UMA LEITURA SALESIANA DA FILOSOFIA GUARDINIANA DA PESSOA

June 4, 2017 | Autor: Pepe Sobrero | Categoria: Hermenéutica
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GUARDINI, Romano, O mundo e a pessoa: ensaio para uma doutrina cristã do homem (Círculo do humanismo cristão, Livraria Morais Editora, Lisboa, 1963).
GUARDINI, Romano, Ética: Lecciones en la Universidad de Munich (Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2000).
GUARDINI, Romano, O mundo e a pessoa: ensaio para uma doutrina cristã do homem, Op. Cit., p.137.
Ibídem.
Ibídem, 138.
Ibídem, 143.
Ibídem, 145.
Ibídem..
Ibídem, 148
Ibídem.
Ibídem, 152.
LÓPEZ QUINTÁS, Alfonso, Cuatro personalistas en busca de sentido (Ediciones Rialp, Madrid 2009), 95-96.
GUARDINI, Romano, O mundo e a pessoa: ensaio para uma doutrina cristã do homem, Op. Cit., p.152.
Ibídem, 164.
Ibídem, 167.
Ibídem, 169.
Ibídem, 170.
Ibídem, 174.
Ibídem.
Ibídem, 175.
Ibídem, 176.
Ibídem.
Ibidem, 181.
Ibidem, 182.
Ibídem, 183.
Ibiem.
UMA LEITURA SALESIANA DA FILOSOFIA GUARDINIANA DA PESSOA

Irmão José Enrique Sobrero Bosch sdb

Este tema de carácter filosófico inserido no manual para os Professores tem como objetivo traçar alguns rasgos da pessoa humana segundo o pensamento do Padre Romano Guardini, teólogo e filósofo alemão.

Perante ao desafio de apresentar as ideias básicas de Romano Guardini sobre o tema específico da pessoa, tenho receio de reduzir levianamente e de maneira medíocre, o horizonte magnífico traçado pelo nosso autor.
Procurarei, porém, concentrar a minha atenção no livro «O mundo e a persona», especialmente na segunda parte do texto, «A pessoa», explicitada na «Estrutura do ser pessoal», «A referência da pessoa às pessoas» e «A pessoa e Deus».
«O mundo e a pessoa» é um texto publicado por Romano Guardini que representa a contribuição decisiva sobre o tema antropológico por excelência, com uma extraordinária precisão teórica. O livro contém a sua filosofia da pessoa. São umas densas reflexões que culminarão nas conferências sobre «Ética» na Universidade de Munique.
Romano Guardini assume a grave responsabilidade teórica de definir a ânsia do ser humano a partir da pessoa. É a competência da Filosofia (conhecer a essência da pessoa) colocando a pergunta: quem é o homem?, não puramente abstrato, senão na existência concreta. Por isso, a pergunta correta será: quem sou eu em quanto homem? Através do método histórico-narrativo, Romano Guardini começa o seu discurso não da essência abstrata da pessoa, senão do homem concreto que existe pessoalmente.
O primeiro elemento que aparece salientado na leitura de «O mundo e a pessoa» é a palavra eu. O ser humano no mundo é eu, quer dizer, um ser individual que se situa diante uma totalidade. Se situa como homem, de uma maneira «mais decisiva». Porque? Simplesmente porque o ser humano sabe e expressa uma «determinação de sentido» que impele sua resposta: autoriza-o e obriga-o a responder e a enfrentar esta realidade.
Descobrimos assim a «determinação de sentido» como noção fundamental para compreender ao ser humano. Esta noção subsiste e sobrevive em cada situação particular, por mais especial que seja, e representa uma condição única, com pormenores irrepetíveis em cada individuo, expressadas concretamente nas qualidades pessoais (talentos), nas diversas etapas da vida, na bondade e na maldade, na consciência, etc. Esta determinação de sentido é traduzida por Romano Guardini como PESSOA. E aqui começa a descrição que nos levará ao entendimento e à compreensão desta realidade: a pessoa segundo Romano Guardini é um ser em relação.
A pergunta pela essência do ser humano segundo Romano Guardini, como acabamos de ver, leva-nos a uma inquietante resposta: a pessoa. Ser pessoa é a manifestação do ser humano. Na perspectiva de Romano Guardini significa que nos apresentamos diante da existência concreta do ser humano, «pessoalmente existente».






