Uma partida de xadrez íntima

Share Embed


Descrição do Produto

Uma partida de xadrez íntima Bernardo Marinho da Mata Tópico: Como é que a relação entre a China e a Rússia determina a cooperação instituída na Organização de Cooperação de Xangai? “Toda guerra é baseada em fingimento. Quando pronto para o ataque, finja incapacidade. Quando em movimento, finja inactividade. Se o seu oponente é temperamental, irrite-o; se ele é arrogante, encoraje o seu ego.” 1 Compreenda-se esta citação à luz das linhas mestras que conduzirão este ensaio. As relações sino-russas pautam-se por uma peculiar oscilação entre períodos de estreita colaboração e outros de assumida hostilidade. Um percurso conjunto improvável mas necessário, encontrando no continente asiático o ponto de convergência de esforços que sustenta uma estreita colaboração entre estas duas potências num pano de fundo de interesses divergentes, senão mesmo antagónicos, o que se reflecte inequivocamente na Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Desta forma, a tese aqui proposta alicerçar-se-á em três partes que são: 1) enquadramento da relação sino-russa desde 1991; 2) a definição da OCX e o comportamento russo e chinês no seu âmago; 3) Reflexão crítica e prospectiva sobre o estado do elo entre os dois visados e o seu impacto na aliança multilateral em que se integram e lideram, em resposta ao proposto tópico. 1. Enquadramento das relações sino-russas desde 1991: Justifica-se o marco temporal de 1991 com a assinatura de um tratado com incidência na questão da ilha de Damanski, situada no rio Ussuri, fronteira entre os dois estados, ainda sob a administração soviética de Gorbatchov. Questão, essa considerada por Haas2 como aquela que tinha até então dificultado a normalização das relações deterioradas desde a década de 60 do século XX após Mao assumir dissidência para com os intuitos reformistas de Khrushchov, espelhando-se no confronto armado pelo controlo da supra-mencionada ilha no ano de 1969. Com a transferência de soberania 1 Sun Tzu, “A arte da Guerra”, tradução de Ana Costa in http://www.citador.pt/cliv.php? op=7&author=20033&firstrec=0 2 Marcel de Haas, “Russian-Chinese Security Relations: Moscow’s threat from the East?”, p. 7

1

desse mesmo território que incluía outros ilhéus para a China por ocasião do tratado enunciado, uma estreita e profícua cooperação era possível entre as duas partes com base no fornecimento de energia e de armamento pela Rússia ao crescente potentado chinês, desenvolvendo-se uma necessária interdependência económica. Isto, porque saídos da implosão da União Soviética no mesmo ano de 1991, tanto a Rússia como a China viam-se ameaçados com a força da hipótese de os Estados Unidos da América se afirmar como a potência unipolar no sistema internacional pós-Guerra Fria, algo que contestavam. Na década de 90, mesmo coincidindo com um período de relativo marasmo socioeconómico russo, a Rússia assumia-se como o pivot dessa parceria por força da sua renovada participação no sistema internacional e reaproximação com o Ocidente, o que não acontecia ainda com a China comunista, e da posição vantajosa que ocupava enquanto país fornecedor nessa relação comercial. Todavia, se a Rússia beneficiara da China como principal e leal cliente de matérias-primas energéticas e conseguira reerguer-se do caos económico em que mergulhara, a China beneficiara dos preços particularmente favoráveis em que se praticavam as transacções, aplicando-o no seu súbito desenvolvimento industrial que depressa a fez competir economicamente com a primeira. Verificou-se com isto, pois, uma das premissas fulcrais da Teoria Realista das Relações Internacionais, lavrada por Morgenthau, em que o progresso económico assente no desenvolvimento industrial conduz a um robustecimento militar, quando a China começa a reduzir gradualmente a importação de armamento russo e afirma-se no mercado global. Conquanto esta nova situação colocasse um dos desafios geopolíticos que a Rússia mais temia desde pelo menos os finais do século XIX que era a emergência de uma potência que desafiasse o seu status-quo de preponderância na região eurasiática e da Ásia Oriental e Central3, a China foi tida como “um parceiro estratégico tradicional e confiável, cujas relações amistosas formavam um importante pilar da política externa Russa”4. Compreende-se o sentido do primeiro passo dado pela Rússia no sentido de integrar a China numa aliança multilateral com bases no princípio da segurança colectiva, isto é, contê-la como parceiro e não travá-la como inimigo. Fundam-se, pois, 3 O que explica, aliás, a intervenção soviética na manutenção do estado da Mongólia, enquanto “zona tampão”, desde a declaração da sua independência em 1921, perante oposição da China Maoísta que a reconhecia à data como parte integrante por direito do seu território histórico, consagrado na dimensão original do Império Chinês. 4 “China was considered a traditional, trustworthy and strategic partner, whose friendly relations formed an important track of Russia’s foreign policy (Kremlin 2007a/b)” in Haas, 2013 , p. 9.

