Uma proposta iconográfica para o prólogo do M.S.A 1 da Academia das Ciências

July 11, 2017 | Autor: María Pandiello | Categoria: Iconography, Medieval Chronicles
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CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE

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Uma proposta iconográfica para o prólogo do M.S.A 1 da Academia das Ciências* María Pandiello Fernández Investigadora independente [email protected] Resumo O presente trabalho propõe uma leitura iconográfica do prólogo do códice M.S.A 1 da Academia das Ciências de Lisboa, que contém a Crónica Geral de Espanha de 1344. A proposta iconográfica procura a convergência discursiva entre o texto e as iluminuras tratando-­se de um estudo interdisciplinar. O discurso que se pretende abordar é o discurso das elites e os seus paradigmas morais. Abstract The present study proposes na iconographic interpretation of the M.S.A 1 of Academy of Sciences of Lisbon·s prologue, which contains the Crónica Geral de Espanha de 1344. The iconographic proposal looks for the discursive convergence between text and illuminations, consisting of an interdisciplinary study. The discourse that we analyze is the discourse of the elite and of its moral paradigms.

Alguns dados sobre o códice M.S.A 1 da Academia das Ciências Quem conhece o códice M.S.A 1 da Academia das Ciências, onde se encontra a segunda versão da Crónica Geral de Espanha de 1344, aprecia, sem dúvida, o tesouro artístico que se revela ao longo destes fólios. Abordada desde uma perspetiva textual, a Crónica Geral de Espanha de 1344 foi alvo de vários estudos e investigações dispondo atualmente de uma ampla bibliografia. Não tiveram a mesma sorte as imagens, que contam apenas com alguns estudos dedicados a elas, pelo que se apresentam como um terreno praticamente virgem do ponto de vista da História da Arte.1 O texto data de finais do século XIV, no entanto, deveremos esperar mais uns anos (século XV) para uma primeira aparição das imagens, sendo que também é visível o facto de a iluminação do manuscrito ter sido feita em períodos descontínuos. Do ponto de vista estilístico, numa primeira abordagem à totalidade das representações, existe uma homogeneidade quanto ao formato de iluminura inserida na página. Porém, analisando com mais atenção, é visível encontrar uma heterogeneidade representativa, onde Horácio Peixeiro detetou dois estilos diferenciados para todo o códice. O primeiro estilo caracteriza-­se pelas arquiteturas fingidas, as molduras arquiteturais e as flores em grinaldas, principalmente no intercolúnio. A variante é o sub-­estilo das filactérias, fitas enroladas que servem para construir iniciais e para a decoração marginal; podem aparecer em sequências homogéneas ou integrando outros motivos. As variações notam-­se, também, ao nível da intensidade decorativa, da simplificação dos motivos ou da qualidade plástica do seu tratamento. É dentro deste estilo que existe figuração quer nas iniciais ² historiadas, antropomórficas, zoomórficas ² quer nas zonas perimetrais, organizada em cenas ou como elementos decorativos. O segundo estilo caracteriza-­se pelas folhagens e ramagens. Mais simples e contido, este programa privilegia as iniciais, por vezes com extensões pelas margens, excluindo Agradeço à Academia das Ciências de Lisboa, nomeadamente ao Prof. Doutor Miguel Telles Antunes, atual Inspetor da Biblioteca, a permissão para integrar nesta publicação algumas fotografias do códice M.S.A 1 da Academia das Ciências de Lisboa que contém a Crónica Geral de Espanha de 1344. 1 Sem esquecer alguns trabalhos de relevo, nomeadamente, de Teresa Amado (Amado, 1999-­2000) e de Horácio Peixeiro (Peixeiro, 2009). *

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qualquer tipo de figuração. É este modelo que nos aparece, também, noutros códices saídos da mesma oficina régia. (Peixeiro, 2009: 154) No presente artigo focar-­me-­ei em algumas propostas iconográficas2 relativas ao prólogo, com o propósito de identificar as personagens e de justificar a sua presença neste primeiro fólio. O objetivo será esboçar o seu discurso ideológico além de lançar interrogações sobre algumas problemáticas relativas à representação. Finalmente, são ainda necessárias algumas reflexões sobre a inter-­relação entre a imagem e a palavra. Trata-­se portanto de um estudo interdisciplinar que pretende encontrar o ponto de convergência entre a imagem e a palavra. Para este encontro, deveremos atender à globalidade do códice e ao contexto destas imagens, a leitura do texto que as acompanham condicionará, sem dúvida, o olhar sobre as representações. Nesta leitura a ideologia de corte é uma presença de muita relevância, fator que determina e filtra, desde já, alguma informação sobre as iluminuras, o próprio género da crónica acrescenta também uma caraterística que não podemos ignorar.3

