Uma perspectiva histórico-semiótica do avaliar

July 21, 2017 | Autor: Julio Pinto | Categoria: Semiotics, Measurement and Evaluation
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uma perspectiva histórico-semiótica do avaliar



Julio Pinto*




E a avaliação está em voga. Todos dizem dela, todos querem medir a
eficiência (o que será isso, mesmo?). Naturalmente, todos os que avaliam a
apontam como desejável, todos os avaliados a toleram. Mas a moda, entre
outras tools , são os KPI, key performance indicators, glorificados como a
excelência ferramental indispensável para o sucesso de qualquer
empreendimento. E as avaliações de desempenho são figuras cotidianas nas
escolas, nas empresas, nas empresas-escolas, nas ONGs e até no governo.
E há mais. A avaliação agora está figurando na agenda das instituições
de ensino, pasmem, com boa vontade. Antes, na visão das instituições, ela
era uma espécie de primo pobre, mal tolerada criação dos pedagogos que,
quando usada – estou reinventando a roda, aqui – era-o em áreas restritas e
para propósitos administrativos de natureza cirúrgica, que poderíamos
chamar de docentetomia radical.
O que mudou, para além da constatação banal de que as pessoas estão
mais conscientes de um paradigma de qualidade, etc. e tal? Que signos têm
sido produzidos que poderíamos arrolar como alentadores índices da
vitalidade dos processos avaliativos entre nós? Falo de vitalidade da
avaliação porque sua onipresença no cotidiano é sinal inequívoco de sua
inserção no imaginário social.
Esta minha intervenção pretende justamente arriscar um esboço de
resposta que, aliado às inúmeras e eloqüentes contribuições vindas de todos
os quartéis – quartéis no bom sentido, naturalmente – soma uma voz modesta,
mas, espero, ruidosa o suficiente para causar pelo menos uma onda a mais
nas turbulentas águas em que todos navegamos hodiernamente.
E, aviso, vou falar de um lugar sem números e sem tabulações e sem
correlações e sem cruzamento de dados. A tentativa aqui é a de fazer um
exercício metateórico, no sentido de esboçar um quadro mais geral, de
natureza epistemológica, que quase retoma a idéia do Zeitgeist, o espírito
do tempo. Vou procurar falar do lugar de alguém que pensa os fenômenos da
comunicação e da linguagem, não só da forma como eles acontecem em nosso
mundo, mas também em sua gênese e nas autopoieses que os geram e
sustentam.[1]
Uma perspectiva que ainda está entre nós, ainda hegemônica em alguns
setores, é o pensamento sistêmico, associado proximamente à noção de
cibernética. Os sistemas simples ou complexos são pensados como fluxos ou
conjuntos de interações que se organizam segundo um padrão qualquer. O
termo cibernética, por sua vez, deriva-se da palavra grega para
"governador" (kybernetes), e começou a ser usado por Wiener, obviamente
dentro de uma moldura conceitual que poderia ser relacionada com a de Karl
Bühler, propositor do Organonmodell na década de 30, base para o modelo
comunicacional sistêmico até hoje em uso, mais tarde refinado por
Jakobson pela inclusão das funções da linguagem dentro do esquema inicial
Emissor – Mensagem - Receptor.
Wiener era professor de matemática no Massachusetts Institute of
Technology de 1932 até 1960. Durante a II Guerra Mundial tentou produzir um
sistema matemático e eletrônico para a comunicação de informações vitais,
enquanto iniciava uma pesquisa sobre técnicas de defesa aérea. Depois deste
trabalho, interessou-se pela computação automática e pela teoria do efeito
de retorno – o famoso feedback. Assim, fundou a cibernética, que lida não
apenas com o controle automático de máquinas pelos computadores e outros
aparelhos eletrônicos, mas também estuda o cérebro humano e o sistema
nervoso, bem como a relação entre as duas comunicações e sistemas de
controle. Wiener resumiu as suas teorias nas seguintes obras: Cybernetics
(1948), The Human Use of Human Beings (1950), Nonlinear Problems of Random
Theory (1958). Vou repetir o título da obra de 1950: o uso humano de seres
humanos, o que, desnecessário reiterar, é bastante sintomático.
Essas teorias reforçam um tipo de pensamento de controle pelo feedback
que se espalha para várias áreas do conhecimento, atingindo a comunicação,
que produz, em 1947, o famoso modelo Shannon-Weaver dos constituintes e do
fluxo do processo comunicativo (fonte ou emissor, codificador, mensagem,
canal, decodificador, receptor, feedback), cuja ênfase reside na
transmissão e na recepção da informação. A informação era pensada como algo
concreto, meio como sinônimo de dado, algo codificável, guardável,
decodificável, quebrável, moldável num código, enfiado num container
chamado mensagem e jogado para um sujeito que o recebe. Esse sujeito vai
abrindo a caixa enigmática até achar lá dentro algo chamado de informação.
