UMA MICRO-UTOPIA NA DISTOPIA: A Recusa à Lógica do Canibal em A Estrada, de Cormac McCarthy

June 8, 2017 | Autor: Pedro Fortunato | Categoria: Dystopian Literature, Utopian, Dystopian, and Post-Apocalyptic Fiction, The Road
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UMA MICRO UTOPIA NA DISTOPIA:
A recusa à lógica do canibal em A Estrada, de Cormac McCarthy
Pedro Fortunato, Profa. Dra. Ildney Cavalcanti

RESUMO

Considerando a grande popularidade da literatura romanesca distópica e pós-apocalíptica na contemporaneidade e a crescente associação do tema do apocalipse como mera destruição da humanidade, sem maiores reflexões acerca de sua potencialidade como crítica social, esse trabalho analisa, a partir da perspectiva dos Estudos Críticos da Utopia e da Distopia, o relacionamento entre o pai e o filho, os dois protagonistas do romance distópico pós-apocalíptico The Road [A Estrada] (2006), de Cormac McCarthy, e suas interações com as personagens canibais. Partindo da teorização de Tom Moylan (2000) sobre o pessimismo utópico e o pessimismo anti-utópico, demonstro que essa obra, embora ambientada em um mundo destruído e brutal onde os seres humanos remanescentes tiveram que sucumbir ao canibalismo como forma de sobrevivência, apresenta potencial utópico que possibilita uma leitura com margem à esperança na construção de relações sociais mais humanizadas. Utilizando o conceito de Ruth Levitas (1990) sobre a utopia, que aponta para a expressão e educação do desejo por uma forma melhor de ser, argumento que esse relacionamento entre pai e filho, principalmente pelo fato de estar ambientado em uma sociedade distópica, manifesta uma forma melhor do que a da ordem dominante do mundo figurada nesse romance, ou seja, evidencia um traço utópico numa forma narrativa predominantemente distópica. Na resistência ao canibalismo como forma de sobrevivência, essas personagens subvertem a ordem hegemônica, denunciam seu erro e apontam para outra forma de relacionamento social que expressa o desejo utópico por uma forma melhor de viver em sociedade. Essa subversão por meio do cuidado mútuo entre pai e filho pode possibilitar aos/às possíveis leitores/as da obra a reflexão sobre as relações "canibais" do mundo capitalista e sobre como desejamos viver, ou sobreviver, nesse mundo.
Palavras-chave: The Road. Utopia. Distopia. Pós-apocalipse.
ABSTRACT

Considering the great popularity of the dystopian and post-apocalyptic novel in contemporary times and the increasing association of the apocalypse theme as mere destruction of humanity, without bigger reflections about its potenciality as social criticism, this paper analyses, from the perspective of the Critical Utopian and Dystopian Studies, the relationship between the father and the son, thw two main characters of the dystopian and post-apocalyptic novel The Road (2006), by Cormac McCarthy, and their interactions with the cannibals. Using the theorisation of Tom Moylan (2000) about the utopian pessimism and the anti-utopian pessimism, I show that this novel, although its setting in a brutal and destroyed world where the remaining human beings had to succumb to cannibalism as a way of survival, presents a utopian potential that enables a reading that gives room to the hope of building more humanized social relationships. Basing on the concept of utopia by Ruth Levitas (1990), that points to the expresion and education of the desire for a better way of being, I argue that this relationship between the father and the son, especially by the fact that they live in a dystopian society, express a better way than the one which dominates the world of this novel, in other words, it shows a utopian feature in narrative form that is predominantly dystopian. In resisting cannibalism as a way of survival, these characters subvert the hegemonic order, denouncing their error and point out to another way of social relationship that expresses the utopian desire for a better way of living in society. This subversion through mutual care between father and son might make the reader reflect about the "cannibal" relationships of the capitalis world and how we want to live, or survive, in this world.

Palavras-chave: The Road, Utopia. Dystopia. Póst-apocalypse.






Introdução: A popularidade distópica
O sucesso das narrativas distópicas e pós-apocalípticas na cultura popular, sobretudo na estadunidense, é um fenômeno facilmente averiguável. Uma simples busca pelo termo Dystopia [Distopia] na seção books [livros] da Amazon.com resulta em quatro mil novecentos e dezoito resultados e obras clássicas da distopia, como Nineteen Eighty-Four, de George Orwell, e Brave New World, de Aldous Huxley, estão presentes não apenas nos estudos em língua inglesa nas escolas e universidades, mas podem ser vistas em outras mídias e manifestações culturais populares como no uso do termo Big Brother [Grande Irmão] no título do mundialmente famoso reality show, adaptado a diversos países, ou no álbum Brave New World, da mundialmente famosa banda de Heavy Metal inglesa Iron Maiden, lançado em 2000.
Apesar de tal popularidade, é comum a confusão quanto à relação entre distopia e utopia e quanto à potencialidade literária da distopia e da literatura apocalíptica enquanto crítica social. Considerando, então, essa popularidade da escrita distópica e sua larga influência na cultura popular, entendendo a distopia como parte da tradição do utopismo literário (SARGENT, 2010; MOYLAN, 2000) e a narrativa apocalíptica como potencialmente crítica (ROSEN, 2008; MANJIKIAN, 2012), este trabalho apresenta uma leitura que demonstra traços ideológicos da distopia crítica no romance The Road [A Estrada], de Cormac McCarthy, partindo dos conceitos sobre utopia, teorizados por Sargent (1994), Moylan (1986) e Levitas (1990), e sobre distopia crítica, teorizados por Sargent (ibid), Moylan (ibid) e Baccolini (1995).
Para apresentar tal leitura, inicio com uma breve explanação sobre as relações entre utopia e distopia como recursos imaginativos para crítica social que apontam para uma forma mais humanizada nas relações sociais. Argumentando acerca do utopismo presente nesses dois gêneros literários, preparo o caminho para analisar A Estrada sob o viés dos Estudos Críticos da Utopia e Distopia. Após essa explanação, passo para uma breve descrição do romance seguida da análise literária, que, dividida em duas partes, analisa, respectivamente, a crítica social que essa obra distópica pode suscitar ao se comparar as relações sociais entre as personagens canibais com o sistema de capitalismo consumista e as relações sociais dos protagonistas, que, ao rejeitarem o canibalismo e a violência reinantes em A Estrada, subvertem a ordem hegemônica de seu mundo, e apontam para outra forma de relacionamento social que expressa o desejo utópico por uma forma melhor de viver em sociedade. Após a análise, finalizo com uma reflexão sobre as possibilidades utópicas de esperança dentro da literatura distópica e pós-apocalíptica contemporânea. Dessa forma, apresento contribuição tanto à fortuna crítica da obra em questão, como à teorização sobre os Estudos Críticos da Utopia e da Distopia.

