Uma resenha para Gilberto Freyre

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Uma resenha para Gilberto Freyre Por Rogério Mattos: [email protected]

Introdução

Casa Grande & Senzala é hoje apontado como obra fundadora do mito da democracia racial do Brasil. Frente à originalidade do autor pernambucano e à relevância de sua obra, quem se depara com tal afirmativa não deixa de ficar, no mínimo, surpreso. Para dar sustentação ao espanto – e já relativamente acostumado à prosa dos autores que começaram seu trabalho intelectual na década de 1930 –, procurei refazer o debate intelectual daqueles anos, tendo sempre em mente as discussões acerca da mestiçagem e da herança do escravismo na sociedade brasileira. Que surpresa! De minha parte, nada encontrei, nem remotamente, que nos trouxesse a lembrança do famigerado mito. Na verdade, aspirava por encontrar indícios, uma materialidade qualquer que me levasse a compreender as raízes, pelos menos, da interpretação atual sobre o afamado livro. Pois bem, voltei-me aos atuais propagandistas não de um “Brasil sem misérias”, mas de um “Brasil sem cor”, sem racismo – como se a miséria de nosso povo não fosse sempre relacionada ao fardo da escravidão, negra, e que hoje é defendida com ares de candura por aqueles enxergam no atraso o sinal legítimo da modernidade. Elio Gaspari, dublê de intelectual e jornalista da mídia hegemônica, e cultor do chamado “historialismo” (nem história nem jornalismo), após defender em incontáveis páginas um suposto estadismo de Geisel e um lado bom, progressista, na ditadura, dá o tom ao seu grupo restrito de “cidadãos esclarecidos” acerca do conteúdo “real” de Casa Grande & Senzala. Claro, aqui não nos deparamos com qualquer surpresa, mas com aberrações infindáveis. Logo, nosso trabalho não visa reconstituir um determinado percurso intelectual de Gilberto Freyre, desde sua formação intelectual até a fase de maturidade. Tampouco fazer um recorte e estabelecermos paralelos entre sua vida e sua obra. O interessante foi, unicamente, resgatar o grande debate intelectual da década de 1930 e restabelecer nem que sejam diretrizes gerais pelas quais autores dos mais respeitáveis se guiaram ao lidar i

com questões prioritárias para nossa cultura e sociedade. Assim, reencenar o debate atual sobre o legado racista e escravocrata brasileiro é refutar definitivamente qualquer filiação com este debate que hoje procuram fazer. Agora, em um único ponto peço a compreensão do leitor: não ser acusado de anti-academicismo. Nossa historiografia está impregnada de debates políticos e não é desprezível o número dos que dentro da academia defendem visões revisionistas como a de Elio Gaspari, endossando academicamente seus desatinos, ainda que com as velhas palavras, todas de tristonha beleza, de nossa tradição cordial. Esses intérpretes, preocupados com uma fórmula política pouco usual, porém que se quer hegemônica, ou seja, a afirmação dos direitos privados a fim de aprimorar os direitos do povo, acabaram, em história recente, por diminuir esses no claro intuito de inflacionar aquele. Como se a afirmação dos direitos coletivos fosse mera tergiversação da verdadeira política, e que o brasileiro preocupado com o bem estar social nunca tivesse se dado conta de que a afirmação da vantagem privada passa sempre pelo primado do bem público. O resultado acabou por não ser muito diferente desse quadro exposto por José Luis Romero ao dar conta da América Latina no período pós-Independência: Al cabo de poco tiempo – hacia la última década del siglo – se había diferenciado en el seno de los sectores medios una alta burguesía que tenía ya una inequívoca figura como clase económica y social, y claros designios que, en algunos aspectos, no coincidían con los grupos señoriales. Mantuvieran éstos sus convicciones básicas y sus ideas políticas, y cuando aceptaron su nuevo papel dentro de la economía en cambio, pretendieron conservarlas aun cuando colaboraban en la modificación de la estructura económica. Esta contradicción se advirtió en sus relaciones con la nueva burguesía liberalburguesa, que, cada día más, alcanzaba mayor preponderancia. (…) Cada vez más se perfiló la existencia de dos derechas (Romero, 1970:

104). Essa nova burguesia liberal-burguesa é um estrato similar a do que se associou aos fazendeiros ligados ao capital estrangeiro, do século XIX até pelo menos 1920, no Brasil e nos países vizinhos. A diferença com a ideologia liberal atual, é que hoje seus protagonistas não precisam mais se ligar à figura intermediária dos senhores de terra. São os grandes financistas que agora levam à bancarrota nações com elevado grau de desenvolvimento social, com seus agentes brasileiros, tanto no mercado financeiro e empresarial quanto nos meios que espalham os dogmas do monetarismo, os que procuram fundar o tema do racismo e da escravidão brasileira sobre novas bases. Essas duas direitas deram o tom para importantes debates em nossas ciências humanas, pelo ii

menos desde o período de redemocratização, sem encontrar interlocutores à altura para lhes desfazer as ilusões. Que essa pequena reencenação de debate tão caro a quem ama a inteligência em nosso país, contrastando com os padrões globalmente vigentes hoje, possa servir como um dos inícios de um debate que inapelavelmente terá de ser feito no futuro, dentro e fora da academia.

O debate na década de 1930

Comparemos a concepção de Gilberto Freyre com a de outros autores da época, também clássicos, e posteriormente poderemos ver o que esse trabalho guarda de realmente importante para o pensamento atual. Analisando mais profundamente sua obra, podemos concluir que, à parte todos os erros e lacunas que podem ser mencionados, não existe qualquer deturpação epistemológica grave. Pelo contrário, talvez tenha sido um nítido, e ainda inédito até então, panfleto político para o movimento negro que ainda estava para surgir. Irei me adiantar: o que estava em jogo é que esse autor foi o primeiro a perceber, e a desenvolver de maneira magistral, que o erro que, em sua época, enxergavam nos negros, não era um erro negro. Era um erro e uma depravação branca, e portuguesa. É esse espelho que é posto na cara de todos os patriarcas de nosso país. Comecemos por olhar um dos ângulos de visão que nos fornecem esse espelho:

José Bonifácio, ao escrever libelo tão forte contra a escravidão, não sabemos se teria consciência dos vícios de caráter por ele próprio adquiridos no contato dos escravos: seu estranho sadismo, por exemplo. Revelou-o bem ao assistir por puro prazer, sem nenhuma obrigação, ao castigo patriarcal que a soldados portugueses mandou infligir de uma feita o Imperador D. Pedro I no Campo de Santana: cinqüenta açoites em cada um. Castigo de senhor de engenho em negros ladrões. Arrumaram-se os soldados em grupos de cinco, conforme a estatura. Despiram-se-lhes as fardas e camisas. Os homens então ficaram nus das espáduas às nádegas, curvadas para frente. E começaram os açoites. Alguns soldados terminaram deitados de bruços sobre o chão, vencidos pela dor da chibata. José Bonifácio, que assistiu a tudo por gosto, conservou-se no campo até o final da flagelação. Até o cair da noite. Sinal de que a cena não lhe desagradara. Outras evidências poderiam se juntar de vários traços, no caráter de José Bonifácio, que se podem atribuir à influência da escravidão. E se destacamos José Bonifácio é para que se faça idéia da mesma influência sobre homens de menor porte e personalidade menos viril (Freyre, 2006:434 – 435).