Recebida a informação, devolve um sinal confirmando o recebido (OK, Roger
and out, câmbio e desligo, por exemplo), dizendo para o emissor que a
mensagem chegou sem ruído. Essa teoria, como vêem, promove uma
metaforização dos conceitos de feedback usados em sistemas de controle da
engenharia e sua transferência para o domínio do social e, como alguns já
perceberam, para o pedagógico, dado seu parentesco com esquemas
behavioristas de estímulo, resposta, condicionamento operante, etc.
Diferentemente do pensamento linear newtoniano, reforçado pelo
positivismo do século XIX, em que predomina a causação eficiente (post hoc
ergo propter hoc, depois disso, portanto por causa disso, isto é, a causa
passada do efeito presente), a ênfase principal da cibernética – por ela
reivindicada como seu maior avanço -- está nos chamados mecanismos
circulares que fornecem aos complexos sistemas a possibilidade de se
manter, adaptar e auto-organizar. Isso torna possível exatificar modelos
científicos de atividades com certo propósito, ou seja, que se comportam de
acordo com um objetivo ou condição preferencial, isto é, mediante uma
teleologia.
Ora, o comportamento de organismos vivos é chamado de teleonômico, ou
seja, é também orientado para um estado futuro, que ainda não existe. Na
cibernética, coloca-se que finalidade e causalidade podem ser conciliados
pelo uso de mecanismos não-lineares (circulares), em que a causa se iguala
ao efeito. Seu exemplo mais simples é o feedback. A aplicação mais comum da
idéia de feedback (falando-se de sobrevivência) é a homeostase (atividades
que o organismo realiza para se manter). Então, a interação não-linear
entre sistemas (homeostáticos ou diretos) e seu meio ambiente resulta numa
relação de controle de tal sistema sobre as perturbações vindas desse meio.
Em termos comunicacionais, evita-se o ruído, potencial complicador da
decodificação da mensagem tal como o emissor gostaria que ela fosse
entendida.
Atrevo-me a ponderar, contudo, que o termo não-linear, da forma como
usado nessa discussão até o momento, só quer dizer bidirecional, ao
contrário da relação de causa eficiente, que é unidirecional sempre, isto
é, sempre da causa para o efeito. Uma outra noção de linearidade que
considere como característica principal o fato de ela ser em linha não
justifica de todo a glória reivindicada pelas teorias sistêmicas de terem
revolucionado o pensamento, na medida em que o feedback é só a mesma linha
ao contrário. Assim, a cibernética sistêmica continua linear, especialmente
se a compararmos com o estado de coisas a que vou me referir daqui a pouco.
Seja como for, o incrível sucesso das tecnologias, mais o fato de o
pensamento sistêmico ser tão atraente, possivelmente dada a sua
metaforização maquínica dos comportamentos sociais, fizeram com que esse
pensamento penetrasse insidiosa e indelevelmente no imaginário social e
profissional até do fim do século e hoje ainda.
Por isso, nesse colchão epistemológico poderíamos deitar um certo
conceito de avaliação, aquele a que me referi há pouco, isto é, aquela
avaliação destinada a evitar os ruídos, feita sempre de forma pontual,
pensando linearmente a relação, por exemplo, entre docentes e discentes
(que ainda costuma ser o único tipo de avaliação realizado nas instituições
e que culmina sempre na docentetomia radical). No limite, há uma avaliação
linear e sistêmica com que nós todos já nos deparamos e que já quer
messianicamente evitar o ruído produzido por ela mesma ao perguntar ao
professor se ele acha que seu desempenho na sala de aula foi ótimo, muito
bom, bom, razoável, fraco ou muito fraco. A menos que o professor seja de
índole suicida, essa avaliação é invariavelmente bem sucedida e, portanto,
só oculta o ruído, já que o sucesso total é sintoma de que alguma coisa
está errada.
A associação invariável que se faz com a avaliação como forma de
diagnóstico para o estabelecimento da limpeza do sistema – ou a implantação
de um sistema linear, behaviorista, de limpeza do sistema – conduz ao mal-
disfarçado temor que a maioria das instituições têm de serem avaliadas.
Entretanto, uma nova situação vem se desenhando. No panorama das
últimas décadas do século XX e agora, neste século, o desenvolvimento da
própria cibernética e das tecnologias de comunicação, associado ao
pensamento renovador – e mesmo maldito – de alguns filósofos, sociólogos,
arquitetos, historiadores, lingüistas, psicanalistas, biólogos, enfim,
pensadores – alguns de épocas mais distantes (estou pensando aqui em gente
como Morin, Lyotard, Peirce, Virilio, Baudrillard, de Certeau, Benjamin,
Vigostsky, Lacan, Derrida, Eco, Bakhtin, Foucault, Deleuze, Guattari,
Jameson, Habermas, Appel, e Maturana, Pierre Lévy, Negroponte, entre muitos
outros – e reparem que não os cito em ordem cronológica, porque ela não tem
a menor importância para o tipo de raciocínio em que me baseio), outro
paradigma vem se desenhando.
