Uma pergunta simples, mas radical: É inoportuno, no âmbito da hermenêutica jurídica, perguntar pelo cérebro do intérprete? (Parte 2)

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Uma pergunta simples, mas radical: É inoportuno, no âmbito da hermenêutica
jurídica, perguntar pelo cérebro do intérprete?
(Parte 2)




Atahualpa Fernandez(


"Nunca asumas que el animal que estás
estudiando es tan estúpido como el que lo
estudia." William Drury




Na verdade, só é necessário um mínimo de sentido comum para ver que a
linguagem não poderia funcionar se não se assentasse sobre uma vasta
infraestrutura de conhecimento tácito sobre o mundo e sobre as intenções de
outras pessoas, isto é, de que as palavras sempre são interpretadas no
contexto de uma compreensão mais profunda das pessoas e suas relações. No
nosso caso, por exemplo, a própria existência de normas ambíguas - nas
quais uma série de palavras expressa pelo menos dois pensamentos - prova
que pensamentos não são a mesma coisa que uma sequência ou classes de
palavras, e que estamos equipados com faculdades cognitivas complexas que
nos mantêm em contato com a realidade. A linguagem, assim entendida, é a
magnífica faculdade que usamos para transmitir pensamentos e informação de
um cérebro para outro, e podemos cooptá-la de muitos modos para ajudar
nossos pensamentos a fluir.[1]
Ademais, a linguagem não é o mesmo que pensamento, nem a única coisa
que separa os humanos dos outros animais, a base de toda cultura, a morada
do ser onde reside o homem, uma prisão inescapável, um acordo obrigatório,
os limites de nosso mundo ou o determinante do que é imaginável (S.
Pinker). A ideia de que o pensamento é o mesmo que a linguagem constitui um
bom exemplo da que poderia denominar-se uma estupidez convencional, ou
seja, uma afirmação que se opõe ao mais elementar sentido comum e que, não
obstante, todo mundo se crê porque recorda vagamente havê-la ouvido
mencionar (S. Pinker)[2].
A linguagem é simplesmente o conduto através do qual as pessoas
compartilham suas intenções e percepções, suas experiências de prazer e de
sofrimento - enfim, a que permite o reparto (socioafetivo) da
subjetividade. Com isso adquirem o conhecimento, os costumes e os valores
daqueles que as cercam e no contexto da realidade em que plasmam suas
respectivas existências. Como recorda Derek Bickerton, não é a linguagem
somente um meio de comunicação, senão uma maneira de organizar o mundo e
cuja finalidade é pôr pensamentos nas mentes de outras pessoas e extrair
pensamentos das mentes de outras pessoas.[3]


