UMA PERGUNTA REVOLUCIONÁRIA, UMA HIPÓTESE LITERÁRIA E UMA LEITURA PSICANALITICA: TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE A \" SERVIDÃO VOLUNTÁRIA \".

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EDGAR FELIPPE ALVARENGA

UMA PERGUNTA REVOLUCIONÁRIA, UMA HIPÓTESE LITERÁRIA E UMA LEITURA PSICANALITICA: TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE A “SERVIDÃO VOLUNTÁRIA”.







Londrina 2016



EDGAR FELIPPE ALVARENGA

UMA PERGUNTA REVOLUCIONÁRIA, UMA HIPÓTESE LITERÁRIA E UMA LEITURA PSICANALITICA: TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE A “SERVIDÃO VOLUNTÁRIA”.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Psicologia do Centro Universitário Filadélfia - UniFil para a obtenção do título de graduação em Psicologia. Orientador: Prof. Me. Eugênio Canesin Dal Molin

Londrina 2016



EDGAR FELIPPE ALVARENGA

UMA PERGUNTA REVOLUCIONÁRIA, UMA HIPÓTESE LITERÁRIA E UMA LEITURA PSICANALITICA: TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE A “SERVIDÃO VOLUNTÁRIA”.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Psicologia do Centro Universitário Filadélfia - UniFil para a obtenção do título de graduação em Psicologia.

Aprovado em: _________/_________/_________

Banca Examinadora

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Prof. Me. Eugênio Canesin Dal Molin Orientador

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Prof. Me. Sérgio Ricardo Belon da Rocha Velho Membro da Banca Examinadora

______________________________________________

Profa . Esp. Isabel de Negri Xavier Membro da Banca Examinadora



AGRADECIMENTOS

Ao Professor Me. Eugênio Canesin Dal Molin pela orientação permanente, atenta e gentil. A marca generosa de seu trato com os alunos é um valoroso aprendizado que levo para a vida profissional e pessoal. Aos familiares e amigos pelo esforço de compreensão das minhas ausências. Os protestos serão carinhosamente interpretados como demonstrações de afeto. As distâncias sem dúvida oneraram mais a mim que a eles. A Mariana Seghese, porque essas delicadezas lhe fazem sorrir.



ALVARENGA, Edgar Felippe. Uma pergunta revolucionária, uma hipótese literária e uma leitura psicanalítica: três perspectivas sobre a “servidão voluntária”. 2016. 65f. Trabalho de Conclusão de Curso - TCC (Graduação em Psicologia) – Centro Universitário Filadélfia – UniFil, Londrina. RESUMO O objetivo do presente estudo é discutir o tema da “servidão voluntária” sob a perspectiva de três autores, Étienne de La Boétie, Herman Melville e Sigmundo Freud. Inicialmente, parte-se das questões colocadas por La Boétie em seu “Discurso da servidão voluntária” sobre a origem e a natureza do “desejo de servir”, a responsabilidade do tiranizado na manutenção da tirania, o papel da linguagem na manutenção da servidão e sobre a possibilidade de sua superação. Na sequência, analisa-se o comportamento do personagem principal do conto “Bartleby, o escrevente” de Herman Melville, que pelo uso de sua fórmula linguística “preferiria não” consegue superar a servidão e anular os efeitos dos discursos e da própria da linguagem sobre sua vontade e sua corporeidade, no alcance de uma potência máxima, segundo uma leitura de Agamben e Deleuze. A partir das considerações de Freud, em especial as contidas em “Psicologia das massas e análise do Eu”, faz-se um paralelo as observações de La Boétie e as descobertas da psicanálise sobre a psicologia das massas e do indivíduo. Destaca-se, nesse contexto, o papel das identificações na dinâmica do estabelecimento dos laços libidinais entre os membros da massa e a massa e seu líder e, por fim, avança-se na teoria da representação de Freud para recuperar uma relação entre linguagem, vontade e corpo. Conclui-se com a proposta de aplicação das ideias debatidas na leitura de fenômenos políticos atuais. Palavras-chave: Servidão. Voluntária. Linguagem. Identificação. Corporeidade.

ABSTRACT The purpose of this study is to discuss the topic of "voluntary servitude" from the perspective of three authors, Étienne de La Boétie, Herman Melville and Sigmund Freud. It begins with the questions raised by La Boetie in his "Discourse on Voluntary Servitude" about the origin and nature of the "desire to serve", the responsibility of those who are tyrannized in the maintenance of tyranny, the role of language in the perpetutation of servitude and the possibility of overcoming it. Next, we analyze the behavior of the main character of Herman Melville´s short story "Bartleby, the Scrivener", which, through the use of the linguistic formula, "I would prefer not to", he is able to overcome servitude and nullifies the effects of discourse and of language itself over his will and his corporeality; attaining maximum power according to Agamben and Deleuze. Based on Freud´s considerations, especially in "Group Psychology and the Analysis of the Ego", this study proposes a parallel between the observations of La Boétie and the findings of psychoanalysis on the psychology of the masses and the individual. This research emphasizes the role of identifications in the dynamic of the establishment of libidinal ties among members of the mass and between the mass and its leader. Furthermore, Freud's theory of representation is discussed in order to retrieve a connection among language, the will and the body, concluding with the proposal of the application of these ideas in the interpretation of current political phenomena. Key-words. Voluntary. Servitude. Language. Identification. Corporeality.



SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 6 1 Na França no século XVI, um jovem se pergunta. ................................................................. 8 2 Na Nova York do século XIX, um escrevente preferiria não. .............................................. 25 3 Na Viena do século XX, um psicanalista fala sobre massas................................................. 42 4 No Brasil do século XXI, um estudante tece suas considerações finais. .............................. 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 64

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INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende discutir o tema da “servidão voluntária” a partir de textos de três autores, Étienne de La Boétie, Herman Melville e Sigmund Freud. Cada um deles pertenceu a áreas distintas da produção de conhecimento (Direito, literatura e psicanálise), bem como desenvolveu cada trabalho analisado em séculos distintos. Não há, além disso, nenhuma referência expressa de um ao trabalho do outro nos textos analisados. Não obstante, apesar da aparente distância histórica e temática entre suas produções, fez-se a opção por analisar alguns pontos de suas obras e propor aproximações e diálogos entre esses pensadores, todos dotados de notável originalidade. A escolha do tema, como não poderia deixar de ser, tem relação com o conturbado momento da vida política brasileira e representa uma tentativa de obter novas chaves de compreensão para situações de abuso de poder dos governantes diante das quais, apesar da profusão de informações e dadas todas as condições materiais, a reação política dos cidadãos não ocorre. Nesse sentido é o apontamento de Vladmir Safatle (2015, p.21): É possível que o primeiro texto moderno de reflexão sobre a ação política radical na tradição ocidental seja o Discurso da servidão voluntária", de Etienne de La Boétie. Ele é o primeiro por partir daquela que é a questão fundadora para toda e qualquer teoria da ação e da constituição de sujeitos políticos, a saber: por que a ação não ocorre? De onde vem o desejo de não realizar o desejo por outra coisa? Para ser mais preciso: de onde vem a fonte que dá tanta força a tal desejo?

No primeiro capítulo, o clássico “Discurso da servidão voluntária” de La Boétie é analisado a partir do contexto histórico de sua produção e do pioneirismo na forma de abordar as questões relativas às relações de poder entre governante e governados. A partir das questões colocadas por La Boétie sobre a origem, os mecanismos simbólicos de reprodução e manutenção e sobre a possível superação do que definiu como “servidão voluntária”, são abordados os temas da liberdade do sujeito, das ambivalências de suas escolhas e da natureza do “desejo de servir”. Destacados os pontos da obra de La Boétie que, a nosso ver, ainda guardam pertinência com questões debatidas na contemporaneidade, propõe-se uma leitura do livro “Bartleby, o escrevente”, de Herman Melville, destacando o comportamento de seu personagem principal, a partir da perspectiva de uma hipótese de resposta às questões colocadas por La Boétie sobre como se comportaria uma “gente nova” que escolhesse não servir voluntariamente a ninguém. Nesse segundo capítulo, defende-se a ideia de que a “servidão voluntária” tem alguma relação íntima com a linguagem e com os signos da identificação, ancorando-se nas leituras que

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Agamben e Deleuze fazem do conto de Melville sobre os efeitos libertadores de sua “fórmula” linguística “preferiria não”, capaz de desarticular as tramas simbólicas que capturam a vontade do sujeito recuperando-lhe a potência plena. Não se deixa de fazer uma crítica à visão desses dois autores e apontar para os perigos de uma retirada do sujeito do campo da linguagem. No terceiro capítulo trata-se de selecionar alguns pontos da obra de Freud que poderiam auxiliar o leitor na interpretação das questões colocadas por La Boétie e que, eventualmente, poderiam dar sustentação à hipótese de leitura de Bartleby como um modelo eficiente, ao menos em alguns aspectos, de resistência à “servidão voluntária”. Tomando-se como pontos de apoio o mito do pai totêmico na horda primeva, proposto em “Totem e Tabu”, e os mecanismos do psiquismo individual que são mobilizados pelo circuito libidinal das identificações na formação das massas, tratados em “Psicologia das massas e análise do Eu”, propõe-se um diálogo entre as descobertas da psicanálise e as questões colocadas por La Boétie sobre a origem e perpetuação da “servidão voluntária” nas formações sociais. Com esteio na teoria da representação de Freud, pretende-se identificar o papel da linguagem e de seus mecanismos de simbolização sobre a vontade (e, via de consequência, sobre o corpo) do sujeito, a fim de verificar se a hipótese de Bartleby como um portador de uma mensagem libertadora pode se sustentar, de alguma forma, em categorias de subjetivação da psicanálise freudiana. Por fim, propõe-se um exercício de leitura de acontecimentos da política nacional contemporânea a partir das ideias debatidas durante o trabalho.

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UMA PERGUNTA REVOLUCIONÁRIA, UMA HIPÓTESE LITERÁRIA E UMA LEITURA PSICANALITICA: TRÊS PERSPECTIVAS SOBRE A “SERVIDÃO VOLUNTÁRIA”.

1 Na França no século XVI, um jovem se pergunta. Na manhã da sexta-feira do dia 22 de agosto de 1572, em Paris, o líder huguenote Gaspar de Coligny deixou o Louvre, após assistir a um Conselho presidido pelo Duque de Anjou. Enquanto fazia seu trajeto, passando pela “rue de Poulies”, cruzou com cerca de doze homens. Um deles, apesar de aparentemente ler uma carta enquanto caminhava, fez um movimento imprevisto. Não obstante o gesto inesperado, Coligny conseguiu evitar a fatalidade do ato e acabou por levar um tiro no seu antebraço esquerdo e outro que lhe fraturou o dedo da mão direita (LAFOREST, 2009). O autor dos disparos era o católico Maurevert. O assassino cumpria ordens de membros da família dos Guise, com o consentimento de ninguém menos que Catarina de Médici, mãe do rei da França de então, Carlos IX, este de quem Coligny era o braço direito. Catarina temia por um golpe dos protestantes que ameaçasse o poder real e o domínio católico na França (LAFOREST, 2009). Coligny não sofreu consequências mais graves que os ferimentos descritos, porém a tentativa de seu assassinato marca o ápice da tensão entre católicos e protestantes. Estes, ao tomarem conhecimento do atentado, demandam vingança e uma guerra ameaça eclodir. Durante as noites do dia 23 e 24 do mesmo mês, a fim de salvar a monarquia, Catarina de Médici convence o rei Carlos IX que o melhor a fazer é assassinar Coligny e todos os chefes huguenotes presentes em Paris, ato que dá o início ao Massacre de São Bartolomeu, evento que marcou definitivamente a história da França pelo seu grau de violência e levou milhares de protestantes à morte (LAFOREST, 2009). Esse evento é invocado para ilustrar o resultado dos conturbados processos históricos que tiveram palco na França do século XVI. Nesse período, as duas principais forças de autoridade soberana, a Igreja e a Monarquia, dividiam o protagonismo das relações de poder marcado, por um lado, pelo alcance de ambos de uma hegemonia cada vez maior e, por outro, pelas reações de uma população cada vez mais subjugada. A Igreja católica e o poder secular oficializam o seu laço no ano de 312 d. C., com a conversão do imperador Constantino, laço que se tornaria cada vez mais simbiótico a partir das

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relações com os governantes que se seguiram. Assim, para manter o poder e eliminar os discursos dissidentes, a Igreja e o poder secular somaram esforços e adotaram modelos tirânicos de poder, mantidos em grande parte graças às atuações das Inquisições da Igreja católica. No século XVI, a conduta corrompida e gananciosa de uma parte cada vez maior do clero, enseja o aparecimento de grupos religiosos dissidentes, alguns tomados como inofensivos ao poder central, como os franciscanos e dominicanos, outros declaradamente dissidentes da própria Igreja católica, os denominados “hereges” (GUIMARÃES, 2012). Se por parte da Igreja houve, na época, um fortalecimento de seu poder acompanhado de um aumento dos casos de abuso, gerando uma reação dos fiéis, por parte da monarquia não foi diferente em relação aos seus súditos. A partir do final do século XV e primeira metade do século XVI, a monarquia francesa firma-se como uma das mais sólidas no contexto europeu. A unidade da França foi alcançada por um processo de fortalecimento da autoridade real e do concomitante declínio gradual do regime feudalista. Carlos VIII (1483-1498), Luís XII (1498-1515) e Francisco I (1515-1547) preocuparam-se em expandir as fronteiras do Reino, embora nem sempre tivessem êxito. Francisco I deu continuidade às Guerras da Itália levadas a cabo por seus predecessores e suas campanhas militares requeriam cada vez mais recursos, traduzidos em aumento de impostos sobre a população. No ano de 1542, a população do oeste da França se rebela contra o aumento da gabelle, um imposto sobre um produto fundamental que era o sal e, a partir disso, outras revoltas espalhadas pelo reino se sucederam (KNECHT, 1984). É nesse contexto histórico que um talentoso jovem francês chamado Étienne de La Boétie escreve um pequeno texto que iria reverberar por quase cinco séculos na história do pensamento até os dias atuais, batizado de “Discurso da servidão voluntária”, texto apelidado por alguns leitores da época de o “Contra Um”. Nascido na localidade de Sarlat, na região de Périgord, sudoeste da França, em 01 de novembro de 1530, cresceu numa família de pessoas ligadas ao Direito e ao poder monárquico e acabou por cursar Direito na Université d’Orléans, formando-se no dia 23 de setembro de 1553, com apenas 22 anos de idade. No mesmo ano foi nomeado como Conselheiro no Parlamento de Bordeaux pelo Rei Henrique II, ocasião em que conheceu e se tornou melhor amigo de Michel de Montaigne, a quem confiou em testamento a preservação da memória dos

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seus textos, ainda sob a forma de manuscritos, em razão de sua morte prematura aos 32 anos de idade, em 18 de agosto de 1563 (GUIMARÃES, 2012).1 Considerado o seu texto mais importante, o “Discurso da servidão voluntária” não possui registro histórico preciso da data em que foi escrito. Porém, o próprio Michel de Montaigne anotou em seus “Ensaios” que La Boétie o teria produzido “em sua primeira juventude, em homenagem à liberdade contra os tiranos” sendo que, mais adiante, referiu que ele teria apenas 16 anos na ocasião, ou seja, teria produzido o manuscrito no ano de 1546, havendo hoje um relativo consenso entre os pesquisadores que a produção se deu entre seus 16 e 18 anos de idade, com prováveis alterações pontuais posteriores (GUIMARÃES, 2012). Embora versões clandestinas já circulassem alguns anos antes, a primeira edição foi publicada post mortem em 1580 e o texto foi logo recepcionado como um “libelo huguenote” contra os reis católicos franceses, em decorrência do mencionado massacre que vitimou algo em torno de dez mil protestantes huguenotes na trágica “noite de São Bartolomeu” (GUIMARÃES, 2012). A partir de então a obra faria um peculiar trajeto pela história, assim suscintamente descrito por Marilena Chaui (2014, p. 11): Poucas obras têm tido destino tão insólito quanto o Discurso da servidão voluntária, de Étienne de La Boétie. Escrito entre 1552 e 1553, planejado para ocupar o centro do primeiro livro dos Ensaios de Montaigne (que o localizaria entre o ensaio sobre os canibais e o ensaio sobre a amizade), apropriado pelos protestantes franceses, que o converteram em panfleto tiranicida, o Discurso reaparece no século XVIII num panfleto pedagógico-politico de Marat, é retomado no curso das lutas proletárias do século XIX na qualidade de panfleto democrático e, por fim, ressurge com os anarquistas que o leem como panfleto libertário.

Para além de seu inusitado percurso de variada apropriação pelos mais diversos movimentos políticos, percorreu também um outro ainda mais heteróclito, o das interpretações acadêmicas, que ora reduzem o texto a uma peça de arroubo juvenil retórica, “um ‘pastiche’ de ideias alheias confusamente utilizadas por La Boétie, cujo ardor e inexperiência política só poderiam desembocar numa utopia inconsequente” (CHAUI, 2014, p. 12), ora o classificam

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A perda precoce de seu amigo fará com que o humanista, jurista, filósofo e escritor Michel de Montaigne (15331592) dedique a Étienne de La Boétie uma das reflexões mais inspiradas já escritas sobre a amizade, que comporá um dos capítulos de seus “Ensaios”. Escreve Montaigne que se pressionado a responder por que amava tanto o amigo, tal não poderia ser expresso, senão pela resposta “porque era ele, porque era eu”. A frase “Parce que c’etáit lui, parce que c’était moi” se tornaria uma das mais célebres de Montaigne e uma das mais emblemáticas para se referir ao enigma e à fascinação de uma verdadeira relação de amizade. (MONTAIGNE, 1870-1873)

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como um anunciador de uma nova filosofia política, precursor do estatuto político de um Estado moderno ainda em formação.2 O próprio fato de que a obra segue recebendo múltiplas interpretações nos mais diversos sentidos apenas ressalta que “cada uma destas interpretações pode não ser falsa, mas insuficiente, à medida em que o texto ultrapassa todos os dados que, efetivamente, contribuíram para sua produção, e rompe com a continuidade histórica da tradição na qual insere-se”, uma vez que o “paradoxo da servidão voluntária tal como La Boétie o formula, não se encontra em nenhum outro lugar nas doutrinas políticas anteriores” (TONETI, 2009, p. 174).3 A ideia do paradoxo que subjaz às elaborações de La Boétie é uma boa entrada para iniciar uma reflexão sobre o texto propriamente dito. O título “Discurso da servidão voluntária” já é suficiente para causar um efeito desconcertante nos leitores, uma vez que na tradição do pensamento político clássico cristão os conceitos de vontade e de servidão são incompatíveis. De um lado, voluntário seria o que nasce de uma escolha espontânea e livre de uma coação externa. De outro, servidão implicaria coação e força, ação externa com uso de violência, o exercício da dominação de um por outrem. O paradoxo intolerável da servidão voluntária “está em que nada – nem Deus, nem a Natureza, nem a Razão, nem a sociedade – pode explicar seu surgimento” (CHAUI, 2014, p. 12). A reflexão é introduzida da seguinte forma por La Boétie, que inicia seu texto citando um trecho da Ilíada, de Homero, em que Ulisses, dirigindo-se ao público, teria anunciado (LA BOÉTIE, 2009, p. 31): Não é bom ter vários senhores.

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Como sintetiza Edson Toneti (2009, p. 174): “Percorrendo um caminho mais instigante, o Discurso da Servidão Voluntária parece não oferecer nenhuma solução à servidão voluntária e, ao mesmo tempo, ele designa uma. Para alguns, a solução está na legalidade, para outros, na insurreição revolucionária. Após a circulação do ‘[...] ensaio em mão de gente séria, entre a qual goza de grande reputação [...],’ (MONTAIGNE, 2004, p. 178) o Discurso da Servidão Voluntária recebeu as mais opostas interpretações políticas. Convocado para apoiar todos nas solicitações à insurreição revolucionária, La Boétie tivera para outros tantos apenas um único lema na teoria como na prática: Pax et lex. Assim, enquanto Claude Lefort constata que ‘[...] na obra de La Boétie, não há nenhuma alusão às instituições de um regime livre, não só ao governo, às leis, mas aos costumes que seriam os de um povo livre.’ (LEFORT, 1999, p. 171). Pierre Mesnard faz dele o apólogo da legalidade (MESNARD, 1977) e Goyard-Fabre faz dele o anunciador de uma nova filosofia do direito político, buscando expressar o estatuto político do Estado Moderno em fase de afirmação”. 3 “O que surpreende nas ininterruptas e diversificadas interpretações do Discurso não é tanto o modo como a obra é interpretada e apropriada pelos leitores, mas o fato de as leituras serem possíveis apenas sob a condição expressa de não enfrentarem o enigma proposto por La Boétie. [...] O que surpreende é o abandono da gênese da servidão voluntária, pois, mesmo aqueles que se demoram procurando compreender porque os homens não desejam a liberdade, evitam o passo seguinte, qual seja, compreender de onde vem aquilo que a “natureza negalhe ter feito e a língua se recusa a nomear”. (CHAUI, 2014, p. 36).

