UMA MULHER EM FESTA: MÍSTICA E SIMBOLISMO EM TRÊS PUBLICAÇÕES POUCO CONHECIDAS DE CECÍLIA MEIRELES – Camila Marchioro

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Revista Mulheres e Literatura – vol.15 – 2º Semestre ­ 2015 (http://litcult.net/category/mulheresrev/revista­mulheres­e­ literatura­vol­15­2o­semestre­2015/)

UMA MULHER EM FESTA: MÍSTICA E SIMBOLISMO EM TRÊS PUBLICAÇÕES POUCO CONHECIDAS DE CECÍLIA MEIRELES – Camila Marchioro   Camila Marchioro Universidade Federal do Paraná/CAPES       RESUMO: O objetivo deste ensaio é discutir três contribuições de Cecília Meireles para a revista Festa ainda não analisadas pela crítica literária. Pretende­se mostrar como tais publicações consistem em um importante corpus de textos que compreendem uma fase (1927 a 1935) anterior à publicação de Viagem (1939), e revelam um amadurecimento da poetisa em relação à estética e temática de seus primeiros

poemas publicados. Com efeito, visa­se evidenciar que tais textos, usados na forma, demostram que Cecília Meireles investiu em um tratamento diferente do tema da mística, que passa a ser abordado de modo mais intenso futuramente. Sendo uma das poucas vozes femininas do grupo espiritualista, os textos publicados pela poetisa dão espaço para a representação da mulher num âmbito ainda não muito explorado pela literatura brasileira: a ascensão espiritual.   PALAVRAS­CHAVE: Cecília Meireles, revista Festa, mística, simbolismo.   ABSTRACT: This essay intends to discuss three contributions of Cecília Meireles to the Festa magazine which have not yet been reviewed by the critics. It is intended to show how these publications are inserted in an important text corpus which covers a previous poetic phase, from 1927 to 1935, before the publication of Viagem (1939). These texts unveil a process of maturity on the part of the poet in relation to the aesthetic and thematic of her first published works. Thus, it is intended to demonstrate that in the selected texts, each in a distinct form, Cecília Meireles handled differently the mystical theme, which happens to be addressed more intensely in the future. One of the few women’s voices among the spiritualist group, the texts published by the poet lay a space for the representation of women in a context not much exploited by Brazilian literature: the spiritual ascension.   KEYWORDS: Cecília Meireles, Festa magazine, mysticism, Symbolism.   Minicurrículo: Camila Marchioro possui bacharelado em Letras pela Universidade Federal do Paraná e é Mestre pela mesma instituição com a dissertação Cecília Meireles e os símbolos do Absoluto. Contribui para o projeto da revista Versalete como parecerista. Desde 2014 cursa o doutorado em Letras também pela UFPR e é bolsista de doutorado sanduíche pela CAPES, pelo que atualmente encontra­se na Universidade do Porto, Portugal, em pesquisa para sua tese: Caminhos do Oriente: a água e o tempo na poesia de Cecília Meireles e Camilo Pesssanha.

    Uma mulher em Festa: mística e simbolismo em três publicações pouco conhecidas de Cecília Meireles     Camila Marchioro   Universidade Federal do Paraná/CAPES     Introdução