Margem inferior-­direita: Lyberia Na área direita da margem inferior (FIG. 1) encontramos uma superfície especialmente danificada, mas onde se encontra uma das representações mais significativas desta primeira página. Nessa cena quatro figuras humanas rodeiam um rio e estabelecem uma cumplicidade visual com este elemento. Neste grupo humano identificamos primeiramente uma figura feminina, da qual podemos ver nitidamente o seu rosto, ataviada com roupas que a identificam com uma esfera social alta, crespin vermelho e túnica de mangas largas, fixa absorta o seu olhar na afluência de água do rio. À direita da mulher uma figura masculina também danificada revela uma expressão corporal convincente: pernas entreabertas, mão direita no peito, encara-­nos de forma frontal. Veste com fato azul e chapéu da mesma cor. Uma terceira figura masculina debruça-­se, como a mulher, sobre o rio. O seu braço aponta na direção da água, também vestido com fato azul, chamam a nossa atenção tanto a cor como o volume do seu cabelo, laranja, que será uma chave definitiva para identificar este grupo humano. O quarto indivíduo é também um homem, está ligeiramente isolado do grupo, permanece de costas para ele, e inclina a cabeça num sinal de abatimento. As suas roupas identificam-­no, também, entre a aristocracia, estando ataviado em vermelho com luxuosas mangas brancas. Oito fólios depois do prólogo encontramos o excerto que identifica estas quatro personagens, o texto leva-­nos a Spam, sobrinho de Hércules, quando delibera com a sua filha sobre a possibilidade de povoar Calez: Este rey Espam avya hua filha muy fremosa que avya nome Liberya e era sabedor em astrologia ca lha ensynara aquelle grande / astronomo que Hercolles tragia consigo, que avya nome Allas; e por esto ouve Espã cõselho com ella sobre a pobraçon de Calez. Ca a pobra deste logar era muy perigosa por tres cousas: a primeira, por nõ aver augua; e a segunda, por o braço do mar em que nõ avya ponte per que passassem; a terceira porque era terra lodossa que a nõ podiã andar eno inverno VHQ}FRPJUDQGHWUDEDOKRµ. (Cintra, 1984: 32/I) A aridez de Calez revela-­se como um obstáculo para a sua povoação, a sábia Lyberia compromete-­se com o seu pai a ajudá-­ORQHVWHDVVXQWRVHPSUHTXH´elle lhe outorgasse de a nõ casar se nõ com que ella Propostas apresentadas inicialmente na minha tese de mestrado, defendida em Novembro de 2012, para a qual remeto o leitor (Pandiello Fernández, 2012). 3 Lembro aqui a seguinte afirmação de Hans Belting: ´Las imágenes que fundamentan significados, que como artefactos ocupan su lugar en cada espacio social, llegan al mundo como imágenes mediales. El medio portador le proporciona una superficie con un significadoµ (Belting, 2007: 24). 2