Esse novo desenho, que tem como traço distintivo o pensamento
complexo, o caos, a entropia, a informação como latência, o olhar veloz, o
inconsciente, a autopoiese pela qual os organismos criam mapas
internalizados de um Lebenswelt que nunca chega a ser lugar a não ser no
próprio organismo, a noção de signo – entidade plural, escorregadia e
sempre provisória que nos dá sentidos esvanescentes e fugidios, o
intertexto, o hipertexto, o papel do observador relativamente ao observado,
o erro como correlativo do acerto (e não seu oposto), a percepção
maquínica, e, principalmente, a rede, tudo isso colaborou no esboço de um
novo jeito de pensar aquilo que está na raiz – raiz e não rizoma – de todos
os fenômenos, ou, pelo menos, na percepção e na intelecção de todos os
fenômenos: a linguagem, isto é, a comunicação. A linguagem é o fio que
tece a rede. E que rede é essa?
Tem-se agora como certo que as percepções nunca coincidem com as
coisas percebidas, as palavras não são as coisas, as imagens não são as
pessoas, as palavras não têm nenhum poder direto sobre o mundo. Com
efeito, se aquilo que percebo não é um aquilo em si, mas é apenas tal como
eu o percebo, e eu percebo segundo minhas próprias necessidades e minha
própria constituição, a lógica de que preciso não é a lógica do aquilo que
está lá, mas a lógica do aquilo que tenho em mim. Se é que aquilo que está
em mim, observador, é um mapa daquilo que não está em mim, o território, o
mundo físico, o que dizer da instituição, grupo de aquilos imaginados
ajuntados em uma mente coletiva que busca sua própria coerência como forma
de sobreviver e que, por conseguinte, vê os aquilos não como eles se vêem,
mas como ela os vê? Obviamente, nem a visão que a instituição tem dos
aquilos que a compõem, nem a visão que os aquilos têm de si mesmos
corresponde a nada fora da instituição ou dos aquilos.
Mas é mais que isso. Cada constituinte da instituição – e estou
falando de nós – é um sujeito observador, um emissor, um código, uma
mensagem, um canal, um decodificador, um receptor, um agente de feedback,
TUDO ISSO AO MESMO TEMPO, porque cada constituinte da rede – isto é, cada
nó, é ponto fulcral na linkagem para todos os outros nós.
Esse pensamento em rede, que produz sentidos diferentes em cada
leitura que se faz, esse sim, constitui uma mudança vis-à-vis o sistema,
aquele da visão linear de transmissão e feedback. Este pensamento leva em
conta a complexidade, ele busca os atratores estranhos – pontos nodais de
sentido, mas pontos provisórios que sustentam as relações realmente não-
lineares porque não direcionais, mas nem por isso menos gerais, entre
todos os elementos que constituem aquilo que chamamos de signo, e que aqui
podemos chamar de instituição.
Esse pensamento complexo é o que percebo como aquilo que está por trás
das propostas mais recentes de avaliação institucional. O que está para
ser buscado não é o dado duro, a informação guardável, trabalhável,
quebrável, que está lá e lá vai ficar. Devem-se procurar, ao contrário, as
tendências, as teleologias provisórias, o contato com o emissor / meio /
mensagem / canal / intérprete / receptor – tudo isso ao mesmo tempo, repito
– que pode mostrar o que ele ou ela pensa e vê para que nós sejamos
receptores / intérpretes / canais / mensagens / meios/ emissores. Avaliar,
nessa luz, significa outra coisa. Significa aferir o que pensamos de nós
mesmos, para que possamos, autopoieticamente, agir em nosso mundo da vida
de forma a mantermos nossa espécie, e a nós mesmos como indivíduos.
Significa que erro não é o sinal negativo que aparece como feedback de uma
resposta e que vai merecer um puxão de orelha. Pelo contrário, o acerto não
significa nada se não houver o erro. Se é que a complexidade quer dizer
alguma coisa, é que os esquemas télicos – tendências para algum lugar – não
constituem mecanismos rígidos do tipo se p, então q. Pelo contrário, esses
mecanismos simplesmente apontam em uma direção geral. Só dessa forma pode-
se pensar a desejabilidade de uma meta.
Por isso, imagino que uma avaliação realmente eficaz é aquela em que a
instituição procura metas, propõe-nas, e depois vê se as atingiu. Para tal,
todos os constituintes desse corpo precisam contribuir, já que todos são,
ao mesmo tempo, sujeitos e objetos dessa grande comunicação, que só surge
no momento da interação, já que a informação só significa alguma coisa no
momento em que ela é comunicada. Por isso é que não se avaliam pessoas, mas
processos, não se avaliam estruturas, mas fluxos. Por isso é que as
atividades meios e atividades fins são igualmente importantes. Ambas
apontam numa única direção: a coerência da instituição a caminho de suas
metas. Por isso é que se deve ter um Plano de Desenvolvimento Institucional
e um programa de avaliação institucional instalado que não se dedique
apenas a coletar dados inertes. Um precisa ver o outro. Na verdade, todos
veem a todos porque somos todos mapas uns dos outros.
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* PhD em Semiótica, Univ. da Carolina do Norte, EUA, com pós-doutorado em
Comunicação Social pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa),
Avaliador Institucional do INEP/MEC.
[1] Penitencio-me desde já com Humberto Maturana pelo uso herético que faço
desse seu conceito.
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