  Cecília Meireles é, dentre as mulheres de nossa poesia, um dos nomes mais conhecidos Brasil afora. Prezando pelos ideais de não violência, a poetisa jamais vinculou­se a movimentos feministas, uma vez que julgava que, à época, estes pregassem a segregação sexual, o que contrariava seus princípios espiritualistas de comunhão e respeito universais. Tal posicionamento da poetisa faz com que tenhamos a notícia de que nos anos 20 do século passado Cecília Meireles não fosse a única voz feminina a manifestar­ se no meio artístico e literário brasileiro. Embora abafadas pelo estrondo do modernismo, não foi pouca a produção feminina e feminista daquele período:   Não que não tivéssemos escritoras naquele tempo. Havia – tanto poetas, dramaturgas, como ficcionistas –, mas por um motivo ou outro, não receberam convite.  O sucesso literário tem dessas coisas: é preciso acertar o timing, estar no lugar certo na hora certa; e,   principalmente,   olhar   na   mesma   direção.  Se relacionamos as escritoras mais produtivas daquela década,  verificamos  como  elas estavam  distantes  do  projeto  modernista  tal  como  ele  foi  elaborado,  e  o  quanto estavam  envolvidas  em  um  outro  projeto  –  não  necessariamente  estético – mas principalmente  ideológico,  visando  à  emancipação  da  mulher  (DUARTE, 2011, p. 45).   Por destoar tanto dos ideais feministas quanto dos ideais do grupo modernista, a autora foi pioneira em seu caminho poético e ainda hoje é difícil situá­la no panorama modernista da literatura do século XX. Acabou por entrar de fato para o cânone da literatura brasileira, o que infelizmente não se deu com outras profícuas escritoras da época. Cecília Meireles recebeu reconhecimento primeiramente em Portugal, e, pelo seu livro Viagem (1939), foi a primeira mulher a receber prêmio da Academia Brasileira de Letras. Aderiu, assim, ao grupo formador da revista Festa, mas, também por não concordar com certos aspectos ideológicos do grupo, acabou por desvincular­se em meados da década de trinta. Como ela mesma disse em seu poema “Beira Mar”: “porque isto é mal de família, / ser de areia, de água, de ilha…” a sua natureza “insular” a fez seguir sozinha pelo seu caminho. A sua poética tem como um dos traços mais fortes a aceitação da possibilidade de ser eterna diante de um mundo material e a tentativa de equilibrar­se ante a vida mesquinha dos homens da Terra e a vastidão do Mar Eterno. Desse modo, a autora apresentou­nos uma proposta mística em sua poesia, se entendermos por misticismo/mística como sendo a busca da comunhão com o Absoluto (divindade, verdade espiritual) através da união direta, intuição, instinto ou insight. Em grego mustikós significava mistérios, em especial relacionava­se aos “mistérios de Elêusis”. Foi o Pseudo Dionísio Areopagita quem modificou o significado do termo. A nova acepção foi fixada na Idade Média e consagrada pelos místicos cristãos posteriores. Com efeito, o sentido original, e que vigorou por longo tempo, do termo mística e de seus derivados diz respeito a uma forma superior de experiência, de natureza religiosa, ou religioso­filosófica, que se desenrola normalmente num plano transracional – não aquém, mas além da razão – mas, por outro lado, mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo. (VAZ, H. apud BRANDÃO, 2007, p. 153). Portanto mística e mistiscismo em Cecília Meireles podem ser entendidos como a busca ou a união com algo que está além das razões humanas, ou seja, o divino. A fim de facilitar a compreensão, chamaremos aqui este “divino” de Absoluto. Na busca por desvelar o mistério da vida, a autora deparou com um conhecimento compartilhado e desabrochado nas mais diversas culturas ao longo de séculos, notadamente com a ideia de que há uma verdade perene e eterna que a tudo subjaz, há algo que está em tudo, que tudo gera, mas não é gerado, algo a que pertencemos e não é pertencido, criador de si mesmo e do qual tudo emana. Foi no Oriente que Cecília teve contato com um conhecimento místico ainda vivo e ao qual ela mais se vinculou simbolicamente. Dada a sua vertente espiritualista, a poetisa encontrou no grupo Festa um lugar para divulgar sua poesia. Assim, para este ensaio foram selecionados três excertos de contribuições da poetisa na supracitada revista com o intuito de verificar, dado o teor da publicação, como é retratada a espiritualidade nesses excertos.