Direito e interpretação: possibilidades e limites da experiência
hermenêutica


O direito é, quiçá com a teologia, a disciplina mais imanentemente
unida à interpretação, mais mediada – intercedida e contaminada – em seu
labor e seus resultados por uma constitutiva, permanente e ineliminável
hermeneusis. "Interpretação" é um dos termos mais repetidos e com mais
relevante protagonismo tanto nas obras teóricas sobre o direito como em sua
prática de todo tipo, começando pela jurisprudencial.
No âmbito propriamente jurídico, parece haver poucas dúvidas de que a
teoria hermenêutica do direito, influenciada pela recepção de Gadamer, deu
passos de gigante no século XX, propiciando uma indubitável aproximação
entre momento normativo e momento da decisão prático-concreta, assim como a
defesa de uma ontologia jurídica que vê o direito como um objeto em
permanente construção e reconstrução no processo de sua interpretação e
aplicação. Muitos e importantíssimos são os problemas levantados e
discutidos atualmente no âmbito desta abertura de novos itinerários
intelectuais propiciados pelo despertar (tardio) da consciência
hermenêutica dos juristas.
Nada obstante, em que pese sua peculiar e relevante influência, a
filosofia hermenêutica não resulta, por si só, suficiente para aportar
soluções ao problema central da interpretação jurídica (que é o problema da
"racionalidade" – melhor dito, da irracionalidade - da atuação judicial),
posto que não se apresenta diretamente como teoria da decisão valorativa
racional, senão como indagação da dimensão ontológica do compreender. Assim
se explica que nos postulados básicos de sua obra Verdade e método, Gadamer
se expresse em fórmulas como a de que "el ser, en cuanto puede ser
entendido, es lenguaje", ou que "todo entender es siempre un interpretar".
À diferença da hermenêutica romântica, que pretendia ser uma preceptiva,
proporcionar um conjunto de regras ou indicações metódicas para que o
intérprete de um texto pudesse aceder ao significado que seu autor
pretendeu dar-lhe, o que a filosofia hermenêutica de Gadamer – seguindo com
o exemplo - intenta é mostrar essa dimensão essencial da estrutura
ontológica do ser humano que vem dada pelo compreender. "Su tarea - diz
Gadamer - no es desarrollar un procedimiento de la comprensión, sino
iluminar las condiciones bajo las cuales se comprende".
Embora com a capacidade de produzir estranhos companheiros de cama
(por exemplo, analíticos e hermeneutas) e por ser hoje um dos movimentos
mais importantes no marco interdisciplinar da filosofia e as ciências
humanas, caberia pensar que a contemporânea filosofia hermenêutica, com
Gadamer em seu centro, acabou se incorporando ao elenco de categorias e
concepções com o que o operador do direito teórico e prático pensa e
explica seu labor. Mas não é assim, verdadeiramente; ou não o é na medida
em que seria razoável esperar.
Muito esquematicamente, é possível adiantar três razões: primeiro, ao
que à hermenêutica importa, a teoria e filosofia do direito têm suas
próprias tradições explicativas e a filosofia hermenêutica vai pouco mais
além das explicações existentes, ao menos no sentir comum do operador do
direito; segundo, e já agora no que mais importa ao direito, que é o
desenho de regras ou métodos do correto e "racional" decidir, a filosofia
hermenêutica não proporciona soluções; por último, ao reforçar o abismo que
separa o reino ideal das verdades e os princípios do ser-conhecer da
mecânica empírica (mental) da experiência subjetiva, Gadamer desconsiderou
a forma como opera naturalmente a mente do intérprete. Vejamos, então, em
que consiste estas três assertivas.
Enquanto a primeira, ao menos desde começos do século XX, se foi
abrindo passo na teoria do direito as ideias (i) de que o direito não se
esgota no texto, no puro enunciado normativo, (ii) de que a tarefa
interpretativa é uma mediação irrenunciável para a concreção do enunciado
legal, a fim de poder aplicá-lo aos casos que com ele hão de resolver-se, e
(iii) de que essa interpretação, que tem um componente sempre criativo,
contextual e pessoal, é constitutiva ou co-constitutiva (segundo o
radicalismo da respectiva teoria) da norma jurídica mesma, do próprio
objeto direito. No que ao operador do direito lhe interessa, a obra de
Gadamer (e de seus partidários) injeta possivelmente profundidade – e
elegância – a essa perspectiva, mas pouca novidade.
Relativamente à afirmação de que a filosofia hermenêutica não aporta
soluções que o operador do direito busca, o mesmo é dizer que a
hermenêutica filosófica se detém precisamente ali donde mais interessa em
direito a teoria da interpretação: à hora de proporcionar pautas do correto
interpretar, isto é, critérios de "racionalidade" ou "objetividade"
interpretativa. Não olvidemos que na práxis da aplicação do direito se pede
aos juízes que atuem com imparcialidade e objetividade, evitando, na medida
do possível, que sua decisão esteja condicionada por puros dados
subjetivos, prejuízos, simpatias, e um longo etcétera. (G. Amado)
Agora: É epistêmicamente rigoroso postular a veracidade de um
determinado modelo hermenêutico com base unicamente em um estado mental
gerador de uma teoria mais ou menos compartida? Ou, em outras palavras, é
condição suficiente para a evidência de um modelo hermenêutico baseado na
racionalidade a crença (por consenso ou por ampla maioria) de que tal
modelo existe? Por acaso já não sabemos que as opiniões, por definição, não
são e nem podem ser constitutivas da verdade ou prova axiomática da
existência objetiva do afirmado?
Se o estudo científico da natureza humana serviu (ou serve) para algo
é para saber que, em realidade, não somos criaturas racionais e que toda a
mente humana pode não ser mais que a emergência ocorrida "tras el procesado
eléctrico conjunto de cientos de millones de neuronas; las cuales utilizan
un complejo conjunto de patrones eléctricos (evolutivamente determinados)
para comunicar información entre las distintas zonas cerebrales y
posteriormente hacia el exterior" (K. J. Miller, R. P. N. Rao et al.).
Também serve para demonstrar que nossas mentes são máquinas de estabelecer
relações causais: sentimos horror ao vazio de um esclarecimento e
preferimos uma interpretação errônea a nenhuma.
Isto explica as desconcertantes reconstruções imaginativas e
esotéricas de algumas teorias hermenêuticas (que flertam com o poético, com
a inspiração áulica e que complicam tudo para fazer-se interessantes) e
que Montaigne observou há alguns anos: «Nada se cree tan firmemente como
aquello que menos se conoce». Nos passa a todos, a ignorância nos faz
ousados. O pequeno inconveniente é que o jurista (ou filósofo), por muito
inteligente e próximo do mercado das modas intelectuais (segundo o qual o
incompreensível é profundo), por muito conhecedor e bom praticante que
seja, não é nem nunca será o critério para saber se algo funciona ou não.

