\"Uma memória afectiva: Os museus paroquiais e a preservação do património devocional. Dois casos de estudo\", Seminário de Museologia e Curadoria, Doutoramento em História da Arte, Artis-FLUL, 2012.

August 11, 2017 | Autor: Maria Carmo Mendes | Categoria: Art History, Museology
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Seminário de Museologia e Curadoria Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras Instituto de História da Arte Doutoramento em Arte, Património e Restauro – variante de História da Arte

Uma memória afectiva: Os museus paroquiais e a preservação do património devocional

Dois casos de estudo

Maria do Carmo R. Mendes

Uma memória afectiva: Os museus paroquiais e a preservação do património devocional Dois casos de estudo Museologia e Curadoria

Si el dios está en la estátua, ésta está animada y la tratamos como si tuviera vida. David Freedberg, El Poder de las Imágenes.

Distante vai o tempo em que as aldeias do interior do país se engalanavam com as festividades religiosas dedicadas aos santos padroeiros e a outros santos da devoção. Distante vai o tempo em que as igrejas se vislumbravam cheias de gente, novos e velhos, nas missas de domingo e feriados santos, para as quais vestiam a melhor roupa. Distante vai o tempo em que os fiéis cumpriam religiosamente o dever de honrar esta ou aquela imagem, contribuindo com avultadas esmolas para a sua conservação. Distantes vão os tempos em que as pessoas viviam de facto o rito da religião católica. Actualmente, e embora alguns costumes se mantenham vivos, a devoção muito aquém fica da de outrora. De igrejas repletas de imagens passou-se a locais onde se mantém o essencial ao culto – por um lado devido aos parcos recursos para a sua manutenção, e por outro pela presença do temor constante pelo furto. Muitas das imagens que outrora ornavam as igrejas de muitas aldeias do interior do país ou se encontram em arrecadações paroquiais, ou em casas de particulares de onde, com o passar do tempo, se perde o rasto. Para além das igrejas, temos também todo o património de inúmeras capelas e ermidas, ornadas com as imagens dos santos a quem estavam consagradas e muitas delas pertença do povo, que hoje se encontram devolutas ou até mesmo desapareceram. Perante este cenário de quase total incúria face ao património religioso e sem qualquer apoio estatal, alguns párocos mais sensíveis a estas questões procuram o apoio da gente local e, com os poucos recursos que escasseiam, atentam a que a memória de toda

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uma comunidade se preserve. Foi o caso do Padre António Serra, pároco das aldeias de Coutada, Barco e Casegas, no concelho da Covilhã. CONTEXTO Inaugurado a 20 de Outubro de 2011, o Museu de Arte Sacra da Covilhã1 procurou, seguindo um protocolo entre a Câmara Municipal da Covilhã e a Diocese da Guarda na pessoa do Bispo D. Manuel Felício, reunir num só espaço peças religiosas de todas as freguesias do concelho da Covilhã que já não estavam sujeitas ao culto, comprometendo-se ao seu estudo, conservação e valorização. O percurso museológico foi estruturado segundo os sete sacramentos da Igreja Católica: Baptismo, Confirmação, Matrimónio, Ordem, Penitência, Eucaristia e Santa Unção, procurando estabelecer com o visitante uma leitura pedagógico-litúrgica da exposição; esta conta com mais de 600 objectos, entre pintura, escultura, ourivesaria, paramentaria e figuras de roca, abrangendo um período que vai desde o século XII ao século XX. Todas as freguesias do concelho foram, no decurso do ano de 2011, contactadas pela Câmara da Covilhã no sentido de serem inventariadas por técnicos camarários as peças retiradas do culto e que se encontrassem em depósito nas paróquias: todo o processo incluiu deslocações às igrejas e contacto com os respectivos párocos, e foram seleccionadas pelos técnicos variadas peças, algumas de grande valor, que iriam assim posteriormente fazer parte do espólio do Museu, por tempo indeterminado (segundo uma das cláusulas do protocolo redigido pela Câmara). Em nenhuma fase do processo, as populações terão sido directamente consultadas – como foi o caso da aldeia de Barco. Embora a maioria das aldeias do concelho tenha contribuído com as peças seleccionadas pelos técnicos – e algumas legando mesmo as mais valiosas -, algumas vozes barquenses insurgiram-se perante o facto de se assistir a uma autêntica delapidação do património carregado de memórias dos antepassados, mesmo considerando que o local de destino fosse um espaço