Utopia, distopia e a esperança de um mundo melhor
Utopia e distopia são palavras usadas em muitos tipos de discursos, mas nem sempre com a devida reflexão sobre suas origens ou sobre aquilo que vieram a significar no âmbito dos Estudos Culturais. Utopia é muitas vezes utilizada como sinônimo de totalitarismo, de fantasia ou apenas de um desejo bom (SARGENT, 2010); e distopias são muitas vezes lidas apenas como narrativas destituídas de esperança (MOYLAN, 2000). Porém, ao observar esses termos mais de perto, vemos que todos eles fazem parte de um fenômeno maior que Sargent chama de Utopismo. O utopismo, define esse autor, é um "sonho social" (SARGENT, 1994). Esses sonhos se relacionam com o dia a dia das pessoas que os sonham e nascem do inconformismo com a realidade injusta em que vivem, gerando tanto utopias como distopias (SARGENT, 2010). Portanto, pode-se argumentar que utopias e distopias nascem do desejo por um mundo melhor, da insatisfação humana com a realidade injusta que muitas vezes faz parte da ordem hegemônica das sociedades constituídas na história da civilização. Pretendo examinar esses dois termos mais de perto para tentar esclarecê-los um pouco melhor antes de analisar o romance de McCarthy na segunda parte deste trabalho.
Conforme Sargent, "A palavra utopia ou outopia simplesmente significa não lugar. Topos significa lugar; "u" ou "ou" significa "não". Thomas Morus, inventor da palavra, fez um trocadilho com eutopia ou bom lugar, e desde então nós adicionamos a palavra distopia ou mal lugar" (SARGENT, 1994, p. 5). Portanto, em sua obra A Utopia, que descreve uma ilha imaginária com um tipo de sociedade mais harmoniosa do que aquelas que a Europa do século XVI conhecia, Thomas Morus, juntando os termos utopia e eutopia, criou um gênero literário onde, ainda conforme Sargent, representa:
Uma sociedade não existente descrita em considerável detalhe e normalmente localizada no tempo e espaço cujo autor ou autora pretendeu que leitores e leitoras contemporâneas a vissem como consideravelmente melhor do que a sociedade em que viviam. (SARGENT, 1994, p. 9)
É um tipo de escrita imaginativa que critica a sociedade presente através da descrição de uma alternativa melhor.
A utopia, contudo, não se restringe a um gênero literário apenas. Krishan Kumar aponta para a consequência social da criação de Morus:
Thomas Morus não inventou apenas a palavra utopia, em uma típica fusão espirituosa de duas palavras gregas (eutopos = bom lugar, outopos = não lugar): ele inventou a coisa. Parte da nova coisa era uma nova forma ou gênero literário; a outra parte, mais importante, era uma nova concepção de longo alcance das possibilidades de transformação humana e social. (KUMAR, 1987, p. 23-24)
Assim, a obra é considerada como o marco da utopia moderna, dando título ao gênero literário utópico, mas também foi o início de uma nova concepção de mundo mais politizada, transformadora e contextualizada, que influenciou o humanismo renascentista.
Historicamente, porém, a palavra utopia se associou a conotações negativas, sendo interpretada como simples fantasia ou até mesmo algo perigoso. Um dos maiores problemas da palavra veio em decorrência de sua associação com o socialismo dos séculos XIX e início do século XX. Muitas pessoas consideraram o socialismo desse período como um projeto utópico de melhoria social, e quando as sociedades que adotaram o modelo socialista produziram regimes ditatoriais, como na União Soviética ou na China, a própria palavra utopia tornou-se sinônimo de totalitarismo (BAILEY, 1988; JACOBY, 2001). Porém essa é uma visão equivocada da utopia, que a enxerga como um modelo estático e perfeito a ser seguido, e que resultaria, portanto em algum tipo de totalitarismo opressivo da classe que a implementasse (LEVITAS, 2001). A utopia não é entendida nesses termos pelos Estudos Culturais, mas como um processo, possuindo uma função crítica. Tom Moylan, importante estudioso no que diz respeito aos estudos tanto da utopia como da distopia, argumenta em favor de uma visão de utopia que critica a ideologia hegemônica duma dada sociedade, afirmando que:
Produzida através do poder fantasiador da imaginação, a utopia opõe-se à cultura afirmativa mantida pela ideologia dominante. A utopia nega a contradição em um sistema social forjando visões do que ainda não foi realizado seja em teoria ou na prática. Em gerar tais figuras de esperança, a utopia contribui com o espaço aberto da oposição. (MOYLAN, 1986, p. 1)
A importância da utopia é justamente essa oposição à ideologia dominante, esse espaço aberto da oposição que ela instaura. Através do poder da imaginação, a escrita utópica tem o potencial de fazer refletir sobre aspectos injustos e inadequados da sociedade em que vivem tanto quem as escreve como quem as lê. Através da utopia, o desejo e a insatisfação de grupos menos favorecidos ganham vozes em uma luta por um mundo mais justo. Essa reflexão, porém, precisa ser de caráter auto-reflexivo também. Inicialmente as utopias eram entendidas como modelos a serem seguidos, mas isso mudou a partir da década de 1960 com o estabelecimento das utopias críticas. A utopia crítica não apenas reflete sobre a sociedade que critica, mas sobre ela mesma (MOYLAN, 2000), e, dessa forma, assume um caráter mais fluido e processual, distanciando-se da alcunha de lugar perfeito ou simplesmente de um lugar bom, assumindo, assim, uma postura autocrítica essencial a qualquer ideologia que busque ser realmente transformadora e libertadora.
A socióloga Ruth Levitas define utopia como "A expressão do desejo por uma melhor forma de ser" (LEVITAS, 1990, p. 9). Essa palavra melhor é importante, e deve ser entendida como mais altruísta e mais justa do que a ordem dominante que rege o mundo criticado. Um mundo que seja apenas uma manifestação do desejo egoísta de alguém e que vá ferir os direitos do outro não deve ser chamado de utópico, e daí o totalitarismo se demonstra como contrário à utopia. Por isso Levitas não apenas fala de um desejo por uma forma melhor de ser, mas também da educação desse desejo, da necessidade de se aprender a desejar melhor; melhor, neste caso, sendo entendido como uma forma mais altruísta e humanizada (LEVITAS, 1990). Portanto, não se pode chamar o totalitarismo, ou qualquer realidade onde haja um grupo oprimindo outro, de utopia, mesmo que esse grupo opressor tenha sido anteriormente historicamente oprimido.
Usada pela primeira vez pelo filósofo inglês John Stuart Mill (1806-1873) em um discurso no parlamento na Inglaterra, a palavra distopia significa um mal lugar (SARGENT, 2010). Narrativas descrevendo sociedades piores já existiam antes do uso da palavra por Mill, mas o gênero distópico veio a se estabelecer formalmente apenas no início do século XX, inicialmente com o conto "The Machine Stops", de E. M. Foster em 1909 (MOYLAN, 2000). Conforme argumenta Tom Moylan a distopia desde seu início teve um aspecto de crítica social através da imaginação de sociedades piores:
Desse período inicial [início do século XX], e por toda sua história variada e inconstante, essa narrativa negativa tem produzido mapas cognitivos desafiadores da situação histórica através do imaginar de sociedades que são ainda piores do que aquelas que se encontram fora de portas de seus/as autores/as e leitores/as. (MOYLAN, 2000, p. xi)
É importante notar que uma narrativa distópica não é necessariamente uma narrativa pós-apocalíptica. Uma distopia descreve uma sociedade pior, mas nem sempre a causa dessa formação social piorada se deu por um evento catastrófico que possa ser chamado de apocalíptico. Assim, em A Estrada, temos uma sociedade piorada por um evento apocalíptico que destruiu o mundo como era antes, enquanto que, em Admirável Mundo Novo, não há nenhuma indicação de que houve algum evento que levou a sociedade a se organizar da forma descrita no livro.
Ao contrário da utopia, que narra uma sociedade melhor com o intuito de fazer os leitores e leitoras refletirem sobre suas próprias situações históricas, a distopia suscita essa reflexão através da descrição de uma sociedade pior. Ao demonstrar essa sociedade pior, a função da distopia não é fazer com que os leitores e leitoras se sintam aliviados pela sociedade em que vivem não ser tão ruim como a descrita na distopia; mas, pelo contrário, é criar um "estranhamento cognitivo" (SUVIN, 1988, apud MOYLAN, 2000, p. 167) que faça com que reflitam sobre como a ordem hegemônica de uma dada sociedade pode criar um sistema de opressão de modo que possam analisar suas próprias sociedades e seus possíveis sistemas opressores. Nesse sentido, no que se refere especificamente à luta feminista por uma sociedade igualitária entre os gêneros, Ildney Cavalcanti escreve:
As distopias feministas desenham infernos patriarcais de opressão, discriminação e violência contra mulheres, mapeando assim a sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, e revelando sua natureza ambígua, essas ficções expressam de forma importante desejos e esperanças utópicos pertinentes às mulheres. Vistos sob um ângulo específico, esses textos oferecem um antídoto à banalização da misoginia, que ainda se encontra como um dos males da nossa sociedade. (CAVALCANTI, 2003, p. x)
Portanto, é perceptível que a distopia tem uma função crítica, não narra apenas sobre uma sociedade violenta, misógina, destrutiva, infernal pelo prazer mórbido de exercitar a imaginação com esse tipo de fantasia, mas serve para mapear, conforme Moylan e Cavalcanti descrevem, a própria sociedade em que nós leitores e leitoras vivemos, de modo que possamos refletir sobre aquilo que a ordem hegemônica tenta naturalizar como normal; as relações sociais desiguais. Por esse motivo, Sargent coloca a distopia dentro da tradição utópica, e, consequentemente, dentro do utopismo literário tanto quanto a utopia.
Nem toda narrativa negativa, contudo, pertence à tradição utópica a qual a distopia pode ser alinhada. Sargent (1994) diferencia a distopia da anti-utopia. Ambas produzem representações de sociedades que podem ser consideradas como piores do que as de seus autores/as e leitores/as. Porém, a anti-utopia, como o nome sugere, produz essa narrativa negativa como uma crítica ao próprio utopismo, ou a uma utopia em particular. Utilizando os conceitos de distopia e anti-utopia teorizados por Sargent, Tom Moylan (2000) propõe a distinção entre pessimismo distópico e o pessimismo anti-utópico. Moylan argumenta que as obras anti-utópicas apresentam um pessimismo com finais fechados, sem possibilidade de transformação daquela sociedade descrita, criticando não apenas a sociedade, mas o próprio utopismo; enquanto as obras distópicas possuem um pessimismo com finais abertos, ou seja, com possibilidade de transformação social e potencial de promover esperança utópica.