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Um só seja o senhor, um só seja o rei.4

Na sequência da citação, o autor lamenta. Afirma que seria melhor se Ulisses tivesse dito apenas que não é bom ter vários senhores, teria sido o suficiente. O descontentamento de La Boétie com a segunda parte da fala, dispensável a seu ver, decorre da compreensão de que, se a maior desgraça é estar sujeito a um soberano e às variações imprevisíveis de sua bondade ou maldade, ter vários senhores é ser tantas outras vezes igualmente infeliz (LA BOETIE, 2009). Embora o autor mencione que sua intenção não é discutir se a monarquia é melhor que outras formas de República, não há dúvidas que a elaboração do texto foi em grande parte motivada pela sua preocupação com a ascensão do poder monárquico em sua época e a crescente sujeição dos cidadãos à figura do rei.5 Feita a ressalva, o jovem francês lança ao leitor o desafio de refletir sobre uma questão que assim enuncia: Por enquanto, gostaria de somente entender como tantos homens, tantos burgos, tantas cidades e tantas nações suportam às vezes um tirano só, que não tem mais poder que o que lhe dão, que só pode prejudica-los enquanto quiserem suportá-lo, e que só pode fazer-lhes mal se eles preferirem tolerá-lo a contradizê-lo (LA BOÉTIE, 2009, p. 32).6 (grifo nosso)

Como já referido, a reflexão sobre a natureza das relações de poder e sujeição não era novidade na história do pensamento ocidental. A filosofia política desenvolveu-se de forma extraordinária no século XVI, em que La Boétie nasceu. O humanista Francês Jaccques Lefèvre d’Étaples traduziu e propagou, no começo do século, a “Política” de Aristóteles, Erasmo de 4

“Il n’est pas bon d’avoir plusieurs maîtres; n’en ayons qu’un seul. Qu’un seul soit le maître, qu’un seul soit le roi” (LA BOÉTIE, 2016). Nas alusões feitas à versão francesa do texto, optou-se por utilizar uma versão apócrifa, porém acurada, disponível no site www.singulier.eu, referenciada ao final deste trabalho, uma vez que adequadamente adaptada à língua francesa contemporânea. Ressalva-se, desde logo, que as referências a essa versão foram sempre, antes de transcritas, comparadas com a versão original de Henri de Mesmes, com edição estimada entre 1580 e 1600, disponível no site da Bibliothèque nationale de France (BnF), bem como o texto estabelecido por Paul Bonnefon, publicado em “Obras completas de Étienne de La Boétie”, em 1892, constante da versão bilíngue da Martin Claret, ambas referenciadas ao final. 5 Pierre Clastres irá supor, ainda, que La Boétie escreveu seu texto inspirado também pelo recente encontro do Ocidente com os povos da América, sobretudo os “canibais” e “anárquicos” Tupi da costa brasileira. Para ele, abrir mão da liberdade é um ato voluntário, mas que implica a perda da própria natureza humana, que La Boétie buscaria na imagem do “mundo livre” indígena o escopo de sua crítica à sociedade monárquica e desigual vigente na França de sua época. Nas palavras de Clastres: “Mas como poderia esse jovem que, ao interrogar-se com tanta seriedade sobre a servidão voluntária, sonhava com a sociedade anterior ao mau encontro, como poderia ele não ficar impressionado com a imagem que, havia já longos anos, os viajantes traçavam desses ‘povos inteiramente novos’, selvagens americanos sem fé, sem rei, sem lei, povos em que o homem vive ‘sem lei, sem imperador e cada um é senhor de si mesmo?” (CLASTRES, 2004, apud SZTUTMAN, 2013, p. 171). 6 A escolha pelo uso da “preferência” como um dos fundamentos da servidão voluntária deve ser notada, pois tomará importância especial no segundo capítulo do presente trabalho.

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Roterdã traçou o perfil do “Príncipe Cristão”, Maquiavel e Thomas More publicaram, respectivamente, “O Príncipe”, escrito em 1514 e publicado em 1532, e a “Utopia” em 1516 (LINARTH, 2009, apud LA BOÉTIE, 2009). A repercussão da obra de La Boétie aponta, portanto, para algo de novo que o autor introduziu na forma de abordar as relações de poder a que a tradição do pensamento político e filosófico até então não tinha conferido o devido valor. La Boétie inaugura um novo olhar sobre as relações de servidão entre tirano e tiranizado identificando, nessa relação, elementos que desafiariam a razão de seus leitores. Primeiramente, La Boétie faz uma guinada de perspectiva no que se refere à abordagem das relações de dominação. A primeira novidade está na incômoda constatação de que numa relação de sujeição, o tirano e o sujeitado se sustentam mutuamente, tal qual dois corpos celestes se atraem pela força de suas gravidades, igualmente responsáveis pela perpetuação desse vínculo que parece enganar os sentidos. Não bastasse essa constatação, La Boétie coloca no centro da análise não as forças tirânicas que recaem sobre o sujeito, mas a outra ponta desse laço sem a qual ele se desmancha: o indivíduo que serve. Se por um lado é fácil compreender as razões que levam um soberano a esforçar-se por manter sua posição dominante, por outro lado, são incessantes os debates sobre quais as razões que levam os homens a permanecerem voluntariamente submetidos a ele. Mais que isso, que razões levam um sujeito a “preferir” a servidão. A perplexidade de La Boétie – e que desde sua obra foi compartilhada por tantos que lhe sucederam – reside na incompreensão do que pode ser sintetizado na “vontade de servir”. Qual sua origem? Por que se mantém? De que mecanismos se vale para sua perpetuação? Por que se apresenta nos corações dos homens como regra e não exceção? Fato que admiravelmente causa mais lástima do que espanto, pergunta o autor por que um milhão serve miseravelmente e dobra a cabeça, não porque sejam obrigados, mas, ao revés, porque “ficam fascinados e por assim dizer enfeitiçados somente pelo nome de um”? (LA BOÉTIE, 2009, p. 32).7 Tratam-se de questões cuja dimensão ultrapassa qualquer tentativa de resposta definitiva, sejam as rascunhadas por La Boétie em seu próprio texto, sejam as elaboradas pelos seus leitores e críticos no decorrer dos séculos que se seguiram à sua publicação. O “Discurso da servidão voluntária” é uma obra aberta, polissêmica, portadora de questões que atravessam 7

“Causa eficiente da servidão, o desejo servil produz o modelo, em vez de imitá-lo. Que haja móbeis para esse desejo, La Boétie não o nega, pelo contrário, os descreve – ‘querem server para ter bens’. Todavia, os motivos não operam como causas eficientes ou finais, mas como preenchimento ilusório da causa desejante” (CHAUI, 2014, p. 50).

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o tempo e o contexto de sua formulação, cuja força reside justamente na aptidão de gerar sempre renovadas reflexões.8 Nesse contexto, dentre as inúmeras possibilidades de abordar o texto, optou-se por destacar alguns aspectos da obra de La Boétie pelo motivo de que teriam uma notável ressonância em dois contextos históricos muito posteriores sem, no entanto, perder a potência identificada desde sua origem. O primeiro aspecto a ser destacado é que o texto antecipa, em muitas décadas, um modo de compreensão do sujeito em sociedade que só tomaria corpo a partir da conformação do que se convencionou chamar de modernidade, ou seja, o autor busca na vontade do sujeito, na sua subjetividade, o fundamento de validade de seu comportamento diante do mundo. Esse modo de colocar a questão da conduta humana significou, por si só, uma revolução para o pensamento da época. Na Idade Média, o conhecimento de si próprio não gozava de grande consideração por parte dos indivíduos. A identidade do homem medieval era definida pelo papel social, pela linhagem hereditária e especialmente pelo género ao qual pertencia. Da mesma forma, as transições pelas quais passava o sujeito, como o tornar-se adulto, o casamento e a parentalidade, são bem marcadas pelos costumes, o que dava ao processo de auto definição um aspecto simples e linear. Dada a forte ascendência do Cristianismo (e a benção deste ao poder monárquico) o indivíduo costumava creditar que o lugar que ocupa na sociedade lhe fora destinado por Deus, não sendo costumeiro questionar tal posição ou aspirar a outra (CARVALHO, 1999). Uma das consequências desse modelo é que as relações entre o indivíduo e a sociedade eram muito mais estáveis e não problemáticas, ao menos no que se referia ao contraste entre os valores da comunidade e os valores do indivíduo. Dessa forma, pode-se dizer que: [...] a realização pessoal, tal como hoje a entendemos, é um problema que não se coloca para o homem medieval. A crença cristã da salvação no céu após a morte, adia a satisfação da vida terrena para a eternidade, tornando a frustração normal e esperada (CARVALHO, 1999, p. 729).

Somente com o declínio do Cristianismo e dos regimes monárquicos é que perguntas como as de La Boétie encontrariam terreno fértil: 8

“O Discurso somente faz sentido ao leitor obstinado que não hesita em voltar atrás, sem cessar, naquilo que acredita ter compreendido. Sempre, um novo quadro de leitura se oferece, límpido, nunca definitivo, jogo de pista infernal no labirinto das dúvidas peculiares ao leitor. Também é preciso reconsiderar quem é o Um e de qual encantamento ele procede. Na verdade, o Um não é este “outro” que governa, em qualquer instituição política diferenciada do social, mas sim a ordem na qual e pela qual a multidão dos homens é reconduzida à unidade. E os sucos que digerem as nações, as embriagam e as encantam, são, talvez, a secreção do próprio desejo destas” (ORTIZ, 1998, apud TONETI, 2009, p. 97).

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Promove-se assim uma cultura estritamente individualista, resultado de um processo secular iniciado no século XVIII que culmina no advento das sociedades democráticas assentes na soberania do indivíduo e do povo. Trata-se de uma verdadeira revolução individualista, através da qual, pela primeira vez na história, o ser individual, igual a qualquer outro, é percebido e percebe-se como fim último, concebendo-se isoladamente e conquistando o direito à livre disposição de si próprio (CARVALHO, 1999, p. 730).

É, portanto, a partir da noção moderna de subjetividade que o sujeito acredita pensar e agir, determinar e escolher a partir de si mesmo, de forma que o pensar adquire caráter isolado dos fatores externos e pertence unicamente ao sujeito que pensa: “o sujeito é o princípio por excelência do pensamento e da ação” (MOSÉ, 2011, p. 124). Mas La Boétie foi mais além. Não bastasse colocar em análise, de forma notavelmente atípica para a época, a vontade do sujeito como possível fonte legitimadora de sua ação, identificou nessa vontade um paradoxo que desafia a compreensão: O Discurso da servidão voluntária, como seu título indica, debruça-se sobre um enigma: como os homens, seres naturalmente livres, usaram a liberdade para destruíla? Como é possível uma servidão que seja voluntária? De fato, escreve La Boétie, servidão voluntária é alguma coisa que a Natureza, ministra racional de Deus e boa governante de todas as coisas, se recusou a ter feito – isto é, a servidão voluntária ou o poder separado do Estado não é obra da Natureza. Mas servidão voluntária é também algo que a própria linguagem se recusa a nomear, pois essa expressão é um oximoro, visto que a vontade livre e servidão são opostas e contrárias: toda vontade é livre e só há servos por coerção ou contra a vontade, coisa de que até bichos dão prova. O enigma, portanto, é duplo: como homens livres se dispuseram livremente a servir e como a servidão pode ser voluntária? (CHAUI, 2014, p. 126).

O texto de La Boétie conduz o leitor para o centro do que se pode identificar como uma certa tensão. Isso porque ao dar destaque para a vontade do sujeito, reconhecendo-lhe legitimidade para servir de paradigma para sua ação, o resultado é abrir o caminho para atribuir à vontade individual o máximo de sua potência. A sonhada liberdade passa a estar ao alcance de um simples ato de vontade: Eu não lhe pediria tão vivamente para recuperar a liberdade se lhe custasse alguma coisa. [...] Se para ter a liberdade basta desejá-la, se para isso basta um simples desejo, haverá nação no mundo que ainda a considere cara demais, podendo obtê-la com uma simples aspiração? (LA BOÉTIE, 2009, p. 36).

A tensão se instala, no entanto, quando o texto constata que o exercício dessa vontade pelos homens se faz em desfavor de sua potência libertadora. O autor observa que essa vontade carrega algo de seu negativo, é marcada por algo que não se apresenta, algo que ainda não tem nome. Há por trás dessa vontade algum tipo de vício: Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que desgraça é essa? Por que vício, e vício horrível, vemos um grande número de pessoas não só

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obedecer mas servir, não ser governadas mas tiranizadas, sem possuir bens, sem pais, nem filhos, nem sequer sua própria vida? Sofrendo as rapinas, as truculências e as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais cada um deveria arriscar o sangue e a vida para defender-se, mas de um só. Não de um Hércules ou de um Sansão, mas de um homenzinho só, muitas vezes o mais covarde e efeminado da nação, não acostumado à poeira das batalhas, mas a muito custo à areia dos torneios, não só incapaz de comandar os homens pela força, mas ainda de servir de maneira indigna à menor mulherzinha. (LA BOÉTIE, 2009, p. 33-34).

Ao tentar identificar a natureza desse vício La Boétie se pergunta se é de covardia que se trata. Afirma que se dois, três ou quatro não se defendem de apenas um só, isso é estranho, porém é possível. Pode lhes faltar fibra. A compreensão vai perdendo espaço quando cem, quando cem mil sofrem a opressão de um só, e pergunta: “dir-se-ia ainda que não querem ou não ousam ataca-lo por desprezo ou desdém, e não por covardia?” (LA BOÉTIE, 2009, p. 34). O autor conduz a hipótese da covardia ao seu ápice, ponto a partir do qual ela perde sustentação: E quando vemos não cem, não mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens se absterem de atacar aquele que trata a todos como servos e escravos, que nome poderemos dar a isso? Será covardia? Todos os vícios têm naturalmente um limite, além do qual não podem passar. Dois homens, e mesmo dez, podem ter medo de um só. Mas que mil, um milhão, mil cidades não se defendam de um só homem certamente não é covardia, pois ela não chega a esse ponto, assim como a valentia não exige que um só homem escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. (LA BOÉTIE, 2009, p. 34).

La Boétie impulsiona a compreensão racional do fenômeno aos seus extremos na tentativa de apreender a natureza desse vício. Não faz concessões a uma visão condescendente do tiranizado, sublinhando que não é preciso combater nem derrubar o tirano: para destrui-lo basta não consentir com sua servidão. Não é preciso sequer tirar-lhe algo, é só não lhe dar nada (LA BOÉTIE, 2009).9 Na forma como construído o argumento de La Boétie, o leitor vai sendo obrigado a se deparar com a incômoda percepção inarredável do papel ativo do tiranizado na construção e manutenção de sua condição, ou seja, o enigmático “desejo de servir”. E assevera: São, por conseguinte, os próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar, pois seriam livres se parassem de servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à

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A predisposição dos sujeitos de entregar de bom grado seus principais valores, como a liberdade, não passou despercebida por Nietzsche. Zaratustra, quando desce da montanha e encontra o santo no bosque, diz a ele que traz uma dádiva aos homens, ao que ele responde “Nada lhes dês – disse o santo. – Pelo contrário, tira-lhes qualquer coisa e eles logo te ajudarão a levá-la. Nada lhes convirá melhor, de que quanto a ti te convenha” (NIETZSCHE, 2016, p. 23).

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liberdade e aceita o jugo, quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura. (LA BOÉTIE, 2009, p. 36).

Esgotadas as tentativas de apreensão do fenômeno sob o ponto de vista lógico e aparente, o autor cede à impotência dos argumentos e deixa a pergunta que continuaria instigando o pensamento até os dias atuais: “Então, que vício monstruoso é esse, que não merece sequer o título de covardia, que não encontra nome suficientemente indecoroso, que a natureza se nega a conhecer e a língua se recusa a pronunciar?” (LA BOÉTIE, 2009, p. 34). Outro aspecto que importa destacar no “Discurso da servidão voluntária” por refletir, da mesma forma, a originalidade do pensamento de La Boétie, são os trechos que apontam para um questionamento sobre as origens desse vício que é desejo de servir. Para La Boétie a igualdade e a solidariedade são da natureza do homem e o constituem em sua origem. Se a natureza, “ministra de Deus e governante dos homens”, na distribuição que fez de seus dons, concedeu alguma vantagem de corpo ou de espírito mais para uns que para outros, o fez apenas para dar espaço à afeição fraterna e para que ela tivesse lugar para ser praticada, pois uns teriam o poder de ajudar e outros a necessidade de recebe-la. Em razão disso, “não pode entrar no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto alguém em servidão, porque ela nos reuniu a todos em companhia” (LA BOÉTIE, 2009, p. 40). A partir dessa premissa, a própria servidão e seu complemento, a vontade de servir, só podem ter nascido de algum evento fortuito, há muito inacessível à memória dos viventes, que causou esse desvio da natureza humana fraterna e manchou com o vício o desejo de liberdade.10 Sobre esse “mau encontro”, assim escreve Marilena Chaui (2014, p. 51): A natureza, ratio e proportio, nos faz servos de ninguém. Como, então, tudo pode terse tornado de um? De onde veio a desproporção? Que mau encontro foi esse? Mau encontro: numa expressão que lembra a definição aristotélica da fortuna ou da contingência como encontro inesperado de séries causais independente, La Boétie indica que a servidão voluntária, contingência pura, poderia jamais ter acontecido. Seu acontecer é fruto de um mau encontro e, por isso, é acontecimento que a natureza, sempre necessária e jamais contingente, nega ter produzido; e que a língua não pode nomear porque vontade e liberdade nos são naturais, sempre foram conceitos indiscerníveis, e o que é ‘por natureza’ não pode ser ‘por constrangimento’, servidão e vontade não podendo andar juntas. Em suma, servidão voluntária é um oximoro.

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“O antropólogo Pierre Clastres reconheceu o valor de La Boétie ao mostrar a possibilidade de que a dominação não seja algo inevitável e que a servidão voluntaria pode ser atribuída ao resultado de um infortúnio histórico, ou mesmo pré-histórico, algo como uma queda original, um lapso da condição primitiva de liberdade e sem Estado para uma sociedade dividida entre dominantes e dominados. O resultado desse lapso seria que o homem passa a ocupar uma posição inominável, algo entre a condição do humano e do animal: ‘tão alienado da sua liberdade natural que escolhe livremente, deseja, a servidão – um desejo que era completamente desconhecido nas sociedades primitivas’” (NEWMAN, 2011, p. 26).

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O próprio La Boétie deixará clara sua intuição no sentido de que esse evento que cruzou a história humana e instaurou entre os homens a dinâmica da servidão voluntária, esse “mau encontro”, tem alguma relação com a linguagem: O próprio tirano trata de outorgar-se títulos para manter o povo adorando seu Nome: Os imperadores romanos também não se esqueceram do seguinte: de comumente tomar o titulo de Tribuno do povo, tanto porque esse oficio era considerado santo e sagrado como porque era estabelecido para a defesa e proteção do povo. E o Nome encobre os efeitos reais da tirania. E por meio dos favores desse oficio assegurava-se de que o povo confiaria mais neles, como se dele devessem ouvir o nome e não, ao contrario, sentir os efeitos. O titulo de “Tribuno do povo” chega a dissimular os atos tirânicos ou, de preferência, a atribuir-lhes uma justificação. Os títulos são a legitimação, a razão suficiente do tirano. Em outras palavras, a tirania não pode se mostrar a descoberto, para que o povo aceite servir, é preciso emprestar-lhe a máscara dos nomes e títulos. É preciso dar-lhe legitimidade, e esta legitimação passa pelo discurso. O argumento mais persuasivo desta sofisticada tirania, aquele sobre o qual todos os outros se fundamentam, é a simples invocação dos nomes, títulos e qualidades do príncipe. E, nesta invocação legitimante, a linguagem, contra os fatos, contra a evidência, é autorizada somente por si própria. (LA BOÉTIE, 1999, apud TONETI, 2009, p. 178).

