Uma reflexão sobre as condicionantes e a missão da protecção social em Timor-Leste

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Uma Reflexão sobre as Condicionantes e a Missão da Protecção Social em Timor-Leste Paulo Pedroso, Professor Auxiliar Convidado da Escola de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Portugal

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Fotografía: MSS

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Introdução

1. As Condicionantes Derivadas da Situação do País

A jovem nação de Timor-Leste não está apenas a erigir o Estado Social que a sua Constituição prevê. Está a construir em simultâneo o seu Estado e a fazê-lo numa situação excepcional, mesmo entre as nações que acederam à independência no período pós-colonial. Ao contrário da maior parte das independências póscoloniais, Timor-Leste não herdou o quadro institucional da metrópole colonial. E também não herdou o da potência ocupante. Acresce que a pluralidade de referências, frequentemente contraditórias, da administração transitória e da cooperação internacional intensa nesse período, esteve longe de construir um quadro institucional minimamente integrado, nomeadamente quanto às funções sociais do Estado.

As condicionantes para a acção do Estado na esfera social que resultam da escassez de recursos do país, da falta de instituições fortes e das aspirações naturalmente elevadas de um povo que lutou com todas as energias pela independência implicam que se actue com extrema prudência e se tenha particular atenção às opções a fazer.

Este é o enquadramento em que o Ministério da Solidariedade Social (MSS) desenvolveu a actividade que nesta iniciativa oferece ao escrutínio crítico dos seus colegas de governo, das diversas forças políticas com representação parlamentar, da sociedade civil e das instituições religiosas timorenses, bem como de peritos e parceiros internacionais. Antes de prosseguir nas minhas reflexões sobre o que aqui ouvi, tal como me foi solicitado que fizesse, desculparme-ão por louvar tal iniciativa e tal exemplo de coragem da Senhora Ministra Maria Domingas Fernandes Alves e da equipa ministerial que dirige. Muito poucos políticos no mundo se exporiam a um exame crítico tão exigente, para mais em final de mandato e na proximidade das paixões que os exercícios eleitorais sempre implicam. A simples existência desta iniciativa é um testemunho eloquente do trabalho do MSS na remoção dos obstáculos institucionais e na mitigação dos problemas sociais no desempenho da sua missão. Agradeço, pois, o convite para me associar a esta reflexão que é essencialmente vossa e procurei organizar o meu contributo num conjunto de notas sobre as condicionantes e a missão da protecção social em Timor-Leste, tanto quanto consigo captar as primeiras e contribuir para a definição da última.

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Ao contrário do que tecnocraticamente nos parece evidente, a sustentabilidade do Estado social timorense não pode ser vista apenas a partir da sustentabilidade dos recursos e da capacidade técnica para o gerir. Terá que incluir também a dimensão do contributo para a estabilização do país, para o reforço da sua paz social e para a prevenção e resolução de situações de tensão inevitavelmente ligadas ao percurso de consolidação e legitimação popular do seu Estado. Acresce que o Estado social moderno tem pré-requisitos de organização social que estão também eles em construção no país. Se o Estado social for feito sem que haja a afirmação de uma economia de mercado formal, acabará por ser feito pelo Estado e para o Estado, independentemente da boa vontade dos actores envolvidos. A formalização da economia de mercado é uma das prioridades para gerar as pré-condições de afirmação do Estado social em Timor-Leste. O Estado social timorense necessitará de contar também com um conjunto de contributos de áreas que normalmente não relacionamos com ele, tais como infra-estruturas básicas, começando pelo acesso a água potável e acabando numa rede de infra-estruturas de comunicação que tornem possível chegar a todos os timorenses, onde quer que estejam no território nacional. O país iniciou recentemente, nomeadamente por força do nível crescente de recursos disponíveis obtidos através do petróleo, um caminho de crescimento acelerado do rendimento disponível. O rendimento per capita subiu 50% entre 2007 e 2009 e essa trajectória vai prosseguir. Este crescimento rápido é também desafiador da definição das políticas. Em muitos países este crescimento acelerado, para mais dependente da exploração de recursos naturais, alimentou uma desigualdade enorme e a apropriação do rendimento por minorias poderosas. Cabe às opções que o Estado fizer na alocação de recursos impedir que assim seja ou, pelo contrário, promover esse caminho.