A Estrada, de Cormac McCarthy
Cormac McCarthy é um escritor norte americano bastante elogiado pela crítica literária que apresenta em seus textos uma gama de influências que envolvem nomes como, Mary Flannery O'Connor, William Faulkner, Ernest Hemingway, Herman Melville, Fiódor Dostoievsky e William Shakespeare (FRYE, 2009). Em A Estrada, sua prosa de uma beleza poética em estilo minimalista contrasta com os horrores narrados nessa obra distópica de modo a produzir sentimentos mistos de admiração, repulsa, esperança e tristeza em leitores e leitoras.
Na obra em foco, Cormac McCarthy narra a jornada em direção ao sul de um homem e seu filho, ambos anônimos, por um mundo pós-apocalíptico em uma sofrida tentativa de sobrevivência. Ao passo que ambos precisam se preocupar em encontrar as provisões mais básicas para sobreviver – como comida, água e abrigo – as personagens viajam por um mundo retratado como devastado e sombrio. O narrador intercala as descrições das ações das personagens com as descrições do mundo desolado:
Eles pararam e olharam para o grande golfo ao sul e, até onde podiam ver, os campos estavam queimados, os vultos escurecidos de rocha projetando-se dos baixios de cinza e ondas de cinza se erguendo e soprando para baixo através da desolação. (A ESTRADA, p. 16)
Além do próprio mundo hostil o qual eles precisam enfrentar, ainda há os horrores da possibilidade de captura por parte de outros sobreviventes que, na impossibilidade de cultivo de alimento, sucumbiram ao canibalismo, de modo que a jornada das personagens é repleta de tensão pela possibilidade de uma morte horrível, quer seja por inanição, doença, frio, ou, na pior das hipóteses, captura pelos canibais.
A obra, que rendeu ao autor o prêmio Pulitzer de ficção em 2007, possui uma linguagem marcada pelo lirismo, construída de modo a evocar grandes nomes da tradição literária do ocidente, conforme listei acima. Sua história contrasta o relacionamento de amor entre pai e filho com a violência de um mundo destruído e repleto de canibais, apresentando um cenário distópico pós-apocalíptico que desafia leitores e leitoras a refletirem sobre questões profundas tais como, moralidade, a existência de Deus, violência, malevolência, relação com o meio ambiente e propósito da vida humana (FRYE, 2009).