De acordo com Toneti (2009), o “Discurso da servidão voluntária” revela a face obscura da tirania, os mecanismos pelos quais a realidade apresenta-se à consciência sistematicamente mascarada pela astúcia dos tiranos. Tal astúcia consiste justamente em gerir a dominação com a mais eficiente economia da força. Nada melhor do que legitimar a tirania fazendo com que ela passe pela linguagem, estabelecendo um mecanismo de atribuição de títulos e nome ao tirano. Assevera o autor que uma vez estabelecida uma tirania, a linguagem passa a desempenhar uma outra função. Se antes era veículo e avalista da liberdade comum, agora: [...] torna-se o suporte da servidão dos homens ao Um. Sua primeira tarefa consiste, doravante, em celebrar o Um sob a substância do Nome; a tecer, em torno do Nome de Um, a infinita rede da ideologia; a proclamar a univocidade do político e a tornar impossível qualquer discurso de volta, qualquer contradição (TONETI, 2009, p. 178).

Sob essa perspectiva, o diálogo numa sociedade livre, no que chama de “sociedade natural”, é o meio privilegiado pelo qual cada um pode reconhecer o outro e, da mesma forma, reconhecer-se no outro, permitindo que todos possam se reconhecer mutuamente em sua respectiva liberdade. Portanto, ao contrário, quando a vontade de servir investe a linguagem e esta passa a ser seu veículo, a palavra torna-se instrumento de desconhecimento radical do outro e de si mesmo, ou seja, de sua natureza segundo a qual são todos seres destinados à liberdade (TONETI, 2009). É preciso ressaltar que a liberdade, para La Boétie, está indissociada da possibilidade de reconhecimento mútuo pelos sujeitos de suas respectivas singularidades. Nesse contexto,

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Toneti aponta para um fator de alienação que resulta da linguagem sob um regime de dominação. Embora se possa discordar do autor sobre ser a comunicação da liberdade uma função “natural” da linguagem, é sobre essa liberdade que recaem os efeitos desse regime: [...] que a linguagem sob o regime da dominação é o meio-termo totalmente disposto da alienação. A própria palavra encontra-se alienada à medida que está desviada, pela vontade, de seu uso natural, que é assegurar a comunicação da liberdade e a comunhão na liberdade. (TONETI, 2009, p. 178).

La Boétie reconhece, assim, o poder ambíguo da palavra e a dinâmica ambivalente da linguagem na instauração e na manutenção das relações de servidão. Há nesses instrumentos de relação um mecanismo interno de produção de sentidos no qual os sujeitos podem emaranhar-se e, alienados de suas particularidades, tornam-se presas fáceis das relações de servidão: La Boétie evoca o poder da linguagem, um poder equívoco, pois ao mesmo tempo é constitutivo da relação política que ele lamenta e instrumento da dominação que ele deplora, além de arma da crítica que ele instaura. A fala e a palavra que foram concedidas para dar acessibilidade ao saber e resistência à ignorância, aliadas à imagem, são também os instrumentos desta mesma ignorância. O poder é exercido, assim, por intermédio de vontades que se encadeiam a ele, pelo simples poder da imagem e da palavra (TONETI, 2009, p. 179).

Marilena Chaui (2014) afirma que La Boétie desvenda a própria gênese desse vínculo secreto formado entre a linguagem e o poder, mas sobretudo o poder do discurso, ou seja, a retórica como instrumento de dominação política, em que a política de um poder uno e separado daqueles que lhe sustentam atua como um jogo de força e persuasão. Entende que não é sem propósito que La Boétie escreve que não pretende “pregar ao povo”, isto é, ocupar o lugar de um porta voz de um discurso que carrega uma verdade a ser apreendida pelos leitores. Ao revés, reconhece que o destino insólito da obra que transita entre o panfleto e a retórica acadêmica, nunca se deixando apreender pelos demagogos, só pode ser explicado pelo seu caráter estrutural de contradiscurso, “que não se oferece como um outro discurso positivo contraposto ao estabelecido, mas simplesmente desmonta as evidências costumeiras” (CHAUI, 2014, p. 18). Nesse sentido, a resposta de La Boétie para a servidão voluntária não vem na forma de conceito, de categoria estática a ser apreendida e tornada bandeira nas mãos dos operadores do discurso para os fins que lhes convenham. Não. A genialidade do precoce pensador está justamente na constatação de que a resposta que ele oferece se camufla sob os signos do texto, de forma que com eles não se confunde, mas pode ser inferida dos efeitos que ele causa.

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Em cada tentativa de interpretação exercida sobre o “Discurso” que tenta domesticar seu conteúdo, ele instaura um dispositivo interno de desmontagem que inviabiliza a versão do intérprete único. O efeito do “Contra um” não é colocar em xeque apenas o poder político concentrado na mão do soberano, mas principalmente o poder do discurso único. Não é, da mesma forma, um contradiscurso no sentido no sentido material, que opõe a um argumento um outro que lhe é contrário, reproduzindo ou inaugurando dualismos. O contradiscurso se faz num sentido operatório. Sobre o tema, assevera Marilena Chaui (2014, p. 129): O Discurso da servidão voluntária foi durante muito tempo designado com o título de Contra Um pois, de fato, é um contradiscurso. Com efeito, o Discurso desmonta a construtura da tradição filosófica, jurídica e política ao um discurso que, operando com os termos herdados, os volta contra si mesmos. Assim como não indaga sobre a legitimidade ou a ilegitimidade do poder, nem distingue os regimes políticos pelo número de governantes, assim também nele se entrecruzam e se embaralham todos os termos que a tradição tão claramente havia distinguido e já não sabemos o que é por Natureza, por fortuna, por coação, por vontade.

Assim, a melhor resposta que La Boétie poderia dar para o problema da servidão voluntária, era oferecer um exemplo de exercício da linguagem que instaura uma dinâmica na qual todo discurso que recai sobre seu texto acaba por resvalar, fazendo renovar, repetidamente, as tentativas de apreensão definitiva. A recusa que o texto faz, insistentemente, a uma apropriação (dominação) discursiva aponta para a ideia de que resistir à servidão voluntária é, antes de um mero ato de rebeldia, um verdadeiro procedimento. Mas, se La Boétie parece identificar uma série de fatores, como a coação e a ilusão (arquitetada pelo discurso), que indicam as formas pelas quais o tirano sobe ao poder, as respostas não são satisfatórias para explicar sua conservação nesse lugar ou, em outras palavras, explicam por que o poder se separa da sociedade, mas não bastam para explicar por que ele assim se conserva (CHAUI, 2014). Qual seria, pois, a boa resposta? Assim afirma Chaui (2014, p. 128): Agora, porém, La Boétie parece encontrar a boa resposta: a tirania se conserva pela força do costume. Este é uma segunda natureza, e os humanos, inicialmente forçados ou inicialmente iludidos, se acostumam a servir e criam seus filhos alimentando-os no leite da servidão; por isso os que nascem sob a tirania não a percebem como servidão e servem voluntariamente, pois ignoram a liberdade. O costume, portanto, é o que nos ensina a servir.

La Boétie afirma ser incrível observar como o povo, após ser submetido, cai num esquecimento profundo de sua liberdade, a ponto de não conseguir despertar para reconquistála. Ao revés, sente-se ganhador de algo: “Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-

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lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão” (LA BOÉTIE, 2009, p. 44). Reconhece que de início serve-se obrigado, pois vencido pela força, mas os que vêm depois reproduzem, de forma voluntária, aquilo que seus antepassados fizeram por imposição. O texto desvela, portanto, um aspecto que diz sobre uma repetição, de algo que se perpetua pelas gerações com uma força notável: “[...] o hábito, que exerce em todas as coisas um poder irresistível sobre nós, não tem em lugar nenhum força tão grande quanto a de nos ensinar a servir”, força que supera a da natureza, pois “um bem natural, por melhor que seja, perde-se quando não é cultivado, e o hábito nos conforma sempre à sua maneira, apesar da natureza” (LA BOÉTIE, 2009, p. 45). Marilena Chaui vai reconhecer uma certa nota trágica nessa repetição pela qual a servidão voluntária se perpetua. Isso porque ela não pode ser considerada nem uma “ilusão involuntária”, nem uma “imitação mal sucedida”, mas há nessa repetição um inegável desejo de produção da servidão. Afirma a autora: Todas as contrafações descritas não são o insucesso da cópia ou do simulacro, mas a criação efetiva de uma realidade positiva e idêntica a si mesma, um mau encontro desejado. Justamente por esse motivo, aquilo que deveria operar como paradigma, como “bom modelo” perdido em cada uma e em todas as contrafações, não é posto como positividade a ser resgatada: a natureza se faz costume, o costume se faz memória, a memória se faz repetição, a repetição se faz analogia e a analogia, identificação. A servidão voluntária não percorre um caminho, trabalha para traçá-lo (CHAUI, 2014, p. 50-51).

Como toda tentativa de resposta que La Boétie formula para suas próprias questões, a identificação do papel do costume na manutenção da servidão voluntária não encerra a discussão sobre como ela se torna perene no corpo social. A reprodução de um arcabouço simbólico e de práticas reiteradas do costume não se faz apenas de forma abstrata, mas depende de uma estrutura orgânica que forme a rede intrincada que dá suporte ao poder do Um. Constata o autor, portanto, que: [...] aquele que vos oprime tem só dois olhos, duas mãos, um corpo, nem mais nem menos que o mais simples dos habitantes do número infinito de vossas cidades. O que ele tem a mais são os meios que lhe destes para destruir-vos. De onde tira tantos olhos que vos espiam, se não os colocais à disposição dele? Como tem tantas mãos para vos bater, se não as empresta de vós? Os pés com que pisoteia vossas cidades não são também os vossos? Tem algum poder sobre vós que não seja de vós mesmos? Como se atreveria a atacar-vos, se não tivesse vossa conivência? (LA BOÉTIE, 2009, p. 38).

Com essa constatação, La Boétie insere no contexto da análise da servidão voluntária um elemento sem o qual os demais elementos – quais sejam, o “mau encontro” ancestral, a coação ou ilusão original que submeteu os primeiros, a apropriação discursiva que a servidão

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faz da linguagem e a perpetuação e transmissão do modelo servil pelo hábito e pelo costume – restariam desprovidos de concretude. O jovem francês enfoca no complexo quadro da dominação o aspecto corporal da tirania. O poder do tirano precisa transbordar os limites de seu corpo para estender-se sobre o tecido social, e isso se faz pelos efeitos de sua dominação sobre o corpo daqueles que funcionam como longa manus do poder do Um que, se por um lado se submetem ao tirano, por outro exercem sua parcela de tirania sobre seus próximos, os chamados “tiranetes”: A posição mais assentada de La Boétie para o segredo da tirania é a de que o tirano mantém-se porque toda uma rede de pequenos tiranos ou tiranetes lhe apoia e, por sua vez, se apoiam nele. Com essa rede ininterrupta de colaboradores, La Boétie parece apontar para o que, mais tarde, viria a consolidar o Estado Moderno, opinião compartilhada na leitura de Simone Goyard-Fabre. O que sustenta o monarca absoluto é essa complexa máquina burocrática de homens dispostos a obedecer e a mandar em nome dele. Por isso, infere-se de La Boétie que todo o que obedece é porque espera obter algum benefício do tirano, porque espera poder exercer um domínio absoluto sobre uma determinada parcela da sociedade, sobre um determinado grupo de homens (TONETI, 2009, p. 176).

Dirá La Boétie (2009, p. 64) que isso sempre aconteceu, porque cinco ou seis obtiveram a confiança do tirano e se aproximaram dele, por conta própria ou porque foram chamados a serem “cúmplices de suas maldades, companheiros de seus prazeres, favorecedores de suas libidinagens e beneficiários de suas rapinas”. Esses seis têm seiscentos à sua disposição e reproduzem com eles o que o tirano lhes fez, e os seiscentos fazem com seis mil, e assim por diante: É enorme a fileira daqueles que o seguem. E quem quiser destrinçar os fios dessa meada verá que, não seis mil, mas cem mil e milhões estão ligados ao tirano por uma corda, da qual ele se serve como Júpiter em Homero, que se gaba de poder trazer a si todos os deuses ao puxar a sua corrente (LA BOÉTIE, p. 64).

Não se pode concluir, a partir disso, que esse corpo coletivo pelo qual a tirania se estende sobre toda a sociedade se impõe, externamente, aos corpos individuais daqueles que servem. Lembre-se que o ponto central do “Discurso da servidão voluntária” é justamente apagar os limites entre tirano e tiranizado e, assim, tentar compreender por que o indivíduo concede seu corpo para compor essa rede de dominação, formando com ela uma unidade. No mesmo sentido é a conclusão de Marilena Chaui (2014, p. 13-14): [...] esse “um”, dotado apenas de dois olhos, duas mãos, dois ouvidos e dois pés, frequentemente um homúnculo covarde, e não um sansão ou um Hércules, encontrase provido de milhares de olhos e ouvidos para espionar, de milhares de mãos para pilhar, de milhares de pés para esmagar. Onde obteve esse corpo gigantesco? Sois vós, escreve La Boétie, que lhe dais todos os órgãos de que precisa para vos manter sob seu poderio, para vos destruir e às vossas famílias, para pilhar vossos bens e

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derramar vosso sangue em guerras que o fortalecem para vos enfraquecer. É o povo o gerador do corpo do soberano que o aniquila. Não há, pois, “um” oposto ao “muitos”, porém um corpo político ativamente produzido pelo dominador.

Para La Boétie existe um tipo de relação que se opõe em todos os termos á relação que decorre da servidão voluntária. Tal relação, livre do "vício", da submissão, da obediência, da tirania, do aspecto efeminado da servidão ao "um", portanto, seria o campo por excelência da existência, da realização e da liberdade do sujeito. Uma relação que não se baseia na desigualdade decorrente dos desníveis da verticalidade, mas na igualdade própria das relações horizontais. A relação a que La Boétie se refere é a relação de amizade. A amizade, para o autor, é um "sentimento sagrado, uma coisa santa", que "nasce da estima mútua" e que não se alimenta da busca por benefícios. A amizade é a base da relação libertária, pois o que dá a um amigo a certeza da amizade do outro é justamente o reconhecimento de sua integridade (LA BOÉTIE, 2009, p. 71). A partir dessa oposição, pode-se inferir que para La Boétie a relação de amizade seria algo como o antídoto para a relação de tirania. Assevera que onde há uma amizade não se podem encontrar a crueldade, a deslealdade, a injustiça, pois quando os maus se reúnem o que se forma não é uma sociedade, mas uma conspiração; o que existe entre eles não pode ser chamado de amor, mas de temor, sendo antes cúmplices do que amigos (LA BOÉTIE, 2009). Como ressalta Marilena Chaui (2014), o texto de La Boétie não oferece um programa de ação política, ele simplesmente contrapõe ao “todos unidos” da servidão voluntária o “alguns”, ou seja, os amigos, pois a amizade possui um sentido secreto que, decifrado, pode revelar sua dimensão política: A amizade só é possível entre iguais e se mantém apenas se os amigos não elevarem um dos seus acima deles, convertendo-o em senhor. Liberdade é ser “servo de ninguém” e só é possível se a igualdade entre os diferentes não se transformar entre desigualdade entre superiores e inferiores. Liberdade é amizade, e amizade é não elevação de um (CHAUI, 2014, p. 18).

Nesse contexto, não servir significa apenas resgatar aquilo que é contrário à servidão, ou seja, a igualdade dos amigos: “Ao nome do Um, La Boétie opõe o nome da amizade; ao discurso do poder, uma outra fala” (CHAUI, 2014, p. 19). Considerando o que foi exposto, pode-se verificar que La Boétie lança um olhar atento para as relações de poder entre os homens de sua época e, da mesma forma, volta esse olhar para o passado, no estudo dos autores clássicos e da história de algumas das cidades que deram

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origem à civilização europeia ocidental, na tentativa de apreender o intrigante fenômeno da servidão voluntária, sem vislumbrar uma resposta. Seu trabalho não é em vão, uma vez que inaugura as principais frentes de reflexão sobre o tema, dentre as quais foram destacadas até agora a questão da origem da servidão voluntária, do papel desempenhado pelo tiranizado, dos mecanismos simbólicos que garantem sua perpetuação, dos efeitos do discurso do tirano sobre os corpos e de uma possível superação. Se passado e presente não bastaram para explicar a servidão voluntária, resta a La Boétie lançar seus palpites sobre uma realidade hipotética, uma projeção imaginária do surgimento de uma gente nova, ainda não tocada pela liberdade ou pela falta dela, como se pairasse acima desse dualismo, e que, diante dele, pudesse escolher entre uma e outra. Qual seria sua escolha? Assim escreve o autor: Mas suponhamos que, por acaso, nascessem hoje algumas pessoas novas, não acostumadas à sujeição, nem atraídas pela liberdade, e que até ignorassem o nome de uma e de outra, e fosse proposto a elas ser escravas ou viver livres, qual seria sua escolha? Sem dúvida alguma prefeririam de longe obedecer somente à razão a servir um homem [...] (LA BOÉTIE, 2009, p. 43).

Essa alusão que La Boétie faz a uma “gente nova” não se restringe a uma fantasia de um povo novo, diferente, um outro no qual poderíamos nos inspirar, mas traz em si, embutida, a referência a um aspecto humano, comum a todos, sobre o qual até então a reflexão não se debruçou adequadamente, mas que carrega um potencial ainda inaudito. Marilena Chaui (2014, p. 133) adverte nesse sentido: Eis por que a “gente toda nova” surge no texto para figurar algo aparentemente contraditório: de um lado, para figurar a humanidade enquanto tal, a universalidade originária do gênero humano e, de outro, levar ao reconhecimento de que essa universalidade humana, ou a humanidade enquanto racional e livre desapareceu. A “gente toda nova” não deseja a servidão voluntária, por isso recusa a gênese do poder separado. A “gente toda nova” figura a universalidade humana e a memória (ontológica) da origem perdida. Não são o Outro: são o humano nos homens. Não são a nova figura do Mesmo: são o humano tornado outro para si mesmo.

Não é possível afirmar com convicção se a sociedade europeia que sucedeu a La Boetie produziu um exemplar ideal da tal “gente nova”, que diante das forças e do fascínio da servidão voluntária daria um destino diferente aos caminhos do desejo. Mas certo é que sua profecia sobre qual seria a escolha dessa gente, diante da opção por servir ou não voluntariamente a um senhor, se concretizaria de modo instigante no seio da literatura norte-americana do século XIX.

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2 Na Nova York do século XIX, um escrevente preferiria não. Depois de aproximadamente três séculos da publicação do “Discurso da Servidão Voluntária” de La Boétie, o tema da servidão voluntária encontraria uma nova forma de expressão, demonstrando que as questões que ele suscita não estão restritas ao campo das teorizações filosóficas, sociais e políticas, mas marcariam presença também na arte. Na literatura, um personagem de comportamento peculiar colocará em cena uma configuração original da servidão voluntária na pena de Herman Melville, em sua clássica novela “Bartleby, o escrevente: Uma história de Wall Street”. Originalmente, a obra foi publicada em duas partes, a primeira na edição de novembro e a segunda na edição de dezembro da revista de literatura Putnam’s Monthly, no ano de 1853, em Nova York. A história é narrada por um advogado, mais velho, que em razão de seu trabalho teve a oportunidade de conhecer um grupo interessante de homens, os copistas ou escreventes, e resolveu escrever sobre o “mais estranho dos escreventes” de que teve notícias, o jovem Bartleby. Proprietário de um escritório dedicado a títulos, hipotecas e propriedades de gente abastada, tinha como empregados dois copistas, Turkey e Nippers, com comportamentos opostos e complementares11, e um jovenzinho promissor que lhe servia de contínuo, Ginger Nut, para cuja “mente afiada toda a nobre ciência das leis cabia numa casca de noz” (MELVILLE, 2014, p. 23). Com o aumento considerável de seus negócios iniciais – tabelionato, autenticação e cópia de documentos os mais diversos – decorrente de sua nomeação para o cargo de Oficial do Arquivo Público, anunciou uma vaga para escrevente para a qual se apresentou Bartleby, com sua “fragilidade asseada, sua miséria apresentável, sua ruína insondável!” (MELVILLE, 2014, p. 24). Instalou Bartleby em sua própria sala, separado por um biombo verde de telas altas, de forma que ficasse fora de seu campo de visão, mas ao alcance de sua voz, e, assim, “poder-se-ia dizer que ali estavam, unidos, o público e o privado” (MELVILLE, 2014, p. 25). Superando as expectativas de seu empregador, Bartleby produziu uma quantidade extraordinária de cópias, sem conhecer pausa para digestão, copiando dia e noite, com luz do 11

“Para minha sorte, graças a uma estranha causa – a má digestão –, a irritabilidade e o consequente nervosismo de Nippers tinham ocorrência predominantemente matinal, enquanto à tarde ele apresentava-se relativamente calmo. Visto que os paroxismos de Turkey começavam a partir do meio-dia, nunca fui obrigado a lidar com as excentricidades de ambos ao mesmo tempo. Os ataques de um e de outro se rendiam como sentinelas. Quando Nippers estava em serviço, Turkey folgava, e vice-versa. Dada a situação, a dinâmica era boa e razoável” (MELVILLE, 2014, p. 22). Como refere Deleuze (2011, p. 99), são “dois copistas que, um pouco como os escriturários de Kafka, são duplos invertidos, um normal pela manhã e embriagado de tarde, o outro em estado de perpétua indigestão de manhã, mas quase normal à tarde”.

