de que a verdadeira paixão de Paulina era mesmo Montero. E, assim, o conto acaba: “obedeci a uma súplica de Paulina que ela nunca me dirigiu, e que meu rival ouviu várias vezes.” (BIOY CASARES, 2006, p. 19). Há na aparição de Paulina um aspecto que caracterizaremos como o retorno do reprimido. Note-se, para isso, que durante sua estadia na Europa o narrador-personagem tenta de todas as formas esquecer Paulina, evitando tudo o que pudesse remetê-lo a ela. Como ele próprio afirma, consegue no final do primeiro ano excluí-la de suas noites e quase esquecê-la (BIOY CASARES, 2006, p. 13). Nesse sentido, cabe lembrar que para Sigmund Freud o “unheimlich não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela.” (FREUD, 2010, p. 360). É claro que há uma interpretação forçada aqui se considerarmos como reprimido apenas essa tentativa desbaratada de esquecimento de Paulina empregada pelo narrador-personagem. No entanto, o conceito de repressão em Freud, bastante discutido (nota 3), não ignora a possibilidade de repressão (pré-) consciente. No mesmo sentido em que o filósofo Herbert Marcuse (1975, p. 29), empregamos os termos “repressão” e “repressivo” “na acepção não-técnica para designar os processos conscientes e inconscientes, externos e internos, de restrição, coerção e supressão”. Além disso, consideramos como repressão no conto não a tentativa deliberada de esquecimento de Paulina, mas todo o processo de negação e busca de esquecimento daquele específico momento angustiante em que o narrador descobre que Paulina ama Montero e que, por isso, talvez nunca tivesse se parecido com ele, o narrador. Essa notícia o toma de tal forma que ele fica repassando o momento para encontrar outra interpretação: Durante anos eu a recordei, como preferia os dolorosos momentos da ruptura (porque os havia passado com Paulina) à solidão posterior, repassava-os e examinava-os minuciosamente, voltando a vivê-los. Nessa angustiada ruminação, acreditava descobrir novas interpretações para os fatos. (BIOY CASARES, 2006, p. 12) No entanto, essa interpretação se complica ainda mais se considerarmos que a aparição de Paulina, se o narrador for confiável, “foi uma projeção da horrenda fantasia de Montero.” (BIOY CASARES, 2006, p. 19). Nesse viés, a repressão viria, então, da parte de Montero, o assassino de Paulina, até aonde sabemos. Note-se como nesse instante a narrativa se embola e perdemos um fio condutor. Se o aparecimento de Paulina é uma projeção de Montero, como o narrador tem acesso a ela? Quem é esse “eu” que conta? O narrador ou Montero? Uma outra leitura, então, parece surgir nesse momento. Uma leitura nada esclarecedora, convém dizer de antemão, mas, no entanto, talvez possível. Nela, o duplo do narrador-personagem não é Paulina, é Julio Montero. Note-se que ambos são ciumentos, ambos literatos e ambos apaixonados pela mesma mulher. Baseando-se no estudo de Otto Rank sobre o tema, Freud (2010, p. 351) destaca que “o duplo foi originalmente uma garantia contra o desaparecimento do Eu”, por isso a “alma ‘imortal’” talvez tenha sido o primeiro duplo do corpo. Segundo ele, as concepções do duplo surgem através do “ilimitado amor a si próprio, do narcisismo primário, que domina tanto a vida psíquica da criança como a do homem primitivo, e, com a superação dessa fase, o duplo tem seu sinal invertido: de garantia de sobrevivência passa a inquietante mensageiro da morte.” (FREUD, 2010, p. 352, grifos nossos). Freud ressalta, contudo, que A ideia do duplo não desaparece necessariamente com esse narcisismo inicial, pois pode adquirir novo teor dos estágios de desenvolvimento posteriores da libido. No Eu forma-se lentamente uma instância especial, que pode contrapor-se ao resto do Eu, que serve à auto-observação e à autocrítica, que faz o trabalho da censura psíquica e torna-se familiar à nossa consciência [Bewußtsein] como “consciência” [Gewissen]. (nota 4) (FREUD, 2010, p. 352, grifos nossos). Será possível ver, ainda neste triângulo amoroso formado por Paulina e os possíveis duplos narrador-personagem e Montero, aquilo a que René Girard denomina como o desejo triangular, isto