Canibalismo, distopia e crítica social
Canibalismo é um tabu na sociedade ocidental não sem motivo. Embora haja inúmeros relatos históricos de comunidades que praticaram o canibalismo ao redor do mundo, essa é, ainda hoje, uma imagem chocante para o/a cidadão/ã comum da maioria dos países no século XXI. Geralmente condenável como errado ou imoral, o canibalismo, porém é aceito, ou tolerado diante de certas circunstâncias. Em A History of Canibalism: From Ancient Cultures to Survival Stories and Modern Psychopaths [Uma História do Canibalismo: De Culturas Antigas a Histórias de Sobrevivência e Psicopatas Modernos] Nathan Constantine, fazendo um apanhado histórico panorâmico de várias culturas e relatos de canibalismo, afirma "O canibalismo por si só indubitavelmente existiu. Contanto que seres humanos fossem capazes de desumanizar o outro". (CONSTANTINE, 2012) Essa desumanização do outro, o transformar o outro em mera comida, pode acontecer por diversas razões. Seja por uma curiosidade mórbida, pela extrema necessidade de fome, por vingança, ou por crenças culturais e religiosas, a abstração de que o outro também é um ser humano digno dos mesmos direitos até transformá-lo em alimento é algo que faz parte da história humana. E também faz parte da história contada em A Estrada, de Cormac McCarthy.
Em A Estrada, a impossibilidade de cultivar comida, pelos danos que o meio ambiente sofreu em consequência de algum fenômeno não explicado no romance, faz com que muitas pessoas sucumbam ao canibalismo. McCarthy usa da imagem chocante do canibalismo para fazer uma distinção típica do gênero apocalíptico entre pessoas boas e pessoas más. Nesse romance, o maior traço de divisão entre o que significa ser bom ou mau é a prática do canibalismo, embora outras regras de conduta sejam afirmadas pelas personagens durante a narrativa como parte do código das pessoas boas, tais como não roubar, não mentir e manter as promessas (WIELEMBERG, 2010). O canibalismo na obra funciona para dar o efeito de estranhamento cognitivo – juntamente com a descrição do mundo devastado – recorrente nas obras distópicas. Considerando a função de crítica social da distopia, pode-se notar que, tanto o cenário devastado nesse romance, que choca leitores/as pela imagem da destruição natural, fazendo com que reflitam sobre questões ambientais (GIFFORD, 2013), como os atos cruéis e desumanos das personagens canibais, que fazem pensar sobre as relações desiguais de poder na sociedade capitalista (LAWRENCE, 2011), podem ser utilizados para abertura de um espaço de reflexão sobre as forma como nossa sociedade, em sua economia de consumismo capitalista, lida tanto com o ser humano como com o planeta.
Como no romance não há uma nova organização social unificada após o evento apocalíptico, mas pequenos grupos que se unem para sobreviver, ou indivíduos que caminham sozinhos, os sensos de anarquia e caos dominam a obra de início ao fim, uma característica recorrente ao gênero pós-apocalíptico (MANJIKIAN, 2012). Assim, fica a cargo da consciência das personagens o que se deve ou não fazer, e até que ponto se deve ir para sobreviver. Como a narrativa retrata a caminhada do Pai e do Filho, somos apresentados ao código moral que eles seguem em sua luta por sobrevivência. De acordo com o código deles, se uma pessoa escolhe "desumanizar" o outro e caçá-lo como se fosse um animal para o abate, então essa personagem é considerada como um "cara do mal"; caso se recuse a praticar o canibalismo e busque outras formas de sobrevivência, então ela é descrita como um "cara do bem", como fica claro no diálogo que eles travam após escaparem de um grupo de canibais:
A gente nunca comeria outras pessoas, comeria?
Não. É claro que não.
Mesmo se estivéssemos famintos?
Nós estamos famintos agora.
Você disse que não estávamos.
Eu disse que não estávamos morrendo. Não disse que não estávamos famintos.
Mas a gente não comeria.
Não. Não comeria.
Não importa o quê.
Não. Não importa o quê.
Porque nós somos os caras do bem.
Sim. (A ESTRADA, p. 107-108)
McCarthy coloca o canibalismo na obra como o grande divisor entre pessoas boas e más, fazendo com que leitoras e leitores logo se identifiquem com um dos grupos, geralmente o das pessoas boas. Assim, o romance acaba nos fazendo refletir sobre questões morais o tempo inteiro, o que configura uma das características do gênero apocalíptico (ROSEN, 2008). O que nós como leitores e leitoras faríamos para sobreviver em um mundo como esse? Tentaríamos manter um código de ética e não caçar e comer outros humanos, ou iríamos sucumbir a tal ato? Se nossa atitude é de sobrevivência a todo custo, é interessante, porém, pensar que, no processo de desumanização do outro, perde-se a própria humanidade. Os canibais, em A Estrada, não apenas desumanizam aqueles que caçam e comem; ao fazê-lo, eles desumanizam a si próprios. A forma como os canibais são apresentados por McCarthy demonstra que eles sucumbiram a um mal muito maior do que apenas a tentativa desesperada por matar a fome. A descrição é de homens que na verdade escravizam os mais fracos para manter qualquer tipo de poder que puderem. Assim, o Pai e o Filho se escondem de um grupo de canibais que é descrito como:
Um exército de tênis, caminhando pesadamente. Carregando pedaços de cano com um metro de comprimento envolvidos em couro. Correias na cintura. Alguns dos canos estavam enroscados com pedaços de corrente de cuja ponta pendia todo tipo de porrete. Passaram com um estrépito, marchando com um vaivém como o de bonecos de corda. Barbados, seu hálito fumegando através das máscaras. Shh, ele disse. Shh. A falange que se seguia carregava lanças ornadas com fitas, as lâminas compridas feitas com martelo usando molas de caminhão em alguma ferraria tosca do interior. O menino estava deitado com o rosto entre os braços, aterrorizado. Passavam a sessenta metros de distância, o chão tremendo de leve. Com passos pesados. Atrás deles vinham vagões arrastados por escravos usando arreios e lotados com artigos de guerra e depois deles as mulheres, talvez uma dúzia delas, algumas grávidas, e por fim uma companhia suplementar de catamitas com roupas insuficientes para o frio, usando coleiras de cachorro e presos uns aos outros. Todos passaram. Eles ficaram ouvindo. (A ESTRADA, p. 78, itálico meu)
Escravos, mulheres, mulheres grávidas, crianças usadas para fins sexuais (catamitas), todos/as vêm atrás do grupo de homens que lideram através da força e mantem uma ordem hegemônica terrível em um mundo que por si só já é bastante ruim.
É possível fazer uma leitura da forma como os canibais agem, escravizando e devorando os outros em comparação ao modo como o sistema capitalista consumista divide pessoas em castas de opressores e oprimidos. No romance, o Pai e o Filho, em busca por comida, chegam a um porão onde os canibais estavam mantendo pessoas presas para consumo. A cena é perturbadora:
Amontoadas junto à parede estavam pessoas nuas, homens e mulheres, todos tentando se esconder, ocultando o rosto com as mãos. No colchão estava deitado um homem cujas pernas estavam faltando até a altura dos quadris e os cotos escuros e queimados. O cheiro era hediondo. (A ESTRADA, p. 93-94)
Pode parecer uma comparação muito forte, mas em nosso momento histórico, no ano de 2015, sabe-se que há pessoas no mundo inteiro presas a trabalhos escravos e vivendo em condições de vida terríveis. Embora não estejam sendo presas para serem literalmente devoradas, estão presas a dívidas e à economia de modo que precisam dar toda sua força de trabalho, muitas vezes sem condições dignas e seguras, para conseguirem sobreviver ao mundo capitalista em que vivemos.
A metáfora entre capitalismo e canibalismo não é minha e nem exatamente nova. A banda punk inglesa Anthrax lançou em 1982 um EP intitulado Capitalism is Cannibalism [Capitalismo é canibalismo]; e a banda de grindcore Vex lançou em agosto de 2015 um álbum com esse mesmo título. Assim, o rock, musicalmente barulhento com suas guitarras distorcidas e bateria frenética, como uma versão musical da distopia literária, já vem utilizando a imagem do canibalismo para criticar as relações sociais da sociedade capitalista pelo menos desde a década de 1980 e continua a fazê-lo em 2015.
Além do rock, Michael C. Hill, consultor de administração de empresas e autor do livro Cannibal Capitalism: How Big Business and The Feds Are Ruining America [Canibalismo Capital: Como as Grandes Empresas e a Polícia Federal Estão Arruinando a América], utiliza a figura do canibalismo para criticar a forma como o governo dos Estados Unidos apoiou os grandes empresários durante a crise imobiliária de 2008 à custa dos pequenos empresários. Hill, que não é socialista e nem contra o sistema capitalista, mas contra a forma como ele está sendo praticado, escreve: "Em 2008, A coisa toda tinha falhado. 'Um mundo onde cachorro come cachorro' é apenas uma figura de linguagem, até que você é quem está sendo canibalizado" (HILL, 2012, p. vii).
Como uma obra distópica, A Estrada causa o estranhamento em leitores e leitoras pelas relações horríveis no mundo apresentado na narrativa. Diante das possibilidades reais de destruição do meio ambiente e diante da violência e da exploração humana que ainda existe em muitos contextos de produção capitalista no século XXI, a obra funciona como uma lente de aumento sobre a sociedade mostrando o que nela há de pior. Dessa forma, o romance consegue fazer refletir sobre as relações de poder na sociedade atual e sobre as formas pelas quais a crueldade e a estupidez humana podem levar ao apocalipse, aqui usado como termo de destruição da vida.
Como obra pós-apocalíptica, A Estrada subverte até mesmo a maioria dos romances pós-apocalípticos. Geralmente essas narrativas proveem aos leitores e leitoras imagens de lojas e shoppings abertos para o consumo ilimitado, espaços totalmente abertos onde as personagens podem dirigir carros esportivos, em um mundo onde, embora a maioria da população tenha morrido, há fartura de provisões. McCarthy, entretanto, entrega um mundo tão restrito e devastado que nega ao seu público leitor essa fantasia do consumo, e, assim, a obra pode ser vista como uma crítica ao estilo de vida consumista da sociedade ocidental (BECKER, 2010). Além disso, as personagens principais andam por todo o caminho na estrada com um carrinho de compras, um símbolo do consumismo da sociedade contemporânea. Todavia, no caso deles, o carrinho apenas contem seus suprimentos limitados, resignificando sua antiga função de símbolo de consumismo para apenas objeto de necessidade básica (WOODSON, 2008).
É uma narrativa pesada, porém narrada de forma bela, em um mundo destruído e marcado pela maldade. Contudo, não é uma obra anti-utópica. Além da crítica social já explícita contra o consumismo, a exploração capitalista do outro e do meio ambiente, A Estrada também oferece uma possibilidade utópica. Em meio a toda barbárie desse mundo distópico, os protagonistas conseguem viver um relacionamento de amor tão tocante que pode levar leitores e leitoras à esperança em uma forma melhor de ser. É sobre essa possibilidade utópica que meu próximo ponto é construído.