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2. As Condicionantes Derivadas da Fragilidade Institucional na Área da Protecção Social O Estado social implica o desenvolvimento necessário de uma burocracia própria que demora décadas a conseguir. Será necessário recrutar profissionais qualificados e dar-lhes a formação adequada. Será necessário pensar a estrutura administrativa das diferentes agências e serviços de que se fará a acção do Estado. Será necessário fazer a capacitação administrativa das instituições criadas. O trabalho do MSS é extremamente meritório. Em pouco tempo criaram-se programas fundamentais de que a pensão universal e a Bolsa da Mãe são exemplos eloquentes. Mas a criação de uma segurança social compreensiva e integrada como a que a recém-aprovada Lei de Bases da Segurança Social prevê implicará um trabalho colossal de edificação institucional que apenas agora pode começar. Destaco aqui algumas áreas prioritárias, a meu ver de curto prazo, para que a protecção social da responsabilidade do MSS possa desenvolver-se nos próximos anos ao ritmo que o empenhamento político até aqui demonstrado certamente impulsionará. A administração da segurança social contributiva é uma tarefa exigente e de complexidade sempre crescente. Na fase transitória, dado que apenas se aplica aos funcionários públicos, esta tarefa é mais simples dado que há um departamento próprio do Estado que gerirá algumas das tarefas necessárias. Mas há que construir um sistema de registo de contribuições fiável e duradouro, que garanta que daqui a trinta ou quarenta anos se sabe com precisão as contribuições que estão a ser feitas hoje. Um sistema que garanta que não há fraude e evasão e que os trabalhadores que se julgam protegidos o estejam mesmo e possam saber se o estão. Ou seja, um sistema capaz de garantir a fiabilidade da informação que recolhe e capaz de garantir que a lei é cumprida por todos os envolvidos.

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A segurança social contributiva gerirá um nível de recursos crescente, à medida que for recebendo contribuições e que será necessariamente superavitário durante muito tempo. O tipo de aplicação que for dado aos recursos recebidos no período em que se receberá mais do que se pagará vai influenciar a capacidade do sistema na fase seguinte. A gestão financeira da segurança social é também uma tarefa de alta complexidade, que implicará um orçamento próprio e o desenvolvimento no MSS de competências próprias de gestão financeira. A segurança social contributiva, mas também os outros ramos da segurança social e esses até mais do que esta, requer a capacidade de informar com precisão os cidadãos dos seus direitos e deveres. Assim como requer um trabalho de empoderamento das populações face aos seus direitos. Requer também, em várias acções a triagem de problemas sociais e o acompanhamento de beneficiários potenciais e já apoiados. A função de atendimento social, necessariamente disseminada pelo território nacional, implica a criação de condições para que a segurança social chegue a todos os pontos do pais e exige uma rede de técnicos qualificados, com profissionalismo e sensibilidade humana, capazes de trabalhar em condições adversas e de fazer o Estado dialogar com a diversidade cultural do país, em simultâneo afirmando a cidadania social e respeitando diferenças e tradições. A segurança social requer também uma eficaz rede de controlo, que vai da garantia do respeito da lei nos pagamentos a fazer à segurança social ao seu respeito nos pagamentos a fazer por esta, que impeça todo e qualquer tipo de favoritismos e seja, por essa via, um pilar do seu respeito pelos cidadãos, da sua legitimação e de resistência a qualquer tentativa – localizada ou nacional – da sua manipulação.

3. A Necessidade de Focalizar Permanentemente as Prioridades A governação é um exercício de definição de prioridades face a problemas que são sempre maiores que os recursos, financeiros e institucionais, disponíveis. Em particular num país com tão grandes carências e recursos tão limitados e de disponibilidade recente, este exercício é difícil e exige monitorização adequada. A protecção social há-de integrar protecção de cidadania, protecção contributiva

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e serviços sociais. Quanto alocar a cada parte das suas responsabilidades? Optar por transferir recursos para as famílias ou por disponibilizar-lhe serviços? E em que proporção equilibrar uns e outros? Onde localizar quais serviços e com que intensidade? Todas estas questões carecem de resposta. Na ausência de um planeamento adequado, a “geografia das capacidades” sobrepor-se-á à “geografia das necessidades” na alocação de serviços. Nesses casos, onde a sociedade civil estiver mais organizada e for mais forte, onde as instituições tiverem protagonistas mais capazes de influenciar os serviços, chegarão primeiro. Do mesmo modo, na definição das prestações sociais, acontece que a “sociologia das influências” se pode sobrepor à “sociologia das necessidades”, nomeadamente na definição de que valores para que prestações ou de que prestações criar primeiro e para que beneficiários. O MSS tem a grande responsabilidade de promover que a sociologia e a geografia das necessidades se sobreponham às outras, com realismo e com fundamentação técnica. Bem sei que num país onde actuam diversíssimas agências internacionais não faltam, em princípio, os diagnósticos e os estudos tão do agrado dos consultores internacionais. Mas para que eles sejam úteis, o MSS tem que continuar a capacidade de ser “cliente” desses estudos e a procurar que eles respondam às suas necessidades e não apenas ou prioritariamente à vocação sectorial da agência ou agências que se disponibilizam para os fazer. O país necessita de um sólido diagnóstico de necessidades de apoio aos cidadãos, baseado na diversidade das dinâmicas locais de expressão dos problemas e de encontro de soluções, que aponte pistas para as prioridades sectoriais e territoriais de resposta e aponte as vantagens e desvantagens de cada modalidade de resposta possível. Tal trabalho deveria corresponder ao apoio técnico à definição da estratégia de desenvolvimento e aplicação da Lei de Bases da Segurança Social, que é, parece-me, a prioridade estratégica do MSS, pelo menos para uma década. Findo o período da emergência, chegou a hora da acção estratégica de consolidação institucional.