08/09/2014 20:14

Zunái - Revista de Poesia e Debates

4 de 6

http://zunai.com.br/post/96282949403/periscopio-6

é, a tripla relação que une sujeito desejante, mediador e objeto? De acordo Girard, “para que um vaidoso deseje um objeto, basta convencê-lo de que esse objeto já é desejado por um terceiro a que se agrega um certo prestígio” (GIRARD, 2009, p. 31). Nesta perspectiva o narrador ou Montero deveriam aparecer como aquele ao qual está agregado um prestígio que o outro busca, de certa maneira e por certos caminhos, alcançar. Haveria então, nesse sentido, aquilo a que Girard denomina de “mediação interna” (nota 5) e que podemos resumir como a distância entre mediador e sujeito desejante reduzida o suficiente para que ambos se sintam em conflito de vaidade um com o outro. Para Girard (2009, p. 32) isso diferenciaria, por exemplo, a admiração de Dom Quixote por Amadis de Gaula “dos vaidosos mais inferiores dentre as personagens stendhalianas”. O vaidoso romântico não se quer mais discípulo de ninguém. Ele se convence de ser infinitamente original. Por toda parte, no século XIX, a espontaneidade se torna dogma, destronando a imitação. Não nos deixemos enganar, insiste Stendhal, os individualismos professados com tanto alarde escondem uma nova forma de cópia. Os enfados românticos, o ódio à sociedade, a nostalgia pelo deserto, tanto quanto o espírito gregário, não encobrem, na maioria das vezes, nada mais que um interesse mórbido pelo Outro. (GIRARD, 2009, p. 38-39) Não há descrição suficiente de Montero no conto para que o leiamos nessa perspectiva de Girard. No entanto, o narrador-personagem, por sua vez, parece encaixar-se muito bem quando acusa Montero de imitar escritores diversos, quando se mostra impaciente com os convidados em sua casa, desejando que partam e, mesmo, ignorando-os com o desejo de ficar a sós com Paulina. Além disso, a tensão com Montero é evidente, como na passagem abaixo. Paulina exclamou: / — É muito tarde. Vou embora. / Montero interveio rapidamente: / — Se me permite, acompanho-a até sua casa. / — Eu também te acompanho – respondi. / Falei com Paulina, mas fitando Montero. Pretendi que os olhos lhe comunicassem meu desprezo e meu ódio. […] Tomei o braço de Paulina e não permiti que Montero se aproximasse dela pelo outro lado. Na conversa ignorei Montero ostensivamente. / Ele não se ofendeu. (BIOY CASARES, 2006, p. 10) Seria possível uma leitura que abraçasse essas três possibilidades, quais sejam, a 1) do narrador como duplo de Paulina, a 2) do narrador como duplo de Montero e a 3) dos três envolvidos no desejo triangular de Girard? Acredito ainda não ter a resposta para essa questão. Sigamos, então, com a tentativa de compreensão da aparição de Paulina ao narrador como uma projeção no presente de algo que não necessariamente ocorrera dessa forma no passado, já que a aparição está “infectada” pela visão de Montero e Paulina parece, ao narrador, transfigurada, mas, note-se, provavelmente não a Montero. É aqui que entra Didi-Huberman nessa explanação. Partindo da questão “o que é uma forma com presença?”, tendo como base para sua discussão um cubo de Tony Smith e trabalhos de Walter Benjamin, Didi-Huberman fala, em seu artigo “Forma e intensidade”, de como a presença pode ser entregue ao trabalho do apagamento, o que não significa necessariamente uma negação pura e simples, mas seu espaçamento, sua temporização: Compreender-se-á, nessas condições, que não se possa empregar a palavra presença sem precisar seu duplo caráter de não ser real: ela não é real no sentido de Steiner porque não é um ponto de cumprimento e de transcendência do ser; tampouco é real porque só advém trabalhada, espaçada, temporizada, posta em traços ou em vestígios – e acabamos de ver como Derrida chega a qualificar esses traços em termos de “simulacro” – que nos indicam o quanto ela não é uma vitória qualquer sobre a ausência, mas um momento rítmico que chama sua negatividade no batimento estrutural que a subsume, o batimento do processo de traço. (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 205) Mais adiante ele define a ideia de “forma intensa” como pelo menos uma coisa a ver que, por mais próxima que esteja, se redobra na soberana solidão de sua forma, e que portanto, por essa simples fenomenologia do recuo, nos mantém à distância, nos mantém em respeito diante dela. É então que ela nos olha, é então que ficamos no limiar de dois movimentos contraditórios: entre ver e perder, entre perceber oticamente a forma e sentir tatilmente – em sua apresentação mesma – que ela nos escapa, que ela permanece votada à ausência. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 226). A compreensão da aparição de Paulina pode ser esmiuçada a partir dessas duas citações retiradas do artigo de Didi-Huberman. Enquanto presença, ela não é real porque não é uma transcendência do ser e, além disso, está impregnada por vestígios temporais, de um passado observado por Montero pelo vidro da porta, e espaciais, de um apartamento pouco conhecido, um espelho, uma estatueta de cavalo e a chuva. Ela não passa de um simulacro criado por Montero talvez com a tentativa de justificar seu crime. Reitere-se a passagem em que o narrador, enquanto a vê, se sente