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sol ou luz de velas, numa dedicação desacompanhada de uma alegre industriosidade mas, ao contrário, “ele escrevia em silêncio, apático, mecânico” (MELVILLE, 2014, p. 26). No terceiro dia, o advogado chamou Bartleby de supetão para fazer sua primeira verificação de uma cópia de documento, ao que o escrevente respondeu com voz firme e tranquila, para a perplexidade do patrão: “Preferiria não”.12 A mesma resposta seria dada repetidamente por Bartleby ante as requisições de seu patrão, ao mesmo tempo em que passa a executar cada vez menos suas tarefas, até cessar completamente qualquer atividade, causando cada vez mais perplexidade e confusão ao advogado e aos demais no escritório. Diante dessa peculiar resposta, o advogado passa a se valer de uma série de estratagemas voltados a um único objetivo: alcançar a obediência de Bartleby. Num primeiro momento, o advogado simplesmente repete a requisição a Bartleby para que proceda a conferência das cópias, por supor que não tenha sido claramente compreendido. Ao receber a mesma resposta, apela à sua autoridade de chefe e ordena Bartleby que o faça, ordem diante da qual a resposta se repete: “Preferiria não” (MELVILLE, 2014). Em uma situação seguinte, novamente requisita a Bartleby que realize a conferência junto aos outros funcionários, ao que ele responde “Preferia não”. Dessa vez, o advogado tenta convocar Bartleby para a arena da razão e pergunta “Por que você se recusa?”, ao que ele responde “Preferiria não”. O advogado, então, lança mão de argumentos, com a intenção de fazer laço com o aspecto lógico da mente de Bartleby, porém a resposta não se altera, uma vez que, segundo o advogado, resistia nele “alguma fidelidade maior” (MELVILLE, 2014, p. 2930). É nesse ponto que o advogado dirige sua fala a Bartleby e faz alusão a um dos elementos identificados por La Boétie como uma das principais causas da perpetuação da servidão voluntária, o costume: “Você está decidido, portanto, a não assentir com meu pedido – pedido que se faz segundo os costumes e a justiça inerentes ao senso comum?”. Com apenas um gesto, Bartleby confirma a conclusão do advogado (MELVILLE, 2014, p. 30). Ao perceber a ineficácia de suas investidas, o advogado busca dar consistência a seus argumentos convocando os colegas de trabalho de Bartleby a opinarem sobre sua atitude, mas 12

Descrente da resposta que recebeu, o advogado repetiu a ordem, ao que recebeu a mesma resposta. Normalmente não admitiria esse tipo de atitude, mas notou algo em Bartleby que aguçou sua curiosidade. Algo de inumado: “Duro, observei-o. Havia firmeza em seu semblante; o cinza soturno de seus olhos sugeria calma. Nenhuma linha de inquietude perturbava-lhe a placidez do rosto. Tivesse havido a menor manifestação de incômodo, raiva, impaciência ou insolência em seus modos – em outras palavras, tivesse identificado nele qualquer coisa de humano e corriqueiro –, não tenho dúvida de que o teria enxotado porta afora” (MELVILLE, 2014, p. 27-28).

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o apoio de seus semelhantes ao discurso do chefe não foi capaz de obter de Bartleby sequer uma resposta, tendo permanecido em silêncio atrás de seu biombo (MELVILLE, 2014). O advogado decide dar continuidade aos trabalhos mesmo sem a participação de Bartleby, pois os “negócios urgiam” – o que aponta para o caráter objetivo e pragmático de sua personalidade. Nesse trecho da obra, Melville novamente faz referência ao costume: Conseguimos, não sem um pouco de dificuldade, passar os papéis em revista com Bartleby ausente, não obstante a cada página ou duas Turkey expressasse, com todo o respeito, sua opinião quanto ao fato de tal situação ser contrária aos costumes, e Nippers, contorcendo-se na cadeira com todo seu nervosismo dispéptico, remoesse entredentes eventuais insultos contra o teimoso imbecil detrás do biombo (MELVILLE, 2014, p. 31).

O advogado decide mudar sua estratégia e variar o conteúdo de suas requisições, na esperança de obter um outro comportamento de Bartleby, uma vez que sua insistente recusa pudesse estar relacionada apenas à conferência de cópias. Assim, ordena ao escrevente que vá ao correio verificar se há alguma correspondência e, depois, que vá a outra sala e peça a Nippers que venha até sua presença, mas acaba por obter em ambos os casos a clássica resposta: “Preferiria não” (MELVILLE, 2014). Ao descobrir por acaso que Bartleby fez do escritório a sua casa e passou a habitá-lo, o advogado decide que terá uma conversa com o escrevente e caso ele se recusasse a responder abertamente e sem reservas as suas perguntas, dispensaria seus serviços. Na manhã seguinte, pergunta a Bartleby se poderia dizer onde nasceu, ao que responde “Prefiro não”; faz então um último apelo e lhe questiona se poderia dizer alguma coisa, qualquer coisa, sobre si, porém a resposta permanece a de sempre (MELVILLE, 2014). É então que o advogado se socorre do valor da amizade para convencer seu funcionário: “Mas que razão você tem para me dar? Neste momento, coloco-me à sua disposição como um amigo”. O recurso ao laço afetivo da amizade não comove o escrevente, que afirma “No presente momento, prefiro abster-me de resposta” (MELVILLE, 2014, p. 4647). Apesar de irritado com a resposta, o advogado não fez “valer seu pulso” e não dispensou o escrevente (MELVILLE, 2014). A uma certa altura da narrativa, após ver frustradas todas as estratégias de convencer Bartleby a cumprir suas determinações, seu chefe decide demiti-lo, numa última tentativa de exercer alguma forma de autoridade sobre o escrevente. Descreve sua estratégia de despedi-lo como uma engenhosa elaboração de um discurso. Um discurso tão bem elaborado, a seu ver, que a partida de Bartleby, ou seja, a obediência mesma, é um “pressuposto”. Essa ideia merece atenção:

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Caminhando para casa, pensativo, minha vaidade acabou por superar minha compaixão. Tão somente comemorava minha habilidade superior em me livrar de Bartleby. Eu a julgava superior, e assim ela devia parecer a qualquer juiz imparcial. A beleza de meu procedimento parecia consistir em sua perfeita tranquilidade. Não me vali de ameaças e violências vulgares, nem de bravatas e intimidações coléricas, marchando de um ponto a outro do escritório e lançando ordens veementes a Bartleby para que recolhesse seus trapos e desaparecesse com sua miséria da minha frente. Nada do gênero. Sem ordens ou exageros vocais – esses dignos de um gênio inferior –, transformei sua partida em pressuposto; e tendo-o como base de tudo, construí meus argumentos. Quanto mais pensava sobre minha postura, mais ficava encantado com ela. Não obstante, na manhã seguinte, ao acordar tive minhas dúvidas – era o descanso que dissipava os fumos da vaidade. O momento que imediatamente sucede o despertar pela manhã é um dos mais tranquilos e sábios que um homem pode conhecer. Meu procedimento ainda me parecia sagaz – contudo, apenas na teoria. Como teria se provado na prática, eis a dificuldade. Era um pensamento realmente belíssimo o da partida de Bartleby; no frigir dos ovos, no entanto, essa era uma ideia que cabia apenas a mim; de Bartleby não havia garantias. A grande questão, portanto, não era se eu julgava pressuposta sua partida, mas se ele teria preferido leva-la a cabo. Ele era um homem de preferências, não de pressupostos. (MELVILLE, 2014, p. 53) (grifo nosso).

Essa passagem da obra, rica de possibilidades interpretativas, nos fornece ideias fortes para pensar a questão da servidão voluntária. Na voz da personagem que narra a história – o chefe de Bartleby –, o autor acaba por intuir o que poderíamos identificar como um dos principais mecanismos de manutenção e reprodução da servidão voluntária como regra entre os sujeitos: o domínio dos mecanismos da linguagem. Nesse ponto, temos as primeiras aproximações da obra de Melville com as ideias de La Boétie. Bartleby é um perfeito exemplar da “gente nova” imaginada pelo autor francês, uma gente que caso pudesse escolher entre servir ou não, preferiria não. Mas se Bartleby é um homem de “preferências” e não de “pressupostos”, como alcançou êxito em desvencilhar-se destes últimos se, uma vez estabelecidos, acabam por se impor como uma decorrência natural de determinada estruturação do discurso? Sobre os mecanismos da linguagem, assim discorre Deleuze (2011, p. 96-97): O próprio advogado faz a teoria das razões pelas quais a fórmula de Bartleby arrasa a linguagem. Toda linguagem, sugere ele, tem referências ou pressupostos (suposições, assumptions). Não é exatamente o que a linguagem designa, mas o que lhe permite designar. Uma palavra supõe sempre outras palavras que podem substituí-la, completa-la ou formar com ela alternativas: sob essa condição a linguagem se distribui de modo a designar coisas, estados de coisas e ações, segundo um conjunto de convenções objetivas, explícitas. Talvez haja também outras convenções, implícitas e subjetivas, um outro tipo de referências ou de pressupostos. Ao falar, não só indico coisas e ações, mas já realizo atos que asseguram uma relação com o interlocutor segundo nossas situações respectivas: mando, interrogo, prometo, rogo, emito “atos de fala” (speech act). Os atos de fala são autorreferenciais (eu efetivamente mando ao dizer “ordeno-lhe...”), enquanto as proposições constatativas referem-se a outras coisas e a outras palavras. Ora, é esse o duplo sistema de referências que Bartleby arrasa.

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La Boétie advertiu, séculos antes, que o tirano se vale da linguagem e com a invocação dos “nomes, títulos e qualidades”, ou seja, com o uso das referências, enlaça o tiranizado na rede de significantes que perpetua seu poder. Não é por outra razão que, para fazer resistência, Bartleby se coloca acima de qualquer referência: Ele mesmo acrescenta: “mas não sou um caso particular”, “não tenho nada de particular”, I am not particular, para indicar que qualquer outra coisa que lhe pudessem propor seria ainda uma particularidade, sucumbindo por sua vez sob o golpe da grande fórmula indeterminada, PREFIRO NÃO, que subsiste de uma vez por todas e em todas as vezes (DELEUZE, 2011, p. 92).

Não parece sem razão que a configuração dos personagens de Melville constela um “homem da lei”, um advogado, guardião e aplicador das regras, que exerce seu domínio sobre um aprendiz, Ginger Nut, a ser treinado no costume da obediência, mas principalmente sobre outros dois copistas, Turkey e Nippers, que representam os “repetidores” e são “duplos invertidos” das respectivas particularidades que os caracterizam. Sobre a natureza dos “particulares”, discorre Deleuze (2011, p. 108): Os particulares, que podem ser muito numerosos num romance, têm características que determinam sua forma, propriedades que compõem sua imagem; recebem a influencia do meio e uns dos outros, de sorte que suas ações e reações obedecem a leis gerais, conservando cada vez um valor particular. Do mesmo modo, as frases que pronunciam lhes são próprias, mas não deixam de obedecer às leis gerais da língua.

Bartleby, embora também seja copista, paira acima de Turkey e Nippers e os ultrapassa, pois não se deixa enlaçar pelas particularidades, pelos “nomes” utilizados pela linguagem, o que lhe garante um regime de exceção e, por raciocínio inverso, lhe isenta da influência do meio e dos outros, bem como da obediência às normas gerais, podendo assim pronunciar frases que não obedecem às leis gerais da língua. A clássica frase de Bartleby “Eu preferiria não” (“I would prefer not to”) foi objeto de atenta reflexão por Gilles Deleuze em seu texto “Bartleby, ou a fórmula”. A potência do recurso linguístico do misterioso personagem de Melville fica clara na frase de Deleuze (2011, p. 91), segundo quem “Um homem magro e lívido pronunciou a fórmula que enlouquece todo o mundo”. Mas afinal, no que consiste tal fórmula? O mais comum na língua inglesa seria a resposta I had rather not, que seria uma negativa pura e simples de uma requisição. No entanto, esclarece Deleuze (2011, p. 91) que a fórmula I would prefer not to acaba por gerar diferentes efeitos:

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[...] sobretudo a extravagância da fórmula extrapola a palavra em si: sem dúvida, ela é gramaticalmente correta, sintaticamente correta, mas seu término abrupto, NOT TO, que deixa indeterminado o que ela rechaça, lhe confere um caráter radical, uma espécie de função-limite. Sua reiteração e insistência a tornam, toda ela, tanto mais insólita. Murmurada numa voz suave, paciente, átona, ela atinge o irremissível, formando um bloco inarticulado, um sopro único. A esse respeito tem a mesma força, o mesmo papel que uma formula agramatical.13

Agamben (2015, p. 29) vai ressaltar o caráter anafórico da expressão, que na forma em que articulada acaba por elevar esse caráter a seu grau absoluto: É como se o to que conclui a fórmula, que tem um caráter anafórico – pois não remete diretamente a um seguimento de realidade, mas a um termo precedente, do qual, e somente do qual, pode extrair seu significado – se absolutizasse até perder toda referência, voltando-se, por assim dizer, sobre a própria frase: anáfora absoluta, que gira sobre si mesma, sem se remeter mais nem a um objeto real nem a um termo anaforizado (I would prefer not to prefer not to).

Além de estabelecer uma indistinção naquilo que se refere à ação de Bartleby, ou seja, sobre o objeto de sua preferência a respeito do que fazer, a frase também produz uma indeterminação no que se refere ao tempo. O verbo preferir, utilizado no futuro do pretérito do indicativo “preferiria”, ao passo que retira a ação de Bartleby da referência ao presente, colocando-a em suspenso num futuro hipotético, somente ganharia consistência temporal se acompanhada de um complemento (“fazer outra coisa”, “fazer num outro momento”, “não fazer nada”). Porém, ao ser seguido apenas de um “não”, a fórmula se fecha em si mesma nessa dimensão atemporal, onde a preferência da personagem existe apenas como potência entre o nada e o algo, entre o agora e o futuro, entre o sempre e o nunca. Bartleby se torna “instantâneo”: Bartleby é um homem sem referências, sem posses, sem propriedades, sem qualidades, sem particularidades: é liso demais para que nele se possa pendurar uma particularidade qualquer. Sem passado nem futuro, é instantâneo. I PREFER NOT TO é a fórmula química ou alquímica de Bartleby, mas pode-se ler ao avesso, I AM NOT A PARTICULAR, não sou particular, como o complemento indispensável (DELEUZE, 2011, p. 98).

Conforme ressalta Agamben (2015, p. 26-27), mesmo quando a fórmula é pronunciada abdicando do condicional na forma “prefiro não”, isso se faz apenas para marcar a oposição da

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A fórmula agramatical seria aquela que se apresenta como um limite, um tensor, de uma série de variáveis gramaticais ordinárias corretas. Assim, “preferiria não” seria o limite de uma série tal como “preferiria isto, preferiria não fazer aquilo, não é o que eu preferiria...”. Mas Deleuze (2011, p. 92) dirá que a fórmula de Bartleby não é desse tipo, “ao mesmo tempo estereotipia do próprio Bartleby e expressão altamente poética de Melville”, afirma que “Apesar de sua construção normal, ela soa como uma anomalia”.

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“preferência”, que funda a ação de Bartleby, frente ao “querer”, que anima as ações do advogado: Quando, à sua solicitação para ir aos Correios (“Não quer dar um pulo até os Correios [...]?”), Bartleby opõe o frequente preferiria não, o homem da lei apressa-se em traduzi-lo por “Você não quer?” (You will not?); mas Bartleby precisa, com sua voz “suave e firme”: “prefiro não” (I prefer not é a única variante, que aparece três vezes, da fórmula habitual: I would prefer not to. Se Bartleby renuncia ao condicional, é apenas porque lhe importa eliminar qualquer traço do verbo querer, mesmo que seja em seu uso modal).

Deleuze (2011) vai ressaltar o aspecto arrasador, devastador da fórmula, que nada deixa subsistir atrás de si, pois I would prefer not to não consiste em uma afirmação, mas também não configura uma negação. Dirá Agamben (2015, p. 29) que “Bartleby não consente, mas também não refuta simplesmente; e nada lhe é mais estranho do que o pathos heroico da negação”. A um só tempo Bartleby não aceita o comando e tampouco afirma um preferível que seria continuar copiando, numa fórmula que ao recusar sucessivamente qualquer outro ato, acaba por engolir o ato de copiar, que já dispensa a necessidade de uma recusa expressa. Em suma: A fórmula é arrasadora porque elimina de forma igualmente impiedosa o preferível assim como qualquer não-preferido. Abole o termo sobre o qual incide e que ela recusa, mas também o outro termo que parecia preservar e que se torna impossível. De fato, ela os torna indistintos: cava uma zona de indiscernibilidade, de indeterminação, que não para de crescer entre algumas atividades não-preferidas e uma atividade preferível. A fórmula aniquila “copiar”, a única referência em relação à qual algo poderia ser ou não ser preferido. (DELEUZE, 2011, p. 94).

Ainda segundo Deleuze (2011), a fórmula ao mesmo tempo que exclui qualquer alternativa, engole o que pretende conservar, bem como descarta qualquer outra coisa. A consequência é que Bartleby para de copiar, ou seja, de reproduzir palavras (nelas mora o perigo), cavando uma zona de indeterminação em que as palavras já não mais se distinguem e produz um vazio na linguagem.14 Com seu potencial libertador, a fórmula “desarticula os atos de fala, segundo os quais um patrão pode comandar, um amigo benevolente fazer perguntas, um homem de fé prometer” (DELEUZE, 2011, p. 97). Para além da mera negação, que poderia defini-lo como um rebelde ou revoltado (rótulos que o capturariam em um papel social determinado), a fórmula desarticula 14

“[...] e eis que Bartleby extrai dos escombros um traço de expressão, PREFIRO NÃO, que vai proliferar sobre si, contaminar os outros, afugentar o advogado, mas também fazer fugir a linguagem, aumentar uma zona de indeterminação ou de indiscernibilidade tal que as palavras já não se distinguem umas das outras e os personagens tampouco, o advogado fugindo e Bartleby imóvel, petrificado” (DELEUZE, 2011, p 100-101).

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todo ato de fala e exclui Bartleby de toda situação social que possa lhe ser atribuída. Como afirma Mathew Lindon (1978, apud DELEUZE, 2011, p. 97), ela corta a linguagem de qualquer referência, dando ensejo à vocação absoluta desse personagem: ser um “homem sem referências”, aquele que surge e desaparece sem referência a si mesmo nem a outra coisa. A partir dos efeitos identificados, pode-se dizer que a frase de Bartleby se vale dos elementos da linguagem, se camufla sobre seus signos para nela transitar, mas traz para seu interior um elemento de desarticulação, tal qual um “cavalo de Troia”. Nesse sentido, a fórmula de Bartleby desempenha, frente às artimanhas discursivas do advogado, a mesma função de resistência que o “Discurso da servidão voluntária” de La Boétie opera em relação aos intérpretes que tentam restringir o alcance de seu conteúdo, qual seja, a função de contradiscurso, assim definido: Por contradiscurso, entendemos um discurso que não se erige como positividade contra outro discurso igualmente positivo, mas um discurso que se elabora na medida em que abala a positividade do discurso instituído desvelando o não senso que o sustenta. O contradiscurso solapa a opinião instituída e desloca o pensamento para um novo lugar onde a interrogação abre-se ao que não podia ser pensado sem franquear para si um novo caminho (CHAUI, 2014, p. 137).

