Uma nota sobre a gentrificação no Vidigal

October 6, 2017 | Autor: Fernando Cotelo | Categoria: Gentrification, Gentrification,urban Development,slum Redevelopment Etc
Share Embed


Descrição do Produto

Uma nota sobre a ˜ no gentrificac¸ao Vidigal Fernando Cardoso Cotelo

ual a rela¸ c˜ ao entre iniciativas de desenvolvimento urbano e gentrifica¸ c˜ ao? Este texto elabora certas considera¸ c˜ oes te´ oricas sobre o problema e aplica an´ alise econˆ omica ao caso da Favela do Vidigal. 1

Q

movimento de grupos de renda mais alta para regi˜oes do entorno ou mesmo para dentro da favela se deu por causa da atratividade de melhorias em seguran¸ca p´ ublica e n˜ao por uma pol´ıtica estritamente urbana.

˜ sem pol´ıtica urbana Gentrificac¸ao

Investimento publico ´ e movimentos intraurbanos

Toda iniciativa de pol´ıtica urbana tem efeitos bastante complexos em termos de bem-estar. O Surgimento do paradigma das cidades globais na d´ecada de 1990 trouxe uma s´erie de iniciativas de desenvolvimento urbano em grandes centros. Grande parte das propostas de remodelagem urbana com melhoramentos em suas estruturas f´ısicas se deu em n´ ucleos centrais de cidades como Nova York, Buenos Aires e Barcelona. Nesses casos particulares, grupos de alta renda foram encorajados a se mudar de volta para a´reas centrais da cidade. No caso brasileiro tamb´em h´a movimentos desse tipo causados por pol´ıticas urbanas em determinadas regi˜oes, mas no caso geral das favelas “pacificadas” e no caso espec´ıfico da Favela do Vidigal n˜ao foi necess´ario que houvesse, de fato, investimento em equipamentos urbanos. Nesses, o 1

Aqui utilizarei o termo favela para designar o territ´ orio onde n˜ ao h´ a regula¸c˜ ao urbanistica por parte do Poder P´ ublico, em contraposi¸c˜ ao a asfalto, lugar onde h´ a regula¸c˜ ao. N˜ ao uso o termo comunidade porque esse termo n˜ ao tem conota¸co ˜es expressamente territoriais

Chama-se gentrifica¸c˜ ao, uma tradu¸c˜ao literal do inglˆes “gentrification”, o fenˆomeno que afeta uma regi˜ao ou bairro pela altera¸c˜ao das dinˆamicas da composi¸ca˜o do local, tais como a remodela¸ca˜o da infraestrutura, novos pontos comerciais ou constru¸ca˜o de novos edif´ıcios, valorizando a regi˜ao e afetando a popula¸c˜ao de baixa renda local. Tal valoriza¸c˜ao ´e seguida de um aumento de custos de bens e servi¸cos, dificultando a permanˆencia de antigos moradores de renda insuficiente para sua manuten¸ca˜o no local cuja realidade foi alterada. O investimento local por parte do poder p´ ublico inevitavelmente leva a um dilema dif´ıcil de resolver. Enquanto n˜ao se toma a iniciativa de implementar as novidades no planejamento, o sistema de pre¸cos est´a em equil´ıbrio espacial e as pessoas n˜ao tˆem incentivo para se deslocar, mesmo que todos estejam insatisfeitos com um eventual n´ıvel baixo de provis˜ao do servi¸co p´ ublico. Entretanto, quando se inicia uma pol´ıtica de au-

P´ agina 1 de 4

mento do n´ıvel de servi¸co p´ ublico — ou quantidade e qualidade de equipamentos urbanos locais — o pr´oprio desejo de as pessoas estarem mais pr´oximas do local onde se melhora o n´ıvel do servi¸co tende a tirar o sistema de pre¸cos do equil´ıbrio e a atrair moradores de outras partes, justamente em busca de um local onde o n´ıvel de servi¸co p´ ublico seja mais elevado. Os pre¸cos dos im´oveis se ajustam em resposta a um aumento do n´ıvel de servi¸co p´ ublico que ´e de natureza territorial. No caso espec´ıfico dos arredores da favela do Vidigal, os pre¸cos dos im´ oveis e alugu´eis aumentaram mais que a m´edia da cidade desde o in´ıcio do que se tem chamado de “processo de pacifica¸ca˜o”. Sup˜oe-se que o aumento da seguran¸ca no local atraiu moradores mais ricos para a regi˜ ao.