Estes escritos não foram ainda analisados pela crítica especializada e caíram no esquecimento dado o fato de não terem sido publicados posteriormente em livro. Os textos são de 1927 e 1928 e, na esteira de seus primeiros livros. Em 1927 a autora já havia publicado Espectros, Nunca mais… e Poema dos poemas e Baladas para El­Rei – livros que foram excluídos por ela mesma quando da organização de sua Obra poética (1958) e da Antologia poética (1963). Trazem um forte apelo místico, todavia com uma abordagem diversa: os temas colhidos por Cecília Meireles na filosofia indiana, por exemplo, estão presentes em Festa e são abordados com a mesma maturidade que só se consolidaria poeticamente, para o grande público, na publicação de Viagem, em 1939. O grupo de jovens escritores que originaram a revista Festa era formado em especial por católicos que “defendiam a renovação de nossas letras na base do equilíbrio e do pensamento filosófico” (DAMASCENO, 1967, p. 11). Cecília Meireles jamais se comprometeu doutrinariamente com algum grupo, todavia essa vinculação, segundo Darcy Damasceno, demonstrava a feição espiritual de sua arte, inspirada em elevado misticismo. Os postulados da corrente eram: velocidade da expressão (surpreender), totalidade (o artista permeando por todas as realidades a fim de recriá­las em sua arte), brasilidade (valorizar principalmente a realidade brasileira) e universalidade (compreender o Brasil como integrado na realidade universal). Representado principalmente por Tasso da Silveira e Andrade Muricy, os valores do grupo contrariavam a liberdade de ideias do movimento modernista paulistano. Diferenciava­se ainda pelo fato de os espiritualistas não se preocuparem em romper com formas literárias anteriores. Segundo Darcy Damasceno, a renovação do grupo Festa dava­se mais no plano ideológico e, no que diz respeito à métrica, julgavam válidos os instrumentos herdados, unidos ao verso livre decadentista, cujas qualidades rítmicas eram diversas daquelas propostas pelos modernistas de Klaxon. Assim, mesmo utilizando metros tradicionais, Cecília Meireles foi apontada como exemplo das novas possibilidades de que a corrente espiritualista se julgava dotada (DAMASCENO,1967, p. 13). O grupo espiritualista retomava a escola simbolista, congregando­se em torno de uma visão mística. A revista teve duas fases, a primeira em 1927­1928 e a segunda em 1935. A autora contribui para as duas, tanto com poemas e prosa quanto com desenhos e ilustrações. Entre 1930 e 1933 Cecília Meireles dirigiu, no Diário de Notícias, a página de educação, onde começou a publicar suas opiniões sobre a Escola Nova. Em meados da década escreveu para A Nação e a Gazeta, desvinculando­se, assim, com o fim da revista Festa, do grupo espiritualista. Uma vez que era a favor da Escola Nova, a autora passou a criticar a obrigatoriedade do ensino religioso, pois era adepta do ideal de uma educação laica, universal e plural. Aponta­se este como um dos motivos da sua desvinculação do grupo, já que os demais prezavam pela obrigatoriedade do ensino do catolicismo nas escolas. Cecília Meireles tinha uma compreensão diferente da universalidade. Enquanto os católicos brasileiros se apropriavam das ideias de universalidade a fim de justificar uma união nacional (nacionalista), a autora não promovia os limites nacionais. Pelo contrário, buscava uma unidade humana acima de qualquer nacionalidade, raça ou religião; provavelmente por isso não se ligou nem a grupos estéticos nem a grupos religiosos.   Uma mulher rumo ao Absoluto O primeiro trecho escolhido para análise dos aspectos místicos que já se esboçavam na sua poética naquela época é, do ponto de vista da forma, bastante peculiar. No corpo do texto há uma denominação como “poema”, mas sua forma é híbrida, o que nos leva a uma prosa poética. Há aí, portanto, uma demonstração da consciência da poetisa no que diz respeito à forma ou à concepção de “poema”. Todavia, a estrutura do “poema” é de conto e há, inclusive, um personagem principal: um menino poeta que não compreende o valor e a utilidade dos presentes que recebe. Há, portanto, um profundo questionamento sobre o próprio fazer poético. Dados outros escritos de Cecília Meireles, sabemos de sua visão humanista do poeta, por isso permito­me, neste conto, reconhecer o menino como símbolo para o próprio poeta e os presentes como símbolos do dom ou dádiva a serem usados pelo poeta para falar da “verdade”. Assim,