2

os alicerces de uma cooperação outrossim militar com o primeiro exercício naval conjunto em 1999, tradição que serviria de sustento às acções de igual natureza levadas a cabo no seio da OCX. 2. Definição da OCX e o comportamento chinês e russo no seu âmago: Estabelecida com o escopo primeiro de fundar uma plataforma permanente de diálogo multilateral para definição de fronteiras entre antigas repúblicas soviéticas da Eurásia e a China, o grupo dos “Cinco de Xangai” formou-se com o patrocínio da Rússia de Boris Yeltsin em sintonia à China de Jiang Zemin a que se juntaram o Quirguistão, Cazaquistão e Tajiquistão em 26 de Abril de 1996. Assumidos os benefícios provindos desses esforços de aproximação em torno das questões fronteiriças, os membros dessa plataforma avançaram em 1998 no sentido de expandir essa mesma cooperação às áreas da segurança e defesa que se centrasse no combate coordenado aos “três males da OCX”5 fenómenos do separatismo nacionalista, terrorismo fundamentalista e tráfico de armas e drogas, com particular interesse chinês e russo. É, contudo, no ano de 2001, como indica Salum 6, com o convite feito ao Uzbequistão para integrar o grupo dos “Cinco de Xangai” que se procede à assinatura da Declaração de Organização para a Cooperação de Xangai, em que constam os diferentes mecanismos de cooperação política, económica, tecnológica, energética, cultural e ambiental, do qual se destaca o “RATS”7. Apesar dos vários exercícios militares realizados a nível bilateral e multilateral entre os estados-membros da OCX que mobilizaram um conjunto considerável de efectivos em função do redimensionamento gradual dos seus objectivos iniciais e da boa impressão causada nos países da região, como a Mongólia, Irão, Índia e Afeganistão que se tornariam observadores entre 2004 e 2005, Salum observa que, paralelamente à prossecução bem sucedida do afastamento dos Estados Unidos da América como player influente na região da Ásia Central, o equilíbrio de poder em consequência desse distanciamento conseguido do actor que incarna ad momentum a unipolaridade do sistema internacional encontra-se na competição sino-russa pela hegemonia regional 5 “«Three evils facing the SCO» – separatism, extremism and terrorism” Plater-Zyberk apud Salum, 2013, p. 218; 6 Salum, 2013, p 219. 7 “Regional Anti-Terrorist Structure”, futuramente designado de “RCTS – Regional Counter-Terrorism Structure.

3

que se traduz na liderança tanto da aliança multilateral de Xangai como das relações bilaterais com cada um dos seus membros, essencialmente ao nível económico. Ao passo que a Rússia encontra na OCX uma forma de conter a China enquanto rival geopolítico claro na Eurásia, a China visa nesta organização uma maior facilidade de chegar aos mercados tradicionalmente sob o domínio russo, como, por exemplo, o gás natural, em que o estado chinês procura estabelecer parcerias bilaterais com paísesmembros eurasiáticos (e.g. Cazaquistão) no sentido de reduzir a sua dependência energética face à Rússia8, mediante a criação de uma área de comércio livre, e, por seu turno, esta última visa robustecer a posição político-diplomática e militar dos suprareferidos países-membros no seio da OCX a fim de diminuir a relevância da China na mesma. 3. Reflexão crítica e prospectiva: Não será, por isso, de todo descabido afirmar que a OCX se transformou num tabuleiro de xadrez, onde são movidos os diferentes interesses individuais dos seus dois membros precípuos, Rússia e China, como que peças em jogadas cautelosas e incrivelmente articuladas, a que os restantes membros assistem sem capacidade de intervenção ou sequer contraposição. Além de que os próprios observadores, como o Irão e a Índia, que potencialmente podiam cumprir tal papel, são reduzidos a uma posição de impotência, ao não ser sequer considerada a hipótese de ingressarem nesta organização por, como assume Karl Salum, os principais actores preferirem estados com menor poder como o Turquemenistão ou o Vietname. Mesmo esta preferência, contudo, não foge à lógica competitiva que move a Rússia e a China no seio da OCX, em que ambos procuram os actores regionais historicamente capazes de contra-balançarem o poder um do outro. Apesar disto, a competição sino-russa não tem impedido que a OCX se desenvolva paulatinamente como instituição regional de referência, atraindo cada vez mais o interesse dos países vizinhos e, mormente, forçando outras organizações do género, como a NATO, a estabelecerem contactos de cooperação, através da sua Parceria para a Paz com a Rússia, especialmente, no que concerne na luta ao terrorismo. Conclui-se primeiramente, portanto, que a competição interna entre a Rússia e a China não se revela um factor negativo, muito pelo contrário, na valorização desta 8 Avançou a Revista “The Diplomat” que a China e o Cazaquistão assinaram vários acordos comerciais no valor total de 23 mil milhões de dólares americanos. Notícia de 28 de Março de 2015.