08/09/2014 20:14

Zunái - Revista de Poesia e Debates

5 de 6

http://zunai.com.br/post/96282949403/periscopio-6

olhado por ela de forma estranha, hostil (BIOY CASARES, 2006, p. 15). É uma imagem, por fim, que projeta um passado em um presente, mas não se configura nem em um nem em outro, pois enquanto passado está contaminada pela visão de Montero, enquanto presente, como visto acima, possui uma dupla instância de não realidade, e enquanto futuro não tem nenhuma possibilidade de devir. Pode-se dizer, portanto, que é uma imagem aurática. Didi-Huberman (1998, p. 228), utilizando Freud para apreender o caráter estranho e singular da imagem aurática benjaminiana, afirma que com a unheimliche há “uma definição não apenas ‘secularizada’, mas também metapsicológica da aura, como ‘trama singular de espaço e de tempo’, como poder do olhar, do desejo e da memória simultaneamente, enfim, como poder de distância”. Didi-Huberman aponta três tentativas de definição que permitem ver a unheimliche como essa “trama singular de espaço e de tempo”. A primeira refere-se ao paradoxo da palavra que é tanto do olhar quando do lugar e será analisada por sua ambivalência em termos temporais daquilo que remonta ao há muito tempo conhecido, familiar. A segunda se refere ao “poder do olhado sobre o olhante que Benjamin reconhecia como valor cultual dos objetos auráticos”: “o objeto unheimliche está diante de nós como se nos dominasse, e por isso nos mantém em respeito diante de sua lei visual. Ele nos puxa para a obsessão.” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 228). Seria essa obsessão que puxa o narrador para dentro de uma projeção que sequer é sua? A terceira refere-se a que “a inquietante estranheza se dá enquanto poder conjugado de uma memória e de uma protensão do desejo. Entre ambos se situa talvez a repetição” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.228), e aqui entram os motivos do espectro e do duplo, já abordados acima. Note-se, contudo, que para Freud o duplo tem tanto seu caráter de “surgimento de pessoas que, pela aparência igual, devem ser consideradas idênticas” quanto seus desdobramentos, incluindo-se aí o “constante retorno do mesmo” (FREUD, 2010, p. 351), aspecto assumido pelo duplo em “Em memória de Paulina”. Em algumas passagens de seu artigo, Freud (2010, p. 354-355) diz que o fator da “repetição do mesmo” pode provocar o sentimento de inquietação de acordo com as circunstâncias e condições em que ele se manifesta, o que remeteria à sensação de “desamparo de alguns estados oníricos”, resultando, assim, na sensação própria de desamparo e inquietude. Afirma ainda que “apenas o fator da repetição não deliberada torna inquietante o que ordinariamente é inofensivo, e impõe-nos a ideia de algo fatal, inelutável, quando normalmente falaríamos apenas de ‘acaso’.” (FREUD, 2010, p. 355). Freud aponta, ainda nesse artigo, que “o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada” – o que configura também um dos procedimentos formais do modo fantástico destacado por Ceserani –, e prossegue: “quando nos vem ao encontro algo real que até então víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função e o significado plenos do simbolizado, e assim por diante.” (FREUD, 2010, p. 364). A título de esclarecimento, convém lembrar aqui a importância ocupada pelo aspecto do “inquietante” no modo fantástico – motivo pelo qual recorremos ao artigo de Freud –, de acordo com a afirmação de Ceserani: […] há uma precisa tradição textual, vivíssima na primeira metade do século XIX, que continuou também na segunda metade e em todo o século seguinte, na qual o modo fantástico é usado para organizar a estrutura fundamental da representação e para transmitir de maneira forte e original experiências inquietantes à mente do leitor. (CESERANI, p. 12, grifos meus) Se a aparição de Paulina pode ser, então, interpretada como uma imagem aurática no sentido benjaminiano, “como ‘única aparição de uma lonjura, por mais próxima que esteja’” (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 230), aproximado de Freud como “uma visualidade sentida como a aparição estranha, única, de algo ‘que devia permanecer em segredo, na sombra, e que dela saiu’” (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 230), então podemos concluir, com base no estudo de Didi-Huberman, que a experiência do olhar do narrador sobre a aparição de Paulina conjuga “dois momentos complementares, dialeticamente entrelaçados: de um lado, ‘ver perdendo’, se podemos dizer, e, de outro, ‘ver aparecer o que se dissimula’” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 230). Ver perdendo porque naquele momento ele tem a certeza de que sua amada não voltou do mundo dos mortos para finalmente unir-se a ele e de que eles nunca se unirão. Portanto, é a certeza de sua morte. E ver aparecer o que se dissimula já está claro nesse momento: que o verdadeiro amor de Paulina era, doa o quanto doer, Montero. Como o próprio narrador afirmara, “Eu abracei o monstruoso fantasma dos ciúmes do meu rival” (BIOY CASARES, 2006, p. 19). Notas: (1) Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais. Licenciada em Língua Portuguesa e Bacharel em Estudos Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto. (2) É interessante notar que há uma fixação de Bioy Casares em relação aos espelhos, comentada inclusive por Jorge Luis Borges em “Tlön, Uqbar, Orbis tertius”: “Bioy Casares lembrou então que