A ESTRUTURA DO SER PESSOAL

A descrição que Romano Guardini faz no seu livro O mundo e a pessoa sobre a estrutura do ser pessoal é o mapa indispensável para compreender sua ideia. São os estratos fundamentais do sistema interior da pessoa:

Pessoa e conformação: a totalidade. A pessoa é um ser conformado.
Pessoa e individualidade: a esfera interior. A pessoa é um ser alicerçado na interioridade.
Pessoa e personalidade: o espírito. Interioridade e auto consciência.
Pessoa em senso próprio: o eu pessoal.

Os estratos servem para descobrir o fenómeno total da pessoa humana, com um movimento de em baixo para cima, «não para derivar o superior do inferior, mas para progredir do é portador (mesmo que menos essencial) até ao que é transportado».
O argumento resolve-se a partir da descrição do conjunto de elementos que se integram para formar esta entidade chamada pessoa.

O estrato inferior ontológico da pessoa é a conformação

Todos os elementos que constituem uma entidade estão conectados em forma estrutural e funcional, «de tal maneira que, em cada caso, o elemento subsiste e pode entender-se desde ele, e o todo subsiste e pode entender-se desde os elementos».
Os cristais, os organismos, as estruturas sociais, são exemplos de conformações. A pessoa humana também é uma conformação, pois, vista desde um determinado aspecto, é uma unidade estrutural, entre outras unidades, que realiza funções. Assim sendo, basta um olhar panorâmico para constatar que uma pessoa não é um ser caótico e desordenado, senão uma unidade precisamente ordenada. O corpo, que constitui a dimensão mais visível do ser pessoal, está constituído por ossos, músculos, órgãos, tecidos e outros componentes estreitamente ligados entre si. Todos eles, longe de ser uma mera justaposição desorganizada, conformam um todo unitário.
Desde este primeiro estrato a pessoa humana fica situada como uma realidade unitária e ordenada, junto a outras realidades unitárias e ordenadas. A pessoa é um ser conformado que existe com outros seres na totalidade: «Em tanto que conformação, o homem encontra-se como forma entre formas, como unidade de processo entre outras unidades, como coisa entre coisas».

O seguinte estrato do fenómeno da pessoa é a individualidade

A individualidade é o fenómeno vivo conformado pela unidade da estrutura e das funções, auto delimitada ao mundo e independente das coisas. Esta individualidade distingue-se das demais principalmente de duas maneiras: mediante a conformação dum mundo próprio e pela independência em relação às determinações da espécie.
O indivíduo vivo conforma um mundo próprio na medida em que se relaciona, de maneira especial, através dos sentidos e das atividades ou das funções que realiza, com certos elementos circundantes que são de importância vital para ele: a seleção em virtude das relações naturais, a organização do ser vivo, a iniciativa vital, os instintos primários, a interioridade. Estas características observam-se tanto nos animais como no ser humano e estabelece o mundo próprio de cada espécie. Vislumbramos aqui uma diferencia substancial entre os animais e o ser humano, já que o animal não constrói seu mundo de forma deliberada e livre, senão pelos instintos e as tendências próprias de cada espécie que o determinam. Pelo contrário, no caso da pessoa humana, podemos falar com mais propriedade da construção dum «mundo próprio», pois esse mundo é construído livremente, embora quando a liberdade da pessoa humana não seja absoluta:«No ser total do homem existente pessoalmente encontra-se também o estrato da individualidade viva. Por este estrato é o homem ser vivo entre seres vivos; individuo, tanto frente à espécie, como frente aos demais indivíduos pertencentes à espécie».

