Uma questão de público: o que querem historiadores e jornalistas ao escrever história?

July 16, 2017 | Autor: I. Calvi Silveira | Categoria: Jornalistas, Historiografía, Escrita da História
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UMA QUESTÃO DE PÚBLICO: O QUE QUEREM HISTORIADORES E JORNALISTAS AO
ESCREVER HISTÓRIA?

ISMAEL CALVI SILVEIRA*

Resumo:
Os historiadores vêm se deparando, como nos lembra Revel (2012), com um
maior número de profissionais de outras áreas conforme os seus objetos de
pesquisa vêm se aproximando do tempo presente. Todavia, há também um
interesse por parte da sociedade por narrativas históricas que está sendo
atendido por escritores de uma história não-profissional, os jornalistas em
especial. O propósito deste artigo é, portanto, estudar o que fazem os
historiadores quando produzem uma obra historiográfica e o que escrevem os
jornalistas ao produzirem livros de história; e analisar como ambos os
campos (historiográfico e jornalístico) são definidos e como eles estão
relacionados com a produção das referidas obras.
Palavras-chave: historiadores; historiografia; jornalistas; escrita da
história.

Abstract:
Historians have been confronted, as Jacques Revel (2012) reminds us, by
professionals of other disciplines as the objects of our researches are
getting closer to the present time. However, there is a huge public
interest for historic narratives which have been answered by non-
professional writers, mostly journalists. So, the purpose of this paper is
to study what does a historian when he writes a historiographical work and
what journalists do when they write a history book; and to analyze how both
fields (scientific and journalistic) are defined and how are they relate
with the production of those works.
Keywords: historians; historiography; journalists; writing of history.

Como bem observou Jacques Revel (2012), a história enquanto
disciplina profissional vem se encontrando com novos concorrentes conforme
expande seus focos de análise. O recente aumento nos estudos da história do
tempo presente vem trazendo os historiadores a se confrontarem com
profissionais de outras áreas, em especial, os jornalistas (REVEL, 2012). É
certo que a atenção que a história do tempo presente vem recebendo por
parte da academia é, também, fruto da preocupação da sociedade com os
grandes traumas sofridos no século passado, que permanecem "obstinadamente
presentes" (REVEL, 2012). Porém, este espaço já se encontrava ocupado por
jornalistas e este avanço dos historiadores em direção a um terreno ocupado
também produz um efeito contrário: com o sucesso dos jornalistas no campo
do presente, eles também expandiram seu escopo temporal e agora escrevem
sobre a história passada. Podemos atestar tal dado ao olharmos para alguns
sucessos editoriais recentes, como 1808, de Laurentino Gomes[1], ou a
coleção Terra Brasilis, escrita por Eduardo Bueno[2].
A história nunca foi domínio exclusivo dos historiadores
profissionais, é verdade, e isto se deve à "porosidade da disciplina"
(REVEL, 2012). Apesar do esforço para organizar o campo de produção
historiográfico como uma comunidade científica isolada, o público leigo
sempre manteve o seu interesse por narrativas históricas. A recusa dos
historiadores, seja por vaidade ou por requisitos institucionais, em ocupar
este espaço aberto pela demanda popular abriu a oportunidade para que
outros profissionais, como os já mencionados, aproveitassem a chance. As
condenações ao 'oportunismo' editorial são muitas e frequentes, sempre
acusando a incompetência dos autores não-profissionais para escreverem
história. Parece importante, entretanto, fazermos uma pergunta
aparentemente simples: que história escreve o historiador e que história
escreve o jornalista?
A resposta a essa pergunta passa pela elaboração de alguns
conceitos chave. Primeiro, devemos analisar as diferenças metodológicas que
existem entre a escrita científica e aquela de divulgação científica. Em
segundo lugar, precisamos entender como se constituem os campos
historiográfico e jornalístico e como eles se colocam em relação ao
universo social mais amplo, ou seja, à sociedade em si. Por fim, resta
fazermos o caminho inverso: se criticamos a entrada dos jornalistas em um
espaço que supomos nos pertencer, devemos entender, também, como se dá o
nosso acesso ao campo jornalístico.
1. As diferentes escritas da história

