Uma pequena viagem pela misoginia de Almada com Nietzsche na bagagem

July 7, 2017 | Autor: Manuela Moreira | Categoria: Comparative Literature, Friedrich Nietzsche, José de Almada Negreiros, Misoginia
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Uma pequena viagem pela misoginia de Almada com Nietzsche na bagagem

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Manuela Moreira 15 de junho de 2015

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O que há de comum entre estes dois homens? Almada Negreiros é um artista poliédrico que se impõe nas artes plásticas e igualmente na literatura. Nietzsche é fundamentalmente conhecido pela obra filosófica e não tanto pela poesia que escreveu, tão-pouco pelo estilo literário que caracteriza a sua escrita, nomeadamente, Assim Falava Zaratustra. Podemos assegurar que Almada leu Nietzsche e que a leitura do filósofo não lhe terá sido indiferente, como se pode comprovar com a seguinte transcrição de A Engomadeira: “Recentemente, tendo-me encontrado em Barcelona com o doutor alemão que tinha umas barbas encaracoladas em iodo cortámos as relações por causa de uma acirrada discussão sobre Nietzsche (…) ” (Negreiros, 1983:81).Tratando-se de ficção, atrevemo-nos a duvidar da veracidade da altercação entre o narrador e o conterrâneo do autor de A Gaia Ciência, a despeito da verosimilhança de tal ocorrência. No entanto, a transcrição supracitada revela que a leitura de Nietzsche não terá sido indiferente a Almada, pois, de outro modo, o filólogo de Basileia não serviria de pomo de discórdia entre personagens da novela. Também em “A Cena do Ódio”, o sujeito poético proclama: “Sou Génio de Zaratustra em Taças de Maré-Alta!” (Negreiros, 2005: 23). Destarte, poderemos concluir que Almada terá lido, pelo menos, Assim Falava Zaratustra. Desconhecemos, porém, se o mesmo terá sido influenciado por Nietzsche. Não obstante, ao ler Nietzsche e Almada, verificamos que os dois autores partilham de um traço comum, isto é, do desprezo pela mulher, considerando-a um ser subalterno, cujo papel se deve remeter exclusivamente à função de mãe e esposa assexuada, identificando-a com a figura da mulher-anjo, a quem se contrapõe a concubina, objeto sexual ao serviço da gratificação do desejo masculino, ou seja, a mulher-demónio.1 A mulher, anjo ou demónio, quer-se desprovida de subjetividade, já que, de outro modo, transgredirá a normatividade imposta pelo corpo social. Esta visão do feminino enquadra-se no conceito de misoginia, ou seja, etimologicamente no ódio pelas mulheres. Acresce que, ao conceito de misoginia, se junta a ginofobia, ou seja, o medo da mulher. Em Misogyny: The Male Malady, David D. Gilmore expande o conceito de horror mulieris, para dizer que a misoginia é um preconceito sexual, partilhado entre homens, que se manifesta na forma como os sexos se relacionam entre si (Gilmore, 2001: 8-9). Donde conclui que a denigração da mulher não tem unicamente

Obedecendo à tradução do vocábulo alemão Konkubin, que significa Liebhaberin, isto é, ‘amante’, empregamos o signo ‘concubina’, nesta aceção. 1