entramos naquilo que é a “mística”, ou o sagrado. O fazer do poeta é posto como similar ao ofício do profeta, tal qual encontramos em Petrarca e Camões, por exemplo. Por tal motivo, o “poema” abaixo retoma a história de Jesus e de Osíris:   O teu brinquedo novo tem a forma da Terra e é cortado de paralelos roxos, vermelhos, azuis… O teu brinquedo novo é o retrato do mundo, e as tuas mãozinhas, guardando­o, têm o egoísmo e o domínio da mão de um conquistador. (…)   (…) Este foi o terceiro brinquedo que o Paizinho te trouxe: um brinquedo com pernas, braços, cabeça… Um homenzinho de celuloide… E martirizaste­o todo… Abriste­lhe a cabeça, arrancaste­lhe os braços, rebentaste­lhe as pernas… Pobre homenzinho de celuloide, inteiramente sacrificado por ti! Brinquedo reduzido a nada para alegria do teu capricho efêmero! Pensar que um dia, quando cresceres, verás desses brinquedos símbolos por toda parte… E verás sacrifícios assim, totais e inúteis para a infância, para a vida, para a morte – três coisas transitórias – como esse teu primeiro capricho. Um dia, meu menino, quando puderes ler este poema, eu te contarei o mistério de Osíris, a crucificação de Jesus… (MEIRELES, 1928, p. 2).     Os presentes são muito sugestivos: um é representativo do mundo, o segundo é um urso e o terceiro representa o homem. O menino poeta, egoísta, perdido nos seus desejos, destruiu seus brinquedos a fim de realizar seus caprichos. Não compreendendo nem o mundo, nem o animal, nem o homem, distorceu seus brinquedos a seu bel prazer e acabou sacrificando­os, inutilizando­os. Nesse poema o místico se confunde com o esotérico, “quando puderes ler este poema”, um conhecimento não revelado e que demanda um amadurecimento do menino. Antes, para conhecer “o mistério de Osíris”, o menino terá de se livrar do seu egoísmo (“e as tuas mãozinhas, guardando­o, têm o egoísmo”) e da sua mão conquistadora, que acabou por destruir os brinquedos. Aparece, nesse poema, uma das primeiras menções que liga as mãos aos desejos, e tal simbolismo será muito profícuo em toda a sua posterior poesia. Desse modo, o menino não consegue lidar com os brinquedos que recebe. Expandindo para a interpretação do menino como poeta, é o poeta que não sabe o que fazer com o seu dom de escrita. Todavia, foquemos esta análise nas questões místicas que são mais evidentes. Osíris foi um dos deuses mais populares da mitologia egípcia. Relacionado à vida no Além, era o responsável por julgar os mortos. A ele estavam relacionados mistérios, como o próprio mistério da vida após a morte. Em De Iside et Osiride, um dos aspectos referidos por Plutarco é o caráter misterioso dos cultos a Osíris e Ísis. Osíris estava relacionado à ideia de morte e ressurreição, representados pelos ciclos naturais tanto da vida humana quanto dos elementos da natureza terrestre. Osíris, portanto, também era tido como um deus ligado à natureza, especialmente à agricultura. Nas suas representações, sua pele poderia ser verde ou negra, cores que os Egípcios associavam à fertilidade e ao renascimento. Na mitologia egípcia (recontada em livros como o de Plutarco, no texto das pirâmides e também no texto dos sarcófagos e no Livro dos Mortos), Osíris é esquartejado em quatorze pedaços por seu irmão Seth. Ísis, sua esposa e irmã, o traz novamente à vida, mumificando­o e o ressuscitando por meio da magia. A partir