A escrita da história, quando realizada por um profissional da
área, é pautada por critérios científicos que ordenam a validade da
narrativa enquanto conhecimento. Crítica interna e comparativa das fontes;
uso de metodologias investigativas; linguajar acadêmico; estes são alguns
dos elementos que devem ser observados quando escrevemos história. Mas,
quando um jornalista escreve história, deve ele observar estes mesmos
critérios?
Como definiu Michel de Certeau, a escrita da história é uma
operação que relaciona "um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão,
etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto
(uma literatura)" [grifos do autor] (CERTEAU, 1982:66). Ou seja, "a
história se constrói em função de uma instituição cuja organização parece
inverter: com efeito, obedece a regras próprias que exigem ser examinadas
por elas mesmas" (CERTEAU, 1982:66).
Estas regras começam a tomar sua forma a partir do
estabelecimento da disciplina histórica como disciplina científica,
tornando-se uma "instituição de saber" (CERTEAU, 1982:69). Como o próprio
historiador francês colocou, o que constituiu essa instituição foi a
criação de um grupo de profissionais - no caso francês, ligados à Revue
historique. A profissionalização da escrita da história a partir de grupos
ligados a publicações específicas e à academia restringe o acesso ao grupo.
"É, pois, impossível analisar o discurso histórico independentemente da
instituição em função do qual ele se organiza silenciosamente [...]"
(CERTEAU, 1982:71).
Para se escrever uma história historiográfica, profissional, é
necessário ter o domínio de técnicas e regras implícitas do grupo, tanto
quanto participar dos círculos apropriados de publicação. Frequentar os
espaços propícios para a publicação de textos científicos é o que abre a
possibilidade do texto ser recebido e lido pelo público especializado, apto
a julgar o valor da obra. O público leigo, mais amplo...


[...] não é o verdadeiro destinatário do livro de
história, mesmo que seja seu suporte financeiro e moral.
Como o aluno de outrora falava à classe tendo por detrás
dele seu mestre, uma obra é menos cotada por seus
compradores do que por seus 'pares' e seus 'colegas', que
a apreciam segundo critérios científicos diferentes
daqueles do público e decisivos para o autor, desde que
ele pretenda fazer uma obra historiográfica. (CERTEAU,
1982:72)

Desta forma, devemos entender que o domínio das técnicas
científicas da produção historiográfica é fundamental para os
historiadores; mas para o jornalista que se dispõe a escrever um livro de
história, nem tanto. Ainda segundo Certeau, um livro não recebido pelos
pares (ou seja, historiadores), "cairá na categoria de 'vulgarização' que,
considerada com maior ou menor simpatia, não poderá definir um estudo como
'historiográfico'." (CERTEAU, 1982:72) Precisamos compreender, portanto,
que o intuito da escrita do jornalista não é o de escrever um trabalho
historiográfico, mas antes um livro de história. Lembremos do que disse
Revel sobre a porosidade da disciplina: "Professional historians may
pretend to live and practice in a separate world, but, on repeated
occasions, they are confronted with non-professional protagonists" (REVEL,
2012)[3].
Existe uma demanda de mercado por livros de história, e não
necessariamente por livros historiográficos. Devemos entender o apelo de
uma literatura simples, de vulgarização, cujos intuitos são o
entretenimento e a divulgação do conhecimento científico. O trabalho de
vulgarização se vale de trabalhos historiográficos, mas não tem os mesmos
requisitos de rigor científico. A linguagem é mais acessível, as notas de
rodapé se tornam opcionais, e o livro não tem o dever de produzir um
conhecimento novo e refinado – ele vai, apenas, divulgar o que já foi
produzido.
O que nos parece importante, aqui, é perceber que essa discussão
está ligada ao estabelecimento dos campos científico (do qual faz parte o
historiográfico) e jornalístico. Precisamos compreender como operam interna
e externamente ambos os campos para nos aproximar de uma compreensão sobre
a polêmica relativa à publicação de livros de história por parte de
jornalistas e demais escritores que não sejam profissionais da área.