4

organização, aliás, contribuindo para a sua expansão qualitativa, isto é, através desenvolvimento de protocolos em cada vez mais áreas, sobretudo de natureza económica, em virtude dessa corrida pela meta da influência a que assistimos entre a Rússia, que não quer abdicar do seu lugar enquanto pivot fundador, e a China, que se assumiu na última década como a potência de jure quer a nível económico quer a nível político e militar. Logo, intensifica-se a cooperação, mesmo que por meras questões tácticas. Avistam-se na actualidade, todavia, grandes desafios tanto para a Rússia a braços com pesadas sanções económicas com reflexos caóticos na sua economia, consequência da sua intervenção informal no conflito interno ucraniano e da anexação da Crimeia em 2014, como para a China que, apesar de ter ultrapassado os Estados Unidos da América como principal potência económica do mundo e de verificar-se uma nítida expansão seja do seu hard power seja do seu soft power, se depara com uma situação de acumulação de dívida excessiva e uma crise de identificação de uma classe média emergente com o regime político que é mantido via repressiva, o que faz com que muitos analistas apontem para uma gradual diminuição da sua importância no sistema internacional a médio e longo prazo. Contudo, como se descrevera no início do presente ensaio, as relações sino-russas são feitas de oscilações, tendendo para uma estreita cooperação em período de crise partilhada em defesa da manutenção de influência na região da Ásia Central. Porventura, o futuro faça cumprir esta tendência 9, reaproximando os interesses estratégicos destas duas potências, por onde passará indubitavelmente o próprio futuro da Organização para a Cooperação de Xangai, visto que sem estas inexiste internacionalmente e esvai-se do seu sentido de perseguir um sistema internacional multipolar. Afinal de contas, uma partida de xadrez mantém-se imprevisível até ao final…

Bibliografia:  HAAS, Marcel de, Russian-Chinese Security Relations: Moscow’s threat from the East?(pdf), Report nº 3, Haia, Clingendael - Netherland Institute of International Relations, Março de 2013, pp. 7-36

9 Como se verifica, por exemplo, nas negociações para edificação de um novo Banco Internacional de Investimentos, chamado de “Banco Asiático de Investimento”, proposta chinesa que conseguiu angariar cerca de quarenta e dois países para a formação de tal consórcio, em que se incluirá a Rússia. Notícia avançada pelo Jornal de Notícias, em 30 de Março de 2015.

5

 SALUM, Karl, Russian-Chinese Relations and their leadership potential in the Shanghai Cooperation Organization (pdf), ENDC Proceedings (Volume 17), Riga, Estonian National Defense College, 2013, pp 213-229.  “Banco Internacional proposto pela China junta já 42 países”, Afonso

Camões (Dir.) consultado às 11:38h do dia 30 de Março de 2015 em http://www.jn.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx? content_id=4483569;  “China, Kazakhstan Sign $23 Billion in Deals “, Shannon Tiezzi,

consultado

às

11:15h

do

dia

30

de

Março

de

2015

em

http://thediplomat.com/2015/03/china-kazakhstan-sign-23-billion-indeals/?utm_campaign=trueAnthem: +Trending+Content&utm_content=5518465504d30108c3000004&utm_ medium=trueAnthem&utm_source=facebook

6

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.