daí Osíris passou a governar o mundo dos mortos. A ideia presente nos mistérios egípcios de que a semente enterrada no solo geraria uma vida nova, fez com que o homem antigo comparasse seu destino com o da semente. Sob esse aspecto, a morte do corpo seria o começo de uma nova existência. Essa reflexão explicaria a associação de Osíris com o grão por meio do mistério da sua morte e renascimento, fazendo com que os iniciados acreditassem que o seu conhecimento sobre tais mistérios garantia sua imortalidade. Assim, pode­se dizer que o mito de um deus sofredor que dá a vida vencendo a morte era considerado a principal característica dos cultos de mistério. Da mesma forma, Cristo ressuscitou dos mortos, portanto, no texto de Cecília Meireles, estão similarmente colocados como aqueles que venceram a morte, que estão além dos mistérios desta e da vida. A relação entre as duas figuras citadas e os três brinquedos recebidos pelo menino poeta, interpreta­se aqui, está justamente no fato da transcendência dos limites da própria vida, do sofrimento gerado por ela. Apegado aos modos da existência, o menino ainda não está preparado para compreender o que está por trás do destino ao qual ele está fadado: a morte (representada pelo homenzinho de celuloide), assim o homem de celuloide, à semelhança de Osíris, é esquartejado e martirizado pelo menino. Já o primeiro brinquedo, o retrato do mundo, representa o desejo de conquista do menino e de domínio sobre a matéria, a Terra. O menino cuida do brinquedo para que não se perca, a poetisa simboliza desse modo o apego pela vida corpórea. O segundo é um urso amarelo pelo qual o menino demonstra carinho e quer cuidá­lo tanto que não pode largá­lo. Esse brinquedo pode representar os próprios desejos do menino, anseios estes relacionados ao âmbito dos sentimentos, não pertencentes ao mesmo nível que o da matéria, mas ainda consistindo em impedimentos para a superação da morte. Ao jogar com cada brinquedo o menino se prende aos estados da existência que o impedem de conhecer o Absoluto. Cecília Meireles foi leitora ávida, como já dito, da filosofia hindu, em especial do Vedanta. Por esse motivo, tomemos como base o conteúdo do Bhagavad­gita (livro sagrado hindu, que reproduz, em forma épica, os princípios filosóficos e éticos dos Upanishads, que foram lidos por Cecília Meireles) para evidenciar a relação do poema com a filosofia. Neste último livro hindu, Krishna explica a Arjuna sobre a natureza do Absoluto e os modos da existência material. Assim o deus lhe afirma que todos os estados de existência – sejam eles bondade, paixão ou ignorância – manifestam­se por sua energia e que, num certo sentido, ele é ao mesmo tempo tudo e independente de tudo, não estando assim sob a influência dos modos da natureza material. Aquele que está iludido pelos três modos não pode conhecer o Absoluto, que está acima dos modos e é inesgotável (PRABHUPADA, 2011, v. 12, p. 379, v. 13, p. 381). Nesse sentido, os três modos estão representados no poema pelos três brinquedos, e o menino só estaria pronto para conhecer o Absoluto quando fosse capaz de “ler o poema”, ou seja, superar os modos da existência e assim poder compreender o mistério de Osíris e a crucificação de Cristo. A Compreensão desses dois significaria, no texto de Cecília Meireles, ser capaz de superar a própria morte. “Ler o poema” leva­nos, mais uma vez, para a metalinguagem em que o poema surge como locus da revelação da verdade, e assim como no renascimento, a poetisa coloca as humanae literae ao lado das sacrae literae. O sagrado, para Cecília Meireles, é entendido não apenas como sendo do âmbito divino, mas como algo que é, também, digno de respeito:   (Porque estes orientais têm pela Poesia um respeito análogo ao que se costuma ter pela religião. A Poesia não é um versejar fútil: é uma espécie de iluminação interior, uma espécie de santidade e profetismo. A palavra do Poeta não é uma habilidade superficial, um diletantismo, – e sim um exemplo, uma revelação, um ensinamento através de sons e ritmos… Que alegria, respirar num país onde ainda se pensa desse modo! Que esperança de vida! Que renovação de fé na humanidade!) (MEIRELES,1999, p. 266).    