Freyre não retrata apenas o país das boas “mães pretas”, da cozinha, do linguajar e dos demais dons trazidos da África. Existe, sim, essa exaltação da figura dos negros. iii

Porém não se despreza o pano de fundo da desigualdade, das relações assimétricas e violentas. A amálgama cultural retratada pelo autor pernambucano em nenhum momento apaga, antes realça, o que trouxe de perverso a escravidão. Não existe um paraíso onde a ausência de diferenças reina soberana, com diferenças somente pontuais, como num discurso atual feito em termos de “aldeia global”, “mundialização”, “globalização”, “nova ordem mundial”, e outras mentiras do gênero. Repito, não há erro científico fundamental em Gilberto Freyre. Caso fosse o ideólogo puro e simples da “democracia racial”, fatalmente erros epistemológicos haveriam de ser encontrados. Não aceitamos, porém, recortes parciais em sua obra que sirvam ora para legitimar um discurso hipócrita, ora para acirrar determinada luta de classes. Neste último caso, fazendo não muito diferente dos jacobinos franceses, ou seja, “devorar seus próprios filhos” e, quem sabe, abrir as portas para uma nova espécie de salvador, tal com foi encarnada pela figura perversa de Napoleão – ou nem tão má: para nós brasileiros é só lembrarmos do triste Jânio Quadros. Se não retratou os castigos indizíveis sofridos pela raça negra durante todos os séculos antes da alforria (e por quantas décadas depois dela, sob múltiplos disfarces?), é porque Freyre trata de um outro momento da história do Brasil, do tempo em que os portugueses “arranhavam as praias como caranguejos”, no dito do famoso frei. Não se deteve para averiguar as condições terríveis das minas, dos escravos no Maranhão trazidos por Pombal, dos negros no grande mercado do Rio de Janeiro na passagem do século XVIII para o XIX. No mais, a visão que Freyre tem da escravidão no período que compreende o apogeu da vida de casa grande e senzala não é diferente de outros autores não menos importantes, e que não paira a mesma dúvida sobre a obra deles, como Caio Prado Jr. e Manuel Bonfim. No mais, Capistrano ou Sérgio Buarque também nunca dedicaram grandes páginas à escravidão. Isso, por si, o dedicar-se a, ou dar uma visão considerada perfeitamente correta da instituição escravista, nunca foi atestado para se medir a importância de uma obra ou de um pensador. Analisado em sua especificidade, Freyre é o teórico da miscigenação, o que é óbvio. Mas não de uma miscigenação que apaga todas as diferenças. Muito pelo contrário, e isso é o que estou tentando demonstrar aqui. Freyre não é Freire nem nunca ousou o disparate de escrever um livro no qual, por exemplo, se afirma que “não somos racistas”. Só se re-fundasse a historiografia. Genialidade tinha para tanto, ao contrário de outros. E, realmente, trouxe outro parâmetro de análise da instituição da escravidão e do negro no Brasil. Quem é seu precursor? Nina Rodrigues não chegou aos seus pés. Quem nos sobra? Oliveira iv

Vianna? Mais tarde colocaremos o problema de Casa Grande & Senzala em sua devida colocação no espaço-tempo, no devir histórico. Antes de prosseguirmos, sem nos deter simplesmente nas nuances da prosa do autor pernambucano, deveremos entendê-lo não só como o autor que encarna, quase cem anos depois, a tese defendida por Martius. Ele não é um simples propagandista da miscigenação racial e cultural no Brasil. É um dos primeiros a reconhecer o valor superlativo dos negros em nossa sociedade, indo para além da “teoria da miscigenação”, tão mal usada por muitos; usada com tantas más intenções, por outros. Em todo o seu clássico, não podemos enxergar alguma espécie de carnavalização da figura do negro. Qualquer espécie de banalização de sua imagem, ao contrário do que faz com os senhores de engenho, é sequer cogitada. Lembremos de suas palavras em relação aos malês, sendo talvez um dos primeiros a destacar o avanço de sua civilização e mostrar a sua humilhação perante a condição de escravo – e não simplesmente de negro. Não, Freyre não pretende apagar as diferenças entre as classes, entre as raças, como no discurso “globalizado”, como no triste fim da história neoliberal de Fukuyama. Se há hábito que faça o monge é o do escravo; e o africano foi muitas vezes obrigado a despir sua camisola male para vir de tanga, nos negreiros imundos, da África para o Brasil. Para de tanga ou calça de estopa tornar-se carregador de tigre. A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam. (Freyre, 2006:398)

Como disse Freyre, refutando Nina Rodrigues: “Impossível a separação do negro, introduzido no Brasil, de sua condição de escravo” (Freyre, 2006:398). Vejamos contra quem Freyre combate com a força de sua oratória:

Mas logo de início uma discriminação se impõe: entre a influência pura do negro (que nos é quase impossível isolar) e a do negro na condição de escravo. “Em primeiro lugar o mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro”, escreveu Joaquim Nabuco em 1881. Admiráveis palavras para terem sido escritas na mesma época em que Oliveira Martins sentenciava em páginas gravíssimas: “Há decerto, e abundam os documentos que nos mostram o negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo do antropóide, e bem pouco digno do nome de homem”. (Freyre, 2006:397)

Veremos, mais a frente, quem hoje se outorga o título de cientista (social ou o que valha), o que lhe outorga a suposição de neutralidade. Não mais Oliveira Martins, v