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- Instalado na casa de Maria José Alçada, edifício projectado pelo arquitecto Raúl Lino em 1921.

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museológico e mesmo sob o protectorado da diocese. A ideia de se verem privados das imagens a que muitos, durante longos anos, direccionaram a sua devoção fez com que a possibilidade de criação de um museu paroquial começasse a tomar forma, com o principal intuito de conservar a memória no seu local de origem. O Pároco António Serra já tinha, anos antes, criado um museu de arte sacra na aldeia de Casegas e, perante o desconforto sentido pelos paroquianos da aldeia de Barco, o mesmo modelo começou por ser aí também aplicado.

PERCURSO E PATRIMÓNIO O Museu de Arte Sacra de Casegas2 está instalado dentro da própria igreja, na torre sineira adaptada para esse fim, com entrada pelo coro-alto. O Pároco, em conjunto com a Comissão Fabriqueira em funções, mandaram construir um expositor de forma octogonal, de modo a melhor se coadunar no espaço exíguo da torre. A colecção é maioritariamente constituída por escultura, algumas alfaias litúrgicas e poucos livros, destes últimos a destacar um exemplar muito bem conservado das Constituições Sinodais do Bispado da Guarda, mandado imprimir pelo Bispo D. Bernardo António de Melo Osório e que data do ano de 1759 (FIG. 1 - Anexo), e um documento do século XVII, em que o Papa Urbano VIII institui, em Casegas, a Mordomia do Santíssimo Sacramento. Exemplar é o conjunto escultórico reunido e exposto, proveniente não apenas da paróquia mas também de capelas anexas, e que contém peças de entre os séculos XVI e XX: as mais antigas representam um Santo António (FIG. 2 - Anexo), uma Senhora do Rosário (FIG. 3 - Anexo) (ambas figuras de grande devoção em terras da Beira), e um S. Pedro sentado no trono papal (FIG. 4 - Anexo), todas datáveis entre os séculos XVI e XVII; uma Imaculada Conceição coroada e com resplandores de prata nas mãos também se encontra no espólio, representada de pé sobre o globo onde se encontra uma

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- Disponível apresentação online, em

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serpente que calca (FIG. 5 - Anexo), assim como um São José com o Menino ao colo, que segura o globo (FIG. 6 - Anexo), sendo ambas as imagens datáveis do século XVIII. Outra peça a destacar é o conjunto exposto formado por um sacrário em talha dourada, um baldaquino portátil e um pequeno Menino Jesus em gesto de bênção, também datáveis do século XVIII (FIG. 7 Anexo). Dada assim a prévia existência de um espaço museológico, os bens da paróquia de Casegas ficaram automaticamente salvaguardados de uma eventual transferência para o Museu de Arte Sacra da Covilhã; o mesmo se pretendeu, como já referido, na paróquia de Barco: atendendo à vontade de preservação da população e com a total anuência da Comissão Fabriqueira local, o Pároco António Serra procedeu à reunião do espólio da paróquia barquense e à instalação do mesmo numa sala anexa à capela funerária da aldeia, que gradualmente foi sendo preparada para esse efeito, pelo precioso contributo do vogal da Comissão, o Sr. Joaquim Castanheira. O mesmo enlevo se verificou em outros paroquianos, nomeadamente as Sras. Maria José Rocha e Piedade Castanheira, que recolheram toda a paramentaria que estava amontoada e deixada ao pó e aos ratos e a lavaram e trataram, sendo que alguma data dos séculos XVIII e XIX. De uma forma singela e em conformidade com os parcos recursos económicos existentes, foi tomando forma o Museu de Arte Sacra da aldeia de Barco, cujo património reúne estatuária, alguma pintura, paramentaria, alfaias litúrgicas e um pequeno acervo livresco e documental. A inventariação ficou a cargo da secretária da Comissão Fabriqueira, Maria do Carmo Mendes, assim como a organização expositiva das peças expostas. Tal como se observa no caso de Casegas e embora sendo também um espaço de pequenas dimensões, não deixa de conter uma riqueza notável para uma pequena aldeia de província, revelando-se também exemplo do espírito devocional que as gentes carregaram ao longo do tempo, em consonância com uma vivência profundamente cristã. O anseio de preservação destes bens no local de origem trouxe à luz do dia todo um património onde se pode ver uma 5