2. A estruturação dos campos

O campo, segundo a teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu (2012),
é um elemento constitutivo do mundo social, um espaço dentro do todo que é
o social. Ele é composto por agentes, ordenados hierarquicamente conforme
as ordens internas de cada campo. Trata-se de um "campo de forças"[4] onde
se dão as lutas pela obtenção de um capital que lhe é próprio[5]. Como
define o autor:

"A noção de campo está aí para designar esse espaço
relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas
leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a
leis sociais, essas não são as mesmas. Se jamais escapa às
imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este,
de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada."
(BOURDIEU, 2004:20-21).

Podemos afirmar, desta forma, que o campo é ordenado
hierarquicamente a partir das práticas (o habitus). Esse habitus produz
capitais (econômico, social, político, simbólico, cultural, etc.) que
também são específicos do microcosmo social do campo específico, mas é a
partir destes capitais específicos que se estabelecem as coordenadas pelas
quais um agente irá se inserir dentro do macrocosmo social. Portanto, os
campos não são inteiramente autônomos, como bem expôs Bourdieu – e nem
poderiam sê-lo -, mas funcionam em uma relação de interdependência com o
todo social. A ascensão dentro da hierarquia do microcosmo também
proporciona uma mobilidade no tecido social maior, já que a posição dos
indivíduos seria informada a partir dos capitais que ele acumula na sua
agência. Deste modo, é preciso compreender as especificidades do campo da
ciência (e, neste caso, do subcampo da história) e do campo da comunicação
social.
A maneira de obtenção dos capitais varia conforme as
especificidades de cada campo, estando relacionadas ao habitus que é
incorporado por seus agentes, ou seja, as práticas sociais específicas
daquele microcosmo particular. Para os casos que estamos estudando, o da
historiografia e o do jornalismo, podemos afirmar que as práticas que cada
agente deve desenvolver diferem em função de seu campo. É preciso,
portanto, explicitar os meios pelos quais historiadores e jornalistas
granjeiam o capital cultural e simbólico respectivos a seus campos. Cada
agente está, para pensarmos nos termos de Michel de Certeau, sujeito a um
"lugar de produção" (CERTEAU, 1982:65-66), seja ele institucionalizado
literalmente (no caso de um empregador) ou não (no caso de práticas
reconhecidas e requeridas pela lógica interna do campo).
Parece-nos propício partir de Certeau para explicar o
funcionamento do campo historiográfico, que é um "compartimento" do campo
maior, o científico. Um conceito já consagrado deste autor nos parece
bastante oportuno para situar a singularidade do campo. Trata-se do
conceito de "lugar de produção", que pode ser explicado com base na própria
noção de historiografia do autor:

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de
produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um
meio de elaboração que circunscrito por determinações
próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou
de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois,
submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em
uma particularidade. É em função deste lugar que se
instauram os métodos, que se delineia uma topografia de
interesses, que os documentos e as questões que lhes serão
propostas, se organizam. [grifos nossos] (CERTEAU, 1982:66-
67)