Uma micro-utopia na distopia
Em Understanding Cormac McCarthy, Steven Frye argumenta que: "A possibilidade de aniquilação cósmica deve ser vista junto com a intimidade tocante do pai e do filho, e deve-se considerar a possibilidade que 'bondade' e 'sorte' possam no final governar" (FRYE, 2009, p. 5). Bondade e sorte, dois elementos que são certamente desprezados pelos canibais, mas que aparecem nas figurações das personagens do Pai e do Filho durante todo o romance. Em relação à sorte, todo momento em que eles estão prestes a morrer de fome, por causa da atitude anti-canibalismo que adotaram, algo acontece que os salva. Eles encontram alguma comida, sejam maçãs ou grãos ressecados ou até mesmo um abrigo cheio de comidas enlatadas. Já em relação à bondade, o pai tenta educar o menino contando-lhe "Velhas histórias de coragem e justiça" (A ESTRADA, p. 38), mas ele mesmo tem muitas dificuldades em de fato ser generoso com os outros, priorizando sempre o bem estar do filho e desconfiando de todos. O menino, no entanto, é extremamente bom. Ele protesta com o pai por causa de sua recusa em ajudar as pessoas: "É. Mas nas histórias estamos sempre ajudando as pessoas e nós não ajudamos as pessoas" (A ESTRADA, p. 219), e chega a se compadecer até mesmo de um homem que lhes tinha roubado todos os suprimentos:
Colocou os sapatos deles e depois se levantou e voltou pela estrada mas não conseguiu ver o ladrão. Voltou e ficou parado diante do menino. Ele foi embora, disse. Vamos.
Ele não foi embora, o menino disse. Olhou para cima. Seu rosto riscado de fuligem. Não foi.
O que você quer fazer?
Só ajudá-lo Papai. Só ajudá-lo. (A ESTRADA, p. 211-212)
É evidente que o pai possui bondade em si, porém seu coração, já muito mais fechado por causa de todo sofrimento, faz com que tenha muito mais dificuldades para viver de acordo com as regras dos "caras do bem" de ajudar os outros. O menino, contudo, é totalmente generoso e aberto a ajudar as pessoas. Mesmo tendo presenciado toda a maldade dos canibais, tendo sido quase morto, tendo crescido em um mundo infernal passando todo tipo de privações e tendo perdido a mãe, que se suicida por causa da desesperança, tão cedo, ele continua com a capacidade de fazer conexões com outras pessoas (WIELENBERG, 2010), a tratá-las como pessoas de fato, e não como coisas.
O pai não trata as pessoas como coisas, pois se recusa a praticar o canibalismo, mas também não consegue ir muito além ao ponto de ajudá-las, pois seu maior interesse é cuidar da criança, algo que ele enxerga como uma missão divina: "Minha tarefa é tomar conta de você. Eu recebi essa tarefa de Deus. Vou matar qualquer um que toque em você. Está entendendo?" (A ESTRADA, p. 67). O menino, porém, consegue se preocupar até mesmo com os estranhos, como, por exemplo, com um homem que tinha sido atingido por um raio: "Não podemos ajudar ele? Papai?" (A ESTRADA, p. 45); com o velho que se identifica como Ely: "Talvez a gente pudesse dar alguma coisa para ele comer" (A ESTRADA, p. 135); e com o ladrão, conforme já citado acima. Assim, o menino representa uma bondade que por si só já pode ser lida como utópica dentro da sociedade canibal em A Estrada.
Além da bondade do menino, existe ainda o fato de que a própria bondade o encontra sempre que necessário. No início do romance, o filho diz ter visto um menininho. O pai, porém, não lhe dá ouvidos, pois está preocupado em fugir do local onde estavam. Já no final do romance, quando o pai está em seu leito de morte, há um diálogo entre as personagens sobre esse menininho:
Você se lembra daquele menininho, Papai?
Sim. Eu me lembro dele.
Você acha que ele está bem, aquele menininho?
Oh sim. Acho que ele está bem.
Você acha que ele estava perdido?
Não. Não acho que ele estivesse perdido.
Estou com medo de que ele estivesse perdido.
Acho que ele está bem.
Mas quem vai encontrar ele se ele estiver perdido? Quem vai encontrar o menininho?
A bondade vai encontrar o menininho. Sempre encontrou. Vai encontrar outra vez. (A ESTRADA, p. 229)
Esse diálogo é bastante significativo, ao se considerar que o pai já estava quase morrendo e que o filho sabia disso. Apesar da preocupação genuína para com os outros, o menininho o qual o filho se refere nesse diálogo, além de ser uma referência à criança que ele vira anteriormente, pode ser entendido como uma referência a si próprio. Diante da iminente morte do seu pai, quem cuidaria do menininho? Ou seja, quem cuidaria dele? O filho demonstra sua ansiedade em ficar sozinho no mundo, ao que o pai o conforta dizendo que a bondade iria encontrá-lo, como sempre havia feito. De fato, três dias após a morte de seu pai, o filho é encontrado e adotado por uma família não canibal ao final do romance. Uma família constituída por pai, mãe, um menino, uma menina e um cachorro, o que sugere uma possibilidade de sobrevivência do filho e de um novo começo, como um novo éden (KUNSA, 2009). Há, então, esperança ao final do romance.
Conforme teorizado por Moylan (2000), a diferença entre uma obra distópica e uma obra anti-utópica é o final. A obra distópica apresentaria um final aberto à possibilidade de mudança social, enquanto que uma obra anti-utópica não. Assim, Moylan argumenta que, nessas narrativas negativas, há aquelas que são distópicas, possuindo um pessimismo militante, enquanto outras são obras anti-utópicas, que possuem um pessimismo resignado. O pessimismo militante é de posição utópica, ou seja, apresenta uma visão pessimista da sociedade, mas abre espaço aberto à esperança em uma possível transformação social. Enquanto que o pessimismo resignado é de posição anti-utópica, ou seja, não consegue ver possibilidade de transformação social e assim acaba por criticar o próprio utopismo.
Portanto, A Estrada, com seu final aberto à esperança de que o filho consiga estabelecer laços com outros "caras do bem" naquela nova família que o adota pode ser lida como uma obra distópica de pessimismo militante, ou seja, trata-se de um romance que apresenta um pessimismo que trabalha em prol de uma posição política utópica, que busca criticar aspectos sociais injustos e apontar para a expressão do desejo por uma forma melhor de ser.
Essa expressão utópica, conforme a concepção de Ruth Levitas, se expressa na narrativa dentro do relacionamento de bondade, amor e sorte entre o pai e o filho, e se estende, esperançosamente, na relação do menino com a nova família que o adota. O pai e o menino são as personagens principais da história e eles destoam totalmente dos canibais que ora os perseguem e constantemente os assombram. O pai e o menino não diferem dos canibais apenas em não comerem pessoas, mas pelo forte cuidado que um tem pelo outro e pelo desejo que possuem em manter um código moral de bondade, ao se proclamarem como caras do bem. Esse amor e cuidado se expressa em vários diálogos e atitudes quando fica claro que de fato são "o mundo inteiro um do outro" (A ESTRADA, p. 9), como no trecho em que o menino pergunta ao pai o que ele faria se ele morresse:
Posso te perguntar uma coisa?
Pode. E claro que pode.
O que você faria se eu morresse?
Se você morresse eu ia querer morrer também.
Para poder ficar comigo?
É. Para poder ficar com você. (A ESTRADA, p. 13)
Enquanto os canibais claramente veem as relações humanas apenas como uma forma de exploração do outro para ganho pessoal, o relacionamento do pai e do filho é marcado por amor e cuidado mútuo, demonstrando assim uma beleza que destoa da feiura do mundo distópico. Portanto, argumento que esta é uma relação utópica, pois aponta para uma forma melhor de ser dentro da sociedade do romance, que desafia leitores e leitoras a uma forma melhor de ser em suas próprias sociedades.
Mesmo que seja apenas uma micro-utopia em um mundo inteiro distópico, essa relação tem o poder de gerar leituras de esperança. Se identificamos as relações canibais como as relações de interesse do mundo capitalista, podemos então entender a relação entre Pai e Filho como uma relação utópica, melhor, subversiva a esse sistema de coisificação do outro, portanto mais humanizada, sendo assim, subversiva ao sistema capitalista. Não é que o romance seja uma panfletagem socialista, e nem seriam o Pai e o Filho figuras que representariam adequadamente o socialismo, mas eles podem representar uma forma contrária às relações desumanizadoras e opressoras de nossa sociedade contemporânea.
Raffaela Baccolini (1995) argumenta que o texto distópico apresenta uma narrativa [da ordem hegemônica] e uma contra-narrativa [da resistência]. Se aproximarmos essa teoria à A Estrada, pode-se dizer que a narrativa da ordem hegemônica é a do canibalismo, enquanto que a narrativa da resistência é a dos "caras do bem". Nesse romance de McCarthy, portanto, a postura moral do Pai e do Filho, e dos outros "caras do bem" que existem, considerando a família que adota o menino ao final, constituem a contra-narrativa na estrutura do texto. Assim, essas personagens podem desafiar leitoras e leitores a também resistirem às estruturas e práticas corrompidas mantidas pela ordem hegemônica de suas sociedades. Consequentemente, na resistência ao canibalismo como forma de sobrevivência, essas personagens subvertem a ordem hegemônica, denunciam seu erro e apontam para outra forma de relacionamento social que expressa o desejo utópico por uma forma melhor de viver em sociedade, permitindo, assim, aos/às possíveis leitores/as da obra, a reflexão sobre as relações "canibais" do mundo capitalista e sobre como desejamos viver ou sobreviver nesse mundo.