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A definição de uma estratégia implica a arbitragem entre prioridades e o equilíbrio entre tipos de respostas. Procurarei dar exemplos de uma e outra. Desde a sua génese na Europa do fim do séc. XIX, a segurança social dedicouse a substituição de rendimentos dos trabalhadores, quando atingidos pela incapacidade destes para sustentar as suas famílias. Daí que o primeiro núcleo fundamental da segurança social sejam as pensões de velhice e viuvez, as pensões de invalidez, as compensações por acidentes de trabalho, os subsídios de desemprego e os abonos de família. No quadro de Timor-Leste de 2020 quais devem ser as expressões conjunturais e nacionais deste problema fundador da segurança social? A estrutura familiar da Europa Ocidental do fim do séc. XIX pode bem não corresponder à do país. A existência de redes informais de absorção de certos riscos ou a sua ausência pode tornar certas respostas mais urgentes que outras. A demografia pode implicar um balanço entre a prioridade a problemas de gerações diferente do que parece óbvio. As dinâmicas familiares e as opções do Estado face a elas podem implicar respostas distintas. É certo que um país com 40% da sua população menor de 18 anos e com um elevado índice de subnutrição infantil terá que ter uma estratégia própria de prover o apoio social pensada autonomamente da aplicação mecânica dos instrumentos clássicos de segurança social. Parece também claro que o tipo de equilíbrio a construir entre Estado e família carece de uma reflexão própria na sociedade timorense e nas suas instituições democráticas e será matricial do desenvolvimento do Estado social no respeito da Constituição e da Lei de bases da segurança social. A segurança social não pode, por outro lado, ser cega às especificidades da construção nacional e dos riscos sociais latentes ainda dela derivados. A “crise político-militar de 2006” e, dentro dela, o problema dos IDP’s (Internally Displaced Persons) deve permanecer no espírito dos decisores como exemplo desses riscos sociais específicos que carecem de ser geridos. Neste contexto é necessário manter respostas específicas aos problemas derivados da juventude da nação e da longa luta de libertação nacional. Algumas dessas respostas cabem no perímetro da segurança social, nomeadamente na acção social.

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Outras encontram-se em território de fronteira e outras ainda, no estrito sentido técnico, encontram-se fora do seu perímetro. Mas independentemente de onde se localizem as respostas a prevenção e mitigação dos riscos carecem de um pensamento próprio do sistema de protecção social.

4. Nota Final Há, finalmente, que ter em conta que Timor-Leste, pátria do séc. XXI, pode ter um sistema de protecção social próprio que vá além da aprendizagem das experiências internacionais do século passado e da especificidade da construção nacional. A sociedade timorense tem, colectivamente, a responsabilidade de definir as prioridades da cidadania social na nação. O que acabará por reflectirse nos programas políticos e na acção política.

Há apenas um elemento universal, transcultural e indiferente a projectos políticos e sociais no desenvolvimento dos modelos de promoção do bem-estar: eles visam aumentar a qualidade de vida dos cidadãos. A busca da estratégia adequada para a melhoria da qualidade de vida é um trabalho infinito e em que receitas que funcionaram no passado ou noutro contexto geográfico podem, ou não, ser aplicáveis. A definição da resposta de cada país cabe ao seu povo e às suas instituições legítimas. Eis as reflexões de um malae bem intencionado para ajuda à reflexão sobre o trabalho notável de Timor-Leste desde a independência e aos seus desafios futuros.

A ajuda ao desenvolvimento é uma variável a ter em conta por muito tempo no planeamento da protecção social em Timor-Leste. Cada agência e país com a sua vocação e prioridades puxarão a nação para o “seu” problema. Mas cabe aos timorenses saber e exigir enquadrar essa generosidade nas suas prioridades nacionais e não se deixar tolher pela sofisticação dessas experiências na busca das respostas próprias. Essas respostas próprias e adequadas à sociedade timorense serão necessárias em muitas esferas, da assistência aos idosos à inclusão social de pessoas com deficiências e incapacidades; da política activa de emprego ao apoio à infância e juventude. A ajuda ao desenvolvimento tem também a sua agenda doutrinária, frequentemente com um enviesamento anti-estatal derivado da desconfiança da capacidade dos jovens Estados, sobre a qual os timorenses terão que trabalhar e reflectir. O que deve na protecção social ser feito pelo Estado e o que deve ser entregue ao sector não-governamental? O que deve deixar-se aos dinamismos familiares e societais informais e o que deve ter respostas a partir das instituições? O que deve procurar-se que seja respondido por um mercado a desenvolver? Todas estas questões têm que ser respondidas pelo modelo de Estado social de Timor-Leste e resultarão do jogo entre acções e omissões de cada um dos parceiros no seu desenvolvimento.

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