Nina Rodrigues ou Oliveira Vianna. Não é de se admirar, portanto, que esses mesmo cientistas contemporâneos sejam aqueles que fornecem as bases políticas e intelectuais para a propagação do mito da democracia racial. É contra esses que ainda devemos fazer reviver Gilberto Freyre, para que sejam expostas todas as falácias nas quais se baseiam sua retórica; os que constroem sistemas de forma tal que vão de encontro ao que de melhor produzimos, deslegitimando-o. E com toda a admiração a Gilberto Freyre!, pois veremos. O negro hoje na mitologia da democracia racial encarna uma espécie de versão renovada do mito do “amante latino”. É só olhar todo o racismo compreendido nessa visão: o “sangue quente”, atributo da raça; o porte físico avantajado, muito mais forte do que o branquicelo europeizado; e, o órgão sexual igualmente avantajado, com que a dar legitimidade a toda essa visão estereotipada. Em Casa Grande & Senzala é o português, cabeludo, lascivo, que aparece como o dono dos maiores falos. Os negros, além de depravados, tinham um sexo frágil, sifilítico, o que não o tornava o “amante”, mas a figura, geralmente encarnada pela mulher, de destruidora de lares, de prostituta, etc. Com a democracia racial o negro passa a ser valorizado por um atributo duvidoso e, com as mutações que essa imagem adquire de acordo com as modas, se torna facilmente verificável seu papel de mito puro e simples, como desmascarado por Gilberto Freyre na década de 1930: Passa por ser defeito da raça africana, comunicado ao brasileiro, o erotismo, a luxúria, a depravação sexual. Mas o que se tem apurado entre os povos negros da África, como entre os primitivos em geral – já o salientamos em capítulo anterior – é maior moderação do apetite sexual que entre os europeus. É uma sexualidade, a dos negros africanos, que para excitar-se precisa de estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico, Orgias. Enquanto no civilizado o apetite sexual ordinário se excita sem grandes provocações. Sem esforço. A idéia vulgar de que a raça negra é chegada, mais do que a outras, a excessos sexuais, atribui-a Ernest Crawley ao fato do temperamento expansivo dos negros e do caráter orgiástico de suas festas criarem a ilusão de desbragado erotismo. Fato que “indica justamente o contrário”, demonstrando a necessidade, entre eles, de “excitação artificial”. Havelock Ellis coloca a negra entre as mulheres antes frias do que fogosas: “indiferentes aos refinamentos do amor”. E, como Ploss, salienta o fato dos órgãos sexuais entre os povos primitivos serem, muitas vezes, pouco desenvolvidos (“comparatively undeveloped”) (Freyre, 2006:398).

O português, com uma rotina organizada que lhe fornece horas extras de prazer (e o que dizer dos portugueses das casas grande, os homens que tudo faziam deitados em suas redes?), ao contrário da rotina de uma tribo guerreira, profundamente preocupada em conseguir os mantimentos para a manutenção física de seus habitantes, vi

ou ocupadas em guerras contínuas com outras tribos, de modo algum sobra tempo para exercitar a perversidade sexual tal como nas sociedades com uma divisão do trabalho mais complexa, e na qual mais e mais seus habitantes desfrutam horas de lazer e de conforto. Daí a necessidade dos cultos fálicos, das danças afrodisíacas e até das orgias. Como essa sociedade sobreviveria se não excitasse esses impulsos entre seus integrantes? Daí também o caráter religioso desses rituais. Necessita-se ordenar da melhor maneira possível a reprodução dos habitantes dentro das normas rígidas que a vivência naquela sociedade condiciona. Nada impensado, nada excessivo, nada depravado. Agora, onde o mito da democracia racial ao enxergar dessa maneira os negros? Talvez seja por isso que boa parte dos que insistem em ver esse mito em Casa Grande voltem sua atenção para as palavras sobre a cozinha, a língua, sobre as mães negras, etc., sem atentar para um fato crucial que ocupa quase a metade do livro e que é o assunto central dos capítulos dedicados exclusivamente aos negros: “o escravo negro na vida sexual e de família brasileiro”. A organização da família também está centrada nos tipos de relação sexual que os senhores exercem sobre seus escravos, sobre toda a casta de negros e mulatos. A mãe negra, a introdução da culinária africana na dieta portuguesa, o linguajar que se aproxima, tudo isso existe por causa de uma organização social específica, a chamada “escravidão familiar”. Esta só poderá ser compreendida de maneira mais ampla se colocada em sua vertente atlântica, ou seja, se comparada, por exemplo, à escravidão nas minas ou a realizada pelas Companhias de comércio, tanto brasileiras quanto a que Pombal criou posteriormente. Para se analisar com mais amplitude os tipos sociais de Casa Grande & Senzala, precisamos ampliar nossa escala de análise. Não obstante, para o objetivo desse trabalho, a questão em si da vida cotidiana, e a sentimental que tudo perpassa nesse panorama, é a principal. Portanto, continuemos com Freyre, continuemos com sua imagem caricatural, e na qual não falta seriedade, do patriarca: No senhor branco o corpo quase se tornou exclusivamente o membrum virile. Mãos de mulher, pés de menino; só o sexo arrogantemente viril. Em contraste com os negros – tantos deles gigantes enormes, mas pirocas de menino pequeno. Imbert, nos seus conselhos aos compradores de escravos, foi ponto que salientou: a necessidade de se atentarem nos órgãos sexuais dos negros, evitando-se adquirir os indivíduos que os tivessem pouco desenvolvidos ou mal-conformados. Receava-se que dessem maus procriadores. Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor

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copulando dentro dela. Da rede não precisava afastar-se o escravocrata para dar ordens aos negros; mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão; jogar gamão com algum parente ou compadre. De rede viajavam quase todos – sem ânimo para montar a cavalo: deixando-se tirar de dentro de casa como geléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era na rede que eles faziam longamente o quilo – palitando os dentes, fumando um charuto, cuspindo no chão, arrotando alto, peidando, deixando-se abanar, agradar e catar piolho pelas molequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vícios; outros por doença venérea ou da pele. Lindley diz que na Bahia viu pessoas de ambos os sexos deixando-se catar piolhos; e os homens coçando-se sempre de “sarnas sifilíticas”. (Freyre, 2006:518)

Essa imagem do senhor da rede, com mãos de mulher e pés de menino e “só o sexo arrogantemente viril”, é o retrato tosco que o autor faz do cotidiano da vida dos patriarcas na colônia. Ele não coloca o branco como um patriarca bondoso que perdoa as travessuras de seus filhos, as vaidades de suas meninas, e as estripulias de seus jovens criados. Os meninos com nove ou dez anos já andavam com o cabelo “frisado à Menino Jesus; o colarinho duro; calça comprida; roupa preta; botinas pretas; o andar grave; os gestos sisudos; um ar tristonho de quem acompanha enterro” (Freyre, 2006:499). As meninas, preferiam as com ares de santas, “o ar humilde que filhas de Maria ainda conservavam nas procissões e nos exercícios devotos da Semana Santa, as meninas de outrora conservavam o ano inteiro” (Freyre, 2006:510). Todo esse ambiente que exteriorizava seriedade, gravidade, respeito à família e à religião, estão nas raízes do autoritarismo brasileiro. Todo esse ar, e que sabe ao mesmo tempo ser “elástico” como era o português, maleável até determinado ponto – o ponto em que se tem mais e mais espaço para se impor os seus desejos e regras. E assim houve a dupla degradação da raça negra. Dupla, pois consideramos a primeira, que foi torná-los escravos. Em seguida, profanaram seu complexo afetivo (é isso que está em jogo quando se fala de sexualidade), seus valores morais, sociais e a intimidade de sua experiência religiosa. Substituíram a figura do negro com sua camisola male, pela do “senhor na rede” a mandar o negro, já de tanga, a carregar tigre, ou seja, os seus excrementos. Nada mais trágico. Nada menos carnavalesco. Nada menos mitologia. Nada mais brasileiro. O ócio, a libertinagem, a vagabundagem: temas constantes entre os estrangeiros que vinha cá para nossas terras. Diziam ser até culpa do açúcar, o qual causaria uma espécie de “abundância desse humor”, talvez um “humor açucarado” que faziam os negros moles e os senhores ficarem nas redes. Ah! vamos culpar tudo o que achamos coisas: o açúcar, o escravo, o negro... Responde Gilberto Freyre: “O açúcar não teve, por certo responsabilidade tão direta pela moleza dos homens. Teve-a, porém, e grande,