Sendo assim e, supondo que ningu´em ´e obrigado a vender um im´ ovel de sua propriedade, se o aumento m´edio do aluguel na regi˜ao for maior do que o aumento m´edio dos pre¸cos daqueles bens e servi¸cos cuja varia¸ca˜o seja produto de algum mecanismo econˆomico relacionado ` a interven¸c˜ ao territorial, ´e poss´ıvel que a grande maioria dos moradores tenha tido um aumento de riqueza representado pela capitaliza¸c˜ao desse novo fluxo de renda.

Figura 1: Imoveis na RMRJ — Propor¸ca ˜o de Propriet´ arios

˜ Poucos moradores no Vidigal nao ˜ proprietarios ´ sao de suas casas O efeito direto da mudan¸ca de situa¸c˜ao do local (a favela e o entorno composto por um loteamento aparentemente regular) ´e o aumento nos alugu´eis e pre¸cos dos im´oveis. De todos os im´oveis, n˜ao s´o aqueles que se encontram dentro da favela. H´ a tamb´em um efeito indireto sobre os pre¸cos de bens e servi¸cos, soma da intera¸c˜ao entre duas mudan¸cas de parˆametros ocasionadas pela introdu¸ca˜o de novidades: moradores mais ricos n˜ao precisam cortar tantos gastos caso os pre¸cos de alguns bens e servi¸cos aumentem — a demanda por bens e servi¸cos locais para esse grupo de renda torna-se mais inel´astica. Por outro lado, moradores mais ricos tendem a ter mais op¸c˜oes de deslocamento, o que, por sua vez, tende a diminuir o poder de monop´olio espacial dos comerciantes locais. A resultante dessas duas for¸cas contr´ arias n˜ao pode ser conhecida a priori e depende de alguma verifica¸c˜ ao emp´ırica. A boa not´ıcia ´e que, ao contr´ ario do que se possa imaginar e ouvir falar, a grande maioria dos moradores do Vidigal ´e propriet´ aria de seus im´oveis, como ´e o caso t´ıpico de fam´ılias de baixa renda no mundo inteiro (exceto a maioria dos pa´ıses da OCDE)2 . Uma estimativa feita por mim a partir dos Microdados da amostra do Censo Demogr´afico do IBGE para o ano 2000 atesta tal fato. A Figura 1 indica como a propor¸ca˜o de domic´ılios pr´ oprios nas favelas 3 ´e alta (acima de 82% de propriet´arios) e maior do que a de seu entorno (at´e 77% de propriet´arios).

Fonte: Elabora¸ca ˜o pr´ opria a partir dos Microdados da Amostra do Censo Demogr´ afico do IBGE para o ano de 2000

´ preciso lembrar que o aumento do pre¸co desses E bens e servi¸cos, de alguma forma, aumenta a renda agregada do local e retorna, ao menos em parte, aos moradores na forma de lucros e sal´arios (e, indiretamente, tamb´em de alugueis comerciais). Certamente a minoria de inquilinos ficou prejudicada. Como dissemos desde o in´ıcio, a discuss˜ ao sobre esquemas de desenvolvimento urbano envolve efeitos bastante complexos. Uma forma de evitar a sa´ıda dos que pagam aluguel (geralmente os mais pobres) seria fornecer uma bolsa aluguel que completasse a diferen¸ca de pre¸cos (financiada por um tributo que extra´ısse parte do pr´oprio aumento dos alugueis e pre¸cos de servi¸cos locais), mas acho pouco prov´avel que uma transferˆencia desse tipo seja jur´ıdica ou politicamente vi´avel.

˜ Quem tem medo de gentrificac¸ao?