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Nossa Senhora do Rosário datada do século XVI, que segura o pé do Menino3 (FIG. 8 - Anexo), uma Imaculada Conceição datável do século XVIII (FIG. 9 Anexo), e um raro São Pascoal, datável do mesmo século (FIG. 10 - Anexo). No âmbito da pintura, apresentam-se as bandeiras processionais do Apostolado da Oração e da secular Irmandade das Almas (FIG. 11 - Anexo), cuja modéstia se complementa pela rica e variada paramentaria, alguma bordada a ouro (FIG. 12 - Anexo), assim como também pelo considerável número de alfaias (FIG. 13 - Anexo), exemplificativo de todo o cerimonial que não descurava o preceito religioso.

LUGARES DE AFECTO Inaugurado e abençoado o Museu de Arte Sacra de Barco no dia 28 de Outubro de 2011, dia de São Simão santo padroeiro da aldeia, ao local afluiu grande parte da população, novos e velhos, uns levados pela curiosidade e outros em busca das memórias de outrora. A gente mais idosa rezou perante a Nossa Senhora do Rosário exposta que há muito não viam, enquanto outros de meia-idade se emocionaram ao rever o relógio da torre da desaparecida “igreja velha”. Um acontecimento marcado essencialmente pelo relembrar de muitos momentos vivenciados e esquecidos, que pela acção zelosa do Pároco e de alguns habitantes se mantiveram salvaguardados de perderem o sentido longe do local de onde pertenciam e pertencem. Todo um património cuja leitura nos remete para um sentimento pleno de afectividade em âmbito restrito, pertença de pequenas aldeias do interior do país compostas por histórias que não querem – e não podem - ser esquecidas. Transferir objectos afectivos para locais fora do seu contexto particular poderá implicar, a médio/longo prazo, um descurar da importância determinante das pequenas identidades que caracterizam afinal a memória colectiva de um povo. Nestes espaços, o valor estético dos objectos expostos não se pretende como determinante, nem 3

- Foi encontrada uma Nossa Senhora do Rosário de iconografia idêntica à de aldeia de Barco no Museu de Arte Sacra de Alvoco da Serra, também na Diocese da Guarda, datável do século XV (página web disponível em «http://www.museualvocodaserra.com»).