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por objeto o domínio do masculino sobre o feminino, mas um conflito psíquico ambivalente, experimentado pelo homem, ou seja, uma antinomia entre o ódio e o amor, um sensação de tumulto interior que conduz ao aniquilamento da sua fonte – a mulher. (ibidem, 2001:9). Andrea Dworkin defende, porém, um conceito mais alargado de misoginia, dizendo que abrange homens e mulheres, bem como os papéis desempenhados por ambos e a violência que deles advém (Dworkin, 1974: 26). A fim de analisar criticamente a forma como se revela a misoginia em Almada, elegeu-se um corpus constituído pelas obras: “Ultimatum Futurista: Às gerações portuguesas do século XX” (1917), “A Cena do Ódio” (1915)2 e Deseja-se mulher (1928), estando cientes de que uma apreciação transgenérica que, no caso, abrange o manifesto, o poesia3 e o teatro, metaforiza, de certo modo, o que Gilmore designa por “A ubiquidade da misoginia”, referindo-se à existência da misoginia ao longo da história da humanidade e em qualquer geografia (Gilmore, 2001: 2). Partindo deste corpus, far-se-á a análise crítica de trechos destas obras, justapondo-as às citações dos escritos filosóficos de Nietzsche. Serão, por conseguinte, examinadas as semelhanças e diferenças, tendo por objeto uma leitura comparatista no que respeita ao conceito de misoginia em Almada e Nietzsche. Comecemos por “Ultimatum Futurista: Às gerações portuguesas do século XX”, texto proferido em abril de 1917, por Almada Negreiros, no então Teatro República, em Lisboa, integrado na "I Conferência Futurista", cujo intento principal consistia em apresentar as bases do Movimento Futurista em Portugal.4 Neste manifesto, Almada proclama: “É preciso educar a mulher portuguesa na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens”. Assim, vemos que mulher equivale a fêmea, logo animal, logo órgão reprodutor de machos. Por outro lado, a mulher tem de ser educada pelo homem, para “fazer homens”, ou seja, tem por objeto a educação de filhos que se transformem no epítome da virilidade, bem como no prosseguimento da patrilinearidade. Se a frase transcrita do “Ultimatum…” é indubitavelmente significativa, no que respeita ao retrato misógino que, à época, se pretendia da mulher, não deixa também de ser exemplificativa no que se refere à conotação ginófoba. Na verdade, traduz o medo do criador quanto à incapacidade da mulher portuguesa para formar varões, daí que urja educá-la, segundo a Este poema será publicado em 1923, como separata da Contemporânea 7, e “integralmente na terceira série das Líricas Portuguesas, organizada por Jorge de Sena em 1958” (Negreiros, 2005: 263). 3 Celina Silva diz que “A Cena do Ódio”: “evidencia a marca do múltiplo e de miscigenação em termos de género e de corrente literária”, ao mesmo tempo que declara que a obra se assume “abertamente como performance” (1994: 146). 4 Informação recolhida em “Judith Teixeira e a poética da luxúria” (Giavara, 2013: 187). 2

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normatividade masculina, para que os homens se transformem no paradigma da masculinidade. Em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche refere: “Eis como eu quero o homem e a mulher: ele apto para a guerra, ela apta para a maternidade (…) ”, (Nietzsche, 1998: 235), afirmação perentória de que a função da mulher é a da procriação e formação de homens viris, já que só estes estarão preparados para o conflito bélico. Ao escolhermos estes excertos de “Ultimatum…” e de Assim Falava Zaratustra, podemos constatar a divisão de papéis, característica da sociedade do final de oitocentos e de inícios de novecentos e, coincidentemente, da emergência do primeiro feminismo 5, bem como da condenação da mulher que ousasse transgredir o padrão normativo a que estava votada. Aliás, em Para Além do Bem e do Mal, Nietzsche advoga a manutenção do papel tradicional da mulher, enquanto condena aquela que o subverte, ao afirmar: “A mulher quer tornar-se independente. Por isso, começou a ensinar aos homens o que é a ‘mulher em si’. Tal facto é um dos piores aspectos da fealdade na Europa.” (Nietzsche, 1999: 180). Contudo, antes de proferir esta sentença, o filósofo adverte que esta é a sua verdade (ibidem: 180). Donde se pode afirmar que a verdade de Nietzsche no que se refere à mulher não difere da verdade de Almada, como vimos com a citação do “Ultimatum…”. Por conseguinte, verificamos que quer em Almada, quer em Nietzsche se pretende a manutenção do “ser-mulher”6, desprovido de vontade e liberdade e do homem exige-se que seja viril. Passemos agora à análise crítica de dois excertos de “A Cena do Ódio”, poema longo, retrato detalhado da burguesia lisboeta, dissecada e escalpelizada no que versa os costumes saloios, vícios e vilanias, e achincalhada no que à ignorância respeita. Partamos dos versos “E enquanto este Adão dormia/os ratos roeram-lhe os miolos,/ e das caganitas nasceu a Eva burguesa” e comparemo-los com este excerto de Crepúsculo dos Ídolos de Nietzsche: “O homem criou a mulher – no entanto, a partir de quê? De uma costela do seu Deus (…) ” (Nietzsche, 1985:15). No que respeita ao verso de Almada, o sujeito poético, comunga da teoria criacionista da humanidade, parodia o texto bíblico e dá-nos uma versão grotesca da criação de Eva, a partir das “caganitas” de Adão. Se é verdade que o nascimento da Eva Em Misoginia e antifeminismo nos escritos de Fernando Pessoa, José Barreto refere que “O associativismo feminista tinha surgido em Portugal (…) nos anos finais da Monarquia (a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas foi fundada em 1908) e tomou alento com a proclamação da República.” (Barreto, 2011:3). 6 Tradução do inglês womanhood, termo utilizado por Maria Irene Ramalho e Ana Luísa Amaral no artigo intitulado “SOBRE A ESCRITA FEMININA” (Ramalho/Amaral, 1997:27). 5