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
[1] Por certo que nossa linguagem é única e especial no reino animal, mas
não se pode utilizar para tudo. Às vezes, uma mirada diz "mais que mil
palavras". Se pode mirar "com muita intenção" e fazer gestos "muito
expressivos". Ademais, a vida humana está claramente cheia de situações em
que é melhor calar a boca. O bom uso da linguagem inclui a arte do silêncio
(e o silêncio – também - se aprende). Por quê? Porque a linguagem não é
instrumento algum da verdade. Não se inventou para este fim. A questão da
verdade não foi o problema mais importante na evolução do ser humano e de
sua cultura. Um primata que viva sociabilizado na savana tem que entender-
se. E, além disso, no duplo significado da palavra "entender". Mas em
"poquísimas veces se encuentra ante el aprieto de encontrar determinaciones
exactas o describir con precisión verdades absolutas. Para esa tarea apenas
fue dotado por la naturaleza y su entorno". (R. D. Precht)
[2] Mais recentemente se demonstrou as limitações insalváveis de afirmações
do tipo "o ser que pode ser compreendido é linguagem", e até mesmo a
relação estabelecida nos textos aristotélicos entre a linguagem e o sentido
do justo e do injusto: determinadas observações e experimentos indicam que
já outros primatas reagem como se tivessem algo parecido a um sentido de
justiça, ainda que careçam de linguagem; sem linguagem pode haver
compaixão, cooperação e quiçá algo assim como um sentido de justiça. Da
mesma forma, nem toda cultura é linguística. Uma grande parte da cultura é
independente da linguagem e se transmite por imitação não mediada por
palavras: por exemplo, a cultura de diversos primatas que carecem de
linguagem - como os chimpanzés ou os monos (F. de Waal) -, assim como a
transmissão de determinados ofícios e a propagação das modas entre os
humanos (J. Mosterín).
[3] E não somente isso. No que se refere propriamente a sua origem, por
exemplo, Michael Tomasello rechaça a ideia de que uma mutação tenha criado
a linguagem. Para ele, a chave radica em que nos humanos evolucionou
biologicamente uma nova maneira intencional de identificar-se e de entender-
se com membros da mesma espécie: "entender el lenguaje significa siempre
entender una intención". A continuação do processo, a partir desta única
adaptação cognitiva que permite reconhecer aos outros como seres
intencionais, teria tido um caráter inteiramente cultural e produziu o
desenvolvimento de formas simbólicas de comunicação (um desenvolvimento que
transcorre a uma velocidade que nenhum processo de evolução biológica pode
igualar). Ademais, sustenta Tomasello, ao começo do desenvolvimento
particular da linguagem entre os seres humanos "no estuvo el lenguaje
sonoro sino el lenguaje de signos y gestos". Segundo o diretor do Instituto
Max Planck para Antropologia Evolucionista de Leipzig, o jogo de gestos e
signos constitui a plataforma psicológica sobre a que surgiram as seis mil
línguas de hoje: "no fue el lenguaje sonoro el que produjo la exuberancia
de significado de nuestro pensamiento, sino que la exuberancia de
significado de nuestro pensamiento se servió del lenguaje sonoro como medio
adicional. Primero se señaló algo y después se establecieron los sonidos
para ello". Como lembra Robin Dunbar, o trabalho verdadeiramente
intelectual do discurso radica em nossa capacidade de antecipar como
entenderá o ouvinte – ou como não entenderá!- o que queremos dizer. Em
outras palavras, para que haja uma conversação, temos que participar em
jogos mentais, embarcando em uma leitura profunda da mente que vai mais
além da simples teoria da mente (segundo grau de intencionalidade); sem a
teoria da mente – sem os graus mais altos da teoria da mente –, a
transmissão de informação levada a cabo pela linguagem e a maior das
interações sociais resultariam impossíveis e viveríamos em um mundo
intelectualmente empobrecido.
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