Em número anterior da mesma revista a autora publicou um conto que relata a personagem despindo­se do eu e dos modos da natureza material, chegando à união total com o Absoluto, reconhecendo a sua própria natureza divina, imperecível e suprema. A personagem, de certa forma, ainda que por instantes, supera o medo da morte, identificando­se com o Absoluto. Interessante é notar que a voz feminina ceciliana não é rara na poesia, mas constituiu numa pérola inigualável quando o assunto é a experiência mística. Talvez o texto que se segue, ainda que suposta ficção, seja um dos poucos a retratar a experiência mística do ponto de vista de uma mulher. A poetisa abre espaço para retratar a ascensão e iluminação de uma mulher:   (…) Sinto­me tão vasta… Cheia de vozes, de fisionomias, de gestos. Acordo às vezes da minha monotonia: e encontro em mim, continuando a viver, as imagens que a vida em mim refletiu… São tantas… São todas! (…) Vejo­me, assisto­me… Sou tudo. Tenho tudo comigo. Caminho para lá da infância… Prossigo para lá da morte… Saio da minha … própria vida… Continuo no que vive em torno. (…) Abriu os braços na sombra. E o vestido aberto escorregou­lhe pelos ombros e caiu. Silenciosa: o silêncio do seu corpo: o grande silêncio antigo do seu espírito em que a vida pusera a ilusão das palavras e dos pensamentos falando…   Vinha da noite um presságio ardente de morte. E as aparências todas se desvaneciam; todos os contornos se diluíam; todas as coisas com existência recuavam… Ficava apenas a intenção do primitivo milagre: o sentido que as formas esconderam e esqueceram. Era a ruína, em torno. Era uma transfiguração. — Mas, então os seus olhos nunca tinham visto? E o que a sua boca dissera… Tudo o que ouvira a si mesma. E a sua vida… (Mas, onde, a vida?). E era o infinito silêncio de tudo a aguardá­la, a absorvê­la, — e um medo vago de não se encontrar mais naquele silêncio, e a certeza de ir sendo lentamente, fortemente impelida…(…) (MEIRELES, 1927, p. 4­5).   Pode­se entender este conto como um relato do exato momento da comunhão com o Absoluto. O ser humano sendo sem predicados, desvencilhando­se do “eu” e afastando­se da superfície das formas para penetrar no seu mais profundo. “Vejo­me, assisto­me… Sou tudo. Tenho tudo comigo” (idem), nesse ponto a personagem (voz que às vezes se mescla à do narrador) contempla­se na sua completude, começa a entender­se enquanto ser, sente­se ligado a algo maior que os contornos do “eu”. Há uma profunda identificação com o todo, o sujeito sente­se ligado às multidões, sente que elas moram nele. Depois, a personagem identifica­se com a própria morte e tudo que tem existência recua, para dar lugar ao Nada e ao princípio de toda a criação, ao formador de todas as formas. A personagem se despe não apenas do vestido, mas de si própria, das suas categorizações do mundo e do ego. “Vinha da noite um presságio ardente de morte” (idem), esta frase anuncia a morte do próprio “eu”. “E as aparências todas se desvaneciam; todos os contornos se diluíam; todas as coisas com existência recuavam… Ficava apenas a intenção do primitivo milagre: o sentido que as formas esconderam e esqueceram” (idem). Aqui as categorizações vão se desfazendo para restar apenas a forma pura, o puro silêncio, o puro ser.

A personagem começa a lembrar de si e assim desfaz­se de seu ego compreendendo que nunca havia deixado de ser, mas estava perdida em si mesma crendo nos seus olhos e nas suas palavras, que eram, na realidade, o desvio do verdadeiro sentido. Finalmente o silêncio. E a personagem depara­se com aquilo que é ela mesma, tattvamasi (“aquilo que és tu”), como fora dito no texto hindu Chandogya Upanishad. No final, a personagem contempla­se no espelho diante de um dilema que é o dilema que perpassa toda a poesia ceciliana: a prisão na condição humana em oposição a liberdade encontrada na sua natureza divina. O “eu” estava retornando, mas há algo de diferente, então, com um sorriso sobre­humano, a personagem aceita sua condição, que é ser humana (na prisão do “eu” e do corpo material), todavia com a recordação da sua essência divina: Absoluta. Outra contribuição interessante é o seguinte poema:   Eu fui a terra nua de uma idade sem data E as minhas árvores têm medidas que não param, Crescendo sempre pelas raízes e pelas frondes… Eu sou essa mata indômita, Mar magro e farfalhante E impenetrável… (MEIRELES, 1928, p. 3­4).     Este poema é relativamente diverso daqueles que a consagraram como a poetisa que foi. Pode­se dizer que está muito próximo de uma poesia como a de Walt Whitman, poeta que também foi identificado como influência para Cecília Meireles. O trecho reproduzido acima serve como exemplo desse diálogo. O eu­ lírico, nesse caso, está identificado com a natureza, sentindo­se parte do todo, está além do tempo e além das formas. Há, no poema, um eu­lírico que se dissolve em imagens, que é tudo, gigantesco e que a tudo penetra, mas ainda repousa impenetrável. Pode­se verificar, portanto, a profundidade mística dos textos de Cecília Meireles e a sua busca poética pelo Absoluto presente já nos escritos de Festa, mais de dez anos antes da publicação de Viagem.   Conclusão Embora ainda não revisados pela crítica e não constituindo em elemento crucial para a compreensão da poética ceciliana, os excertos aqui analisados mostram alguns aspectos importantes do período em que Cecília Meireles não publicou nenhum livro. Nota­se que o amadurecimento que está em Viagem estava sendo moldado já em 1927, mais de dez anos antes. Outro aspecto é o cariz místico dessas publicações, enquanto em seus primeiros livros a experiência mística estava porta por meio do desejo de união com um amado (casamento místico) deixava explícitas as influências literárias da autora (Verlaine, Augusto dos Anjos, RabindranathTagore) tornando seu estilo uma mescla dessas influências, em Festa já temos uma emancipação autoral na qual Cecília Meireles começa a trabalhar o tema que lhe é caro a seu próprio modo, modelando uma nova estética, nesse momento ainda muito experimental, mesclando prosa e verso, mas que parece de extrema relevância para a criação de uma poética que dominou o verso livre como poucos poetas o foram capazes de fazer. Assim, revela­se a riqueza desses e dos demais escritos cecilianos de Festa, revista que caiu no esquecimento dado o estrondo de Klaxon e dos modernistas paulistas. Mais um ponto que se revelou na análise dessas publicações foi a abordagem de algo que é de rara recorrência tanto nas humanae literae quanto nas sacrae literae: a possibilidade de uma mulher alcançar uma elevação espiritual. Tal tratamento do texto ceciliano aproxima a autora de poetisas com Santa Teresa d´Ávila, no Ocidente, e Mira Bai, no Oriente, mas, sobretudo, aproxima­a do pioneirismo das