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burguesa se representa de modo sórdido e, aos olhos do leitor burguês e católico, como obsceno e sacrílego, não é menos verdade que a substância da qual surge Eva funciona como metáfora da burguesia lisbonense. Dito de outro modo, o sujeito poético provocatoriamente reduz a burguesia a matéria fecal. Por outro lado, o surgimento da Eva burguesa, a partir de fezes, poder-se-á ler como um ultraje à génese da mulher e um ódio ao “ser-mulher”. Ainda que se confine à mulher da burguesia, não deixa de ser um ato de misoginia de per si. Se em Almada a crença em Deus não é posta em causa, apesar do tom ofensivo que nos é dado pelo hipertexto, construído com base no livro do Génesis, em Nietzsche compreende-se de imediato que se trata de um enunciado proferido por alguém que não crê em Deus. Aliás, é o homem que cria a mulher a partir de “uma costela do seu Deus”. Logo, estamos perante uma asserção em que o homem se substitui a Deus e, tal como este, tem o dom de criar. De facto, assiste-se à subversão de Deus. Se o homem é Deus, Deus é homem. Assim, o homem é um ser todo-poderoso: tão poderoso que lhe é outorgado o direito de criar a mulher, um ser que paradoxalmente o intimida e para quem há sempre uma solução como afirma Nietzsche em Assim falava Zaratustra: “Tudo na mulher é um enigma e tudo na mulher tem uma solução: ela chama-se gravidez.” (Nietzsche, 1998: 67). Ao justapor o verso de Almada e os excertos de Nietzsche, concluímos que a misoginia almadiana é apresentada de forma sórdida e abjeta, ao passo que, em Nietzsche, a criação da mulher é empreendida pelo homemdeus, ao mesmo tempo que a sua companheira se limita ao papel de fêmea parideira. A despeito da sordidez com que se representa a criação da mulher em “A Cena do Ódio” e, dado o tom paródico e jocoso, os versos de Almada traçam um perfil da mulher que se poderá considerar menos misógino que em Nietzsche, pois o retrato do filósofo reduz a mulher a uma invenção do homem, representando-a como um ser incompreensível, como demonstra a transcrição de Assim Falava Zaratustra. O segundo excerto de “A Cena do Ódio” é composto de dois versos. Nestes, o sujeito poético interpela o burguês e faz-lhe a seguinte pergunta retórica: “Porque te casaste com a tua mulher/ se dormes mais vezes co’ a tua criada?” O ódio ao burguês é novamente reiterado. Aparentemente é apenas o burguês que é objeto da ira almadiana. No entanto, a dicotomia entre a mulher-anjo e a mulher-demónio, sustentáculo da opressão patriarcal, não deixa de perpassar aos nossos olhos. Na realidade, há que manter tal antinomia, assente no preceito de dividir para reinar. Basta pensar que tal binómio não existe, no que respeita ao masculino. Embora o desferir do ataque à moral 5