Com a constituição da história enquanto ciência, ainda no século
XIX, foram desenvolvidos requisitos metodológicos para o seu exercício
profissional. Conforme lemos na passagem acima, o domínio de tais métodos
passa pelo pertencimento institucional a um lugar privilegiado para o
estudo da história: a academia. Seja como aluno ou professor, o
pertencimento a um curso superior na área da história tornou-se
fundamental. Lá, aprendem-se os métodos para o controle do rigor científico
das análises; a partir da instituição se vê facilitado o acesso a
documentos, bem como se obtém a oportunidade de publicar textos em veículos
especializados (fato importante, como referido anteriormente, para definir
o valor de uma obra historiográfica); e, fundamentalmente, é através da
profissão de professor universitário e de pesquisador que o caminho para o
acúmulo de capital cultural e simbólico é possibilitado dentro do subcampo
da disciplina histórica.
O pertencimento institucional é o primeiro critério que orienta
a hierarquização do campo – ele que confere o capital simbólico (e
econômico) –, e acima disso, poderíamos afirmar que ele é, talvez, o
próprio elemento de pertencimento ao campo. Em segundo lugar, é a produção
individual de cada agente que lhe fornece o capital cultural e simbólico
para constituir-se enquanto autoridade dentro do seu subcampo específico. A
circulação da produção é deliberadamente limitada, destinada apenas ao
público especializado - apto a julgar o valor de cada obra -, e não está
condicionada a uma demanda mercadológica[6]. Mas, ainda que o produto não
seja elaborado pensando na demanda de um mercado, é o reconhecimento pelos
pares (público) que cria o valor da obra. O meio de legitimação do campo,
e, portanto, de obtenção de capital cultural e simbólico, torna-se este
reconhecimento.
***
Deste modo, revisitando o primeiro subtítulo deste artigo, a
produção de um historiador é orientada pelo seu habitus, pela sua prática:
ele obedece a códigos de escrita particulares, responde a questões
particulares e destina sua obra a um público particular. O trabalho
historiográfico, estando inserido no campo científico, também retém aquela
qualidade de relativamente autônoma do seu microcosmo; é claro, todavia,
que ele não se mantém intocado e intocável pela sociedade que o cerca.
Ainda que o profissional da história escreva sobre um tema que é público (e
pode ser, também, de interesse público), atendendo às suas preocupações
sociais, ele não o faz com o intuito de expor sua proposta a qualquer
público.

***

O campo jornalístico, por outro lado, se ordena de acordo com a
lógica de funcionamento de mercado: suas instituições devem produzir
pensando no público consumidor. O produto jornalístico, a notícia, deve ser
atrativo e vendável. O pertencimento institucional, também chave de acesso
aos capitais econômico, simbólico e cultural do microcosmo, funciona como
regulador dos agentes sociais. O campo jornalístico é "[...] o lugar de
oposição entre duas lógicas e dois princípios de legitimação: o
reconhecimento pelos pares", que atestam e regulam os princípios que regem
a produção, e "[...] o reconhecimento pela maioria, materializado no número
de receitas, de leitores, de ouvintes ou de espectadores, portanto, na
cifra de vendas e no lucro em dinheiro" (BOURDIEU, 1997:105). Apesar de o
reconhecimento pelos pares ser importante como fonte de capital simbólico
interno, é o reconhecimento da maioria, ou seja, o sucesso comercial do
produto que gera o maior capital, tanto cultural, quanto econômico.
Entretanto, se por um lado o campo jornalístico dispõe de pouca
autonomia para seus agentes, ele certamente também recompensa no capital
simbólico que permite acumular. O campo jornalístico, por ser regido pelas
leis de mercado, parece-nos menos hermético do que o campo científico (e,
talvez por isso, menos autônomo): a necessidade da venda da produção
(notícia) torna o produtor reconhecido em diferentes espaços nos mais
diversos campos. Conforme afirma Fábio Pereira

[...] o jornalismo, como os demais mundos sociais, não é
uma atividade estanque, separada do resto do planeta, como
se estivesse dividida por uma linha. Pelo contrário, ele
se relaciona e se conecta com outros espaços e atores
sociais, estendendo-se por toda a sociedade. (PEREIRA,
2011:33)[7]

Apesar do que afirma o autor ao dizer "como os demais mundos
sociais", é preciso notar que o campo historiográfico se relaciona com
outros campos com menor intensidade e frequência. A regulação da circulação
do produto historiográfico e o isolamento (mesmo que seja apenas um
isolamento pretendido e nunca completo) do mundo acadêmico são uma prova
disto. E é desta forma que o capital simbólico exterior ao próprio
microcosmo é reduzido, tornando os historiadores menos reconhecidos pelo
amplo público do que os jornalistas que escrevem história.
É claro que apesar do caráter hermético do campo científico, há
oportunidade para a transição entre outros espaços. Assim como os
jornalistas ocupam um lugar social que permanece vago ao escrevem obras de
vulgarização histórica, os historiadores (e outros tipos de cientistas) são
frequentemente chamados para responderem questões em jornais, revistas,
programas televisivos ou de rádio. Essa presença em veículos de mídia gera,
para estes profissionais, um capital que serve mais ao mundo social do que
ao campo ao qual pertencem.