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quisesseµ ibidem). Mas o tempo impõe-­se sobre o soberano e a filha. As necessidades da linhagem começam a ser alarmantes, sem outro herdeiro para além dela, o monarca vê os seus dias chegar ao fim, e o conselho real alerta sobre a necessidade dum casamento para a princesa. Lyberia, ciente do seu papel fundamental na perpetuação do reino, e sem querer ser um obstáculo para a linha sucessória, acede ao casamenWR$YLUWXRVDSULQFHVDpFRUWHMDGDSRUWUrV´filhos de reysµ (ibidem), TXHVmRUHFHELGRVSHODDQVLRVDFRUWHGH6SDP´huu delles era de Grecia e outro de Affrica e o terceiro, d'Escorciaµ ibidem). Depois do protocolo, e de Lyberia ter escutado D ´razonµ GH FDGD XP deles, a princesa, que ama os três, resolve propor uma prova a cada um dos seus pretendentes ficando com quem ´acabasse prymeiro o que ela dissesseµ ibidem). Cada um deles tem uma tarefa por concluir: XPGHOHVGHYHFHUFDUDYLOD´de muro e torresµRVHJXQGRGHYHUiFRQVWUXLU´hua ponte per que passasse o braço do mar e entrassem ena vylla e que per esta ponte vehesse huu cano d'auguaµ R WHUFHLUR GHYHUi FRQVWUXLUXPD´FDOoDGDµSDUDDYLODHID]HUGHODXPDHVSDoRWUDQVLWiYHOQRLQYHUQR O primeiro dos três candidatos que vê culminada à sua obra é de forma previsível o príncipe grego, Pirus. Mas Lyberia, a sempre pragmática, decide ocultar o noivado a fim de que os restantes pretendentes finalizassem as suas empresas. Parece-­me necessária uma nota também sobre a presença do rio, dado que possui algumas conotações que interessam para o rumo deste estudo. No texto encontramos os rios em associação às seguintes ideias: 1) como fronteira geopolítica; 2) como fator determinante para o assentamento dos povos; 3) como elemento associado a uma descrição paradisíaca do espaço, um locus amoenus no qual a água possui atributos associados à fertilidade: E antre estes ryos ha grandes serras e montes e chaaos e logares muy fructiferos, ca o humor dos rios lhe faz levar muytos fruytos e em grande avondamento. A mayor parte das Espanhas, assy a do levante como a do poente, todas se regam destes ryos e doutros muytos e de fontes e de represas e de outras muytas maneiras de regar. (idem: 40) A água é, em definitivo, um elemento onde confluem várias ideias que nos parecem reiteradas no programa iconográfico deste primeiro fólio: a ideia da origem da comunidade e um condicionante fundamental para o processo civilizador. A narração em torno de Lyberia esboça outros conceitos relevantes, desde logo a importância que parece ter no controlo da natureza, na conquista do espaço e na introdução do logos para criar um espaço civilizado. O objetivo é civilizar o espaço selvagem, mas de uma forma singular: através do conhecimento e a tecnologia. O conhecimento é um valor relevante se observamos a conduta da própria Lyberia, que se nos apresenta desde o início como uma mulher sábia, conhecedora da astrologia e cúmplice de seu pai. A nossa protagonista procede em todo momento com prudência e sabedoria numa questão de extrema importância: o assunto sucessório. Inicialmente, ela renuncia ao seu primeiro desejo, não se casar, em favor de uma necessidade coletiva. Depois, as suas escolhas não estão fundamentadas em paixões mas sim no bom senso. O seu virtuosismo revela-­se no momento em que consegue conciliar os seus desejos amorosos com as necessidades da corte.

Margem direita: a caça Se continuarmos a leitura do fólio, subindo pela margem direita (FIGS. 2 e 3), uma paisagem pedregosa acompanha vários cavaleiros: três homens a galope seguem uma rota ascendente, um quarto indivíduo, definitivo para a leitura da imagem, traz uma arma e está acompanhado por um cão. Atravessada a ponte, a natureza muda significativamente: a vegetação parece abrir-­se até encontrar umas rochas de formas harmoniosas e algo idealizadas que contrastam com a paisagem inicial, representada na parte inferior da margem. Toda a cena culmina numa ação contemplativa de uma 34

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quinta personagem, um homem que, de costas a nós, permanece em posição estática com os braços na altura dos rins. A floresta é uma ideia frequente no imaginário medieval que, como se sabe, é todo aquilo que se opõe ao logos, à legislação e aos espaços civilizados. Um espaço selvagem onde o homem encara perigos imprevisíveis, elemento subversivo, a floresta é, definitivamente, o espaço antagónico da corte ao representar os triunfos da civilização e o triunfo do sacrifício individual em favor do coletivo. A natureza aqui representada não é propriamente aquele espaço do perigo, se bem que encontremos uma natureza relativamente selvagem na parte inferior que se torna muito mais idealizada à medida que subimos, até podermos afirmar que está ´GRPHVWLFDGDµ A ação essencial em relação à natureza reside no exercício da caça, uma das atividades exigidas pelo protocolo de corte, um treino em períodos de paz. No texto a caça aparece mencionada como um exercício de príncipes e cavaleiros. No contexto do programa iconográfico a caça leva-­nos a pensar no triunfo do homem sobre a natureza, já Pirus a tinha submetido com os outros dois candidatos para aceder a Lyberia. A caça reitera novamente o assunto da ação do homem sobre a natureza, pelo que podemos ler neste exercício um complexo ritual. Alain Guerreau diferenciou vários pontos essenciais em torno à caça: o SULPHLURSRQWRVHULDXP´rite bífideµ *XHUUHDX RQGHRKRPHPse mimetiza com o animal; o segundo ponto, aspeto que nos parece mais importante neste programa iconográfico, é o da ´marquage et le définition de l'espaceµ ibidem).