Da mesma forma que o “Discurso da servidão voluntária”, o livro de Melville é uma obra multifacetada que revela uma superfície diversa para cada ponto diferente a partir do qual se queira abordá-lo, tal qual um poliedro que a depender do ângulo de observação revela uma diferente forma geométrica, sem que uma exclua a outra. Um cilindro, por exemplo, visto de cima parece ser um círculo, visto de lado parece ser um retângulo. E não deixa de ser todas essas coisas ao mesmo tempo. Sendo assim, a fórmula de Bartleby produzirá diferentes efeitos a depender de qual personagem da obra seja tomado como referência para organizar essa análise. Se considerado, primeiramente, o próprio Bartleby, pode-se concluir que o uso de sua fórmula linguística “eu preferiria não” teve um efeito devastador sobre o poder do advogado de produzir sobre ele (ou convencê-lo a voluntariamente participar de) qualquer forma de servidão. Nesse sentido, Bartleby é o mensageiro de algo novo, de grande valor, de um “novo testamento”, o que sem dúvida causa impressão.15 Isso levará Deleuze e Agamben a reconhecerem na “fórmula” a pedra filosofal que levou Bartleby a transmutar toda referência simbólica que se lançava sobre ele em um elemento

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Assim como o Barnabás kafkiano, como mensageiro Bartleby “tinha sido enviado para algum misterioso desígnio por uma providência onisciente, que um simples mortal não pode sondar” (AGAMBEN, 2015, p. 32).

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a mais para compor sua liberdade de todo e qualquer símbolo. Bartleby passa a ser, portanto, o próprio símbolo da potência libertadora, melhor dizendo, da potência em si mesma. Agamben (2015) ressalta que para Aristóteles todo potencial de ser ou de fazer algo é sempre, ao mesmo tempo, o potencial de não ser ou de não fazer. Aponta que essa “potência de não” (o “potencial not to”) é o segredo cardeal da doutrina aristotélica da potencialidade, que transforma toda potencialidade em si mesma numa impotencialidade. É, também, a partir da metáfora aristotélica de que a escrita representa o próprio ato de criação em absoluto que, como Bartleby em sua última e exausta configuração, o escrivão que deixa de escrever representa a perfeita potencialidade, que nada em absoluto separa agora do ato de criação. Afirma o autor: Esta é a constelação filosófica que Bartleby, o escrevente, pertence. Como escriba que cessou de escrever, ele é a figura extrema do nada do qual procede toda criação e, ao mesmo tempo, a mais implacável reivindicação desse nada como pura, absoluta potência. [...] Não espanta, portanto, que ele permaneça de modo tão obstinado no abismo da possibilidade e não pareça ter a menor intenção de dele sair (AGAMBEN, 2015, p. 26).

Permanecer “obstinado no abismo da possibilidade” não parece ser uma condição das mais favoráveis. Mas a outra opção tampouco oferece conforto. Como ressalta Agamben (2015, p. 35), “ater-se apenas ao ser e à sua necessária positividade, também isso é difícil, mas não é precisamente esse o sentido do complicado cerimonial da onto-teo-lógica ocidental, cuja moral mantém uma secreta solidariedade com o hóspede que gostaria de expulsar?”. É de se perguntar se seria justamente dessa natureza a solidariedade que o servo tem com a tirania e, da mesma forma, a solidariedade que o advogado tem com seu escrevente Bartleby. A grande façanha do personagem de Melville seria a de ser “capaz, numa pura potência, de suportar o ‘não mais’ [il non piuttosto] para além do ser e do nada, permanecer até o fim na impotente possibilidade que excede a ambos – tal é a experiência de Bartleby” (AGAMBEN, p. 35). Nesse sentido, o exercício dessa potência passaria pela superação dos princípios que regem a razão, prática da qual Bartleby representaria um laboratório: O biombo verde que isola seu escritório traça o perímetro de um laboratório em que a potência, três decênios antes de Nietzsche, e em um sentido de todo diverso, prepara um experimento no qual, libertando-se do princípio de razão, emancipa-se tanto do ser quanto do não ser e cria sua própria ontologia (AGAMBEN, 2015, p. 35).

Importante ressaltar, contudo, que “a indiferença entre o ser e o nada não é, porém, uma equivalência entre dois princípios opostos, mas o modo de ser de uma potência que se purificou de toda razão” (AGAMBEN, 2015, p. 34).

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Assevera Agamben (2015) que ninguém sonharia em verificar a fórmula do escrevente, pois se trata de um experimento sem verdade, ou seja, não diz respeito ao ser ou não ser em ato de algo, mas se refere exclusivamente ao seu ser em potência. A potência, por sua vez, pode ser ou não ser ao mesmo tempo e, portanto, fica por definição subtraída das condições de verdade e, principalmente, à ação do “mais forte dos princípios”, o princípio da contradição. Diz o autor que um ser “que pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, chama-se, em filosofia primeira, contingente. O experimento em que Bartleby se arrisca, é um experimento de contingência absoluta” (AGAMBEN, 2015, p. 38). Segundo esse conceito, o contingente, este que pode ser ou não ser, se opõe ao “necessário” e, nessa qualidade, coincide em todos os seus termos com a liberdade humana. Liberdade humana que, nesse contexto, passa necessariamente por rechaçar um sistema de regras hegemônico, desarticular os mecanismos que esse sistema institui no uso da linguagem e, depois disso, resistir nesse espaço de potencialidade pura, sem ceder à tentação de instituir uma nova lei e, por consequência, uma nova rede de significantes enredada pela linguagem. Nesse sentido, adverte Marilena Chaui (2014, p. 51): Não havendo paradigma a recuperar nem positividade a restaurar, compreende-se que o avesso da contrafação servil não seja uma realidade determinada, um regresso à “boa mãe” natureza, mas atividade de pura negação: não servir. Por isso, a liberdade é profundamente enigmática: “só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não por outra razão senão que, se a desejassem, tê-la iam; como se recusassem a fazer essa bela aquisição só porque é demasiado fácil” (CHAUI, 2014, p. 51).

A gravidade dos efeitos que Bartleby causa na Lei vigente é de tal forma instauradora de uma nova ordem que seu caráter é aproximado ao do messiânico: Bartleby é um law-copist, um escriba em sentido evangélico, e o seu renunciar à cópia é também um renunciar à Lei, um liberar-se da “antiguidade da letra”. Como em Josef K., também em Bartleby os críticos viram uma figura de Cristo (Deleuze diz: “um novo Cristo”), que vem abolir a velha Lei e inaugurar um novo mandato (ironicamente, é o próprio advogado que nos lembra: “A new commandment give I unto you, that ye love one another”16). Mas se Bartleby é um novo Messias, ele não vem como Jesus, para redimir o que foi, mas para salvar o que não foi. (...) Ele não vem trazer uma nova tábua da Lei, mas, como nas especulações cabalísticas sobre o reino messiânico, para levar a Torá ao seu cumprimento, destruindo-a de cima a baixo. A Escritura é a Lei da primeira criação (que os cabalistas chamam de “Torá de Beriah”), na qual Deus criou o mundo a partir da sua potência de ser, mantendo-a separada da sua potência de não ser. Toda letra dessa Torá é, por isso, voltada tanto para a vida quanto para a morte, significa tanto o anel quanto o dedo ao qual estava

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Em inglês no original, traduzido por “Um novo mandato vos dou, que vos ameis uns aos outros” (AGAMBEN, 2015, p. 51).

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destinado e que se desfaz na tumba, tanto o que ficou como o que não pode ser (AGAMBEN, 2015, p. 51-52).

É importante ressaltar que um dos efeitos mais notáveis dessa forma de abolição dos antigos códigos da lei, realizada por Bartleby, é instaurar um campo de pura potência que tem como uma das principais consequências colocar um fim à repetição, o que aponta no sentido de que há algum tipo de relação entre lei, linguagem e repetição. Afirma Agamben que a “interrupção da escritura assinala a passagem à criação segunda, na qual Deus reclama para si a sua potência de não ser e cria a partir do ponto de indiferença entre potência e impotência”, em que a criação que se realiza “não é uma recriação, nem outra repetição eterna”, mas efetivamente “uma descriação na qual o que aconteceu e o que não foi são restituídos à sua unidade originária na mente de Deus, e o que podia não ser e foi se esfuma no que podia ser e não foi” (AGAMBEN, 2015, p. 52). Deleuze (2011, p. 102) também ressaltou o efeito da fórmula no aniquilamento da repetição, pois “I PREFER NOT TO é também um traço de expressão que contamina tudo, fugindo à forma linguística, destituindo o pai de sua palavra exemplar, tanto quanto o filho de sua possibilidade de reproduzir ou de copiar”. Com efeito, a derrubada da Lei deve, nessa esteira, ser acompanhada da desnaturalização do campo através do qual ela se propaga, qual seja, a linguagem, através de um procedimento adequado. Nisso o procedimento de Bartleby é imbatível: Talvez seja ela que cava na língua uma espécie de língua estrangeira. [...] Mas, se é verdade que as obras-primas da literatura formam sempre uma espécie de língua estrangeira no interior da língua em que são escritas, qual é o vento de loucura, qual sopro psicótico se introduz assim na linguagem? É próprio da psicose por em ação um procedimento que consiste em tratar a língua ordinária, a língua standart, de modo a fazê-la “restituir” uma língua original desconhecida que talvez fosse uma projeção da língua de Deus e que arrasta consigo toda linguagem (DELEUZE, 2011, p. 95).

É exatamente esse símbolo da liberdade humana que faz de Bartleby um personagem tão caro para esses dois expoentes do pensamento contemporâneo, Agamben e Deleuze. Se La Boétie imaginou, a seu tempo, que haveria uma “gente nova” que faria a opção por não aderir à servidão voluntária, Bartleby seria o perfeito exemplar dessa gente, denominada de “originais” por Deleuze (2011, p. 109), alguns séculos depois: Figuras de vida e de saber, sabem algo inexprimível, vivem algo insondável. Não têm nada de geral e não são particulares: escapam ao conhecimento, desafiam a psicologia. Mesmo as palavras que pronunciam transbordam das leis gerais da língua (os “pressupostos”), assim como as simples particularidades da fala, visto que são como os vestígios ou projeções de uma língua original única, primeira, e levam toda a linguagem ao limite do silêncio e da música. Bartleby nada tem de particular, tampouco de geral, é um Original.

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Dirá Deleuze (2011) que o mais elevado problema que obseda a obra de Melville é reconciliar o original e a humanidade segunda, o inumano com o humano, o que só é possível caso seja reconhecido que não há bons pais, que só existem pais monstruosos e devoradores, como a figura do advogado, e filhos sem pai, petrificados. Diante disso, a reconciliação dos originais e a salvação da humanidade dependem da dissolução e decomposição da função paterna. Com a queda da máscara do pai é possível liberar o fruto de que Bartleby estava prenhe, a relação fraternal pura e simples. “Liberar o homem da função de pai, fazer nascer o novo homem ou o homem sem particularidades, reunir o original e a humanidade, constituindo uma sociedade dos irmãos como nova universalidade. Na sociedade dos irmãos, a aliança substitui a filiação, e o pacto de sangue, a consanguinidade” (DELEUZE, 2011, p. 111).

Esse apontamento de Deleuze revela um paralelo central entre o texto de La Boétie e o livro de Melville que, para o objetivo do presente trabalho, precisa ser sublinhado. As obras colocam em evidência dois vetores de relação subjetiva a partir dos quais a reflexão (ou a narrativa) se desenvolve, o vertical e o horizontal. Assim como para La Boétie a hierarquia entre o soberano e o servo é a sede da submissão e da perda de liberdade, em Bartleby a relação com o chefe remete a um vínculo hierárquico com as figuras simbolicamente paternas que conduz ao mesmo resultado. Sob a leitura de Deleuze, a via da libertação em Bartleby passa justamente pelo mesmo trajeto proposto por La Boétie, qual seja, o da dissolução e decomposição da função paterna, seja ela ocupada pelo pai, pelo chefe ou pelo soberano. É somente com o desfazimento das amarras desse vínculo servil que seria possível abrir espaço para o desenvolvimento da relação ideal que está no destino da realização subjetiva, a relação horizontal, de natureza fraternal e igualitária, a tão cara a La Boétie relação de amizade. Segundo Deleuze, a fraternidade, para Melville, é uma questão de almas originais, ou seja, talvez só comece com a morte do pai ou de Deus, mas não deriva diretamente disso. É uma questão diferente, pois exige uma nova perspectiva, uma boa percepção, ouvido e vista, o que chama de “percepto”, isto é, “uma percepção em devir, que deve substituir o conceito” (DELEUZE, 2011, p. 115). Entretanto, sem prejuízo das considerações de Agamben e Deleuze sobre a potência contida no peculiar personagem de Melville em “Bartleby, o escrevente”, não se pode deixar de notar que o trajeto da narrativa não se encerra no ápice da aquisição dessa potência. O destino final que Melville reserva para Bartleby alerta para algo de trágico ou, no mínimo, arriscado na conduta do personagem.

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Depois de tornar sem efeitos as ordens e apelos de seu chefe no sentido de conferir as cópias que produzia ou mesmo de realizar outras tarefas, Bartleby para inclusive de copiar: “Você deixou de fazer cópias, entendi bem?” “Deixei de fazer cópias”, ele respondeu e saiu. No entanto, ele permaneceu – como se fosse parte da mobília do meu escritório.

A partir desse trecho, em que Bartleby já está livre das amarras das identificações e dos efeitos dos discursos do advogado sobre sua vontade ou sua conduta, o enredo passa a apontar para algo que começa a se perder. Bartleby começa a sofrer os efeitos de uma “coisificação” ou, visto de outro modo, um esvaziamento de sua subjetividade. Diante da recusa de Bartleby de exercer suas funções de copiar, o advogado dispensa seus serviços e lhe prescreve um prazo de seis dias para desocupar o escritório. Ao notar que após o prazo estabelecido Bartleby continua em seu posto, diz que ele tem que partir e o escrevente responde “Prefiro não ir”. O advogado se vale então do peso dos deveres e diz “Mas você deve”, diante do que Bartleby permanece em silêncio. Reafirma que ele deve ir , lhe deixa um dinheiro em sua mesa e pede para que tranque o escritório quando se for, “Mas ele não respondeu uma palavra; em pé, como a última coluna de um templo em ruínas, ele permaneceu, mudo e solitário, no meio do escritório vazio” (MELVILLE, 2014, p. 53). Passados os dias e utilizadas mais uma série de argumentos pelo advogado, sem qualquer sucesso, Bartleby permanecia no escritório, imóvel e em silêncio, sem fazer nada além de se dedicar a seus devaneios diante de sua janela, que dava para uma parede. O advogado acaba por se dar conta da impotência de seus argumentos e de suas razões no intento de demover Bartleby do escritório e conclui que a única coisa a se fazer é mudar seu ofício de endereço e deixar Bartlebuy ali. No dia da mudança, despediu-se de Bartleby e tentou lhe entregar um dinheiro em mãos, que o escrevente sequer deu-se ao trabalho de segurar. Bartleby passou a ser um mero corpo sem qualquer sinal de vontade que o movesse (MELVILLE, 2014). O novo inquilino do escritório expulsou Bartleby da sala e ele passou a ocupar as escadas e corredores do prédio, o que causava espécie aos outros inquilinos e preferindo permanecer assim acabou por ser recolhido e levado à prisão. Ao saber da notícia, o advogado foi visita-lo, apenas para testemunhar que Bartleby se recusava a falar e agora também a comer. Numa segunda visita, dirigiu-se a Bartleby que estava no pátio, encolhido ao pé do muro, joelhos dobrados para cima e cabeça sobre a pedra fria, com olhos abertos e sem brilho. Tomou sua mão e sentiu um calafrio, quando o cozinheiro da prisão se aproximou e perguntou se ele precisava de uma janta para viver, ao que o advogado respondeu:

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“Não precisa”, disse eu, e fechei-lhe os olhos. “Ei! Pera lá... ele tá dormindo, né?” “Com reis e conselheiros”, murmurei.

Essa síntese da parte final do livro de Melville permite traçar um percurso diverso daquele que foi delineado por Agamben e Deleuze ao analisarem a trajetória de Bartleby. É como se esses dois autores identificassem na ação do personagem uma curva ascendente que tem em seu ápice o alcance de um estado de liberdade e de potência absoluta. De fato, a uma certa altura da narrativa, todo e qualquer discurso do advogado perde o condão de causar o mínimo efeito sobre a vontade de Bartleby. Contudo, a continuidade da narrativa por Melville conduz o leitor à um prolongamento dessa curva, que passa a apresentar um sentido descendente, formando uma parábola que termina com o perecimento de Bartleby, sozinho, na prisão. Tal imagem resiste a uma apropriação otimista do destino de Bartleby, ainda que Deleuze17 se sustente num possível caráter messiânico e Agamben18 no sacrifício natural de um portador de uma mensagem mais importante que sua vida. Nesse contexto, a fórmula linguística de Bartleby causa um efeito desarticulador dos emaranhados da linguagem, tecidos com os signos de identificação que capturam a vontade do sujeito. Se do ponto de vista filosófico isso significa um alcance da liberdade entendida como a criação de um estado máximo de potência, por outro lado, do ponto de vista subjetivo a saída definitiva dos enlaces do jogo da linguagem significa, ao menos na hipótese de Melville, uma sentença de morte. Portanto, Bartleby carrega uma mensagem no mínimo ambivalente. Em outros termos, Bartleby arrasa de tal forma os sistemas de enlace subjetivo da linguagem e de seus mecanismos de identificação que passa a habitar um lugar de eterno “devir” que não permite, por exemplo, para usar uma referência de La Boétie, sequer o estabelecimento de relações horizontais, supostamente livres da servidão, como a relação de amizade. Há algo de humanamente insuportável nesse lugar: Em primeiro lugar, o traço de expressão informal se opõe à imagem ou à forma expressada. Em segundo lugar já não há sujeito que se eleva até a imagem, com êxito ou fracassando. Diríamos de preferência que uma zona de indistinção, de indiscernibilidade, de ambiguidade se estabelece entre dois termos, como se eles tivessem atingido o ponto que precede imediatamente sua respectiva diferenciação:

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Deleuze (2011, p. 105) vai situar Bartleby na classificação de uma categoria de grandes personagens de Melville constituída por “anjos ou santos hipocondríacos, quase estúpidos, criaturas de inocência e de pureza”, vitimados por uma fraqueza constitutiva, mas dotados também de uma estranha beleza, “e que preferem... absolutamente nenhuma vontade, um nada de vontade a uma vontade de nada”. 18 “Aqui termina para sempre a viagem da carta, que, em mandato de vida, se apressava rumo à morte. E aqui está finalmente em casa a criatura, salva porque irredimível. Por isso o pátio murado ‘não é assim um lugar tão triste’. Há o céu e há a grama. E a criatura sabe perfeitamente ‘onde se encontra’” (AGAMEN, 2014, p. 53).

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não uma similitude, mas um deslizamento, uma vizinhança extrema, uma contiguidade absoluta; não uma filiação natural, mas uma aliança contranatureza. Trata-se de uma zona “hiperbórea”, “ártica”. Já não é uma questão de Mimese, porém de devir [...] (DELEUZE, 2011, p. 102-103).

Talvez o personagem de Melville represente um alerta que aponta para a necessidade de um passo a mais, uma abdicação do estado puro de potência após sua conquista, um retorno aos meandros da linguagem, porém sob uma nova forma, uma forma que possa dar lugar de existência para uma outra subjetividade, agora purificada dos antigos laços de servidão com o tirano, mas sob o risco sempre iminente da formação de novos. Afinal, “Os perigos da ‘sociedade sem pais’ foram denunciados com frequência, mas o único perigo é o retorno do pai” (DELEUZE, 2011, p. 116). Porém, antes de acarretar a despedida de Bartleby do mundo dos vivos, o trajeto descendente da parábola em que o uso da fórmula começa a lhe subtrair a subjetividade até seu esgotamento final, causa um efeito interessante que vale notar. À medida que Bartleby se torna menos “sujeito” e sua personalidade se esvazia de toda e qualquer vontade, maior é a proporção que sua corporeidade vai assumindo na narrativa. Ora, La Boétie (2009) já havia alertado para o fato de que a servidão voluntária não precisa ser combatida num sentido positivo: basta não dar ao tirano aquilo que ele pede. O que resulta dessa negação é que a vontade do soberano perde o suporte material que lhe é indispensável, ou seja, a vontade do soberano não faz corpo. Sem uma rede de “tiranetes” que sirva de suporte corporal para a propagação da vontade do tirano, veiculada pelos “nomes e títulos” de seu discurso, ela não tem qualquer eficácia. Uma corporeidade insubmissa é, portanto, uma via potente para resistir à servidão. Bartleby, ao passo que se torna menos um sujeito de vontades (ou sujeito de desejo) e cada vez mais um corpo insubordinado, gera impactos negativos sobre os efeitos da linguagem, que perde o condão de submetê-lo (mas também de movê-lo), porém gera uma notável série de feitos positivos ao seu redor. Essa é uma ideia forte que vale ser ressaltada. Na segunda parte da narrativa, não é a ação do escrevente que ganha destaque, mas sim aquilo que ele revela jogando luz em seu entorno: O Original, diz Melville, não sofre a influência de seu meio, mas, ao contrário, lança sobre o entorno uma luz branca lívida, semelhante àquela que ‘acompanha no Gênesis o começo das coisas’” [...] Os originais são os seres da Natureza primeira, mas são inseparáveis do mundo ou da natureza segunda, e aí exercem seu efeito: revelam seu vazio, a imperfeição das leis, a mediocridade das criaturas particulares, o mundo como mascarada (é o que Musil por sua vez chamará de a “ação paralela”...) (DELEUZE, 2011, p. 109).