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como causa indireta: exigindo escravos; repelindo a policultura. Exigindo escravos para ‘mãos e pés do senhor de engenho’, como disse Antonil” (Freyre, 2006:517). Não o escravo por ele mesmo, não a cor. Mas a Escravidão, introduzida por mãos brancas. Do mesmo modo, Manoel Bomfim rechaça as acusações de raça inferior atribuída aos latino-americanos. Sua corrupção inerente? Fruto da velha metrópole que se tornara um organismo parasitário frente a colônia que dava provas de vigor e fortaleza, através de sua gente, através de sua gente miscigenada. É esse tom que assemelha o autor pernambucano ao sergipano. Onde encontrar um “espetáculo das raças”, um “país de pardos” (nos dizeres do Freyre com “i”, Ali Kamel) na obra deles? Precisamos averiguar qual a noção que os autores contemporâneos a Gilberto Freyre tinham para entender o quão longe estão as críticas que fazem agora ao autor pernambucano. Manoel Bomfim, se crítico da literatura estrangeirada que via como degeneração as raças misturadas, por sua vez não destacou os conflitos entre as raças como hoje estamos acostumados, principalmente por causa do desenvolvimento tradição marxista. Antes, valorizou a mestiçagem, colocando como a mola mestra da formação da nacionalidade brasileira. Portanto, não via no índio uma raça que foi simplesmente subjugada. Pensava que houve, apesar dos conflitos, assimilação de uma raça com outra, a de brancos, negros e indígenas entre si. Mas faz um paralelo, consciente da crueldade que se tornara a escravidão africana em nossa terra. Responsabiliza Pombal e suas Companhias de comércio pela entrada massiva de negros no país. Resultou disso a dificuldade de assimilação entre as raças, o que não houve até aproximadamente 1750, data simbólica de quando passa a entrar cada vez mais escravos por nossos portos. Não iremos no ocupar com seus números relativos a entrada de negros no Brasil, e que datam de quase um século atrás (1929 foi a data de publicação de seu livro). Só que, ouvindo pesquisador mais moderno, temos que: “Por razões explicadas adiante, os números do tráfico negreiro são problemáticos para os séculos XVI e XVII. Na circunstância, a análise quantitativa da deportação de africanos para a América só ganha verdadeiro alcance nos séculos XVIII e XIX, período que será objeto de um próximo livro” (Alencastro, 2000:9 – 10). O fundo do que Bomfim nos diz se mantém intacto, fazendo eco a Gilberto Freyre (grifo meu): O trabalho escravo retardou longamente a evolução do país, além dos maus efeitos morais e políticos. Em si mesma, porém, a sorte dos cativos foi menos dolorosa aqui, do que em qualquer das outras colônias modernas, inclusive a América inglesa. É um testemunho, repetido até pelos anglosaxões. Muito difundido os negros, dada a índole fácil das populações, a vida

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em geral se fazia com relativa aproximação de senhores e escravos, e havia para estes mais humanidade. Por isso, o reflexo do mal teve outros tons. Se é possível apontar algumas relativas cruezas nos quadrados de senzalas dependentes dos cafezais, pelo resto do Brasil era uma inocente escravidão rural ou doméstica. Inocente porque, dadas as condições de cultura os escravos, as formas de vida tinham piores efeitos para os próprios senhores, do que para aqueles humanamente tratados. Uma coisa é o efeito de massa de cativos, quase isolados, jungidos ao trabalho da mina, ou nos ergástulos dos latifúndios, outra é a ação de escravos misturados ao viver da família: dezenas de negros e mulatos, no recesso das cozinhas, no segredo das alcovas. (...) Nesse cativeiro, a alma do negro não se sentia intransigentemente amesquinhada; havia relativa expansão, uma qual liberdade, e sombras de felicidade. E porque assim se fez o cativeiro dos pretos, nunca houve, aqui, daquelas sangrentas reações de escravos, com se encontram na história de outras partes da América. Afora casos individuais, contra um ou outro senhor mais desumano, as revoltas se limitavam aos quilombos de negros fugidos, e que não eram caçados a dente de cães de sangue... O próprio desenvolvimento dos Palmares e outros grandes quilombos, mostra que os pretos escravos tinham, no Brasil, possibilidades de que não existiam noutras colônias. Palmares foi uma organização política, e não um reduto de ódios. (Bomfim, 1997: 203-4)

A mesma idéia diretriz que guiou Gilberto Freyre pode ser encontrada nessas palavras. Os senhores, ao mesmo tempo em que são os grandes responsáveis pela redução do negro à escravidão, são os que sofrem mais diretamente as conseqüências da instituição por eles criada. Freyre, Bomfim, Prado Jr. (veremos adiante), e mesmo Sérgio Buarque, traçam esse tipo de “moral das senzalas”, como nos dizeres do autor paulista. Denunciam – falo aqui de Bomfim e Freyre – o cientificismo de seu tempo, o qual pretende reduzir o negro, ou mesmo os latino-americanos, a uma sub-raça da espécie humana. Assim, elevam ao patamar de igualdade, e mesmo de superioridade, a parcela da espécie humana que defendem, não esquecendo de, para isso, rebaixar a categoria tão exaltada dos homens brancos, sejam eles brasileiros ou europeus. Mais uma vez com Bomfim: “É certo que durante dois séculos, de 1660 a 1860, a grande produção do país brasileiro foi pelo trabalho dos negros cativos. Isto só prova que havia, na raça, mais valor do que admitem os partidários do lourismo alongado” (Bomfim, 1997: 204). Nenhum daqueles que pretendiam fazer uma história moderna, baseada em modelos científicos avançados, pelo menos até a produção da escola que se inicia em 1930 (incluindo entre os precursores Capistrano de Abreu), se ocupa em denunciar os malefícios da escravidão enquanto coerção física ou mesmo como degeneração econômica do país. Tratam das degenerações morais da instituição escravista, destacando o papel dos senhores de engenho como corruptores e, como conseqüência, corrompidos. Só mais tarde aparece uma vertente nas ciências humanas, como a encabeçada por Florestan Fernandes e também por Jacob Gorender, que aprofunda a x