mulheres do século XX, que abriram espaço tanto para uma nova atuação da mulher na sociedade, quanto para uma nova representação desta na literatura. Desse modo, Cecília Meireles ajudou a abriras portas para uma renovação da figuração da mulher na poesia do Ocidente, insistindo em simbolizá­la no âmbito onde talvez fosse mais difícil uma mulher fazer­se ouvir.   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, Bernardo. Só em direção ao só: considerações sobre a mística de Plotino. Horizonte (Belo Horizonte), v. 6, p. 15­160, 2007. DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967. DUARTE, Constância Lima. A literatura de autoria feminina no modernismo dos anos 30. In: ZOLIN, Lúcia O.; GOMES, Carlos M. (Orgs.). Deslocamentos da escritora brasileira.  Maringá: Eduem, 2011. p. 45­62. HUXLEY, Aldous. A filosofia perene. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 19717 LOUNDO, Dilip. Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética”. In: Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007, p. 129­178. MEIRELES, Cecília. Cecília Meireles: Poesia completa. Antonio Carlos Secchin, org. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. _____. Três brinquedos do menino poeta”. Festa, Ano I, 1928, nº 12, p. 2. _____. Aceitação. Festa, Ano I, 1927, nº 6, p. 4­5. _____. Sem título. Festa, Ano I, 1928, nº 8, p. 3­4. PRABHUPADA, A. C. BhaktivedantaSwami. Bhagavad­gita como ele é. São Paulo: The Bhaktivedanta Book Trust, 2011.   _________________________   O texto deste ensaio faz parte da dissertação Cecília Meireles e os Símbolos do Absoluto (2014), todavia foi revisado, adaptado e expandido para a publicação na revista.        

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Anna Klobucka, Universidade de Massachusetts em Darmouth  Sonia Salomao Neto, Universidade La Sapienza | Eliana Bueno Viana, UFRJ  Luiza Lobo ­ Pós­graduação da UFRJ  Marcia Wanderley ­ Pós­graduação da UFF  Patricia Maria dos Santos Santana ­ Doutora em Literatura Comparada

Conselho Editorial Revista Literatura e Cultura:  Luiza Lobo ­ Pós­graduação da UFRJ  Danglei de Castro Pereira ­ UEMS ­ Univesidade do Estado do Mato Grosso do Sul  Eliane Maria de Oliveira Giacon ­ UEMS  Maria Aparecida Rodrigues Fontes ­ Itália  Patricia Maria dos Santos Santana ­ Doutora em Literatura Comparada  Alexandre de Oliveira Fernandes ­ Instituto Federal da Bahia ­ Itabuna

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