O terceiro estrato da estrutura do ser pessoal é a personalidade

Uma vez considerados os estratos básicos e gerais do todo ordenado e do indivíduo vivo, Romano Guardini contempla o mais próprio do ser pessoal: sua dimensão espiritual.
A interioridade da pessoa humana converte-se na interioridade da auto consciência, o que significa que a pessoa não só sabe acerca das realidades que o rodeiam, senão que ademais sabe que sabe e é capaz de tomar para si o sentido das coisas e de dotar de sentido seu próprio agir. O animal manifesta-se com certa orientação e com certo sentido, mas não é ele que dá sentido às suas atividades, senão as determinações genético-biológicas próprias da sua espécie. O animal não é capaz de captar o sentido das coisas nem de dar sentido por si mesmo às coisas: «Consciência em sentido autêntico é possível pelo facto de que no ser humano não somente possui o elemento "espiritual", senão que ele vive uma realidade espiritual concreta, espírito individual, que tem neste organismo sua base de ação e o lugar da sua responsabilidade histórica. A interioridade da personalidade é uma interioridade da vontade».
Com a vontade, o ser humano qualifica o mero ato físico e psicológico (estímulo-resposta), porque capta o valor do objeto e a exigência de sentido de cada situação. A vontade «segura este valor como uma validez em si mesmo, adota uma atitude frente a ele e desde aqui começa a agir». Assim, a deliberação e a escolha que realiza o ser humano estão subordinadas a uma orientação de sentido. Estes são os primeiros rasgos do conceito de liberdade em Romano Guardini.
Contudo, a interioridade da personalidade é uma interioridade que explicita o agir e o criar do ser humano. Se olhamos para as obras e as criações de alguns animais, permanecemos boquiabertos pela habilidade das suas construções. Pensemos nos ninhos das aves, nas teias de aranhas, nos formigueiros. Essas habilidades vêm determinadas pelas características próprias de cada espécie e não criações dum indivíduo determinado, daí que todos os indivíduos duma espécie possuem as mesmas capacidades criativas. No caso da pessoa humana percebe-se uma clara capacidade criadora. A pessoa pode construir, elaborar e compor sem inclinações específicas que necessariamente determinem sua ação, pois a obra humana surge do espírito embora quando esteja marcada pelos condicionamentos próprios de uma cultura particular e de uma instrução especial: «A obra humana surge do espírito, de suas tensões e de sua audácia».
Por esta razão, a qualidade das obras humanas não se explica no imediato, senão no sentido que tem a obra em si. Justamente a técnica, como criação do ser humano, não é uma manifestação dos impulsos operativos naturais, senão duma determinação do espírito que o impulsiona a saltar por encima da natureza. A técnica não é utilidade, senão uma obra. Esta obra do ser humano pode ser, segundo Romano Guardini, um potencial perigo ou um verdadeiro benefício. É uma coisa «tão tragicamente paradoxal, mas também, tão magnífico», ainda mais: «A decisão de optar pela técnica dependerá de si a potência objetiva alcançada nela e por ela, é equilibrada por uma medida correspondente de respeito, sabedoria, bondade de coração, força de carácter, e se, portanto, aquelas possibilidades são colocadas baixo critérios adequados. Se se faz recuar o olhar aos começos da criação técnica, há, sem dúvidas, graves motivos de preocupação. O domínio da natureza aumenta com uma velocidade vertiginosa, mas o homem não parece que acrescente seu amadurecimento, sua segurança e sua força de carácter. É como se dos logros do homem surgira uma potência que segue seu próprio caminho independentemente do homem».
A dimensão espiritual da pessoa humana ultrapassa toda relação de possessão e de domínio. Ainda que se prive a uma pessoa da sua liberdade exterior, por exemplo metendo-a no cárcere, seu núcleo íntimo espiritual permanece livre. Assim se percebe que a interioridade própria da pessoa é incomensurável. Poderão ser mensuradas e analisadas logicamente as ações exteriores do ser humano, mas seu interior escapa a toda medida e a todo análise lógico. Ser pessoa significa que não se pode ser possuído, dominado, manipulado e utilizado, e que não se pode ser substituído por outro. A pessoa humana é única e irrepetível.