visão que temos sobre os males da escravidão e suas conseqüências nefastas para o país. Analisar uma geração de estudiosos por outra é erro crasso. Acreditar que Caio Prado, Sérgio Buarque, Manoel Bomfim, Capistrano de Abreu e, claro, Gilberto Freyre, não tinham uma noção clara das crueldades do regime escravocrata é reduzi-los à insignificância moral, já que nenhum autor que possa prezar seu nome não só denuncia os malefícios desse sistema, mas procura, com seus estudos, direta ou indiretamente, combater suas conseqüências na sociedade como um todo. Não por acaso, Sérgio Buarque foi o primeiro a falar da caça aos índios quando, procurando o Paraiso Terreal ou as minas de Potosí, os bandeirantes acabavam trocando “pedras por peças”. Igualmente, acreditar que Gilberto Freyre fosse o criador do mito da igualdade racial é atribuir a mesma autoria aos seus contemporâneos, sejam os que fizeram valer seus escritos no ocaso da república Velha ou na aurora do varguismo. Ignorar dessa maneira as raízes sociais e políticas que dão as bases para que o mito da igualdade racial seja repetidamente exaltado em nosso cotidiano, é esquecer todo um discurso a nós contemporâneo que legitima a desigualdade, o preconceito, o racismo. Falo, e não poderia ser diferente, de teorias como a da dependência, tal como foi encabeçada por Fernando Henrique Cardoso e José Serra, ou seja, a teoria da dependência que faz apologia da dependência – e da minoria de “cabeças-de-planilha” que enriquecem à custa da dependência do povo. Falo, como não poderia ser diferente, do discurso da globalização, do Consenso de Washington, que quer abarcar em si todas as diferenças, carnavalizá-las. É só lembrar dos albores do Plano Real, quando os pobres deveriam se orgulhar de poder comer frango e comprar dentaduras (será que FHC reencarnou o brizolismo?, boa pergunta para uma tese irreverente, e independente). O povão nunca mais será brizolista, com certeza pensaram os artífices desse novo mito populista. É só lembrar dos negros na televisão brasileira, fieis ao seu papel submisso, ocupando favelas onde as vielas se podem respirar, com casas bem feitas e sempre com “muita alegria” e proporcionando diversão – como palhaços de circo. Do carnaval enquanto fenômeno de massas atual. Do negro festeiro, do negro sexualizado, do negro espontâneo e criativo desde que não levante a voz contra o Estabelecido (é só olhar o movimento sambista atual e toda a sua repercussão midiática, inclusive em programas dominicais). É o discurso que pretende apagar as diferenças a partir da criação de plágios, de artifícios como “colorir” favelas. É a velha política do ópio para o povo, mas a qual a massa de negros e mulatos foi incorporada por necessidades do “mundo globalizado” atual. xi

Não! Não existia a carnavalização do negro na virada da República Velha para o regime varguista. Existia o mesmo discurso neutralizador, científico, que colocava o negro em todos os lugares possíveis, menos o seu de direito. Quando falar em racismo se transformou numa heresia, nos deparamos com o reverso da moeda das teorias evolucionistas do século passado. Falar que os negros ocupam um lugar diferente na sociedade vai contra o “apagar das diferenças” do discurso inerente ao que se chama de globalização. Todos passaram a ser iguais, desde que alguns, pouquíssimos, se transformassem em mais iguais que todos os outros. É a mesma oligarquia que plantou a especulação financeira na República Velha, que enriqueceu até cansar com essa mesma especulação (Rui Barbosa incluído, claro), que lucrava com a exclusão dos negros frente a toda sua retórica em prol da Modernidade. É a mesma oligarquia que dá frango e dentadura para os pobres, em sua esmagadora maioria negros e mulatos, enquanto enriquece com especulações financeiras de altíssimo nível (falo também de Gustavo Franco, claro) e leva o país à bancarrota em meio a todo um palavrório neo-modernista ou neoliberal. É a mesma política de exclusão, a mesma cultura de exclusão, mas com vocabulário e práticas renovadas. É a mesma política que dá o frango para logo após tirar a vida; é a mesma cultura que passa a compreender a raça dentro duma perspectiva científica, integrando-a no discurso ocidental, tornando-a, de algum modo, parte da Civilização. Grande conquista, ontem ou hoje! Caio Prado Jr., de honestidade intelectual imbatível e de lucidez incomparável, assim se expressou também na década de 1930:

Quanto à função desempenhada pela escravidão, ela é, não preciso acrescentá-lo, considerável. Ao tratar da economia da colônia, já vimos que praticamente todo o trabalho é, entre nós, servil. Mas é preciso distinguir nestas funções da escravidão dois setores que têm caracteres e sobretudo conseqüências distintas: o das atividades propriamente produtivas e as do serviço doméstico. Apesar da amplidão e importância econômicas muito maiores do primeiro setor, o último não pode ser esquecido ou subestimado. Não só ele é numericamente volumoso – pois intervém, a par das legítimas necessidades do serviço doméstico, a vaidade dos senhores que se alimenta com números avultados de servos –, como é grande participação que tem na vida social da colônia e na influência que sobre ela exerce. Neste sentido, e excluído o elemento econômico, ele ultrapassa mesmo o papel do outro setor. O contato que o escravo doméstico mantém com seus senhores e com a sociedade branca em geral é muito maior, muito mais íntimo. E é certamente por ele que se canalizou para a vida brasileira a maior parte dos malefícios da escravidão. Do pouco que ela trouxe de favorável, também: a ternura e afetividade da mãe-preta, e os saborosos quitutes da culinária afro-brasileira.

(Prado Jr., 2011:295)

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Caio Prado tinha em vista nessa passagem a obra de Gilberto Freyre (como diz explicitamente na nota correspondente à passagem). A imagem da escravidão familiar, patriarcal, ficara, já naquela época, marcada definitivamente na cultura brasileira. Daí a importância que o autor paulista dá a escravidão familiar, considerando-a inclusive mais degradante dos que a escravidão ocupada exclusivamente com as atividades produtivas. Os castigos físicos aviltantes, a prostituição desbragada (como nas Minas), foram bem mais constantes nesse segundo setor. Mas, segundo Caio Prado, devido à proximidade, ao convívio íntimo entre senhores e escravos, a instituição escravocrata presente nos núcleos familiares passou muito mais de seus males à sociedade como um todo do que no segundo caso. Tese passível de debate, em minha opinião. De um enriquecedor debate, pois ambos se baseiam em pressupostos sólidos. Mas Caio Prado também teima em destacar a superioridade negra apenas nos quesitos culinária e carinhos domésticos (até porque não se aprofundou no tema). Gilberto Freyre, entretanto, procura dignificar o negro, ressaltando a superioridade civilizatória de muitos negros que por aqui aportaram (além dos temas acima destacados), mas ainda está longe de exalar a cultura negra como hoje diversas pesquisas o fazem. Mas Freyre é mestre em caricaturar os brancos, os senhores de engenho. Talvez não tenhamos chegado ainda hoje à fineza psicológica com que desempenhou essa tarefa. Os senhores na rede, mãos femininas, pés infantis... E a coragem que os portugueses sempre acreditaram ser um de seus maiores valores? E os indômitos mamelucos a conquistar os sertões, a dominar do Rio de Janeiro ao Maranhão o Brasil aos franceses? Só molemente Freyre reconhece esses atributos. No mais, parece mesmo que zomba de todos esses “donos do poder”. Não foi por outro motivo que escolhemos os dois capítulos finais de Casa Grande & Senazala para nosso trabalho. São os que falam exclusivamente dos negros que e ri dos brancos. Quanto à suposta “maleabilidade” portuguesa, aos atributos valorosos dos indígenas, sobre tudo isso Freyre discorre, ainda que não com a mesma habilidade com que fez sobre os segundos Manoel Bomfim; ou que logo depois fará sobre os primeiros Sérgio Buarque. É dos negros que Freyre trata, e da mestiçagem que se fará através deles, sendo assim o pioneiro em reconhecer a extensão desse casamento, e denunciar todas as suas atrocidades, ainda que sifilíticas – e lusitanas. O negro depravado de sua sociedade cientificista, evolucionista, passa a não mais existir. Através da “escravidão familiar” denuncia a depravação portuguesa e patriarcal. Falar de chicotes e estupros talvez fosse menos sutil. No doce cotidiano dos engenhos é onde o elemento branco se revela, muito mais do que nas práticas que ainda hoje, no xiii