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Na narrativa de Melville, o primeiro efeito que o corpo insurreto de Bartleby causa é uma desarticulação dos discursos do advogado que o obriga a rearticular, repetidamente, o jogo de argumentos, papéis e identificações na tentativa de submeter o escrevente. O advogado se vale do papel de chefe e de empregado, invocando a hierarquia social; do papel de empregado de Bartleby frente aos outros empregados, apelando à igualdade; do papel de sujeito razoável, perguntando os motivos do escrevente; do papel de amigo, apoiando-se sobre os laços afetivos; do papel de suplicante, ancorando-se na humildade. Por fim, ante a falência de toda e qualquer investida discursiva e a presença bruta e imóvel do corpo de Bartleby, o último efeito da conduta do escrevente é que o advogado desiste de submetê-lo. Ele se retira da cena e muda de escritório. O advogado, por questões de preservação narcísica, deixa de fazer uso do último recurso do tirano quando suas palavras não alcançam o objetivo da submissão: a coação física e a submissão violenta do corpo insubordinado, medida que será adotada por quem lhe sucede na posse do escritório e que resulta na prisão de Bartleby. Assim, o uso da fórmula por Bartleby envolve o desencadeamento de efeitos diversos que se sucedem, sendo possível estabelecer uma síntese de ao menos duas trajetórias. A de Bartleby, que parte de um contexto de submissão, mas que gradualmente desarticula o poder dos discursos sobre seu comportamento, até atingir um ápice de potência de criação de si mesmo. Entretanto, a continuidade no uso da fórmula, a partir desse ápice, passa a lhe subtrair a própria subjetividade, a ponto de lhe reduzir a um mero corpo sem vontade que sucumbe à morte. E a trajetória do advogado, que diante da ineficácia de cada discurso articulado para obter um comportamento de Bartleby, se vê obrigado a reelaborar sucessivamente narrativas de relação (chefe-empregado, trabalhador-trabalhador, amigo-amigo, suplicante-soberano) na tentativa de capturar a vontade do escrevente em algum tipo de identificação. Esse processo acaba por revelar o utilitarismo de seus estratagemas e o narcisismo de seus interesses, até que diante de um corpo inerte nada reste a não ser encerrar a produção de discursos e, via de consequência, abdicar da dominação.19 Destacados os aspectos do conto de Melville que podem ser lidos a partir das elaborações de La Boétie, cumpre dar mais um pequeno salto na história para fazer uma incursão por algumas descobertas de um médico vienense que abririam novos caminhos de interpretação para as questões de identificação, da relação do corpo com a linguagem, da 19

Como diria Hamlet em seu ultimo suspiro de vida, “O resto é silêncio” (SHAKESPEARE, 2014, p. 173).

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formação das massas e sua relação com o líder, das ambiguidades do desejo e, por que não, da “servidão voluntária”.

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3 Na Viena do século XX, um psicanalista fala sobre massas. Apenas três anos após a publicação de “Bartleby, o escrevente: Uma história de Wall Street”, Amalia Nathansohn pôs no mundo seu primeiro filho dos oito que teria com Jacob Freud. No dia 06 de maio de 1853, na casa de número 117 da rua dos Serralheiros em Freiberg in Mähren (atualmente Příbor, um município da República Checa), nasceu Sigismund Schlomo Freud. Originalmente médico neuropatologista e nerologista clínico, Sigmund Freud descobriu a origem psíquica dos sintomas dos pacientes histéricos e posteriormente desenvolveu uma teoria da mente humana, trabalhando teoricamente sobre ideias como de inconsciente, interpretação dos sonhos, sexualidade infantil e seus desdobramentos na vida adulta, bem como criou um método terapêutico, a psicanálise, para investigação e tratamento das neuroses. “A maneira pela qual Freud desenvolveu suas ideias, entre o final do século 19 e grande parte do século 20, marcou definitivamente o pensamento contemporâneo” (LIMA, 2001, p. 9). Dos desdobramentos de suas teorias sobre o psiquismo individual, Freud vai extrair uma nova concepção de cultura. Como afirma Luiz Tenório Lima (2001, p. 55), a “compreensão de aspectos profundos da personalidade humana, do ponto de vista psicanalítico, lhe permitiu estabelecer novos nexos entre os indivíduos e o grupo social, que não haviam sido percebidos pela ciência social da época”. Em “Psicologia das massas e análise do Eu”, Freud (1921) assevera que a oposição entre psicologia individual e psicologia social é muito menor do que possa parecer à primeira vista. Se é verdade que a psicologia individual se refere ao indivíduo particular e os caminhos da satisfação de seus impulsos instituais, também o é que apenas excepcionalmente ela pode abstrair das relações desse particular com os outros indivíduos. É a partir da relação com o Outro20 nos primórdios de sua formação que o indivíduo obtém elementos e modelos para a formação de seus processos psíquicos individuais. Somente num segundo momento, com a organização das instâncias psíquicas fundamentais do Eu e do Supereu, é que ser tornam observáveis os processos denominados narcísicos ou estritamente individuais (FREUD, 1921). Sobre o texto de Freud, afirma Ricardo Goldenberg (2014, p. 30): Freud se inspira assim nas doutrinas em vigor para desmontar seus alicerces e opera com a psicologia coletiva a mesma ruptura que tinha realizado com a psicologia

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A reprodução da palavra “Outro” com letra maiúscula se faz em observância ao que consta na versão da obra consultada, com tradução de Paulo César Souza (p. 14), referenciada ao final do trabalho.

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individual. Talvez o gesto teórico mais vigoroso dessa obra seja a afirmação de que não são mais que uma. Trata-se da psicologia enquanto tal, nem coletiva, nem individual: tanto uma quanto a outra seguem as mesmas regras, têm a mesma estrutura.

Tal gesto teórico é o primeiro ponto de notável aproximação entre o texto de La Boétie e o texto de Freud. O primeiro giro de reflexão destacado anteriormente na obra de La Boétie foi justamente o de colocar em cena questões sobre o papel da subjetividade do indivíduo na centralidade de um fenômeno social, qual seja, da servidão voluntária a um tirano. A potência desse movimento é recuperada de maneira extraordinária por Freud a partir das descobertas da psicanálise, colhidas da experiência clínica. Ricardo Goldenberg (2014, p. 38) ressalta esse paralelismo entre o funcionamento individual e o coletivo, embora se possa discordar de sua conclusão sobre o intuito de Freud: A propósito, não é bem de um livro sobre as massas que se trata, visto não haver aqui uma aplicação da teoria psicanalítica para elucidar o comportamento das multidões. O intuito de Freud nunca foi explanar psicanaliticamente o funcionamento coletivo, mas avançar um passo na conceitualização do modo de constituição da subjetividade mesma. Todos juntos e um só obedecem a mesma lógica. Donde duas psicologias: a de um sujeito de muitas cabeças e de outro de uma só, regidas pelas mesmas leis e idênticos mecanismos.

Ao debruçar-se sobre o tema das relações entre súditos e seus governantes, La Boétie expressa sua perplexidade diante dos paradoxos desse laço que não encontra fundamento em elementos objetivos que justifiquem a submissão de tantos milhares ao Um. É somente a partir das descobertas da psicanálise que, ao nosso ver, as perguntas de La Boétie não apenas ganham mais sentido como podem obter novos elementos para elaboração de respostas. Nada mais natural, para a psicanálise, que os paradoxos e ambivalências inerentes aos laços sociais. Especificamente no que se refere às ambivalências da relação dos súditos com o soberano, Freud (1912-1913, p. 84) lhes dedicou especial atenção em “Totem e tabu”, ao tratar do “tabu do soberano”, problematizando junto a isso a questão da liberdade, tão cara a La Boétie: Esses vínculos são de natureza complicada e não isentos de contradições. Concedemse aos governantes grandes prerrogativas, que praticamente correspondem aos tabus impostos aos demais. São pessoas privilegiadas; podem fazer ou fruir o que o tabu contesta aos demais. Em contraste com essa liberdade, porém, são limitadas por outros tabus, que não oprimem os indivíduos comuns. Eis aqui, portanto, uma primeira oposição, quase contradição, entre uma maior liberdade e uma maior limitação para as mesmas pessoas.21

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É a partir de uma leitura do vínculo entre súditos e soberano a partir das propriedades do tabu que Freud observa as manifestações da ambivalência desse laço: “A atitude dos povos primitivos ante seus chefes, reis e sacerdotes

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A ambivalência entre uma proibição e o desejo de sua transgressão admite variados graus, e o tabu é caracterizado justamente pela intensificação dessa equação em que o aumento da proibição é acompanhada de um aumento diretamente proporcional do desejo de transgressão, sendo que o contrário também é verdadeiro. Se a figura do soberano chega a constituir um tabu nas comunidades, o surgimento de formas de aproximação dessa figura pelos súditos constitui uma maneira de realização parcial desse desejo de contato com o tabu. Uma das formas de realização parcial desse desejo de aproximação do soberano é justamente identificar-se parcialmente com seu poder e tornar-se um de seus ministros ou funcionários ou, ainda, relacionar-se indiretamente com seu poder por intermédio da relação com eles. É nesse ponto, pois, que podemos encontrar em Freud uma apreciação das figuras que La Boétie chamou de “tiranetes”: O tabu de um rei é forte demais para o seu súdito, porque a diferença social entre eles é muito grande. Mas um ministro pode ser o inofensivo intermediário entre os dois. Isto significa, transposto da linguagem do tabu para a psicologia normal: o súdito, que teme a formidável tentação do contato com o rei, pode suportar o trato com o funcionário que não precisa invejar tanto, e cuja posição talvez venha a alcançar. Já o ministro pode atenuar sua inveja do rei pela consideração do poder que ele próprio exerce. Assim, as diferenças pequenas na força mágica que induz à tentação são de temer menos do que as especialmente grandes (FREUD, 1912-1913, p. 63).

A preservação do soberano em seu lugar não é sem fundamento, afinal “A necessidade de proteger o rei de todo perigo imaginável vem de sua enorme importância para o bem ou malestar dos súditos. A rigor, é sua pessoa que regula o curso da vida; ...” (FREUD, 1912-1913, p. 77). Entretanto, é a partir das considerações em “Psicologia das massas e análise do Eu” que Freud desenvolve as chaves de compreensão dessa relação sob uma perspectiva que permite um diálogo mais direto com a obra de La Boétie. Segundo Freud, nas massas as ideias opostas podem coexistir e suportar umas às outras, sem que disso resulte um conflito da sua contradição lógica, tal qual sucede na vida anímica inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos. Ademais, as massas nunca tiveram sede da verdade, mas sim fome de ilusões, às quais não podem renunciar. Assim como na psicologia do indivíduo neurótico, as massas também tendem a se influenciar pelo

é regida por dois princípios básicos, que parecem antes se complementar que se contradizer. É necessário protege-los, mas também proteger-se deles. Os dois fins são obtidos mediante um sem-número de preceitos. Já sabemos porque é preciso guardar-se dos senhores: porque são portadores daquela misteriosa e perigosa força mágica que se transmite por contato e ocasiona morte e ruína para aquele que não é protegido por carga semelhante. Evita-se, então, qualquer contato direto ou indireto com a perigosa santidade e, quando isso não pode ser evitado, cria-se um cerimonial para afastar as consequências temidas” (FREUD, 1912-1913, p. 7475).

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verdadeiro tão fortemente quanto pelo não verdadeiro, pois sujeitas a uma predominância da fantasia e da ilusão sustentadas por um desejo não realizado (FREUD, 1921). Se também no âmbito coletivo das relações sociais as fantasias desempenham um papel determinante, revelando uma busca pela satisfação de algum desejo não realizado, Freud propõe que cabe tentar aplicar, no esclarecimento da psicologia das massas, o conceito de libido, expressão proveniente da teoria da afetividade, que representa a energia desses instintos relacionados com o que se entende por “amor”, ou seja, relações que se estabelecem com pessoas ou objetos a partir de laços de afeto (FREUD, 1921). Diante disso, propõe que as relações de amor, ou dito de outra forma, os laços afetivos, constituem também a essência da alma coletiva. Por trás da união da massa, portanto, estaria algum poder, o poder de união de Eros, e o indivíduo abriria mão de aspectos particulares em favor da inclusão na massa, abrindo-se inclusive aos efeitos da sugestão dos outros, por uma necessidade de estar de acordo com eles, “por amor a eles” (FREUD, 1921). A partir dos modelos de organização coletiva observáveis na Igreja e no Exército, Freud conclui que a união dos indivíduos que compõem grupos artificiais pressupõe sempre a mesma simulação (pode-se dizer, a mesma fantasia) de que há um chefe supremo que ama com o mesmo amor todos os indivíduos. As exigências grupais feitas aos indivíduos derivariam desse amor do chefe e a causa de amor a ele seria também a causa da ligação entre cada um (FREUD, 1921). Sobre a aplicação da teoria dos afetos de Freud para interpretar a formação das massas, comenta Ricardo Goldenberg (2014, p. 53-54): Ao dizer que “fizemos isso por causa daquilo”, observa Freud, estamos dizendo que algo foi feito por amor de outra coisa. Tentar resolver o problema levantado pelas massas primitivas com sua teoria dos afetos nada mais seria do que levar esse sentido perfeitamente a sério. A causa da massa, assim como da conduta irracional e passional dos que a compõem, deve ser procurada no amor, no amor pelo Fuhrer, com o tesão sublimado como motor.

Inúmeras digressões podem ser elaboradas a partir das particularidades de cada caso, como as diferenças entre a ligação dos membros da Igreja católica a Cristo, supostamente mais forte e estável que a dos soldados ao general, ou as diferenças de estrutura de escalonamento e hierarquia na organização da Igreja e do Exército, bem como suas variantes em qualquer outra forma de organização coletiva. Não obstante a variedade dos fatores singulares de cada tipo de agrupamento social, Freud constata uma estrutura praticamente universal em suas formas de organização. Trata-se de uma estrutura de circulação libidinal que une os componentes da massa a partir de um referencial vertical e num sentido horizontal: “Notemos que nessas duas massas artificiais cada

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indivíduo se acha ligado libidinalmente ao líder (Cristo, general), por um lado, e aos indivíduos da massa, por outro” (FREUD, 1921, p. 49). Cumpre sublinhar, nesse momento, que a mesma estrutura de formação de laços pelo sujeito, caracterizada pelos vetores vertical e horizontal, é o ponto de convergência que está na base do desenvolvimento dos três textos analisados no presente trabalho. No “Discurso da servidão voluntária”, La Boétie destaca a relação dos súditos com o governante e as relações de amizade; em “Psicologia das massas e análise do Eu” Freud analisa a relação da massa com o líder e dos membros da massa entre si; em “Bartleby, o escrevente” Melville conta sobre a relação (ou sua desconstrução) do personagem principal com o chefe e com seus companheiros de trabalho. Com efeito, as proposições de Freud relativas ao circuito libidinal que constitui o substrato das relações entre os indivíduos e, principalmente, os indivíduos e o líder, são a chave de leitura que finalmente se coloca à altura das questões colocadas séculos antes por La Boétie. O diálogo entre o texto do jovem francês e o do médico austríaco fica ainda mais íntimo se considerado o destaque que ambos atribuíram à figura do líder. Para Freud (1921, p. 49), é de fundamental importância considerar o papel do líder na psicologia da massa, caso se pretenda compreender o principal fenômeno dessa formação social, qual seja, a diminuição de liberdade do indivíduo na massa: Mas já nos atrevemos a reprovar ligeiramente os demais autores, por não terem apreciado suficientemente a importância do líder na psicologia da massa, enquanto a nossa escolha desse primeiro objeto de investigação nos colocou em posição mais favorável. Quer nos parecer que nos achamos no caminho correto, que pode esclarecer o principal fenômeno da psicologia das massas, a ausência de liberdade do indivíduo na massa. Se ocorre, para cada indivíduo, uma tão pródiga ligação afetiva em duas direções, não será difícil derivar dessa situação aquilo que se constatou, ou seja, a mudança e limitação de sua personalidade. (grifo nosso)

Conforme já sublinhado anteriormente, a perda da liberdade – ou melhor, a abdicação dela – é igualmente o centro das preocupações de La Boétie em relação ao governante. Entretanto, é preciso ressaltar que, para ambos, não se trata de analisar o líder em si, mas sim de compreender o papel que ele desempenha na organização subjetiva do indivíduo e, assim, desvendar os circuitos libidinais que o líder é capaz de mobilizar em cada seguidor. Portanto, Freud retorna, agora com os recursos de suas descobertas, ao mesmo ponto de partida que definiu as perspectivas sobre as quais se desenrolaram as reflexões de La Boétie: o indivíduo que serve. A partir do estudo das massas formadas pelo Exército e pela Igreja, Freud constata que elas são dominadas por dois tipos de laços afetivos. Desses dois, o laço com o líder, pelo menos

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nos exemplos analisados, parece ser muito mais determinante do que o laço entre os indivíduos da massa entre si. E afirma que, se uma massa não se forma sem o estabelecimento desses dois laços, por outro lado pode-se dizer que em qualquer grupamento há sempre uma forte tendência de formação de uma massa psicológica (FREUD, 1921). A tendência ao estabelecimento de um laço afetivo entre indivíduos da massa e um líder apresenta-se de tal forma uma regra na formação de massas psicológicas que Freud propõe que, mesmo nas massas sem líder, essa figura muito provavelmente foi apenas substituída por uma ideia que o represente e ocupe seu lugar no psiquismo da massa (FREUD, 1921). Ora, esse fenômeno descrito por Freud que insiste em se repetir nas coletividades, essa pré-disposição dos membros de uma massa de almejarem um senhor a que possam servir voluntariamente, corresponde, ao nosso ver, exatamente ao que La Boétie chamou de vício da vontade do sujeito que, podendo ser livre, prefere não ser. É com as descobertas de Freud, assim, que esse “vício” é desmistificado e pode ser compreendido em termos da dinâmica do psiquismo do sujeito que serve. Ressalte-se que isso representa uma significativa mudança de perspectiva. Afinal, a partir de Freud a servidão voluntária, antes de ser um vício da vontade que perverte sua natureza livre, parece estar muito mais próxima do processo ordinário de formação da vontade individual, ao menos nos contextos culturais estudados por ele, com auxílio das descobertas da antropologia. Considerando as dinâmicas entre as instâncias psíquicas do Eu e do Supereu, Freud chega a propor uma fórmula relativa à organização libidinal de uma massa, ressaltando o papel dos laços libidinais verticais com o líder e horizontais com os demais componentes do grupo: “Uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal de Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu” (FREUD, 1921, p. 76). A partir de considerações sobre os processos de identificação e do instinto gregário da espécie humana como analisado por Trotte, Freud avança e conclui que o sentimento social é tributário de uma inversão de um sentimento hostil em um laço de tom positivo que possui a natureza de uma identificação, que por sua vez passa por um sentimento comum em relação a uma pessoa que está fora da massa. Via de regra, os membros de uma massa se identificam pelo sentimento de serem amados – e de serem dominados – igualmente pelo líder, sobre quem não recai a mesma exigência de igualdade. Assim o homem não seria um animal de rebanho, mas sim um animal de horda conduzida por um chefe (FREUD, 1921). Cumpre notar que nesse tocante as proposições de Freud novamente se aproximam das questões levantadas por La Boétie, agora no que se referem às hipóteses sobre a origem da

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servidão voluntária, sobre o evento fortuito, há muito inacessível à memória dos viventes, que segundo o jovem francês teria causado o desvio da natureza humana fraterna e viciado o desejo de liberdade, o dito “mau encontro”. Segundo a hipótese freudiana, a forma primeva da sociedade humana se caracterizava por constituir uma horda governada por um macho forte dotado de poderes irrestritos. A organização social marcada pelo surgimento da cultura seria o resultado de uma passagem desse modelo de horda primeva (marcadamente paterna) para uma comunidade de irmão, passagem que se faz com o violento assassinato do chefe (FREUD, 1921). Essa imagem de um indivíduo superforte em meio a um bando de companheiros semelhantes ainda subjaz nas formações das massas atuais, e a psicologia dessas massas “corresponde a um estado de regressão a uma atividade anímica primitiva como a que nos inclinamos a atribuir à horda primeva” (FREUD, 1921, p. 85). Essa herança arcaica coletiva, no entanto, é atualizada em cada experiência individual que na relação com o pai experimenta a revivência da “ideia de uma personalidade muito potente e perigosa, ante a qual só se podia ter uma atitude passivo-masoquista, à qual a vontade tinha que se render” (FREUD, 1921, p. 91). Os fenômenos atuais de formação de massas demonstram que continuam latentes e sempre prontos a se restabelecerem os mecanismos de laço libidinal típicos da organização da horda primeva.22 Freud, assim, acaba por elaborar todo um constructo teórico que pode ser aplicado com uma adequação notável para se pensar o ponto central da obra de La Boétie, o que denominou à sua época de “desejo de servir”. A forma como Freud (1921, p. 91) se refere ao desejo de dominação da massa e a sua ânsia por autoridade tem paralelo quase literal com o texto do jovem francês: O líder da massa continua a ser o temido pai primordial, a massa quer ainda ser dominada com força irrestrita, tem ânsia extrema de autoridade, ou, nas palavras de

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É irresistível atentar para as reverberações políticas das assertivas de Freud nesse tocante. Como afirma Neuman (2011, p. 34-35): “Não estou sugerindo que a psicanálise seja necessariamente, política ou socialmente, conservadora. Ao contrário, sustento que seja central à psicanálise um ethos libertário pelo qual o sujeito busca obter maior autonomia, e pelo qual o sujeito é estimulado, pelas regras da “livre associação”, a dizer a verdade do inconsciente. Insistir no “lado negro” da psique humana — em sua dependência do poder, sua identificação com figuras autoritárias, seus impulsos agressivos — pode servir como um alerta a qualquer projeto revolucionário que busque transcender a autoridade política. Esta foi a mesma questão colocada por Jacques Lacan em resposta ao radicalismo do Maio de 68: ‘a aspiração revolucionária tem apenas um efeito possível — de acabar como um discurso mestre. É isso que a experiência provou. O que você̂ aspira como revolucionário é um mestre. Você̂ terá́ um’. O que Lacan está sugerindo é com este sinistro prognóstico — que poderia ser superficialmente, embora, no meu ponto de vista, incorretamente, interpretado como politicamente conservador — é a conexão oculta, até mesmo a dependência entre o sujeito revolucionário e a autoridade; e o modo pelo qual os movimentos de resistência e até de revolução podem, de fato, sustentar a eficiência simbólica do Estado, rearmando ou reinventando a posição da autoridade”.