O quarto estrato descreve à pessoa em sentido próprio

Parece simples, mas é o coração da ideia de Romano Guardini. Até aqui se tem descrito a conformação, a individualidade e a personalidade, sem chegar ainda ao núcleo do assunto. Estes três estratos têm preparado o caminho para que surja com clareza o essencial do conceito de pessoa: na unicidade e na autonomia do ser, quer dizer, «no carácter concluso da conformação, na interioridade da vida, na fundamentação espiritual do saber e do querer, do obrar e do criar, ligadas no eu, que está de acordo consigo mesmo, que repousa em si mesmo e que se domina a si mesmo».
É a forma de pertencer-se a si mesmo: «Vista em conjunto (a pessoa) como realidade complexa, aberta e compacta, submetida a mil condicionamentos mas capaz em definitiva de assumir seu destino com a autonomia que lhe dá sua consciência de ser um eu, Guardini não hesita em afirmar que sua característica básica e definitória é aquela de possuir-se a si mesma, no sentido de ser responsável dos seus atos, insubstituível, intransferível, irrepetível, sujeito de direitos e deveres, única no mundo».
«Á pergunta, o que és tu pessoa?, não posso responder: meu corpo, minha alma, meu entendimento, minha vontade, minha liberdade, meu espírito. Nada de isso é ainda pessoa, senão, por assim dizer, sua matéria; a pessoa é o facto de que todo isso consiste na forma de pertença a se».
A realidade toda do ser humano pertence ao âmbito da pessoa, da pessoa real, que existe realmente e se realiza concretamente. São os distintos estratos da pessoa descritos anteriormente que se entrecruzam numa determinação de sentido superior. Quando Romano Guardini assinala que o facto de ter abordado o tema da pessoa humana através dos diversos «estratos» que conformam a estrutura da pessoa (pessoa como conformação, como indivíduo vivente, como ser espiritual, como personalidade), tem só um fim didático, pois dessa maneira se percebe com clareza a amplitude e a complexidade do ser pessoal.
Não obstante é preciso aclarar que os diferentes estratos considerados separadamente na reflexão filosófica estão intimamente vinculados na realidade. A pessoa humana não é só matéria, só corpo orgânico, só alma, só espírito, só liberdade, só inteligência e vontade; a pessoa humana não se reduz ao que os fatores genéticos, geográficos, nacionais, culturais ou históricos fazem nela; senão que é uma realidade complexa na qual se encontram inter-relacionadas todas as dimensões, faculdades e condicionamentos supracitados. Considerar somente uma dessas dimensões esquecendo ou incluso negando as outras, representaria um perigoso reducionismo. A pessoa humana constitui um mistério inesgotável ao qual podemos nos aproximar sem abrange-lo totalmente. Quando a pessoa singular pega consciência da sua realidade complexa e fecunda ao mesmo tempo, a aceita, a integra e a faz crescer, encaminha-se para o amadurecimento e a realização existencial. Ainda mais:«Se tem dito que o ser é um facto místico, e se tem dito com razão. Tão pronto como se tem consciência dele, se percebe claramente que se compõe de mistério. O mistério se faz mais profundo num grau decisivo, no grau de decisão do sentido do homem, quando a proposição diz: "alguma coisa é", senão "eu sou". A análise disto não seria possível só desde o ponto de vista filosófico, senão que nos levará às raízes do religioso».
As últimas palavras que utiliza Romano Guardini para concluir esta secção (a estrutura do ser pessoal), como tem sido sublinhado anteriormente, representam uma notável descrição para explicar as idades da vida. Saber, querer, viver e exercitar o carácter humano na totalidade das conexões da própria pessoa, enchem de significado as palavras amadurecimento e formação. O amadurecimento e a formação da pessoa são a orientação e a tarefa das diversas idades, etapas ou fases do crescimento e desenvolvimento do ser humano. Estes espaços de tempo incluem uma duração determinada e uma gradualidade específica. Contudo, este belo panorama da interioridade da pessoa tem que ser completado com outras realidades, especialmente com aquele dado que vem de fora da pessoa: a pessoa em relação com outras pessoas.