pensamento mais autoritário, sejam consideradas legítimas ou perdoáveis. Como os presídios hiper-lotados; como nas mortes sumárias e encobertas pelo Estado e pela Mídia; como no castigo físico e moral que toda a população, ainda mais se negra, deve sofrer segundo esses mesmos “cidadãos” de nosso país. Qual o destino dos corruptos? Se possível a guilhotina, a pena de morte. E, ainda mais importante: quem são os corruptos? FHC ainda está a espera do julgamento sobre o que representou sua política nefasta e todos os atos lastimáveis que foram escondidos “brilhantemente” durante seu governo “globalista”, “internacionalista”, “depedentista”. Mas depois trataremos do “Príncipe da Sorbonne” e de seus acólitos midiáticos. Continuemos por enquanto respirando melhores ares. Continuemos com Caio Prado. O que há em tudo isso é que o escravo brasileiro parece ter sido melhor tratado que em algumas outras colônias americanas, em particular nas inglesas e francesas. Terá influído aí a índole portuguesa, sobretudo quando amaciada pelo contato dos trópicos e a geral moleza que caracteriza a vida brasileira. Também o regime patriarcal, de que falarei abaixo, abrandará o contato de senhores e escravos, dando àqueles um quê de paternal e de protetor dos seus servos. (Prado Jr., 2011:294)

A mesma relativização da escravidão no Brasil que faz Bomfim encontramos em Caio Prado. Este, mais cuidadoso, usa a palavra “parece” para dar menos certeza ao fato da escravidão no Brasil ter sido de algum modo mais branda. A mesma visão de Freyre ao tratar do caráter português, em especial do português nos trópicos, para falar da moleza generalizada do regime patriarcal nas casas grandes. Destacando mais um ponto de conexão entre Caio Prado e Gilberto Freyre destacaremos mais uma passagem. Esta, no entanto, também contém os elementos que irão diferenciar absolutamente os dois autores:

A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal de cultura que traz consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. E aponta por isso apenas, muito timidamente, aqui e acolá. Age mais como fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe. (Prado Jr., 2011:289)

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Darcy Ribeiro talvez ficasse arrepiado de indignação ao ouvir expressões como “contribuição passiva” ou a frase que se inicia com “o cabedal de cultura que traz consigo”. Quem dera então se tivéssemos a oportunidade de assistir a uma leitura atenta de trechos como esse por parte de Clóvis Moura, Décio Freitas ou Edison Carneiro. Quanto teve que evoluir a pesquisa em ciências humanas para que o negro não se visse mais, na mais bem intencionada ou bem fundamentada obra, como elemento passivo e corruptor. Como é passivo e corruptor ao mesmo tempo é o que fica difícil de ser explicado. Se corrompe é porque age – é simples assim. Portanto, Freyre é o pioneiro em destacar os elementos positivos da ação do negro na cultura não somente no sentido antropológico, mas na sua acepção mais abrangente da cultura nacional, fazendo com que o negro e sua cultura apareçam como elementos virtuosos frente à decadência da cultura branca e lusitana. Caso tenhamos que criticar Freyre absolutamente como o criador ou o fundador do mito da democracia racial, ou colocar sua obra como referência fundamental para se conhecer esse mito, teremos que ser mais cuidadosos e passarmos a estudar todo um tipo de concepção do negro vigente nos livros que se tornaram clássicos de nossa ciência, e entender com quem Freyre dialogava naquele momento. Colocá-lo como bode expiatório, ou como uma espécie de Carl Smith das ciências sociais brasileiras é tarefa temerária. E o que dizer de Sérgio Buarque de Holanda e sua “moral das senzalas”? São tíbios dois parágrafos nos quais Sérgio Buarque se ocupa ao longo de toda sua obra, hoje clássica, para falar especificamente do problema do negro. Assim finaliza todo seu trabalho reflexivo sobre tão grave problema: Sinuosa até na violência, negadora de virtudes sociais, contemporizadora e narcotizante de qualquer energia realmente produtiva, a “moral das senzalas” veio a imperar na administração, na economia e nas crenças religiosas dos homens do tempo. A própria criação do mundo teria sido entendida por eles como uma espécie de abandono, um languescimento de Deus. (Holanda, 1995:62)

Contudo, todos os autores até agora arrolados são unânimes em um assunto, em uma distinção fundamental: a do negro e a da instituição escravista. A “moral das senzalas” é a moral que degradou o elemento branco a partir do embrutecimento dos negros ao escravizá-los. Essa moral conseqüente de um país firmemente estabelecido sobre base escravista é o que irá contaminar todas as nossas instituições; é por isso que a cultura negra não irá penetrá-las, é nesse sentido que Caio Prado observa; é nesse xv

sentido que Freyre procura dar voz a toda multifacetada contribuição africana para nossa cultura; é nesse sentido em que Freyre se distingue claramente de “cientistas” como Nina Rodrigues, adepto dos dogmas eugênicos do período. A eugenia hoje, contudo, está expressa em contribuições para nossa cultura através de termos reducionistas como “aldeia global”, “mundo globalizado”, “ausência de barreiras físicas ou comerciais”. Como também podemos vê-la presente dentro do aspecto específico desse tipo de ciência, o genocídio, em instituições como o falido projeto da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), da união monetarista da União Européia, e no filhote do Nafta, ou seja, a grande explosão dos cartéis de drogas mexicanos durante a última década. Genocídio, eugenia, enfim...

3.

