Uma pergunta simples, mas radical: É inoportuno, no âmbito da hermenêutica jurídica, perguntar pelo cérebro do intérprete? (Parte 3)

Share Embed


Descrição do Produto

Uma pergunta simples, mas radical: É inoportuno, no âmbito da hermenêutica
jurídica, perguntar pelo cérebro do intérprete?
(Parte 3)




Atahualpa Fernandez(



"It's the brain,
stupid". Arne Dietrich




Pois bem, no que se refere à profunda indiferença em relação à
realidade psicobiológica do intérprete, a teoria hermenêutica, conquanto
reconheça o papel das emoções, sentimentos, prejuízos, ideologias,
etc...etc., ignora deliberadamente que a experiência de interpretar e
eleger a decisão «correta» ou «satisfatória» não é uma ficção, senão algo a
todas luzes orgânico, uma atividade mental associada a um estado biológico:
uma função do cérebro, uma consequência causada pela atividade fisiológica
dos tecidos de um cérebro moldado geneticamente ao largo da história
evolutiva de nossa espécie e aparelhado para pensar de certa maneira.
E uma vez assumida, com plena e honrada consciência, que a aplicação
das normas jurídicas é, em uma parte importantíssima, prática humano-
interpretativa de textos legais (de princípios, de valores e de fatos),
isto já nos dá alguma pista respeito à evidência de que tais considerações
não dá e nem intenta dar as teorias hermenêuticas contemporâneas. Limitam-
se a descrever, a mostrar as condições da interpretação, da compreensão
textual, enquanto que não dão regras senão sumamente gerais acerca do modo
como esta deve transcorrer, contanto que realizada por sujeitos
supostamente racionais e livres.
O único inconveniente consiste em que uma filosofia hermenêutica (e/ou
teoria argumentativa) jamais poderá substituir mediante meras especulações
e/ou conhecimentos teóricos, filosóficos e/ou metodológicos o momento da
decisão em que a experiência subjetiva e a atividade exclusivamente
neuronal do intérprete autorizado concreta e aplica valores, princípios,
normas e conceitos ante uma situação concreta.
Nenhuma teoria magistralmente especulativa, nem filosofia prolixamente
contemplativa, nem as espinhosas sutilezas de uma suposta lógica ou
metodologia perfeccionista, pode pesar mais que o funcionamento real do
mais diminuto e limitado dos cérebros implicado na solução de um problema
no mundo real (já que qualquer interpretação (justificação e aplicação),
por definição e por essência, é sempre a interpretação (a justificação e a
aplicação) de um ou de vários indivíduos singulares que basicamente
respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim como de
suas experiências, memórias, valores, aprendizagens, emoções, intuições e
influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum em que se
situam). Nossos erros cognitivos, nossos prejuízos, nossas emoções e
intuições morais, sem as quais não seríamos sequer capazes de valorar e
decidir, existem muito antes que os teóricos e filósofos do direito
propusessem as primeiras teorias e métodos para orientar a interpretação
jurídica.[1]
Mas nada disto significa, evidentemente, qualquer razão para
desconsiderar a importância que representou para o direito as agudíssimas
análises desenvolvidas pela hermenêutica filosófica, nomeadamente a de
corte gadameriano. Recordemos, só para exemplificar, no modo como esclarece
o conceito de "círculo hermenêutico", nas reflexões que dedica ao problema
da "aplicação" e na articulação que estabelece entre o "compreender e a
linguagem"[2]. Também não seria nenhum exagero conjecturar que a teoria
hermenêutica, particularmente no que se refere à compreensão prévia, captou
adequadamente o núcleo de nossas intuições cognitivas; isto é, do que vem
das intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva e que nos proporciona,
condiciona ou determina o repertório de nossas primeiras conjecturas e
hipóteses.[3]
Em resumo, dar à hermenêutica o que é da hermenêutica significa
reconhecer-lhe seu legítimo lugar entre as mais influentes explicações da
constituição do direito. Mas limitar-se, sem mais, em e com suas
explicações, importa não somente permanecer de costas aos espetaculares
logros dos recentes estudos procedentes das ciências do comportamento e da
cognição humana, senão também em renunciar a partes cruciais da filosofia
jurídica e deixar sem resposta (ou sem sentido) perguntas determinantes que
têm que ver com a busca de adequados (e necessários) recursos e padrões
cognitivos e metodológicos na análise dos fatores que formam parte do
edifício neural da razão humana, fatores que influem, limitam, configuram e
distorcem a maneira como percebemos e interpretamos o mundo (M.
Csikszentmihalyi).[4]
É, como já disse em outra ocasião, correr o risco de amputar o
«conceito de humanidade» do sujeito-intérprete, o qual contribui para
produzir uma espécie de «hermenéutica de la sospecha» (D. Kennedy), porque
deliberadamente olvidados «os problemas da natureza humana», ainda que
dissimulados baixo modelos abstratos investidos de uma importância cósmica.