Considerações finais: Esperança, mesmo no pior dos mundos, depois do fim do mundo
"A Estrada mantem a esperança que valores e ações civilizadas possam durar, a despeito da capacidade humana por selvageria" (SMITH, 2007, p. 49). A recusa do pai e do filho em praticar o canibalismo, a existência de outra família não canibal, o esforço do pai e do filho em se manterem como "caras do bem" e o relacionamento de amor e cuidado entre eles em meio a um mundo que aparenta não ter esperanças destoam do mundo distópico de A Estrada como uma possibilidade utópica. Essa possibilidade desafia leitores e leitoras a se identificarem com os "caras do bem" assim como são o pai e o menino, contrariando a lógica canibal do romance, ou seja, a lógica dos grupos hegemônicos que exploram o planeta e seus habitantes apenas para satisfazerem seus próprios interesses. Há, portanto, esperança no pior dos mundos. Há esperança depois do fim do mundo. Pode haver esperança aqui e agora.
Vimos que a utopia não é um lugar estático e perfeito, mas um processo crítico. Esse processo busca refletir sobre a sociedade e sobre a própria utopia em si, a fim de buscar sempre melhorar, sempre ensinar o próprio desejo a desejar melhor, sempre buscar um diálogo entre grupos hegemônicos e marginalizados, com o intuito de construir uma forma melhor de ser. Vimos também que a distopia não é o contrário da utopia. A distopia faz parte da tradição utópica, está sob o fenômeno mais abrangente do utopismo, e usa de estratégias cognitivas de estranhamento, e da tensão entre narrativa e contra-narrativa para questionar a sociedade de seus autores e suas autoras, seus leitores e suas leitoras de modo a fazer com que reflitam de forma crítica e utópica, ou seja, buscando, através do pessimismo, uma militância política que aponte para uma forma melhor de ser. E vimos que dentro desse olhar distópico-utópico, A Estrada, de Cormac McCarthy, tem bastante a nos fazer refletir sobre o que há de pior na sociedade capitalista contemporânea, que é a exploração do outro, metaforizada na figura do canibal. Também vimos que há personagens que rejeitam a lógica do canibalismo no romance, o que pode desafiar leitores e leitoras a resistirem à lógica do capitalismo, que é a lógica de enxergar todas as relações sociais como fins de produção e acúmulo de capital.
Não é necessariamente uma leitura que propague o socialismo, mas também não é uma que o descredencie. Certamente não argumento que a leitura de um romance, por mais bem escrito, popular e relevante que seja, vá modificar tantas injustiças sociais que existem em nosso modelo de sociedade no século XXI. Porém, assim como enxergo uma micro-utopia entre esse Pai e esse Filho no romance, em meio a um mundo canibal, acredito que a literatura utópica, seja no gênero Utopia ou Distopia, pode contribuir com esse espaço de oposição e levar as pessoas pensarem, considerando a função educadora de inspirar coisas boas da arte e da literatura em geral, e especialmente da literatura de tradição utópica.