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Le Bon, sede de submissão. O pai primevo é o ideal da massa, que domina o Eu no lugar do ideal de Eu.

Freud postula que a contribuição da psicanálise para o esclarecimento da estrutura libidinal de um grupo remonta, primeiramente, à diferenciação entre um Eu e um ideal de Eu e, ainda, ao duplo tipo de ligação afetiva por ela possibilitada, ou seja, a identificação e a colocação do objeto no lugar do ideal de Eu (FREUD, 1921). Nina Saroldi (2014, apud GOLDENBERG, 2014, p. 14-15) assim sintetiza seu trabalho: [...] a afirmação axial de Freud em 1921 é de que não existe psicologia individual em sentido estrito. Por mais que os ermitãos de todos os tempos tentem, ‘nenhum homem é uma ilha’ e toda psicologia individual é, necessariamente, social. O indivíduo se forma a partir de suas relações com os outros, inicialmente com as figuras parentais e, posteriormente, por meio de outras identificações (professores, amigos...), que vão construindo e mantendo em operação a instância psíquica fundamental para o convívio social: o já mencionado ideal do eu, como o próprio Freud dirá posteriormente, o supereu. Nessa levada, Freud examina grupos artificialmente organizados com o a Igreja e o Exército, nos quais o laço ‘vertical’ de cada um com o líder é tão importante quanto o laço horizontal que une um membro a outro. Além disso, analisa a importância dos impulsos inibidos em sua finalidade para a constituição de relações duradouras entre pessoas.

O conceito de identificação, nesse contexto, assume função central para a teorização freudiana dos circuitos libidinais que predispõem os indivíduos a formarem uma massa em prol de um líder comum, pois está na própria origem da aptidão do sujeito para formação de laços afetivos. Como sublinha Goldenberg (2014, p .69), “por esse caminho, a teoria da identificação acaba sendo também uma teoria do amor. Freud escreve, com efeito, que a primeira ligação afetiva com outra pessoa é a identificação”. Essa identificação, no plano horizontal, remete a algo comum entre os membros da massa, que Freud assim caracteriza: “Já suspeitamos que a ligação recíproca dos indivíduos da massa é da natureza dessa identificação através de algo afetivo importante em comum, e podemos conjecturar que esse algo em comum esteja no tipo de ligação com o líder” (FREUD, 1921, p. 65). Esse algo em comum é o que Goldenberg (2014, p. 50) denomina, de maneira informal, de “bem comum da turma”, o conteúdo sobre o qual a forma de organização da massa sempre se repete: A pura forma tem o poder de provocar tal milagre devido ao fato de que ela age sobre um “conteúdo”. Seria como a argamassa que cimenta os tijolos para constituir um bloco. E essa cola é o bem comum da turma, embora esteja em cada um dos integrantes. A manifestação subjetiva de uma substância tal é, nesse caso, a vontade de cada um e de todos de ter um senhor a quem servir. O bem comum da massa é o desejo de obediência a um líder. Não é, portanto, a vontade do tirano que submete a multidão, mas antes essa última que dá a si própria um ditador provido de uma vontade de ferro. Por estranho que pareça, o grupo fabrica para si o líder de que precisa.

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Difícil imaginar uma passagem mais literalmente relacionada ao texto de La Boétie no tocante às suas considerações sobre o “desejo de servir”, esse aspecto subjetivo dos indivíduos que tanto lhe causou perplexidade e motivou a escritura do texto cujos temas centrais ressurgiriam com potência renovada, de forma notável, nas descobertas de Freud a partir da psicanálise. Goldenberg (2014, p. 50-51) arremata o argumento esclarecendo que essa vontade comum é a forma como se manifesta, na subjetividade, a hipótese de Freud sobre do que, afinal, se constitui a matéria desse desejo, destacando a centralidade da libido na compreensão do fenômeno: A vontade comum seria a manifestação subjetiva daquilo que anima a pura força da organização; aquilo que lhe dá força e existência na realidade. É a substância da qual são feitos os desejos [...]. Freud chamava de libido essa matéria, e a definia como a energia ainda não mensurável das pulsões; [...].

É, portanto, com a publicação por Freud de “Psicologia das massas e análise do Eu” em 1921 que o fenômeno da “servidão voluntária” finalmente obteve uma resposta à altura das questões levantadas por La Boétie, especialmente no tocante à origem, à natureza e à dinâmica dessa marca subjetiva que é o “desejo de servir”. A partir das descobertas da psicanálise, Freud desenvolve um rico instrumental para analisar as relações do indivíduo com o líder e com seus pares, enfocando principalmente os vínculos libidinais, as identificações, as ambivalências afetivas e a economia da libido. Nesse sentido, é a conclusão de Carla Penna (2014, p. 173): Assim, é possível concluir que a questão das relações indivíduo e grupo parecia estar relacionada não apenas à vinculação libidinal, às identificações ou mesmo a ambivalência emocional, mas a questões econômicas que concorrem para um equilíbrio de forças, um nível ótimo de investimento libidinal que garante ou não a manutenção do vínculo grupal.

A relação entre o texto de La Boétie e o texto de Freud não passou despercebida pelos comentadores. Carla Penna (2014. P. 173), ao se referir às considerações de Jurandir Freire Costa sobre o texto freudiano, destaca esse paralelo: Em sua opinião, a análise que Freud fez sobre as massas permitiu o surgimento de novas ideias sobre a questão dos totalitarismos do século XX, lançando ainda uma luz sobre o problema do amor, da opressão, e sobre a servidão voluntária em uma alusão a La Boétie.

Nesse mesmo sentido, Goldenberg (2014, p. 81) destaca a originalidade de La Boétie sobre a temática:

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Em todo caso La Boétie matara a charada muito antes de Freud. O desejo de amo é soberano: somos todos iguais em almejar um senhor autônomo a quem servir: o ser superior, o chefe da horda. Como sempre atento às palavras, Freud propõe substituir ao Herdentier (gregário), de Trotter, um Hordentier (de horda). Somos animais de horda.

Para o impetuoso jovem francês, a servidão voluntária deveria ser combatida, pois identificava nela um caráter “vicioso” que contaminava a vontade do sujeito transformando sua liberdade em “desejo de servir”. Com as contribuições da psicanálise, muitas camadas se adicionam à interpretação desse fenômeno e Freud aponta para um aspecto de capital relevância na relação com o líder, qual seja, de que a própria existência de uma organização social seja tributária desse “vício”. Talvez soasse duro aos ouvidos de La Boétie a ideia de que a servidão voluntária pode ser considerada, segundo Freud, um fator de cultura: Seguimos o general porque o amamos (ao menos era aquilo em que Napoleão queria acreditar). Estamos irmanados nele, como a Igreja espera que o estejamos em Cristo. A homogeneização das diferenças dentro das massas [...] decorre de uma restrição do narcisismo devida ao laço libidinal entre os irmãos (alter egos), via o chefe. O amor agiria assim como um fator de cultura, no sentido de uma reversão do egoísmo em altruísmo: o narcisismo, a satisfação pulsional direta em meu benefício, seria “entrópico”, desagregador (cada um por si), e o amor, “neguentrópico”, fator de coesão social (um por todos, todos por um, como diria D’Artagnan – renuncio ao meu próprio bem individual em favor do bem comum) (GOLDENBERG, 2014, p. 57).

Traçado o argumento da pertinência das descobertas de Freud na constituição de uma chave de leitura das questões colocadas por La Boétie, é preciso retomar, neste ponto, a importância das considerações da psicanálise a respeito do processo de identificação e sua relação com a linguagem, a fim de arriscar uma articulação desses dois autores com o texto de Melville. Afinal, um dos principais efeitos do emprego da fórmula linguística de Bartleby é por em curso um processo de dissolução de identidade e de identificações que aponta para um possível escape das amarras da servidão voluntária. Por exemplo, quando o advogado sugere a Turkey que não trabalhe no período da tarde, por ser um período em que seu temperamento “esquenta” e então produz borrões em suas cópias, é com um apelo à identificação (e ao afeto que dela pode decorrer) que o escrevente consegue dissuadir seu chefe da ideia. Nesse caso, o advogado cai na mesma artimanha que tenta usar contra Bartleby: “Mas e os borrões, Turkey?” – insinuei. “Verdade... mas, com todo o respeito, senhor, olhe para esses cabelos! Estou ficando velho. Suponho, senhor, que um ou dois borrões numa tarde de calor não sejam assunto de reprimenda, contra um homem já zeloso de suas cãs. A velhice – ainda que manche uma página – é digna de honra. Com todo o respeito, senhor, mas nós dois estamos ficando velhos.”

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Esse apelo a um sentimento comum era simplesmente irresistível. (MELVILLE, 2014, p. 17-18).

Com efeito, o primeiro ponto a se destacar sobre a identificação é que ela não é um processo individual, mas requer um sistema de referências que é externo ao sujeito. Segundo Goldenberg (2014, p. 67-68): Nossas credenciais vêm de fora. Não retiro meu crédito da minha imagem ou da minha declaração, mas de um lugar terceiro que deve ser objetivo, isto é, válido para qualquer um. Aquilo a que chamamos “identidade” consiste nisso, a presença de um fiador devidamente certificado. [...] A convicção íntima [...] de que permanecemos os mesmos, apesar das constantes mudanças pelas quais objetiva e subjetivamente passamos o tempo todo não é natural. Freud se interroga sobre essa consistência vivida da identidade psicológica e chega à conclusão de que esta não é dada mas construída.

De acordo com o autor, “O nome da operação que constitui a identidade é identificação e Freud a descreve como a moldação do eu conforme um modelo. Eu, a imagem e semelhança de outrem” (GOLDENBERG, 2014, p. 68). O processo de identificação, portanto, é dependente das relações intersubjetivas e, ao menos a partir de um determinado estágio do desenvolvimento, se processa de forma privilegiada no campo da linguagem: “Para o psicanalista, a ideia de um – a noção de unidade, de unicidade, de singularidade – não seria natural, mas artificial, resultado da linguagem” (GOLDENBERG, 2014, p. 69). Se a noção de identidade e, via de consequência, de identificação possuem relação com a linguagem, faz-se mister recuperar, nesse ponto, um aspecto importante da linguagem que foi estudado por Freud na sua teoria da representação. Garcia-Roza (1995, p. 244) faz uma retomada da teoria da representação e, a partir das elaborações iniciais de Freud sobre o tema, aborda o conceito de Wortvorstellung, ou seja, representação-palavra, esclarecendo que ela “é entendida como uma representação complexa, formada de representações simples diversas: imagem acústica da palavra, imagem motora, imagem da leitura e imagem da escrita”. Esses elementos formam em conjunto um complexo representativo fechado que constitui a representação-palavra (Wortvorstellung). Sublinha o autor, entretanto, que o fundamental é que a representação-palavra só se forma em relação. No caso, a relação entre um aparelho de linguagem e outro aparelho de linguagem. O esquema psicológico da representação-palavra, por sua vez, exige que ela seja articulada com outro tipo de representação, a representação-objeto (Objektvorstellung), constituída por um conjunto que Freud denomina de “associações de objeto”, em que estão associados um conjunto de imagens visuais, acústicas, táteis e outras. Essas associações não são propriamente a representação-objeto, mas formam a sua matéria prima.

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É somente quando essas associações se agrupam e se ligam a uma representaçãopalavra é que se pode falar em representação-objeto – e apenas em função dessa ligação. Nesse contexto, é por consequência dessa ligação que o objeto ganha unidade e identidade e que, por sua vez, “a representação palavra adquire sua significação” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 244245). A partir dessas constatações, conclui Garcia-Roza (1995, p. 245) que: Assim, o termo representação-objeto não designa o referente ou a coisa, mas, na sua relação com a representação-palavra, designa o significado. A analogia entre a relação Wortvorstellung/Objektvorstellung, de Freud, e a relação Significante/Significado, que constitui a unidade do signo linguístico para Saussure, é irresistível.

Afirma Garcia-Roza (1995) que desse primeiro esboço da teoria da representação até a teoria que será apresentada por Freud no artigo sobre o recalque, em 1915, há um longo percurso que vai incluir uma teoria do inconsciente e uma teoria das pulsões, percurso que ao final vai permitir a elaboração do conceito de Vorstellungsrepräsentanz (representanterepresentação). O termo adquire importância em razão da noção freudiana de aparato psíquico – nos termos em que defendida por Garcia-Roza (1995) – entendido como um aparato de captura e transformação do disperso pulsional, em que de um lado há pulsões anárquicas e de outro um aparato como um lugar de ordem, que captura e transforma as pulsões segundo uma ordem determinada, a ordem da linguagem. Ressalta o autor que aparato psíquico e pulsão não surgem independentemente, mas pulsão e representação constituem uma relação mútua simultânea, sem que seja possível imaginar cada uma delas separadamente. Existe, portanto, uma fonte somática (um corpo vivo) de estimulação e um aparato psíquico que se relacionam articulados pela pulsão, entendida, nesse sentido, como um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático: “Por um lado ela aponta para o corpo, entendido como fonte de estimulação constante e como medida de exigência de trabalho imposta ao anímico; por outro lado, aponta para o psíquico, enquanto sede de representações” (GARCIA-ROZA, 1995, p. 252). Garcia-Roza (1995) chama a atenção para um aspecto relevante dessa teorização de Freud. Sublinha que, segundo Freud, a ordem da organização corporal, embora seja fonte das pulsões, não impõe sua ordem às pulsões, ou seja, não importa para determinar os seus destinos (cuja ordem será dada pela linguagem). É importante deixar claro que isso não significa que Freud ignore o papel da corporeidade na psicanálise: A pulsão não porta, nela mesma, qualquer indicação sobre essa ordem, assim como a ordem do corpo não assinala para a pulsão qual deve ser o seu objeto ou como atingir

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o seu alvo. Não é que Freud negue uma ordem corporal, ele apenas não considera essa ordem como pertinente para o que diz respeito à pulsão (GARCIA-ROZA, 1995, p. 253).

O que importa é ter em mente que a pulsão, esse conceito psicanalítico que faz a intermediação entre o somático e o psíquico, revelando entre eles um paralelismo, não seria pulsão se não fosse o aparato psíquico, entendido como um aparato de linguagem ou, pode-se dizer assim, como um aparato simbólico (GARCIA-ROZA, 1995). Esclarece Garcia-Roza (1995, p. 253), a partir disso, o que Freud denominou de Vorstellungsrepräsentanz: O aparato psíquico, desde o começo, se constitui frente a outro aparato psíquico, sendo cada um deles também um aparato de linguagem. Assim, quando o aparato captura o disperso pulsional transformando-o e impondo-lhe uma ordem, essa ordem é a ordem da linguagem. O que resulta dessa captura e dessa transformação é o que Freud vai denominar de Vorstellungsrepräsentanz.

Portanto, a estrutura que o fenômeno psíquico possa apresentar não decorre daquilo que vem da realidade externa e nem tampouco do processo nervoso, mas sim da submissão desses elementos à trama da linguagem (GARCIA-ROZA, 1995). Garcia-Roza (1995, p. 259) é taxativo nesse ponto: “O princípio estruturante é a linguagem. Se há alguma ordem fora do aparato psíquico, essa ordem não é imposta ao aparato. As fontes exógenas e endógenas fornecem apenas elementos dispersos”. Como ressalta Garcia-Roza (1995), não se trata de explicar como uma energia física se transforma em energia psíquica (ou vice-versa), mas compreender como a pulsão, que é em si indeterminada, se faz presente no psiquismo de forma diferenciada, uma vez que um não dá origem ao outro num processo de causalidade. Ou seja, um processo não termina para que o outro tenha início, mas o que se percebe é que o processo psíquico é paralelo ao fisiológico. Segundo o autor, essa ideia é mantida durante a obra de Freud: “não há produção do psíquico pelo fisiológico ou vice-versa, mas concomitância entre os dois registros” (GARCIA-ROZA, 1995, p, 258). Isso tem implicações fundamentais para o debate proposto no presente trabalho, pois uma das principais ideias que se pretendeu destacar nos textos analisados é a de que a linguagem mobiliza categorias simbólicas (como as de identificação) capazes de mobilizar, paralelamente, efeitos sobre os corpos dos sujeitos. Partindo da premissa da teoria da representação freudiana, conclui-se que “se uma determinada transformação se opera no plano da representação, deve se operar uma correspondente transformação no plano neurológico” ou, para generalizar, no plano somático,

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“sem contudo uma ser causada pela outra”, mas sim de uma forma especular e paralela (GARCIA-ROZA, 1995, p, 258). Assim, no que se refere à transformação da energia somática em energia psíquica, não se trata de dizer que a energia somática vire energia psíquica numa espécie de metamorfose. Portanto, “uma ideia intensa ou uma representação fortemente investida de afeto não é uma ideia carregada de uma energia especial, chamada energia psíquica, mas uma ideia à qual corresponde, em termos de sistema nervoso, um processo excitatório intenso” (GARCIAROZA, p. 259). Aqui há uma formação conceitual interessante que envolve três termos: o processo excitatório somático, o afeto e a representação psíquica. Como esclarece Garcia-Roza (1995), Vorstellungsrepräsentanz é uma entidade de dupla face, pois Vorstellung corresponde a uma representação ou conjunto de representações, em suma, o componente ideativo propriamente dito. Componente este que faz par com o Affekt, que é um componente intensivo, ou seja, o quantum de afeto de que o componente ideativo é investido. Ambos representam a pulsão no aparelho psíquico; porém, por ser o Affekt a parte intensiva e a Vorstellung a parte significativa, o Affekt representa a pulsão mais diretamente. Assim, a excitação pulsional encontra no afeto uma expressão direta, expressão essa que se apresenta psiquicamente sob a forma de um quantum de afeto (GARCIA-ROZA, 1995). Para arrematar o assunto, cumpre sublinhar o aspecto econômico desses dois representantes da pulsão: A Vorstellung e o Affekt são, portanto, os dois “delegados” da pulsão no psiquismo. Do ponto de vista econômico, a Vorstellung é vista como sendo da ordem do investimento, enquanto que o Affekt é considerado da ordem da descarga: “Toda a diferença reside em que as representações são investimentos – no fundo, de traços mnêmicos –, enquanto que os afetos e sentimentos correspondem a processos de descarga cujas exteriorizações últimas são percebidas como sensações” (GARCIAROZA, 1995, p. 266-267).