burguesa proceda do ódio acirrado do sujeito poético, não há, por parte deste, um questionamento da dicotomia mencionada. Daí que os versos de Almada, conquanto subliminarmente, exprimam uma visão falocêntrica, já que a mulher não tem voz. Cabe ao homem, pela voz do sujeito poético, contribuir para o silenciamento feminino, a fim de garantir que não haja qualquer sublevação feminina. Comparemos e contrastemos esta visão almadiana com uma citação de Humain, Trop Humain7 de Friedrich Nietzsche : “Une bonne épouse, qui doit être une amie, une coadjutrice, une productrice, une mère, un chef de famille, une gouvernante, qui peut-être même doit, indépendamment de l’homme, s’occuper de son affaire et de sa fonction propre, ne peut pas être en même temps une concubine : ce serait d’une façon générale trop lui demander” (Nietzsche, 192:123-4). Nietzsche advoga a manutenção do binómio “anjo do lar”8/ concubina. Isto é, o filósofo retira à esposa o desejo sexual, o qual deverá ser exclusivamente suprido pela concubina. Assim, embora Nietzsche se declare ateu 9, o modelo que o próprio propõe para a mãe de família, é inspirado em Maria, mãe de Jesus. Por detrás da “boa intenção” de libertar a mulher-mãe dos seus muitos deveres, Nietzsche vai precisamente privá-la do desejo sexual e castigá-la, transformando-a na mãe de Deus, que o próprio renega. Mais uma vez, a misoginia em Nietzsche difere da de Almada, visto que o filósofo sustenta veementemente a manutenção da sociedade sexista e vê o concubinato como algo que contribui para o “bem-estar” da esposa e consequentemente do casamento. Aliás, em Para além do Bem e do Mal, o filósofo alemão afirma: “Até o concubinato se corrompeu: pelo casamento” (Nietzsche, 1999: 98). Donde se poderá afirmar que, apesar de Nietzsche, o casamento se sobrepõe à concubinagem, já que a esposa trai a castidade, ao fruir do corpo e do sexo. Assim, poder-se-á concluir que, segundo Nietzsche, a esposa/ mãe é também concubina. Façamos agora a análise crítica de fragmentos da peça de teatro Deseja-se mulher. Na realidade, a peça desenvolve-se em três atos e sete quadros, abrindo o primeiro ato e quadro com um cenário de uma “Boîte de Nuit”, onde “ Um grupo de ‘girls’ o mais despidas possível dança um número de variedades avançando entre as mesas (…)”(Almada, 1928: 111). Como se pode observar, a ação decorre num local do 7

Atendendo à ausência do capítulo VII da edição portuguesa de Humano, demasiado humano, socorremo-nos da versão francesa Humain, trop humain, traduzida por A.-M Desrousseaux, do original alemão, intitulado Menschliches, Allzumenscliches. Ein Buch für freie Geister (Nietzsche, 1886). 8 Tradução de “The Angel in the House”, expressão utilizada por Virginia Woolf em “Professions for Women” (Woolf, 1925:60). 9 A este propósito, confira-se o que Nietzsche diz pela voz de Zaratustra: “Deus é uma conjectura”, oração repetida três vezes. (Nietzsche, 1998: 90/91).

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submundo lisboeta, onde as bailarinas, objetos eróticos por excelência, dançam para gratificação do prazer visual masculino.10 A figura central deste quadro é a personagem Vampa, acabada de regressar à boite, após ter sido submetida a uma histerectomia total. Atentemos na fala do criado: A Vampa. Chamam-lhe a Vampa.11 É a mascote de nós todos. Tem cá feito uma falta. É a primeira vez que aparece depois da operação. Fizeram-lhe uma operação. Correu tudo muito bem. Deixou de ser mulher. Dizem que deixou de ser mulher. Tiraram-lhe tudo, tudo, tudo. Vazia como uma casca d’ostra. (idem: 112)

Neste passo, podemos verificar como a mulher é representada, após a histerectomia, ou seja, deixando de ser mulher, ficando “Vazia como uma casca d’ostra.” É assim que o criado, metonímia do masculino, verbaliza a mentalidade misógina dos anos vinte. Para o homem, a mulher só é mulher se cumprir o papel de reprodutora e procriadora, contribuindo para perpetuar a humanidade. Porém, esta não é a forma como Vampa vê o corpo: Eh gajada! Obrigado. Obrigado por tudo. Ainda não foi desta. Tiraram-me todos os parafusos a mais. Vamos lá ver como se aguenta a caranguejola. Recomeço o serviço. Aqui me têm. Estou mais levezinha (idem: 112)