***

Voltando uma vez mais ao tema central do artigo: o que querem os
jornalistas ao escrever história? Antes de responder a esta pergunta, um
ponto importante a ser abordado é o das diferenças internas do jornalismo.
Atualmente, a comunicação social é uma área ocupada por profissionais que
desempenham um sem-número de funções diferentes. Para pensar nas diferenças
internas, cabe prestar atenção em uma fala do jornalista e escritor
Bernardo Ajzenberg:

Quando penso em jornalismo, aqui, penso em notícia, fatos.
Não me passa pela cabeça a crônica. Não penso em nada que
não tenha referência direta, indestrutível, no
reconhecido, naquilo que ao menos mais de uma pessoa viu
[...] Houve um tempo em que o jornalismo representava
mais, em que formava o único canal para toda manifestação
escrita e pública. Esse tempo acabou. [...] Penso num
jornalismo útil, imediato, informativo, formador e lúcido.
(AJZENBERG apud BÉRGAMO, 2011:234)

Há, portanto, uma ideia que a imprensa tem de si – uma memória –
e essa concepção opõe dois momentos distintos, que parecem marcados pela
maior ou menor autonomia dos profissionais do campo jornalístico: Alexandre
Bérgamo (2011) estuda essa memória que os jornalistas criaram para si. O
autor consegue distinguir em entrevistas de diversos jornalistas uma
passagem de um tempo em que o jornalismo era opinativo, mais
intelectualizado (anterior à regulamentação da profissão), e um jornalismo
mais técnico e menos crítico (com a regulamentação da profissão e a
obrigatoriedade da formação em um curso superior de jornalismo)[8].
Fábio Pereira (2011), por outro lado, trabalha com a categoria
de "jornalistas-intelectuais." Particularmente, consideramos tal categoria
um tanto quanto problemática. Todos os jornalistas entrevistados pelo autor
eram considerados intelectuais por desenvolverem atividades que excedem
aquelas de seu campo: são escritores ou professores universitários e,
portanto, recebem a alcunha de "intelectuais." Parece que as atividades que
os profissionais estudados pelo autor não conversam com frequência, havendo
uma separação entre os seus trabalhos enquanto jornalistas e enquanto
intelectuais.
O que fica posto, contudo, essa ideia de uma tradição
intelectual - mais autônoma – do jornalismo[9]. Ainda, essa tradição
intelectual seria, segundo Breton e Proulx (2002), um elemento que
explicaria o sucesso do produto jornalístico. De acordo com os autores: "O
poder popular das mídias resulta sem dúvida dessa antiguidade da tradição
[argumentativa] à qual ele se liga, associado à vontade democrática de
atingir o maior número possível de pessoas."[10] (BRETON E PROULX, 2002:92)
Voltando à pergunta após essa breve digressão, podemos perceber
que essa "vontade democrática" de atingir o grande público não fica
restrita apenas ao âmbito jornalístico. Quando autores como Eduardo Bueno e
Laurentino Gomes resolvem escrever um livro de história, eles claramente
buscam preencher um espaço vago, qual seja, o das obras de divulgação para
um grande público. O que esses autores fazem é ocupar um nicho que, como
bem lembrou Jacques Revel, tem uma demanda popular permanente.