Referências

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Orientadora
Acesso em 27 de setembro de 2015.
Essas duas obras estão traduzidas para o português respectivamente como 1984 e Admirável Mundo Novo.
Em 1984 o Big Brother representa o governo totalitário.
A partir de agora todas as citações ao romance serão feitas em sua versão traduzida para o português por Adriana Lisboa, conforme consta nas referências, acompanhadas dos trechos do romance original em notas.
No original "Utopianism". Todas as traduções do inglês para o português são minhas, excetuando-se os casos em que o/a tradutor/a estiver listado/a nas referências ao final. E, por questões ideológicas, todas as traduções dos textos feitas por mim são gendradas.
No original "social dreaming".
No original: "The word utopia or outopia simply means no or not place. Topos means place; "u" or "ou" means "no" or "not". Thomas More, inventor of the word, punned on eutopia or good place, and we have since added dystopia or bad place."
No original: "a non-existent society described in considerable detail and normally located in time and space that the author intended a contemporaneous reader to view as considerably better than the society in which that reader lived."
No original: "Thomas More did not just invent the word 'utopia', in a typically witty conflation of two Greek words (eutopos = 'the good place', outopos = 'no place'): he invented the thing. Part of that new thing was a new literary form or genre, the other, more important, part was a novel and far-reaching conception of the possibilities of human and social transformation."
No original: "Produced through the fantasizing power of the imagination, utopia opposes the affirmative culture maintained by dominant ideology. Utopia negates the contradictions in a social system by forging visions of what is not yet realized either in theory or practice. In generating such figures of hope, utopia contributes to the open space of opposition."
No original: "The expression of the desire for a better way of being."
Esse conto encontra-se traduzido para o português por Celso Braida com o título "A Máquina para" e foi publicado na revista eletrônica (n.t.) Revista Literária em Tradução, ano 2, março/2011.
No original: "from that early period, and throughout its varied and shifting history, this negative narrative machine has produced challenging cognitive maps of the historical situation by way of imaginary societies that are even worse than those that lie outside their authors' and readers' doors."
No original: "They stood and looked out over the great gulf to the south where the country as far as they could see was burned away, the blackened shapes of rock standing out of the shoals of ash and billows of ash rising up and blowing downcountry through the waste." (THE ROAD, p. 12).
Cf. http://www.pulitzer.org/works/2007-Fiction
No original: "Cannibalism for its own sake undoubtedly existed. As long as humans were capable of dehumanizing the other."
A obra consultada está em versão kindle e-book, não tendo, portanto, paginação.
No original: "We wouldnt ever eat anybody, would we? / No. Of course not. / Even if we were starving? / We're starving now. / You said we werent. / I said we werent dying. I didnt say we werent starving. / But we wouldnt. / No. We wouldnt /. No matter what. / No. No matter what /. Because we're the good guys. / Yes." (THE ROAD, p. 136)


No original: "An army in tennis shoes, tramping. Carrying three-foot lengths of pipe with leather wrappings. Lanyards at the wrist. Some of the pipes were threaded through with lengths of chain fitted at their ends with every manner of bludgeon. They clanked past, marching with a swaying gait like wind-up toys. Bearded, their breath smoking through theis masks. Shh, he said. Shh. The phalanx following carried spears of lances tasseled with ribbons, the long blades hammered out of trucksprings in some crude forge upcountry. The boy lay with his face in his arms, terrified. They passed two hundred feet away, the ground shuddering lightly. Tramping. Behind them came wagons drwn by slaves in harness and piled with goods of war and after that the women, perhaps a dozen in number, some of them pregnant, and lastly a supplementary consort of catamites illclothed against the cold and fitted in dogcollars and yoked each to each. All passed on. They lay listening." (THE ROAD, p. 96).
No original: "Huddled against the back wall were naked people, male and female, all trying to hide, shielding their faces with their hands. On the mattress lay a man with his legs gone to the hip and the stumps of them blackened and burnt. The smell was hideous." (THE ROAD, p. 116).
Números estimados de pessoas vivendo em condições de escravidão ao redor do mundo podem ser vistos em: http://www.freetheslaves.net/about-slavery/slavery-today/
N o original: "By 2008, the whole thing had failed. 'Dog eat dog world' is just a figure of speech, until you are the one being cannibalized."
No original: "In The Road the prospect of cosmic annihilation must be seen alongside the touching intimacy of the fater and the son, and one must consider the possibility that "goodness" and "Luck" may in the end preside."
No original: "Old stories of courage and justice" (THE ROAD, p. 42)
No original: "Yes. But in the stories we're always helping people and we don't help people" (THE ROAD, p. 287).
No original: "He put on their shoes and then stood and walked back up the road but he couldnt see the thief. He came back and stood over the boy. He's gone, he said. Come on. / He's not gone, the boy said. He looked up. His face streaked with soot. He's not. / What do you want to do? / Just help him, Papa. Just help him." (THE ROAD, p. 275)
No original: "My job is to take care of you. I was appointed to do that by God. I will kill anyone who touches you. Do you understand?" (THE ROAD, p. 80)
No original: "Can't we help him? Papa?" (THE ROAD, p. 51)
No original: "Maybe we could give him something to eat" (THE ROAD, p. 173)
No original: "Do you remember that little boy, Papa? / Yes. I remember him. / Do you think that he's all right that little boy? / Oh yes. I think he's all right. / Do you think he was lost? / No. I dont think he was lost. / I'm scared that he was lost. / I think he's all right. / But who will find him if he's lost? Who will find the little boy? / Goodness will find the little boy. It always has. It will again." (THE ROAD, p. 300).
No original: "each the other's world entire" (THE ROAD, p. 4).
No original: "Can I ask you something? / Yes. Of course you can. / What would you do if I died? / If you died I would want to die too. / So you could be with me? / Yes. So I could be with you. Okay." (THE ROAD, p. 9)
No original: "The Road maintains the hope that civilized values and actions can endure, despite humanity's capacity for savagery."

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