Margem inferior-­centro: Hércules No centro da margem inferior uma figura (FIG. 4) ergue-­se de forma assertiva sobre uma cidade fortificada, as dimensões desta figura em relação à urbe são desproporcionadas até atingir uma presença sobre-­humana. Os atributos da personagem são suficientemente reveladores para a sua identificação: posicionado de forma frontal, pernas entreabertas, figura seminua portadora de uma capa e cetro que descansa sobre o seu ombro, trata-­se sem dúvida de Hércules responsável pela fundação de inúmeras cidades na península Ibérica. A Hércules são dedicados cinco capítulos da crónica, o que revela a importância desta personagem (Cintra, 1984: 17/I). O capítulo V começa sob a advertência da existência de três Hércules, sendo preciso diferenciá-­los porque o herói é só um, ´o grãde Hercollesµ. Neste capítulo assistimos a um breve relato sobre a origem da personagem e as suas façanhas. ContinuDRFDStWXORFRPDFKHJDGDGH+pUFXOHVD(VSDQKDSRU´Bethis (...) que agora chamã Sevylhaµ. Quando consulta os astrónomos sobre a possibilidade de povoar esta região eles respondem que aquela cidade está destinada a um grande homHP´mui mais poderosoµ5HVLJQDGR Hércules decide FRQVWUXLU RV VHLV SLODUHV HP ´renenbrançaµ 2 FDStWXOR seguinte leva o nosso herói até Lisboa, onde protagoniza a sua luta contra Gedeon e a consequente libertação da cidade. Seguem-­se as andanças do semideus pela península, enquanto funda novas cidades para finalmente deixar Espanha em mão de Spam, a quem já conhecemos através da história de Lyberia. Hércules não é uma personagem estranha na cronística ibérica onde ganha espaço do ponto de vista da linhagem e da criação de origens míticas em torno de certos espaços geográficos. Uma primeira menção encontra-­se na escrita de Isidoro de Sevilha no século VII. Mas a relação do herói com a península desenvolve-­se devido à inventiva dos cronistas, que subvencionados pelos monarcas fantasiam com a criação de antepassados lendários, ao mesmo tempo que oferecem um passado ilustre para certos espaços. Do ponto de vista enciclopédico e etimológico encontramos este herói na Historia de Rebus Hispaniae no século XIII e na cronística afonsina. Em alguns casos o herói tebano apresenta certos traços negativos, sendo um elemento certamente subversivo na península. Mas a cronística 35