3. Cruzando a fronteira entre os campos

Aceitar participar de um programa de televisão ou de rádio é uma
decisão que deve ser muito bem pensada pelo profissional da história. Esta
situação pode ser, no mínimo, ambígua. Se por um lado o historiador pode
entender esta como a oportunidade de expor seu trabalho para um público
maior e contribuir com a construção de um conhecimento mais sólido e
profundo, por outro, ele pode se encontrar reduzido à validação das
premissas institucionais do programa do qual participa. Lembremos que cada
campo tem a sua própria lógica de funcionamento: e a do campo jornalístico
gira em torno da aceitação do mercado.
Deste modo, a produção de uma notícia se dá de maneira a
destacar a sua excepcionalidade. O modo de apresentar uma questão pode
torná-la mais interessante, ou não. Apesar da "objetividade" que está
implícita na ideia (aparentemente repetida à exaustão pelos veículos de
comunicação) de "reportar as coisas como elas aconteceram", devemos lembrar
que esta é uma questão perigosa[11]. Enfim, para se adequar às demandas de
mercado, o veículo de comunicação também deve chamar um tipo específico de
profissional para corroborar suas hipóteses: os "fast-thinkers", para usar
o termo de Bourdieu, os "pensadores que pensam mais rápido que sua sombra"
(BOURDIEU, 1997:40).
Em um estudo sobre o poder da mídia, Marilena Chauí (2006)
reflete sobre a substituição da informação e dos fatos por opiniões.
Segundo a autora, "os fatos cederam lugar a declarações de personalidades
autorizadas, que não transmitem informações, mas preferências, as quais se
convertem imediatamente em propaganda." (CHAUÍ, 2006:8) A posição da autora
em relação ao que ela define como uma substituição da opinião pública
(formada na e pela esfera pública) pela manifestação pública de afetas
(esvaziando a opinião pública através dos meios de comunicação) é bastante
crítica em relação ao papel das ditas autoridades científicas que se
prestam ao papel de convidados em programas de TV. Ela prossegue afirmando:

Isso [a substituição da opinião pública pela manifestação
pública do afeto] explica o porquê da pergunta que os
repórteres dirigem aos entrevistados, perguntando-lhes o
que sentem [...], ficando por conta do emissor da notícia
oferecer informações, interpretações e explicações, usando
para estas últimas o jargão de uma linguagem pseudotécnica
ou científica incompreensível, de sorte a oferecer aos
demais a ilusão de que conhecem os fatos [...] porque
confiam no sentimento do entrevistado e porque algum
especialista apresentou uma explicação. (CHAUÍ, 2006:10)

Esses profissionais estão mais interessados em sua
autodivulgação e se mantém alinhados aos propósitos do veículo de
comunicação no qual se inserem, operando pelos interesses do mercado e
contribuindo para a "circulação circular da informação" (BOURDIEU,
1997:30). Estes cientistas fornecem sua palavra como a voz autorizada da
ciência para dar valor a afirmativas do senso comum, comunicando-se através
de "ideias feitas."[12] Desta maneira, atuam também como propagandistas dos
ideias políticos ou econômicos da emissora. Breton e Proulx caracterizam a
publicidade como "A publicidade constitui a relação de comunicação pública
privilegiada entre empresas produtoras de bens e serviços e seu público
consumidor" (BRETON E PROULX, 2002:111). Se seguirmos por essa via
explicativa, podemos definir a ação reiterativa que alguns cientistas
adotam em relação ao discurso dos veículos midiáticos como uma ação
publicitária. Ainda segundo os autores:

Os públicos, tanto quanto os conteúdos difundidos pelas
mídias, tornam-se, assim, mercadorias: as mensagens
difundidas são evidentemente 'consumidas' pelos públicos
receptores, mas sobretudo a relação comercial que se
estabelece entre o difusor e o anunciante torna-se
prioritária e dominante em vista da relação de comunicação
entre os difusores e receptores. Os conteúdos midiáticos
apresentam-se, assim, como uma realidade de dupla face:
mercadoria ao mesmo tempo que significação para um público
ele próprio considerado mercadoria em um contexto
comercial que engloba e submete a realidade da comunicação
midiática. (BRETON E PROULX, 2002:111-112)