Hermenêutica e interpretação jurídica: por uma consciência do cérebro


Quando pensamos no cérebro (aliás, com o próprio cérebro, e que não
foi modelado pela evolução para entender-se a si mesmo) vemos que nosso
conhecimento do mundo e nossas ações derivam de nossas percepções e que
nossas percepções (assim como nossa consciência) são construídas por
mecanismos (redes) neuronais adquiridos e desenhados ao longo de nossa
evolução. Investigar o que é o homem e como atua significa, de alguma
maneira, saber como funciona o cérebro, como intervém na elaboração de
nossos pensamentos, como opera nas ações humanas, na criatividade, na
racionalidade e no surgimento de nossos juízos de valor, sentimentos e
emoções, já que é precisamente neste órgão onde reside o substrato último
de toda experiência humana, incluída a própria experiência hermenêutica.
E se nos situamos no âmbito propriamente do jurídico, nada disso
deveria surpreender, pois não parece definitivamente razoável supor que a
tarefa interpretativa seja concebida como extra-cranial, enquanto a
cognição e a emoção (produtoras da subjetividade) não o são. São produtos
de nossa maquinaria cerebral, tanto como são produtos de nosso entorno
cultural. Dito de modo mais direto: se interpreta com o cérebro, toda e
qualquer interpretação somente funciona através da mente. Ou não?!
Assim que a interpretação jurídica, tal como a conhecemos, é uma
atividade levada a cabo por seres (cérebros) humanos rodeados e
atravessadas por pensamentos fundados em ilusões ou «sesgos» cognitivos,
inclinações pessoais e apofenias, em mitos culturais e valores sociais de
grupo, em estereótipos tomados voluntária ou involuntariamente e em
crenças, dogmas, teorias ou explicações falsas, mas amplamente divulgadas e
admitidas.
De uma forma ou outra, todos estes fatores incidem e condicionam o
resultado de suas interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens
(todas contextuais) a um público específico em uma época e um lugar
determinado. Cada um dos intérpretes do direito é um ser humano, cada um
deles, com suas limitações, deficiências, debilidades e imperfeições, tem
algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir a sua visão de mundo
(que há herdado ou adquirido) em suas próprias palavras. Cada um deles, de
certo modo, adultera, corrige, matiza, intensifica ou transforma os textos
que interpreta.
Depois de tudo, convém não olvidar que as teorias hermenêuticas não
dão uma ideia categórica da alma individual e que a conduta humana (o ato
de interpretar) também é uma questão neurobiológica que não se pode
despachar com suposições.




-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
[1] "Las teorías dominantes sobre la hermenéutica y la argumentación
jurídica pecan no tanto por buena parte de cuanto dicen… ¡sino sobre todo
por lo que NO dicen! Son teorizaciones pesudodescriptivas – basadas en unas
«intellectualist assumptions» – con respecto a los razonamientos jurídicos.
Así ellas conducen a apartar la vista de los decisivos ingredientes de anti-
racionalidad…". (E. P. Haba)
[2] Para um exemplo de exposição de conjunto do pensamento de Gadamer em
sua relevância para a filosofia do direito: Giuseppe Zaccaria.
[3] Dito de outro modo, a afamada «pré-compreensão» não passa de uma
metáfora ou um conceito esotérico para expressar o núcleo de uma das
intuições ínsitas em nossa arquitetura cognitiva: a conata capacidade para
interpretar («pré-compreender») os outros, para ler suas mentes, para
entendê-los e para entender a nós mesmos como seres intencionais, para ler
o que há baixo a superfície, antecipar os acontecimentos e dar sentido à
realidade que percebemos. Tal como esclarece Daniel Dennett, o cérebro
humano é uma «máquina de antecipação», e «criar futuro» não somente é o
mais importante que faz, senão que parece ser o traço definitório de nossa
humanidade: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral.
(R. Llinás)
[4] Nas palavras de Gary Marcus: "Nuestro cerebro, lejos de ser un órgano
perfecto, es un kluge, un apaño, o más bien, un conjunto de apaños
improvisados por la evolución para resolver diversos problemas de
adaptación. En todos los ámbitos de la experiencia humana, la memoria, el
lenguaje, la forma como gestionamos nuestras preferencias y construimos
nuestras creencias, el placer o la capacidad de elección, podemos reconocer
indicios de una mente construida en gran medida a través de la
superposición progresiva de parches sobre estructuras anteriores de la
evolución. De ahí la falibilidad del cerebro a pesar, paradójicamente, de
su maravillosa capacidad intelectual: podemos resolver problemas de física
o de matemáticas de una complejidad inmensa al mismo tiempo ser incapaces
de solucionar de manera lógica un conflicto, de tomar decisiones puramente
racionales, de no dejarnos llevar por los arrebatos emocionales, de no
sernos tan vulnerables ante los prejuicios, recordar dónde hemos dejado la
llaves del coche…". Em resumo, "una chapuza que vive para engañarnos".
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.