Ao invés do criado, Vampa não se mostra descontente, pelo facto de ter sido histerectomizada. Pelo contrário, diz estar “mais levezinha”. Assim, a infertilidade, ostracizada pela voz masculina, contrasta com a leveza sentida pelo corpo feminino. Mais, a personagem feminina considera normal o retorno ao trabalho, já que este é o seu único meio de subsistência, e submissamente entrega-se ao homem, com a frase “Aqui me têm”. Verificamos então que Vampa não é uma mulher independente, pois depende do homem para viver e nem sequer pensa em ser livre, porque desconhece tal possibilidade. Daí a frase de Nietzsche em Humain, Trop Humain parece ir de encontro ao desejo expresso por Vampa: “Les femmes veulent servir et y mettent leur bonheur ; et l’esprit libre veut n’être pas servi et y met son bonheur ” (Nietzsche, 1921 : 128). Mas será que a proposição do filósofo satisfará a vontade de Vampa, dispondo do seu corpo ao serviço da luxúria masculina, almejando quiçá a demanda da felicidade? Na verdade, quando se desconhece o conceito de liberdade, torna-se impossível a realização da concretização de tal desejo. Daí que o espírito livre dependa da Vide “Visual Pleasure and Narrative Cinema” de Laura Mulvey, http://www.jahsonic.com/VPNC.html A meu ver, o nome Vampa será uma forma aportuguesada do vocábulo Vamp, abreviatura de vampiro. A Vamp é a mulher sedutora, que servindo-se dos seus atributos sexuais, utiliza o homem em seu proveito. (Collins English Dictionary: 1695). A Vamp tornou-se popular no cinema americano dos anos 20, como refere Janey Place (Place, 2007: 56). 10 11

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consciência da noção de liberdade. Donde o aforismo nietzschiano, para além da misoginia explícita, se revele uma falácia. Em termos sociais, Vampa está abaixo do mero assalariado. Pertence ao lumpemproletariado, isto é, a um extrato alienado, privado de consciência social. A Vampa, tal como às mulheres a que Nietzsche se refere, está vetada a consciência de classe ou de género. Daí que não lhes reste alternativa senão a servidão, seu modus vivendi, e aí encontrar a felicidade. Em contraste com Nietzsche, vemos a posição almadiana que nos mostra a misoginia vigente na época da redação da peça, dando porém lugar à voz feminina, expressa na sua condição de subserviência, face ao poder masculino, o que traduz a cumplicidade feminina na manutenção da misoginia. Passemos agora a analisar o seguinte excerto de Deseja-se mulher, situado no segundo quadro do primeiro ato:

E esta? Diz lá que esperavas! Ainda que fosse no fim do Mundo, Vampa! Ainda que fosse no fim do Mundo, querida Vampa, eu acabava por dar contigo. Seis meses é de mais, Vampa, é de mais. (…)” (119)

Neste quadro, Vampa encontra-se a viver numa casa isolada no campo, na companhia de um homem. Saliente-se que quer Vampa, quer o companheiro são referidos por “Ela” e “Ele” respetivamente. Neste local de refúgio, Vampa recebe a visita de uma colega da “Boîte de Nuit”, a qual é referida por “A MULHER”. Como podemos verificar, a antiga companheira de trabalho encontra Vampa, após ter procurado por ela durante muito tempo e afirmando que a haveria de ver, nem que para tal tivesse de percorrer os quatro cantos do mundo. Neste passo de Deseja-se mulher, assistimos a uma demonstração de amizade no feminino. Podemos, obviamente, desconfiar desta amizade, atendendo ao tom hiperbólico do enunciado da visitante. No entanto, o dramaturgo não deixa de nos mostrar essa mesma amizade. Vejamos agora como Nietzsche encara a amizade feminina e contrastemo-la com a posição almadiana. Em Assim falava Zaratustra, o filósofo alemão declara: “A mulher ainda não é capaz de amizade: as mulheres continuam a ser gatas e aves. Ou, no melhor dos casos, vacas” (Nietzsche, 1998:55). Neste excerto, Nietzsche reduz a mulher à condição animal. Digno de nota é a identificação da mulher com a gata, animal que no budismo é, por sua vez, associado à serpente, indicando o pecado (Chevalier, Gheerbrant, 1982: 347). Deste modo, Nietzsche identifica a mulher com a serpente, mostrando um lado misógino muito 8