O cientista se dispõe, desta maneira, a contribuir para
desinformação. Esta forma de aparição na mídia se opõe a um dos preceitos
da escrita historiográfica da história, o da necessidade de produzir
conhecimento novo. A fala do cientista não serve nem mesmo como divulgação,
ela apenas repete, sob o signo da autoridade do título acadêmico, aquilo
que já foi dito anteriormente pelo jornalista. Conforme explica Pierre
Bourdieu,
[...] tomar verdadeiramente o partido da ciência é optar,
asceticamente, por dedicar mais tempo e mais esforço a pôr
em acção os conhecimentos teóricos adquiridos investindo-
os em pesquisas novas, em vez de os acondicionar, de certo
modo, para a venda, metendo-os num embrulho de
metadiscurso, destinado menos a controlar o pensamento do
que a mostrar e a valorizar a sua própria importância ou a
dele retirar benefícios fazendo-o circular nas inúmeras
ocasiões que a idade do jacto e do colóquio oferece ao
narcisismo do pesquisador. (BOURDIEU, 2012:59)

É claro que o sociólogo francês, neste trecho, se referia mais à
necessidade da pesquisa empírica como forma de combater a "teoria teórica"
que se fecha sobre si mesma, mas a ideia também é aplicável a estas
intervenções na mídia. Entendemos que a citação explicita com precisão a
posição na qual se encontra o cientista social ou o historiador ao ser
chamado para assumir uma posição na mídia. Ele pode abrir mão de seu
compromisso científico e se inserir no campo jornalístico, tornando a ser
convidado, ou reforçar sua posição e não encontrar a recepção desejada de
suas posições. O risco que se corre é o de se transformar quase em um
contador de anedotas para atender ao ritmo acelerado e constante de demanda
por informação, praticando algo ainda mais problemático do que aquilo que
Fernand Braudel um dia classificou, sarcasticamente, como "petit histoire."
Cada escolha traz uma consequência diferente: no primeiro caso,
ele pode granjear o capital simbólico que lhe permitirá ascender
socialmente, levando em consideração que se tornará mais "conhecido" por
amplo público – ainda assim, essa decisão enfraquece sua posição dentro do
campo científico e lhe retira a aceitação por parte de seus pares, fator
chave para o reconhecimento interno. No segundo caso, o agente pode
reforçar sua posição dentro de seu campo, abrindo mão dessa projeção
midiática.
Em qual lugar, afinal, encontra-se o historiador ao cruzar a
fronteira e entrar no território do jornalista? Pode ele assumir o papel de
vulgarizador do trabalho historiográfico, ou deve se negar a fazê-lo? Há,
certamente, a demanda pela presença de cientistas na mídia – ainda que eles
sejam censurados pelas mesmas regras que demandam essa presença – e também
pela publicação de trabalhos de história voltados para o público leigo. A
decisão, portanto, cabe ao indivíduo e fica condicionada às suas
pretensões; assim como as consequências de tal escolha.