Os inquilinos tˆem medo e, de fato, h´a pouco o que se possa fazer para que se mantenham em seus lugares Veja, por exemplo Angel (2000) 3 Os principais complexos de favelas est˜ ao indicados no mapa. sem que se disponham a pagar um aluguel mais alto, 2

P´ agina 2 de 4

a n˜ao ser que houvesse esquemas redistributivos, Figura 2: Distribui¸ca˜o da popula¸ca˜o segundo a distˆ ancia como argumentamos acima. do Centro (Pra¸ca Mau´ a) Uma vez que a grande maioria das fam´ılias do Vidigal possui seus im´ oveis, dever´ıamos nos perguntar qual seria a oferta monet´aria que convenceria um propriet´ario a vender seu im´ovel no Vidigal e procurar outro lugar para morar? Eu arrisco dizer que esta dever´a ser uma oferta alta. A Tabela 1 a soma das distˆancias entre o centro de cada setor censit´ario do IBGE e o Centro hist´orico da cidade, ponderadas pela popula¸ca˜o de cada setor. Esta medida4 ´e calculada para todos os setores e separadamente para os setores da cidade formal e aqueles situados em favelas. Fizemos esse procedimento para 12 Regi˜oes Metropolitanas brasileiras. O que se nota ´e que n˜ao h´a sequer uma regi˜ao metropolitana estudada onde a distˆancia m´edia nas favelas Fonte: Elabora¸c˜ao pr´opria a partir dos agregados de setores censit´ arios do Censo Demogr´ afico do IBGE para o ano de 2000 n˜ao seja, se n˜ao menor, pelo menos igual a` m´edia da cidade. renda m´edia do chefe de fam´ılia. O que fica evidente ´ e que a renda est´ a muito concentrada na regi˜ao cenTabela 1: Distˆ ancia M´edia ao CBD (km) tral e tamb´ e m que a contribui¸c˜ao dos setores em regi˜ ao todos os setores setores em favelas no total da renda ´e muito baixo. Esse ´e o metropolitana setores formais favelas padr˜ao t´ıpico tamb´em de cidades grandes na Am´erica S˜ ao Paulo 17,9 17,9 17,8 Latina. Rio de Janeiro 22,5 23,2 17,0 Belo Horizonte Porto Alegre Bras´ılia Curitiba Salvador Recife Fortaleza Bel´em Goiˆ ania Baixada Santista

13,9 20,1 30,5 11,3 12,5 12,4 13,0 9,8 10,0 14,4

14,3 20,5 30,5 11,4 12,5 12,5 13,7 10,1 10,0 15,1

9,9 14,6 23,6 10,0 12,1 10,2 8,4 9,2 6,0 9,7

Figura 3: Distribui¸ca ˜o da renda acumulada do chefe de fam´ılia segundo a distˆ ancia do Centro (Pra¸ca Mau´ a)

Para a Regi˜ao Metropolitana do Rio de Janeiro, a Figura 2 ajuda a entender melhor esse ´ındice. No eixo horizontal est´a marcada a distˆancia at´e o Centro e no eixo vertical est´a marcada a soma da popula¸ca˜o que se encontra a determinada distˆ ancia do Centro (Pra¸ca Mau´a). As barras azuis representam todos os setores e as vermelhas os setores situados em favelas. Como se pode perceber, a massa de pessoas que moram em favelas na cidade situa-se, na m´edia, mais Fonte: Elabora¸c˜ ao pr´ opria a partir dos agregados de setores pr´oxima do Centro do que a popula¸c˜ao da cidade censit´ arios do Censo Demogr´ afico do IBGE para o ano de 2000 como um todo (no caso do Rio de Janeiro essa diferen¸ca chega a 6,2km). Esses dados nos mostram como o estabelecimento J´a a Figura 3 mostra um gr´afico semelhante, de moradias em favelas faz parte de uma estrat´egia por´em, dessa vez, representando o acumulado da de sobrevivˆencia dos mais pobres para morar mais 4 oximo do local de trabalho, a despeito de todos os Para uma descri¸ca ˜o melhor dessa medida, leia nosso artigo pr´ Favela e Periferia como Espa¸ cos de Pobreza. problemas t´ıpicos das favelas.

P´ agina 3 de 4

Assim, ´e improv´avel que moradias em favelas como o Vidigal, localizadas pr´ oximo a postos de trabalho (para n˜ao falar da bela vista para o mar), sejam vendidas por pre¸cos que n˜ ao compensem essas qualidades. Se depender apenas de incentivos econˆ omicos, a gentrifica¸c˜ ao total ainda pode levar o tempo de algumas gera¸c˜oes.  Documento editado em LATEX para enfraquecer monop´ olios!

ˆ Referencias Shlomo Angel. Housing Policy Matters: A Global Analysis. Oxford University Press, Oxford ; New York, November 2000. ISBN 9780195137156.

P´ agina 4 de 4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.