acentuado. Ao dizer que as mulheres são “no melhor dos casos, vacas”, o filósofo reduz a mulher às funções reprodutora e amamentadora, o que a identifica como fêmea, mas não como mulher. Por conseguinte, podemos concluir que, ao identificar a mulher com o animal, Nietzsche a reduz à esfera do não-humano. Não obstante, quando o filósofo profere que “A mulher ainda não é capaz de amizade”, o próprio se trai, pois acredita na mulher em devir e na eventualidade desta ser capaz de sentir o mais nobre de todos os sentimentos. Se compararmos a posição misógina nietzschiana com o excerto de Deseja-se mulher, poderemos concluir que Almada contrapõe aparentemente uma visão filógina. No entanto, não nos podemos esquecer que a amizade entre “Vampa” e “A MULHER” só é possível no submundo da prostituição. Em The Lost Sisterhood: Prostitution in America, 1900-1918, Ruth Rosen faz menção à integração da prostituta na subcultura da prostituição, estabelecendo relações de amizade com as suas congéneres e acrescenta que, segundo a antropóloga Michelle Rosaldo, as mulheres pertencentes a classes desviantes como as prostitutas podem desenvolver laços de solidariedade, negados a outras mulheres (Rosen, 1994:104). Assim, é provável que a amizade entre “Vampa” e “A MULHER” reproduza apenas o que se passava na realidade, donde não representa uma visão filógina do dramaturgo. Feita a análise comparatista de excertos de textos literários de Almada e filosóficos de Nietzsche, não deixa de verificar-se uma distinção na mentalidade misógina de ambos, a que não é indiferente a vivência do artista e a do filósofo num tempo e num espaço diferentes, bem como a bagagem cultural de cada um. Aliás, vemos que a misoginia almadiana parece ir declinando à medida que o tempo passa. Assim, Almada é ferozmente misógino em “Ultimatum Futurista: Às gerações portuguesas do século XX”, texto de 1917. Em “A Cena do Ódio”, publicado em 1923 e na íntegra em 1958, vemos uma declaração de ódio a tudo o que é burguês, sendo que a misoginia se confina à mulher burguesa, embora metonimicamente se estenda a todo o feminino. Em Deseja-se mulher, de 1928, o tom é conspicuamente misógino no que se refere à personagem masculina, mas já não o é, no que respeita às personagens femininas. No entanto, não se pode afirmar que a escrita almadiana analisada na peça de teatro tivesse um cunho filógino, como se demonstrou neste trabalho. Ao comparar Almada e Nietzsche, concluímos que Nietzsche é absolutamente misógino, embora o emprego do advérbio de tempo indefinido, da última transcrição utilizada, aponte para uma outra visão da mulher do futuro. Daí que possamos dizer que Almada é um

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misógino menos feroz. Hoje dir-se-ia que Almada é, acima de tudo, um escritor sexista ou antifeminista. Bibliografia AMARAL, Ana Luísa/ RAMALHO, Maria Irene (1997), “SOBRE A ESCRITA FEMININA” www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/90.pdf, acesso em 28/05/2015. BARRETO, José (2011), Misoginia e Anti-Feminismo em Fernando Pessoa, Lisboa, Ática. CHEVALIER, Jean/ GHEERBRANT, Alain (1982), Dictionnaire des Symboles – Mythes, Rêves, Coutumes, Gestes ; Formes ; Figures, Couleurs, Nombres ; ed. ut: Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, s/d. DWORKIN, Andrea (1974), Woman Hating, New York, Penguin Books. GIAVARA, Suilei Monteiro (2013), “Judith Teixeira e a poética da luxúria”, http://www.todasasmusas.org/09Suilei_Monteiro.pdf, acesso em 28/05/2015. GILMORE, David D. (2001), Misogyny: The Male Malady, Philadelphia, University of Pennsylvania Press. NEGREIROS, Almada J (1915), “A Cena do Ódio”, Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005. ___________________(1917), “Ultimatum Futurista: Às gerações portuguesas do século XX”, Manifestos e Conferências, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001. __________________ (1917), “A Engomadeira”, Obras Completas, Vol. IV, Contos e Novelas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s/d. __________________ (1928), “Deseja-se Mulher”, Obras Completas, Vol. VII, Teatro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993. MULVEY, Laura (1975), “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, http://www.jahsonic.com/VPNC.html, acesso em 28/05/2015.

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