Referências bibliográficas

BÉRGAMO, Alexandre. Reportagem, memória e história no jornalismo
brasileiro. In: Mana, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 233-269, ago. de
2011.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do
campo científico. São Paulo: UNESP, 2004.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
BRETON, Philippe e PROULX, Serge. Sociologia da comunicação. São Paulo:
Loyola, 2002.
CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: Uma análise da mídia. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2006.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982.
PEREIRA, Fábio. Jornalistas-intelectuais no Brasil. São Paulo: Summus,
2011.
REVEL, Jacques. Public Uses of History: Expectations and Ambiguities. In:
Transformations of the Public Sphere [online], 2012. Disponível em:
; Acessado em:
maio de 2012.
-----------------------
Resenha recebida em 22 de Novembro de 2013 e aprovada para publicação em 10
de Janeiro de 2014.
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (bolsista CAPES/PROSUP). E-mail: [email protected]
[1] Conforme se encontra no site do autor: "Paranaense de Maringá,
Laurentino Gomes é quatro vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura com
os livros 1808, sobre a fuga da corte portuguesa de D. João VI para o Rio
de Janeiro, e 1822, sobre a Independência do Brasil. Sua obra também foi
eleita o Melhor Ensaio de 2008 pela Academia Brasileira de Letras. Formado
em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná, com pós-graduação em
Administração pela Universidade de São Paulo, é membro titular do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Paranaense de Letras. Seu
terceiro livro, 1889, recém-lançado pela Globo Livros, trata da Proclamação
da República." Disponível em: <
http://www.laurentinogomes.com.br/autor.html>
[2] Conforme encontrado no site da editora L&PM: "Eduardo Bueno é escritor,
jornalista, editor e tradutor. É o primeiro escritor, nos últimos 12 anos,
a possuir três títulos na lista dos best-sellers dos principais jornais e
revistas do país. Autor da coleção Terra Brasilis – sobre a história
colonial do Brasil –, Eduardo Bueno se tornou o maior fenômeno editorial do
país nos últimos dois anos. Juntos, os três títulos da coleção – Viagem do
Descobrimento, Náufragos, Traficantes e Degredados e Capitães do Brasil –
venderam mais de 400 mil exemplares." Disponível em: <
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&Subsec
aoID=0&Template=../livros/layout_autor.asp&AutorID=909391>
[3] "Historiadores profissionais podem fingir que vivem e trabalham em um
mundo separado, mas em repetidas ocasiões, eles são confrontados por
protagonistas não-profissionais" (tradução livre)
[4] Na medida em que as propriedades tidas em consideração para se
construir este espaço são propriedades actuantes, ele pode ser descrito
também como um campo de forças, quer dizer, como um conjunto de relações de
força objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e irredutíveis
às intenções dos agentes ou mesmo às interações directas entre os agentes.
[grifo do autor] (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2012, p. 134).
[5] [...] As espécies de capital, à maneira de trunfos num jogo, são os
poderes que definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de
facto, a cada campo ou subcampo corresponde uma espécie de capital
particular, que ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste campo)
(BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2012, p. 134).
[6] Neste sentido, há, no campo historiográfico, certa autonomia em relação
às demandas do consumidor, ao contrário do que se verifica no campo
jornalístico.
[7] O autor em questão usa o conceito de mundo social em vez de campo.
Segundo o autor, "o mundo social consiste em uma rede de pessoas envolvidas
na realização de uma atividade cooperativa" (PEREIRA, 2011: 33) Entendemos,
entretanto, que apesar da diferença conceitual aqui expressa, não há um
afastamento intransponível do conceito de campo.
[8] Segundo Bérgamo (2011): "É do final dos anos 1930 a publicação do
Decreto-Lei que regula a profissão de jornalista. Trata-se do Decreto-Lei
Reportagem, Memória e História no Jornalismo Brasileiro 235 no 910, de 30
de novembro de 1938. De acordo com o Capítulo I Art. 1º § 1º: "Entende-se
como jornalista o trabalhador intelectual cuja função se estende desde a
busca de informação até a redação de notícias e artigos e a organização e
direção desse trabalho" (BÉRGAMO, 2011, p. 234-235)
[9] O percurso de tal tradição poderia ser traçada aos jornais do século
XIX, que mais se assemelhavam a panfletos políticos.
[10] O uso do termo "vontade democrática" nos parece um tanto quanto
complicado. Cabe nos perguntarmos se essa seria uma vontade verdadeiramente
democrática, ou uma questão de mercado.
[11] Na historiografia, já vivenciamos tal lema sob a liderança do
positivismo, que pretendia suprimir a "voz" do historiador para deixar as
fontes falarem por si só – e não há nada mais suspeito do que este tipo de
objetividade.
[12] Segundo Bourdieu: "As 'ideias feitas' de que fala Flaubert são ideias
aceitas por todo mundo, banais, convencionais, comuns: mas são também
ideias que, quando as aceitamos, já estão aceitas, de sorte que o problema
da recepção não se coloca." (BOURDIEU, 1997:40)
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