08/09/2014 20:14

Zunái - Revista de Poesia e Debates

6 de 6

http://zunai.com.br/post/96282949403/periscopio-6

um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens.” (BORGES, 2007, p. 13). Na entrevista ao Roda Viva, o escritor comenta essa passagem: “Borges disse que tenho horror a espelhos. Nada mais falso que isso. Sempre me senti atraído por eles, gosto até daquele verde em volta deles. Parecem-me lindíssimos.” (BIOY CASARES, 1995). Horror ou atração, certo é que no conto em análise o espelho ocupa um papel bastante singular. (3) Cf. CARNAÚBA, M. E. C. A gênese da repressão em Freud: diagnóstico e tendência oculta da psicanálise. Kínesis – Revista de Estudos dos Pós-graduandos em Filosofia. Marília, v. 5, ed. 9, 2013. (4) Nota do tradutor: “Em alemão, Bewußtsein designa o estado da consciência, e Gewissen, a consciência moral”. (5) Girard elabora duas categorias em que as obras romanescas se agrupam segundo o desejo triangular. São elas: a) “mediação externa quando a distância é suficiente para que as duas esferas de possíveis, cujo centro está ocupado cada qual pelo mediador e pelo sujeito, não estejam em contato”; e b) “mediação interna quando essa mesma distância está suficientemente reduzida para que as duas esferas penetrem com maior profundidade uma na outra” (GIRARD, 2009, p. 33). Como exemplo, pode-se citar para a) a relação (ou distância) entre D. Quixote e Amadis de Gaula e para b) a relação entre Julien Sorel e Mathilde de la Mole. Cabe ressaltar ainda que essa distância é unicamente espiritual, ou seja, não tem nenhuma relação direta com a distância física.

Referências bibliográficas: BIOY CASARES, Adolfo. Adolfo Bioy Casares (1995). São Paulo: TV Cultura, 28 ago 1995. Entrevista concedida ao programa Roda Viva. Disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br. ______. Em memória de Paulina. Histórias fantásticas. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 16-19. BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. FREUD, Sigmund. O inquietante. In: História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. GIRARD, René. O desejo “triangular”. In: Mentira Romântica e Verdade Romanesca. Trad. Lília Ledon da Silva. São Paulo: Ed. Realizações, 2009. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. ed. 6. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975. 31ST AGOSTO 2014

NOTES: 1

#PERISCÓPIO #ENSAIOS VOL1NUM4 #ANA LUÍZA DUARTE DE BRITO DRUMMOND

Page 1 of 1 This blog is powered by Tumblr and designed by CoSnap. Adapted by Revista Zunái 2013.

08/09/2014 20:14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.