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afonsina recolhe e amplia Hércules conferindo-­lhe um interesse claramente vinculado à linhagem, desta forma, Hércules passa a formar parte tanto da General Estoria como da Estoria de Espanha. Na segunda versão da portuguesa Crónica Geral de Espanha de 1344, encontramos um amplo desenvolvimento das façanhas do tebano, como vimos anteriormente, baseado na fonte afonsina, mas modificado com o procedimento de amplificatio.4 No texto esta figura é um elemento oscilante e polivalente. Responde, mais uma vez, a uma exigência de tipo histórico, etimológica e toponímica, de modo que o mito dH+pUFXOHVVXEVWLWXLRQRPH´(VSpULGHVµSHORGHILQLWLYR´(VSDQKDµ$LPSRUWkQFLD da etimologia vem marcada por uma tradição isidoriana, onde o nome do elemento é indissolúvel da sua essência. Do ponto de vista da representação, a configuração de Hércules como modelo de virtuosismo5 e as características que partilha com Cristo6 favorecem, sem dúvida, uma certa identificação entre ambos. Encontramos o herói como parte de um programa iconográfico da salvação nas catacumbas da Via Latina.7 Durante a renovatio carolíngia a iconografia dedicada a heróis e deuses míticos desenvolve-­se, especialmente através de manuscritos sobre astronomia, e deixam assim uma herança visual valiosíssima sobre as personagens pagãs.8 Nos séculos XI-­XIII voltamos a encontrar estreitas ligações entre Hércules e o cristianismo, preferencialmente na escultura. Alguns exemplos encontram-­se nos capitéis da igreja de San Pedro (castelo de Loarre), na fachada ocidental da catedral de Saint-­Étienne em Auxerre e no batistério de Pisa, como alegoria da força. Do ponto de vista da corte podemos também sublinhar alguns casos onde a imagem do semideus se revela como elemento presente dentro da iconografia imperial ou cortesã, a assimilação da imagem hercúlea por parte do imperador Cómodo é-­nos bem conhecida. No âmbito germânico podemos lembrar o manto de Enrique II no século XI, atualmente na catedral de Bamberg (Alemanha). Parece pertinente lembrar a iluminura que representa Hércules (FIG. 5) no manuscrito códice Y.I.2 da Real Biblioteca del Monasterio de El Escorial que contém a Estoria de España de Alfonso X onde o herói vem a ser representado de uma forma invulgar, frontal, vestido com uma túnica e a pele de leão, estrangula com cada mão a dois leões.

Isabel de Barros aponta: ´Neste caso, a amplificatio da narrativa é feita de modo a valorizar umas características em detrimento de outras, desviando assim o sentido dominante da história. Deste modo, a acentuação de uma imagem de Hércules como um exemplo de cavaleiro valoroso, de um cavaleiro errante em buVFD GH DYHQWXUDV ´DYDQW OD OHWWUHµ YDL implicar a diluição da sua dimensão política de primeiro unificador do território peninsular, o que constituiria, certamente, um exemplo muito mais interessante para os ideais políticos do rei Sábioµ %DUURV05). 5 Hércules manifesta uma força e valores excecionais, mas o aspeto moralizador reside em que a força excessiva pode ser perigosa, como é o caso do fratricídio que protagoniza. O herói começa a sua vida com uma força e luxúria excessivas, mas as provas que se lhe impõem podem ser entendidas como uma aproximação à perfeição até atingir a sua apoteose como constelação. Hércules simboliza, deste modo, a procura da virtude e a força física modificadas pela via espiritual, num processo dialético de crises e negligências que o levam à redenção individual e à superação dos próprios vícios, tornando-­se numa força fértil e civilizadora. 6 ´Era fácil que con el establecimiento del cristianismo como religión oficial del Imperio las concomitancias condujeran a que, por simple deslizamiento y en la traslación positiva de su dualidad simbólica, Hércules, como el propio Sansón bíblico, fuera objeto de cierta identificación alegórica, cuando no prefiguración, con Cristo. Como él, durante su tránsito terrestre Hércules combatió y triunfó sobre el Mal, se adentró en el Hades y tras su muerte alcanzó la inmortalidadµ (Senra, 2002: 276). 7 ´+HUFXOHV ZKR DFFRUGLQJ WR WKH EHOLHIV RI  WKH WLPH ZDV D ¶VDYLRU·  D KHUR ZKR GHYRWHG KLV OLIH WR ZRUNLQJ IRU WKH deliverance of men. In other words, the Christian images of salvation or deliverance and the pagan images of the labors of Hercules were both meant as demonstrations of a divine power working for menµ (Grabar, 1968: 15). 8 Sobre estes artistas carolíngios, diz 3DQRIVN\ ´Desaparecidos de escena en esa época correspondió a los artistas carolingios no sólo restablecer esta tradición interrumpida sino efectuar además nuevas incursiones en el campo de la iconografía greco-­romanaµ (Panofsky, 1993: 94). 4