REFERÊNCIA DA PESSOA ÀS PESSOAS

Na linha de pensamento de Romano Guardini sobre a pessoa aparece nitidamente a ideia do condicionamento. A pessoa pode estar condicionada quer do interior quer do exterior. Em gérmen achamos aqui uma definição de liberdade. O mundo material e o mundo espiritual desafiam à pessoa a pegar distancia e independentemente deles e com eles poder dar uma resposta adequada a seu ser mais íntimo. A responsabilidade da pessoa radica na toma de consciência destas realidades (conexões da realidade e de sentido) «para substituir e para dar prova de se, mas que ela mesma (a pessoa) e como tal não está condicionada por elas».
Então, o desafio de ser responsáveis, livres e conscientes alarga-se quando aparece o outro. Porém a pessoa, está condicionada por outra pessoa?
Desde que nasce, a pessoa humana está relacionada estreitamente a outras pessoas que contribuem a seu desenvolvimento. Aqueles que educam, protegem e socorrem a quem acaba de nascer não fazem dele uma pessoa – desde o ponto de vista ontológico – por realizar essas tarefas, senão que promovem seu crescimento integral. Em outras palavras, desde o ponto de vista metafísico, o bebé nasce sendo uma pessoa humana, não obstante, desde o ponto de vista existencial deve crescer e desenvolver-se em diversos aspetos para ser uma pessoa humana matura e plena. Este crescimento e esta maturação só podem atingir-se em relação com outras pessoas. Porque se supõe que é uma relação de pessoas. Esta afirmação da existência da pessoa é indispensável para afrontar sua maturação e sua formação. Eis o fundamento de carácter essencialmente relacional da pessoa humana: «Toda promoção de um homem por outro tem lugar já sobre a base do facto de que é pessoa… Depende, porém, a possibilidade de que seja pessoa, de facto de que, fora dela exista em absoluto outras pessoas? Ou mais exatamente: pode ser pessoa sem que, em tanto que "eu", esteja referido a outra pessoa que represente seu "tu", ou sem que, ao menos, exista a possibilidade de que outra pessoa se converta em seu "tu"?».
Parece um jogo, uma competição: o eu com o tu, o tu com o eu. Em definitiva, também a relação eu-tu é um processo consciente que especifica a função de cada pessoa. Esta especificação encontra-se na forma essencial de considerar ao outro como sujeito e não como mero objeto. Porque existe agora um sujeito chamado «eu» e um sujeito chamado «tu»: «Na mesma medida em que o ser considerado por mim, ao princípio, como mero objeto, é libertado por mim na atitude do "se-mesmo" que surge de um centro próprio, convertendo-o num tu, na mesma medida sou eu um sujeito».
Somente existem relações interpessoais «eu-tu» quando se abandona o esquema de relação «sujeito-objeto» ou «eu-coisa», pois estes se caracterizam pela relação de domínio e uso. Uma pessoa se relaciona com um objeto (relação «eu-coisa») utilizando-o para determinadas tarefas, manipulando-o a vontade, comprando-o, vendendo-o ou descartando-o segundo as circunstâncias. A relação «eu-tu» é duma ordem totalmente diversa, pois nela se vinculam duas pessoas humanas e não há coisas ou objetos que atuem como componentes na relação. Romano Guardini indica que a relação interpessoal «eu-tu» possibilita o crescimento pessoal porque nela o olhar do outro interpela-me e o meu olhar interpela-lo produzindo uma troca fecunda de sentimentos e de sentidos.
A relação «eu-tu», de pessoa a pessoa, caracteriza-se, na explicação personalista de Romano Guardini no encontro e na linguagem.
O fenómeno do encontro ocupa um lugar central no discurso de Romano Guardini para compreender a realidade da pessoa. O verdadeiro encontro da pessoa com as outras pessoas é a prova da nossa condição de seres racionais. Quando a relação «eu-tu» é um efectivo encontro, surge o «nós». Atingir esta relação profunda produz felicidade, um sentimento que acompanha a vida da pessoa quando consegue viver realmente com outras pessoas. No âmbito da ética, supõe uma opção incondicional pelos grandes valores: a felicidade se atinge quando vivemos na verdade, no bem, na bondade, na justiça, na beleza, na liberdade. Estamos ligados livremente a estes valores no mais profundo do nosso ser e nos capacita para nos vincular normalmente com os outros. Assim, tentamos dar novos passos no encontro quando surgem outros desafios: a generosidade, a confiança, a cordialidade, a fidelidade, a comunicação afetuosa, a participação, o respeito, a amizade.
Ao fim, um autêntico encontro desemboca numa relação de presença. A presença é a garantia do encontro. Porém, não vivemos «excessivamente» pressentes junto a outras pessoas, nem «tristemente» afastados delas, senão que, com todo respeito, a nossa presença é uma sadia convivência, unindo o imediato com a distância, evitando assim o perigo da dominação: «A pessoa não surge no encontro, senão que atua nele. Depende de que as outras pessoas existam; só possui sentido, quando há outras pessoas com as que pode ter lugar o encontro…Aqui se trata do dado ontológico de que fundamentalmente a pessoa não existe na unicidade».
Na dinâmica do encontro, a pessoa está referida essencialmente ao diálogo, orientando sua vida espiritual à comunicação. Por isso, o outro elemento da explicação personalista dialógica de Romano Guardini é a linguagem. Eis uma decisiva afirmação do nosso autor sobre uma certeza que se encontra na mesma essência da existência humana: «A vida espiritual faz-se realidade essencialmente na linguagem».
Então, porque a vida espiritual da pessoa é comunicação, haverá momentos de maior diálogo e outros de silêncios obrigados.
O que é a linguagem para Romano Guardini? «A linguagem é o âmbito de sentido em que todo homem vive. É uma conexão de formas de sentido determináveis por leis supra-individuais, na qual o homem nasce e pela qual o homem é formado. É um todo independente do indivíduo, do qual, segundo a sua capacidade, forma parte dele».
A explicação de Romano Guardini no livro Mundo e pessoa começa no espaço e no tempo real de cada pessoa. O âmbito de sentido e a história pessoal é a totalidade da qual forma parte o ser humano. Nesse âmbito, nessa história, a pessoa tem a experiência da linguagem, atinge a verdade e consegue a realização da relação «eu-tu». «Nesse sentido, a linguagem significa o projeto prévio para a verificação do encontro pessoal».
A linguagem permite o diálogo e a troca comunicativa com as outras pessoas. Através dele manifesta-se a dimensão espiritual da pessoa humana e seu carácter relacional, pois a linguagem não se reduz ao componente material-orgânico que a constitui (língua, cordas vocais, lábios, sons, signos), senão que é a combinação deles com o significado e o sentido particular que provém do espírito. A linguagem é um ato corpóreo-espiritual próprio de um ser corpóreo-espiritual: a pessoa humana. Com a linguagem manifesta-se a orientação dialógica da pessoa humana e sua evidente referência às demais pessoas: «A pessoa existe na forma do diálogo, orientada a outra pessoa. A pessoa está destinada por essência a ser o eu de um tu. A pessoa fundamentalmente solitária não existe». Como consequência do encontro e da linguagem na pessoa humana estabelece-se uma natural relação do homem de carácter dialógico, porque habita no mundo com outras pessoas e estabelece relações interpessoais: a amizade, a comunidade e também a solidão.