Essa incursão na teoria da representação freudiana permite alinhavar uma relação entre a linguagem e os outros elementos destacados dos textos estudados e que compõem uma das formas de interpretação da “servidão voluntária”. O complexo mecanismo de paralelismo entre os estímulos corporais e as representações psíquicas é uma hipótese freudiana que admite inúmeros desdobramentos e que, a nosso ver, tem uma relação muito próxima com os fenômenos observados por La Boétie e, ainda mais próxima, com a mensagem de Bartleby.

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La Boétie (2009) se impressionou, em sua época, com a pré-disposição da grande maioria dos cidadãos em abdicar, sem grande resistência, de sua liberdade para servir ao Um, fenômeno que foi estudado por Freud (1921) e que reconheceu nele um traço universal: mesmo quando não está sendo colocado em prática, permanece latente sempre pronto a emergir. Se a representação psíquica de uma figura paterna que ama e cuida de seus “filhos” exerce influência tão notável na psique individual e dos grupos, é porque ela porta uma alta carga de investimento afetivo, comum à experiência geral da espécie humana. Como esse par formado pela representação e o afeto é o representante no psiquismo dos estímulos corporais, podemos pensar que essa marca da dependência e da busca de cuidado é uma das mais fortes na experiência da corporeidade humana, identificada por Freud (1921) na dependência prolongada dos bebês aos pais e na memória herdada da origem mítica das formações sociais. Nessa dinâmica formada pela tríade representação, afeto e corpo, é possível imaginar diversas combinações. Por exemplo, se numa comunidade os membros estão sujeitos a circunstâncias que são experimentadas afetivamente como marcadas pelo desamparo, quanto maior essa carga afetiva, mais investidas serão as representações psíquicas ligadas ao desamparo. Dado o paralelismo entre o somático e o psíquico, o desamparo será experimentado também a nível corporal – e na proporção da carga afetiva. Nessa hipótese, não é difícil imaginar a predisposição desses sujeitos a buscar um alívio para o desconforto psíquico e somático através da adesão a representantes simbólicos de amparo e cuidado. Os traços e as marcas mnêmicas da figura de um cuidador que é capaz de oferecer esse alívio encontram, assim, um terreno fértil para serem reavivados com força total. A ideia é que esses circuitos entre representação simbólica, afeto e corpo podem ser percorridos de diversas maneiras a partir de cada um desses elementos. Ou seja, a insistência de um determinado discurso, valendo-se de representações simbólicas culturalmente ligadas a determinado afeto, podem intensificar esse afeto e, por via paralela, intensificar as sensações corporais a ele relacionadas. Da mesma forma, a intensificação de um afeto aumenta o investimento de representações simbólicas a ele relacionadas e, paralelamente, os processos excitatórios corporais correspondentes. E, por fim, a intensificação de sensações corporais tem como paralelo o investimento afetivo em representações psíquicas a elas relacionadas. É claro que essa é uma forma muito simplificada de colocar a questão e não reflete a complexidade desses processos, nem tampouco eles apresentam esse automatismo presente nessa descrição. Entretanto, é algo dessa natureza que corre em segundo plano nos textos de La Boétie (2009) e de Melville (2014) quando o primeiro identifica os perigos de enlace do corpo e da

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vontade do tiranizado nas tramas simbólicas dos “nomes e títulos” do discurso do tirano e, ainda, quando o segundo sugere os efeitos libertadores (mas também perigosos) de uma desarticulação entre a trama simbólica da linguagem e das identificações e a corporeidade do sujeito. O que emerge como que impressões nas obras desses dois autores, aparece em forma de estudo com Freud (1921) e suas considerações sobre o papel das identificações no estabelecimento dos laços sociais verticais e horizontais, ressaltando que a importância das identificações está calcada principalmente na função que elas desempenham no estabelecimento de laços afetivos. Afinal, nas considerações de Freud (1921) sobre o tema, a identificação do sujeito com o líder ou com os membros da massa tem por objetivo dar destino a impulsos de natureza libidinal. Com essas últimas considerações, espera-se ter completado um percurso capaz de demonstrar a possibilidade de diálogo entre os textos de La Boétie e de Melville e algumas das descobertas de Freud com a psicanálise. Outros caminhos interessantes poderiam ter sido percorridos, mas escapariam aos limites dessa pesquisa, como a articulação entre as produções de Freud sobre o que está para além do princípio do prazer, a noção de gozo em Lacan e a natureza do “desejo de servir”, uma vez que a perplexidade de La Boétie reside justamente na possibilidade de se desejar algo que, em princípio, litiga contra o próprio sujeito. Talvez em outra oportunidade. Resta, portanto, encerrar essa breve travessia propondo um viés de leitura de fenômenos políticos atuais a partir das ideias debatidas.

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4 No Brasil do século XXI, um estudante tece suas considerações finais. Como se pode perceber, a proposta deste trabalho não foi delimitar os contornos de um conceito ou de aprofundar algum aspecto da teoria psicanalítica. Partindo de textos de três autores diferentes, produzidos em épocas diversas e sem referência expressa de um em relação ao outro, o intuito foi de apontar conexões, sugerir aproximações, causar impressões e – quem sabe – abrir novas questões. Tal qual uma intervenção analítica, o objetivo foi promover a continuidade da cadeia associativa, quem sabe agregando algum novo elo a essa corrente. As aproximações entre as obras dos autores estudados foram frequentemente destacadas durante o percurso da argumentação, inclusive por meio de sínteses aos finais de cada capítulo. Dessa forma, dedicar o espaço dessas considerações finais para simplesmente compilar essas ideias poderia soar repetitivo, além de desnecessário. Assim, fez-se a opção por retomar os argumentos principais a partir de comentários sobre alguns fatos recentes da política brasileira, de alguma forma relacionados com um modo de resistência à “servidão voluntária”. O acontecimento mais importante da política nacional dos últimos tempos é sem dúvida o impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff por votação de maioria absoluta do Senado Federal no dia 31 de agosto de 2016, que a condenou por crime de responsabilidade fiscal – as chamadas "pedaladas fiscais" no Plano Safra e os decretos que geraram gastos sem autorização do Congresso Nacional.23 Eleita com uma pequena margem de vantagem sobre o candidato concorrente, Dilma assume o segundo mandato sem o apoio de quase metade da população e, no decorrer de seu governo, perde grande parcela do apoio da metade que a elegeu.24 Inúmeras são as razões para isso. A inabilidade de contornar a desaceleração econômica25, assim como promover reformas legislativas significativas e, um dos fatores determinantes, sua incapacidade de manter as promessas de campanha26, sacrificadas em razão de acordos de governabilidade com partidos da base aliada e pressões de grupos econômicos.27

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http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/08/1808784-senado-cassa-mandato-de-dilma-congresso-daraposse-efetiva-a-temer.shtml (acesso em 30 out. 2016). http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1537894-dilma-e-reeleita-presidente-do-brasil.shtml (acesso em 30 out. 2016). http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/08/1673024-governo-demorou-para-perceber-gravidade-da-criseeconomica-diz-dilma.shtml (acesso em 30 out. 2016). http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-jornal-alemao--dilma-pede-mais-tempo-para-cumprirpromessas-de-campanha,1748436 (acesso em 30 out. 2016). http://www.cartacapital.com.br/politica/seria-melhor-ter-perdido-a-eleicao-5825.html (acesso em 30 out. 2016).

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Incapaz de continuar produzindo uma discursividade que serviu bem à popularidade de seu antecessor, o ex-Presidente Lula, Dilma não apenas foi perdendo o laço com seus eleitores, como passou a conduzir seu governo segundo a linha discursiva predominantemente dos partidos aliados e da oposição.28 A certa altura, as demandas dos partidos da base aliada, das demais instituições e da sociedade civil já não podiam mais serem atendidas na busca de apoio político.29 Dilma se vê obrigada a começar a dizer não. A partir desse ponto, o que se observa é que sua incapacidade de produzir uma narrativa como Presidente e de articular categorias simbólicas com potencial de responder aos afetos da população.30 Dilma já não ocupava um lugar relevante no “ideal de Eu” de seus governados. Tal qual Bartleby quando gradativamente se retira do campo discursivo, a figura da Presidente foi se esvaziando de significado e se tornando cada vez mais uma presença corporal com a qual os concorrentes pelo seu lugar simbólico precisam lidar. Absolutamente isolada no cargo e desprovida de qualquer governabilidade, sua continuidade na presidência tornou-se insustentável. E apesar das sugestões da grande mídia e da pressão exercida pelo Congresso para que renunciasse ao cargo, talvez o último grande ato de Dilma tenha sido dizer a seu modo “eu preferia não”.31 É a partir dessa presença concreta incômoda, que já nada produz em termos narrativos, que os efeitos mais interessantes começam a ser produzidos. Pois, assim como Deleuze (2011) se referiu a Bartleby como uma criatura original que exerce o seu efeito jogando luz ao seu entorno, revelando o vazio e a imperfeição das leis, a mediocridade das criaturas particulares e o mundo como mascarado, ao se recusar a “desocupar o escritório” Dilma revelou o que havia de pior em seus algozes. Primeiramente, trouxe a lume a hipocrisia de seus julgadores. Na sessão de votação da Câmara dos Deputados que autorizou a instauração do processo de impeachment, ocorrida no dia 17 de abril de 2016, o país pôde acompanhar ao vivo pela televisão uma das cenas mais dantescas da recente história politica brasileira. Enrolados em bandeiras do Brasil e falando em nome da família, da moral e dos bons costumes, dezenas de deputados federais réus em ações criminais ou investigados por corrupção votavam para tornar ré uma presidente honesta (ainda 28 29 30 31

Essa discussão é feita, por exemplo, por Vladimir Safatle em suas colunas em jornais e revistas, a exemplo da seguinte: http://www.cartacapital.com.br/politica/os-impasses-do-lulismo (acesso 30 out. 2016). http://www.cartacapital.com.br/politica/dilma-tenta-reacomodar-a-base-vai-dar-certo-4212.html (acesso em 30 out. 2016). A ideia de sociedade organizada politicamente como sendo um “circuito de afetos” é trabalhada por Vladimir Safatle em seu livro “O circuito dos afetos” (2015). http://www.valor.com.br/politica/4681297/dilma-nao-dou-renuncia-de-presente-aos-adversarios-diz-na-tv (acesso em 30 out. 2016).

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que seu governo não mereça defesa).32 Não bastasse o caráter farsesco do espetáculo, a sessão foi presidida pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que naquela altura já possuía contra ele provas da titularidade de contas milionárias na Suíça, como noticiado amplamente pelos meios de comunicação.33 Revelou, ainda, a desfaçatez da manobra hermenêutica que precisou ser realizada para enquadrar seus atos como crime de responsabilidade. Na linha de argumento de sua defesa, a assinatura dos decretos de autorização de despesa que fundamentaram sua acusação eram prática corrente nas presidências que a antecederam, bem como nos governos da maioria dos Estados brasileiros.34 O constrangimento de enquadrá-la como criminosa foi tamanho que o Senado se viu obrigado a separar a pena de perda do mandato de Presidente da pena de proibição de exercer função pública, como forma de minorar as consequências da injustiça.35 O resultado bizarro é que sua conduta é grave o suficiente para lhe tirar do cargo de Presidente, mas não o suficiente para impedi-la de concorrer novamente. Ainda, jogou luz sobre os excessos de investigação praticados por um juiz de primeiro grau que, claramente usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal, grampeou o telefone da Presidente e “vazou” o conteúdo para a imprensa36, conduta que em outro país provavelmente lhe renderia o afastamento do cargo e pena de prisão. Por fim, desmascarou a parcialidade dos veículos de imprensa pela cobertura espetacular que faziam de cada passo da investigação Lava Jato que pudesse respingar na imagem do governo. Entretanto, a impossibilidade de continuar produzindo novos discursos, capazes de mobilizar os afetos, levou Bartleby a uma morte física e Dilma a uma morte política. No dia que deixou o cargo, não houve registro de nenhuma manifestação organizada expressiva nas ruas. Ou seja, nem o discurso de que se tratava de um “golpe” político foi suficiente para mobilizar o apoio dos cidadãos para salvaguardar a sua permanência no cargo. Aparentemente, o afeto de rejeição ao seu governo, promovido insistentemente por uma investida midiática massiva, prevaleceu na vontade da população. 32 33

34 35 36

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160419_impeachment_revela_congresso_rm (acesso em 30 out. 2016). Por exemplo: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/10/1688952-suica-encontra-quatro-contas-bancariasatribuidas-a-eduardo-cunha.shtml (acesso em 30 out. 2016) e http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/01/1735463-delatores-apontam-cinco-novas-contas-de-eduardocunha-no-exterior.shtml (acesso em 30 out. 2016). http://www.valor.com.br/politica/4493408/se-impeachment-por-pedaladas-16-governadores-terao-que-seafastar (acesso em 30 out. 2016). http://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2016/08/senado-votou-em-separado-as-penas-de-dilma-rousseff (acesso em 30 out. 2016). http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/03/divulgacao-de-audio-de-lula-e-dilma-estimula-convulsaosocial-diz-advogado.html (acesso em 30 out. 2016).

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As consequências dessas revelações, pertinentes às entranhas da cena política e institucional brasileira, continuam reverberando mesmo com o afastamento definitivo da exPresidente e a posse do novo Presidente. Presidente esse que impõe ao país um plano de governo que não passou pelo crivo das urnas. E que ao pressionar por uma emenda constitucional que congela os gastos públicos por vinte anos e propor uma reforma do ensino médio, gerou uma interessante reação dos estudantes secundaristas. No momento de escrita desse trabalho, centenas de escolas estão ocupadas pelos estudantes, especialmente no Paraná.37 Tal qual a “gente nova” imagina por La Boétie, parece haver nessa geração um considerável número de jovens que entre a escolha de servir voluntariamente ou fazer ouvir sua voz singular, optou pela segunda via. A potência do movimento bebe da mesma fonte da potência de Bartleby. É preciso manter em cena uma corporeidade insurreta que resiste aos enlaces dos discursos e jogos de identificação de quem pretende impor a servidão. Ao ocupar as escolas os estudantes fazem corpo, um corpo que precisa resistir aos “nomes e títulos” das armadilhas de linguagem que tentam capturar o movimento. Taxados de “desocupados”, “vagabundos”, “cooptados” e outros nomes pelos seus críticos, eles seguem insistindo num único significante: estudantes.38 E é a partir desse significante identitário que o discurso de suas reivindicações é elaborado. As táticas contra o movimento são as mesmas do advogado, chefe de Bartleby. Como foi exposto anteriormente, o advogado chamou os outros dois empregados, Nippers e Turkey, para se posicionarem sobre o comportamento insubmisso de Bartleby, causando uma discórdia entre seus iguais na tentativa de dissuadir o escrevente a mudar sua conduta. No caso dos estudantes, a imprensa e o governo exploraram ao máximo a realização da prova do ENEM, que poderia ser prejudicada pelas ocupações, como forma causar discórdia entre os próprios estudantes e enfraquecer o movimento.39 A mesma estratégia foi utilizada pela imprensa com relação às manifestações de junho de 2013 que levaram milhões de brasileiros às ruas. Um movimento que se iniciou sem uma pauta reivindicatória definida, uniu todos aqueles que eram contra as práticas políticas tão enraizadas nas narrativas da cultura nacional. Ao começar a ocupar, ou seja, fazer corpo nas 37 38

39

http://g1.globo.com/educacao/noticia/pelo-menos-21-estados-tem-escolas-e-institutos-ocupados-porestudantes.ghtml (acesso em 30 out. 2016). A edição do dia 28 de outubro de 2016 da revista Forbes noticiou o video da fala da estudante Ana Júlia na Assembléia Legislativa do Paraná, que teve grande repercussão nas redes sociais: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2016/10/28/forbes-juventude-do-brasil-enxerga-seu-futuro-e-o-nomedele-e-ana-julia/ (acesso em 30 out. 2016). http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/10/1824301-ocupacao-em-181-escolas-pode-causarcancelamento-de-provas-do-enem.shtml (acesso em 30 out. 2016).

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ruas das cidades brasileiras (e até mesmo no Congresso Nacional, numa cena histórica) com um potencial cada vez maior de insurreição, a imprensa tratou logo de polarizar o movimento dividindo seus participantes nos compartimentos da identificação40, a exemplo dos os populares rótulos “coxinhas” e “petralhas”. A tática obteve considerável sucesso e o preço do acirramento de ânimos apareceu na forma de agressões entre manifestantes.41 No caso das manifestações de 2013, a mera negação dos discursos em vigência na politica, desacompanhada da estruturação de uma nova narrativa, parece ter custado a sobrevivência do movimento.42 Assim como em Bartleby, houve um ponto de ápice de potência em que os mecanismos de dominação já não podiam operar com sucesso. Entretanto, a falta de um líder ou de um ideal comum que pudesse ocupar o seu lugar e, assim, pautar a elaboração de um discurso alternativo capaz de unir as massas a partir do ponto de potência, inviabilizou a sobrevida da mobilização. Ao menos nesse aspecto, parece que o movimento secundarista tem tomado o cuidado de manter firme sua reivindicação por uma voz no processo de decisão sobre os destinos do ensino. A resistência corporal, nesse caso, se faz a favor da abertura para uma nova narrativa. De qualquer forma, o último recurso do tirano é a coação física. Ela esteve presente nas manifestações de junho de 2013 e precisou ser revestida de uma argumentação que a justificasse, no caso a repressão aos black blocs.43 Se há um outro efeito importante dessa presença corporal da população nas ruas foi o de revelar o caráter repressivo e extremamente violento da Polícia Militar no Brasil, um problema que gerou a recente condenação judicial do Governo de São Paulo ao pagamento de uma indenização no valor de oito milhões de reais e a proibição de bombas e balas de borracha em manifestações populares.44 A repressão já está armada para o movimento de ocupação dos estudantes. Ordens de despejo já foram proferidas e aguardam cumprimento.45 Assim como o advogado chefe de Bartleby, o uso da coação física como primeira estratégia tem um custo narcísico e à imagem que o governo também pretende evitar. Por essa razão, representantes dos estudantes foram 40 41

42 43 44 45

http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/28/opinion/1459128271_535467.html (acesso em 30 out. 2016). Um dos exemplos foi o caso da atriz Letícia Sabatella, hostilizada nas ruas de Curitiba recentemente: http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/atriz-leticia-sabatella-e-hostilizada-por-manifestantes-em-atopro-impeachment/ (acesso 30 out. 2016). http://www.cartacapital.com.br/politica/manifestacoes-encolhem-e-governo-federal-e-pt-nao-se-manifestam2961.html (acesso em 30 out. 2016). http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-black-bloc-e-a-resposta-a-violencia-policial-1690.html (acesso em 30 out. 2016). http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/10/justica-condena-estado-de-sp-pagar-r-8-mi-por-violencia-em2013.html (acesso em 30 out. 2016). http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/justica-determina-reintegracao-de-posse-de-25-escolasocupadas-em-curitiba-3y1ssgg8zpn16ngqk2fkypw9e (acesso em 30 out. 2016).

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chamados a negociar com representantes do governo e membros do Ministério Público a desocupação “espontânea” das escolas. A resposta às autoridades deixaria La Boétie mais esperançoso: a proposta não pode ser aceita porque os representantes não possuem autoridade sobre o movimento; sendo uma mobilização horizontal, onde todos têm o mesmo poder de decisão e expressão, o máximo que poderiam fazer é levar a proposta para uma deliberação coletiva, bem como respeitar aqueles que decidirem manter a ocupação em suas respectivas escolas.46 O que se pretendeu com a análise desses fatos políticos não é, obviamente, explicálos, mas apenas demonstrar que as ideias relativas aos mecanismos de funcionamento da “servidão voluntária”, na forma em que descrita por La Boétie, narrada por Melville e analisada por Freud, podem ser ferramentas úteis para desvelar estratégias de dominação ou mesmo inspirar novos comportamentos, individuais e coletivos. Só resta torcer para que cada vez mais os motivos de mobilização social sejam pautados na horizontalidade dos laços fraternais e no respeito às singularidades, nos moldes da bela amizade construída entre La Boétie e Michel de Montaigne.

46

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/10/1827589-alunos-rejeitam-acordo-e-decidem-desocuparmaior-colegio-do-parana.shtml (acesso em 30 out. 2016).

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