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A inicial historiada Deixámos propositadamente para o fim, a letra inicial. A OHWUD´2µFRQILJXUD-­se com quatro figuras humanas, de corpo nu, entrelaçadas de braços e pernas, formando um círculo humano ameaçado por dois dragões que, também entrelaçados entre si, formam um oito. A violência sugerida pela inicial contrasta de forma sensível com as outras três representações examinadas, que como já vimos obedecem a uma ideia coerente atendendo todas elas a assuntos que se integram num sentido global. A questão é se esta inicial se deve inserir como parte do programa iconográfico ou se devemos observá-­la simplesmente como um exercício formal. A presença dos dragões pode, talvez, entender-­se como a assimilação de uma tradição visual onde as figuras lendárias são apenas uma herança representativa desprovida de significado. Pessoalmente inclino-­me a pensar que se esta inicial está inserida no prólogo, e num programa iconográfico coerente em termos de significado, não deve ser negligenciada a sua leitura, dado que do ponto de vista formal podiam ter-­se usado outras soluções. Sendo certo que ao longo do códice encontramos várias representações de dragões com uma função meramente ornamental, não parece ser o caso deste fólio por se tratar de uma página inaugural que recebe por primeira vez o olhar do leitor. Talvez o fólio inicial deva ser compreendido como uma totalidade, e uma hipótese possa ser que estas imagens não sejam puramente ornamentais dada a importância dos conteúdos em todas as representações. O dragão é um ´animal fabuloso, figura simbólica universal, que se encuentra en la mayoría de pueblos del mundo, tanto en las culturas primitivas y orientales como en las clásicas (...). El dragón es, en consecuencia, «lo animal» por excelenciaµ &LUORW  ). Segundo o Dicionário do Símbolos de Eduardo Cirlot, para Dotenville o dragão representa uma ameaça para o coletivo, para Schneider um símbolo da doença, e na alquimia dois dragões em luta simbolizam um estado de putrefação, e, finalmente, para os gnósticos os dragões são símbolos do tempo cíclico (ibidem). As quatro figuras humanas que aparecem desprovidas de qualquer identificação poderiam associar-­se à ideia do coletivo ou, novamente, a uma referência temporal através das quatro estações ou idades do homem. A modo de proposta, com alguma especulação, talvez possamos deixar aqui uma leitura desta inicial HQWHQGLGDFRPRXP´PDOµFRQVWDQWHTXHDPHDoDum coletivo ou grupo humano.

Conclusão Se procurarmos eixos comuns nestas três representações verificamos que elas apontam para uma mesma direção e se submetem a uma ideia global: o entusiasmo pelo triunfo do homem sobre a natureza, ou seja, o triunfo do logos, entendido também como uma disciplina do conhecimento, um saber prático que estrutura e organiza o mundo. Sob os pés de Hércules podemos vislumbrar uma magnífica cidade fortificada que condensa nela os ideais de civilização e ordem social. Esta cidade parece representar o objetivo ou finalidade de todo o programa iconográfico, enquanto as anteriores imagens estudadas parecem aludir a um meio para atingir essa ordem que aparece coroada pela figura triunfante de uma personagem legendária. Se aceitarmos a leitura da inicial como uma ameaça a um coletivo esta página propõe uma viagem que parte do chaos (inicial) ao logos (cidade). Neste processo são indicados os meios para atingir esse ideal. É preciso em primeiro lugar enfrentar o espaço, leia-­se o espaço selvagem, e administrar-­lhe força (caça) e conhecimento (Lyberia), desta forma a finalidade parece ser a fundação de uma cidade ou o ímpeto civilizador-­fundacional, ideia bem sublinhada pela presença de Hércules.

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FIG. 1. Lyberia. Crónica Geral de Espanha de 1344, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms Azul 1, f. 1. © Academia das Ciências de Lisboa.

FIG. 2. Cena de Caça. Crónica Geral de Espanha de 1344, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms Azul 1, f. 1. © Academia das Ciências de Lisboa.

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FIG. 3. Cena de Caça. Crónica Geral de Espanha de 1344, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms Azul 1, f. 1. © Academia das Ciências de Lisboa.

FIG. 4. Hércules sobre a cidade. Crónica Geral de Espanha de 1344, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms Azul 1, f. 1. © Academia das Ciências de Lisboa. 40

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FIG. 5. Hércules com leões. Estoria de España, Real Biblioteca del Monasterio de El Escorial, Ms. Y.1.2 (ant. 1275), fol. 4r.

FIG. 6. Pormenor. Crónica Geral de Espanha de 1344, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms Azul 1, f. 1. © Academia das Ciências de Lisboa. 41

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FIG. 7. Inicial. Crónica Geral de Espanha de 1344, Biblioteca da Academia das Ciências, Ms Azul 1, f. 1. © Academia das Ciências de Lisboa.

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