«DEUS É O TU DO HOMEM»

Romano Guardini sublinha que o «tu» mais profundo com que a pessoa humana pode vincular-se é o «Tu» divino. A razão disto radica em que Deus criou ao ser humano e assim só Ele constitui o sentido mais pleno da sua vida. A existência pessoal está essencialmente orientada ao criador. Este ato criador possui uma nota própria na relação entre Deus e a pessoa: a dignidade absoluta da pessoa: «O impessoal, inanimado como animado, é criado por Deus sem mais, como objeto imediato da sua vontade. À pessoa não quer cria-la assim, porque careceria de sentido. Deus cria a pessoa por um ato que fundamenta sua dignidade: pela chamada. As coisas surgem pelo mandato de Deus; a pessoa pela sua chamada. Isto significa que Deus chama à pessoa a ser seu Tu, ou, mais exatamente, que Deus mesmo se determina a ser o Tu do homem».
A inclinação à relação com Deus não é uma coisa acidental na vida do homem, senão, pelo contrário, é uma dimensão fundamental que não pode ser negada se se quer abordar de maneira completa a realidade da pessoa humana. Negar a existência de Deus e a condição criatural da pessoa humana significa negar a evidente finitude da pessoa. Precisamente a finitude e a limitação própria da pessoa humana manifestam que ela não se deu a si mesma a existência, senão que a tem recebido como um dom de um ser superior.
Se o homem encontra em Deus seu «Tu» mais importante, é porque Deus tem feito primeiro ao homem seu «tu» quando o criou pela sua Palavra. Mais ainda, constantemente faz ao homem seu «tu» quando fala através da criação. As coisas são, segundo Romano Guardini, palavras que Deus nos dirige para celebrar um diálogo amistoso. As diferentes realidades da criação possuem um carácter verbal, pois, ao ser chamadas à existência pela Palavra divina levam o cunho do Criador. Deus comunica-se connosco por meio delas: «Esta é a relação «eu-Tu» essencial, aquela que não pode desaparecer. Nela está também inserido o mundo. O mundo mesmo tem carácter verbal; aqui encontramos os pontos de referência do diálogo. O mundo tem sido falado por Deus na direção do homem. Todas as coisas são palavras de Deus dirigidas a aquela criatura que, por essência, está determinada a achar-se em relação de tu com Deus. O mesmo homem está destinado a ser ouvinte da palavra-mundo, E deve também ser ele que responde; por ele todas as coisas devem retornar a Deus em forma da sua resposta» .
Na base da vocação do ser humano está a dignidade absoluta, que recebe do Criador. Esta vocação-chamada realiza-se desde o momento que a pessoa responde. Este encontro, este diálogo, está em relação entre o Criador e o homem sempre será iniciativa de Deus. Mas o homem, em virtude do seu conhecimento e da sua obediência, manifesta esta relação «eu-Tu» com Deus. E mais, segundo Romano Guardini, «se não o faz, anula de ser pessoa, porque o homem com sua existência inteira é resposta à chamada do Criador».
Na essência da pessoa humana encontra-se a resposta à chamada de Deus. Assim, a identidade essencial da pessoa humana na perspectiva guardiniana, desemboca numa explicação teológica (o «eu» cristão). O encontro decisivo entre Deus e o homem será Jesus Cristo.




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