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mesmo o seu valor pecuniário; o que interessa sobremaneira é a recordação que os mesmos carregam e que os torna vivos, e é este o padrão que originou a criação destes dois museus – pequenos lugares onde memória e vida se manifestam. A par da memória está a preservação da devoção, e nos dois casos anteriormente relatados estão intrinsecamente ligadas. O amor aos objectos e às imagens carregadas de simbolismo remete-nos para uma sacralidade que se pretende sempre presente, enquanto parte integrante da existência individual e da vida em comunidade. No caso particular das imagens, e no âmbito do cristianismo ocidental, o rito activa uma rememoração e uma interiorização do acto religioso que se pretende ad aeternum, no qual a componente imagética tem lugar predominante – seria impossível dissociar as imagens do cálice e da patena do acto eucarístico que se (re)vivifica em cada celebração. Nas imagens, estas corporalizam o sagrado e aproximam os crentes a Deus, enquanto intercessoras de situações de angústia e agradecimento, transmutando-se por estas razões em objectos de amor carregados de sentimento e emotividade. Reacções como o rezar perante uma imagem como acima referido, ou até mesmo beijá-la, não implicam uma apreciação estética do objecto – mas sim uma resposta baseada numa relação de empatia que se estabelece com a imagem na qual nos projectamos, algo que apela directamente aos mais básicos sentimentos do homem e não meramente ao seu intelecto. É este um fenómeno intemporal e cultural que trespassa gerações, perante estes protótipos que encarnam os nossos mais profundos anseios enquanto seres humanos. De uma forma singela, é este conforto ancestral de uma sensação de continuidade que as imagens religiosas proporcionam aos crentes que a elas se ligam que se procurou preservar nos casos dos dois museus paroquiais apresentados: a afectividade alia-se à memória e, no contexto católico, alia-se também à preservação da vida que as imagens exasperam, pois o poder da fé concebe-os como modelos de eternidade.

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BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS Perante a “crise de fé” que actualmente se assiste na comunidade católica, estes pequenos museus paroquiais tornam-se lugares onde se procura manter viva a herança da devoção para as memórias futuras, assim como também são locais onde se reaviva a identidade nas mentes do presente. São pequenos microcosmos que albergam parte das raízes que nos agarram à terra onde nascemos ou crescemos, lugares onde a religião era, outrora, vivida de forma efectiva diariamente. No contexto de uma pequena comunidade, apartar um património da sua matriz cultural é sinónimo de perda da carga simbólica que fundamenta a empatia comunicacional que se estabelece com aqueles que a mantêm viva. Fora deste seu contexto devocional, os objectos tornam-se ontologicamente diferentes, não suscitando naqueles que os vêem o vínculo transcendental que lhes deu origem. Será este o pesado fardo de se tornarem peças museológicas, estranhos habitantes de uma outra dimensão: objectos cujas particularidades que exalam se desvanecem em prol da preservação da memória de um todo.

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ANEXO

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Fig. 1- Constituições Sinodais do Bispado da Guarda, mandadas imprimir pelo Bispo Bernardo António de Melo Osório, Lisboa, 1759. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

Fig. 2 - Santo António, escultura em pedra policromada, sécs. XV/XVI. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

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Fig. 3 - Nossa Senhora do Rosário, escultura em terracota policromada, séc. XVI. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

Fig. 4 - São Pedro, escultura em pedra policromada, sécs. XVI/XVII. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

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Fig. 5 - São José com o Menino, escultura em madeira policromada, séc. XVIII. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

Fig. 6 – Imaculada Conceição, escultura em terracota policromada, séc. XVIII. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

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Fig. 7 – Sacrário em talha dourada, baldaquino portátil e Menino Jesus, séc. XVIII. Museu de Arte Sacra de Casegas. Foto da autora.

Fig. 8 – Nossa Senhora do Rosário, escultura em madeira policromada, séc. XVI. Museu de Arte Sacra de Barco. Foto da autora.

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Fig. 9 – Imaculada Conceição, escultura em madeira policromada, séc. XVIII. Museu de Arte Sacra de Barco. Foto da autora.

Fig. 10 – São Pascoal, escultura em madeira policromada, séc. XVIII. Museu de Arte Sacra de Barco. Foto da autora.

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Fig. 11 – Bandeira processional da Irmandade das Almas, óleo sobre madeira, séc. XX. Museu de Arte Sacra de Barco. Foto da autora.

Fig. 12 – Estola para as exéquias fúnebres, séc. XIX. Museu de Arte Sacra de Barco. Foto da autora.

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Fig. 13 – Cálice em prata, séc. XIX. Museu de Arte Sacra de Barco. Foto da autora.

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