O debate atual

É de um interesse antropológico digno de um Gilberto Freyre o debate que se travou em nosso país há não muitos anos sobre a questão das cotas raciais. São argumentos tão primários, ora a favor, ora contra, e vindo de personagens tão exóticos de nossa cultura, que só com o espírito de um antropólogo ou de um viajante do século XIX podemos começar a abordar esse problema. Falo especificamente de um debate travado dentro da mídia oficial, mais precisamente entre três de seus baluartes, Miriam Leitão e Reinaldo Azevedo, e que teve como pano de fundo a “nação parda”, de Ali Kamel. Portanto, demos voz às minorias de nosso país para procurarmos compreender suas reivindicações. Reinaldo Azevedo, um jornalista independente principalmente pelo seu estatuto jurídico que o liga a empresa onde trabalha, a revista Veja, não sendo funcionário desta mas pessoa jurídica contratada, se alça à condição de mediador do debate entre Gilberto Freire e Miriam Leitão, dois baluartes do pensamento nacional. É um espectador neutro que expõe suas impressões sobre o debate que parece ter sido, sem nunca ter chegado próximo a ser, de grande mobilização nacional. É um espectador neutro, sem sombra de dúvida, por ser através de seu CNPJ, e não o da revista para a qual trabalha, que recebe os costumeiros processos por calúnia e difamação. Trabalha por sua conta e risco – eis sua independência. Em um texto publicado em 08 de março de 2010, Reinaldo Azevedo escreve uma espécie de carta a Miriam Leitão, lamentando sua atitude que considera militante, ao defender as cotas raciais. Não toca em nenhum momento no nome de Ali Kamel, o xvi

responsável por deslanchar o debate a partir de suas teses de um país pardo e sem quaisquer conflitos raciais. Uma figura que aparece bem no meio do debate, e é agilmente defendida por Azevedo, é a do senador Demóstenes Torres. Miriam Leitão se indigna com a tese do “mosqueteiro da ética”, na qual os responsáveis pela escravidão no Brasil foram os próprios negros. Reinaldo Azevedo corrobora a tese mosqueteira, dizendo que os negros faziam parte da pauta de exportação africana para o Brasil, e que isso simplesmente é um dado histórico, não passível de valorações morais. Portanto, fiquemos com o imoral, porque interpretar a história dignamente pode ofender aos nossos “barões”, ou os “donos do poder”, na expressão de Faoro. Depois de desqualificar a sua interlocutora (a apaixonada militante), e defender um varão de nossa república e sua tese inquestionável (simplesmente um fato histórico), a discussão alça vôo e passa a tentar definir um conceito. É aí que aparece Gilberto Freyre. A economista Leitão fala do genocídio cometido aos africanos durante todo o período da escravidão. Mas para nosso analista político parece que a palavra genocídio não tem sentido universal, já que aplicado somente para determinados períodos considerados de maneira consensual como de selvageria pura e desmedida. É claro que Hitler, e talvez Stálin, sejam um dos pouquíssimos exemplos históricos nos quais aplicamos corretamente o termo “genocídio”. Já o autor que agora escreve estas linhas, pensa que o termo é de cunho universal e atualíssimo. O que são as políticas de austeridade ao estilo FMI se não genocídio? O que é a política da chamada Troika européia se não morte e desmonte de sociedades inteiras? A escravidão, não só pelo trabalho diário degradante, mas ainda pelos degradantes “tumbeiros” ou navios negreiros, não pode ser reconhecida como uma instituição genocida? E os campos de concentração construídos pelas multinacionais IG Farben, Bayer, e demais, não são o ideal delas de trabalho? Toda degradação sistemática, e portanto intencional, de um povo, é genocídio. Mas, vamos ver como o ilustre Reinaldo se apropria de Freyre: Há uma boa possibilidade de que Miriam Leitão não saiba o que é “genocídio”. Até como metáfora ou hipérbole, a palavra é ruim. Por maus motivos do ponto de vista moral, mas atendendo a um sentido econômico, senhora repórter e colunista de economia, fosse a cor de pele sinônimo de raça, a economia colonial não incentivou o genocídio, mas a multiplicação de negros. Era capital. O fato de praticamente a metade dos brasileiros ser mestiça indica a facilidade com que, depois, a miscigenação aconteceu. Quando ela decidir se reunir com Aiatoélio Gasparti para ler Casa Grande & Senzala, vai descobrir, inclusive, que o negro foi o elemento mais, digamos, hígido da formação do povo brasileiro. A tese do genocídio é parente da tese do “estupro original”, e ambas são manifestações da ignorância militante. Miriam Leitão escreve sobre economia. Espera-se dela um aporte racional. O

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que afirma acima tem muito de fígado e nada de cérebro.

(Azevedo,

2010) É de tirar o fôlego, é de arrepiar a perspicácia não tanto intelectual, mas moral, desse expectador impassível da História. E ainda querem insistir em ler Gilberto Freyre a partir de lentes como essas... “A tese do genocídio é parente da tese do ‘estupro original’” – com certeza uma frase como essa é digna da genialidade do melhor dos brasileiros. Simplesmente brilhante! Se atentarmos para o contexto geral onde a frase foi produzida, não nos resta outra reação se não ficarmos estupefatos. A propósito de genocídio ser uma palavra “perigosa”, que não se pode usar com muita freqüência, já nos pronunciamos. À essa constatação segue que a escravidão não gerou o genocídio, mas a multiplicação de negros (que horror!, deve ter pensado o articulista). O problema é que a multiplicação de negros só pode ser entendida no sentido é que mais e mais o tráfico de africanos recrudesceu. Primeiro, no Brasil de Frei Vicente de Salvador e da casa grande e senzalas nordestinas; já no século XVII, a criação das Companhias de Comércio baianas para dar conta da demanda das minas, multiplicando o tráfico de negros; depois com Pombal e novas Companhias, agora inundando o Maranhão de trabalho escravo; vemos posteriormente o Rio de Janeiro dos grandes traficantes autóctones do fim do século XVIII e início do XIX; por fim, quase o paroxismo máximo com a corrida por escravos frente à ameaça da extinção do tráfico. Realmente, devemos concordar com nosso interlocutor, a escravidão multiplicou o número de negros em nosso território. Só que não por eles se casarem, constituírem família, trabalharem e terem uma vida digna. Os negros aqui morriam aos montes e eram rapidamente substituídos por outros, mais novos e mais saudáveis, seguindo a lógica imoral do escravismo. Qualquer cidadão com o mínimo de bom senso conhece ou não tem dificuldade de reconhecer isto. Porém, seus guias, Ali Kamel ou o outro cidadão de origem islâmica, mas fundamentalista, cujo primeiro nome é Aiatoélio, devem ter um bom senso mais acurado do que o mais pedestre senso comum pode reconhecer. Este último, é sempre bom lembrarmos, é o precursor de outra mitologia do mesmo jaez da produzida por Freire, a da “ditabranda”, na sua volumosa obra sobre a ditadura, particularmente no que se refere ao governo do general Geisel. Da reunião de nosso interlocutor com o baluarte acima mencionado, nasceu a tese do negro “hígido”. Genial! Gilberto Freyre nunca teria a capacidade de cunhar termo tão impactante. É bom que Reinaldo Azevedo deixa claro que só sob a xviii

intermediação do “aiatolá” podemos reunir forças suficientes para extrair de Casa Grande & Senzala um posicionamento tão perspicaz sobre o tema. Nenhuma palavra sobre a degradação do negro pelo branco através do instituto da escravidão (quanto a isso, as palavras do articulista sobre a multiplicação da raça negra dizem tudo); sobre a prostituição das índias, do estupro das negras; sobre a proliferação da sífilis por toda a sociedade; sobre os negros obrigados a despir-se de sua indumentária male para vestirse com tangas e carregar “tigre”, o excremento dos senhores. Não, o negro é simplesmente “hígido”. Que belo! Aqui, sem sombra de dúvida, podemos ver o mito da democracia racial em toda sua pujança. Miriam Leitão é muito boa defensora, apesar de seu parco saber militante para apoiar sua própria militância, do direito dos negros e, mais importante, dos malefícios de não se terem procurado desde a época de Nabuco acabar com as conseqüências sociais da escravidão. São frases e idéias belíssimas se lidas fora de contexto:

Melhorar a educação pública sempre será fundamental para construir o país futuro, mas isso não conflita com outras políticas desenhadas diretamente para derrubar as barreiras artificiais e dissimuladas que impedem a ascensão de pretos e pardos. O vestibular não mede a real capacidade do aluno de estar numa universidade, mas, sim, quem aprendeu melhor os truques dos cursinhos. Há muito a fazer pelo muito não feito neste longo tempo em que se esperou que, deixando tudo como está, tudo se resolveria. Ajudaria se intelectuais, ou não, quisessem avaliar as políticas de ação afirmativa, em vez de ter medo delas. O racismo brasileiro é ardiloso e dissimulado. A luta contra ele será longa e difícil. Será mais eficiente se unir brancos e negros. Será mais rápida se o país não acreditar nas falsas ameaças de que tocar no assunto nos trará o inferno da divisão por raças. Ora, a divisão já existe; sempre existiu. O que precisa ser construído são os caminhos do reencontro. (Leitão, 2008)

Voltemos mais abaixo ao tema da educação. Mas não podemos, por hora, deixar de contrapor essas belas palavras a outras não menos belas, dessa vez sobre nosso ilustre “bacharelismo”: É freqüente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facilidade com que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que tais doutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagem vistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. A contradição que porventura possa existir entre elas parece-lhes tão pouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sinceramente quando não achássemos legítima sua capacidade de aceitá-las com o mesmo entusiasmo. Não há, talvez, nenhum exagero em dizer-se que quase todos os nossos homens de grande talento são um pouco dessa espécie. (Holanda,

1995:155) xix

Aqui existe uma diferença sutil. Quase todos os nossos grandes talentos têm um pouco esse caráter ou disposição. Vejamos bem, não podemos considerar a economista como integrante desse rol simplesmente ao considerarmos o que acredita como correto para a nação de um modo geral. Sua pregação insistente sobre o livre-mercado, sua militância contra empresas públicas como a Petrobras – e sendo a favor das privatizações – não a credenciam para falar, sob qualquer ângulo, sobre educação ou inclusão social. Essa notória mentalidade “cabeça-de-planilha”, na feliz expressão do jornalista Luis Nassif, perde-se ao analisar gráficos e tabelas, enquanto a especulação financeira graceja e o país tomba irremediavelmente. Na verdade, todo o palavrório algébrico-aritmético serve apenas para legitimar o assalto ao país, especular com a moeda ou vender as grandes empresas nacionais na “bacia das almas” – tudo isso no afã de manter viva artificialmente nossa economia. Viva o Plano Real! A igualdade de condições proclamada por todos esses súditos da oligarquia financeira internacional não é nada mais do que a igualdade que faz alguns mais iguais do que os outros. Não interessa, aqui, se Miriam Leitão tem certos escrúpulos ou de boa fé defende as políticas chamadas afirmativas. Nunca a educação será boa e inclusiva se nas mãos dos barões dos grandes sistemas de ensino privados; nunca teremos capacidade técnica e extensa formação teórica por parte de nossos cidadãos se continuarmos pagando bilhões e mais bilhões anualmente de serviço da dívida pública; nunca seremos uma nação verdadeiramente integrada se não tivermos maciços investimentos públicos, grandes planos nacionais de desenvolvimento, para fomentar, aí sim, a iniciativa privada. Nunca seremos qualquer nação enquanto não tivermos uma política econômica voltada ao crédito, e não refém do sistema monetarista vigente. Crédito não só para consumir eletrodomésticos ou carros, mas crédito para dar um grande salto na infra-estrutura de nosso país, no desenvolvimento científico e tecnológico – para assim chegarmos à “harmonia dos interesses”, como bem definiu Henry Carey, um dos inspiradores de Bismarck durante o surto de desenvolvimento industrial alemão. Tributário do alemão Friedrich List, Carey andou junto a Lincoln nos grandes projetos de desenvolvimento econômico norte-americanos durante o século XIX. Harmonia de interesses, porque através de um sistema de crédito e de grandes projetos desenvolvimentistas, todos e cada um da nação podem ter a oportunidade de se posicionarem dentro do tecido social de acordo com suas características e capacidades. Um banco nacional, não rendido a interesses rentistas estrangeiros, e uma xx

suficientemente poderosa visão política, visão de futuro, planificadora, intervencionista (por que não?): nada disso, ou próximo, ou similar, encontraremos nas palavras de Reinaldo Azevedo, Ali Kamel, Elio Gaspari, Miriam Leitão, ou o que mais seja. Furtado, Caio Prado, Rui Mauro Marini? Esconjuro! Talvez prefiram, como sempre, o Golpe... Voltemos ao debate com os porta-vozes do tipo de monetarismo, de capital fictício, rentista-financeiro, que vêm destruindo a economia norte-americana pelo menos desde a década de 1970, e procura espalhar o pânico social e a recessão aos até então considerados países de primeiro mundo. Ali Kamel está por detrás de todo o debate entre nossa micro-elite, a suposta “ilha de letrados” (na expressão de José Murilo de Carvalho) em meio a um mar de analfabetos. Um dos elementos mais destacados das minorias que compõe nosso país, Ali Kamel, também codinome de um ator pornô da década de 80, desenvolve a idéia de uma espécie de “nação parda” para dar conta de sua afirmativa algo pornográfica na qual diz que “não somos racistas”. Vamos ver como expõe seus argumentos de primeira importância para o futuro nacional: Há toda uma gama de historiadores sérios, dedicados e igualmente bem-intencionados, que estudam a escravidão e se deparam com esta mesma constatação: nossa riqueza é esta, a tolerância. Nada escamoteiam: bem documentados, mostram os horrores da escravidão, mas atestam que, não a cor, mas a condição econômica é que explica a manutenção de um indivíduo na pobreza. Não negam o racismo, porque sabem que onde quer que haja homens haverá todos os vícios que se podem supor. Mas, com números, argumentam que a inexistência da intolerância racial tem raízes na nossa História. A verdade é que a escravidão não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande a mobilidade social dos escravos. Tão grande que, na região de Campos, na virada para o século XIX, um terço da classe senhorial era de “pessoas de cor”, segundo censos da época. Isso se repetia em Minas e na Bahia. Ou seja, uma vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais entre os brancos: bastava dinheiro. Hoje, se a maior parte dos pobres é de negros, isso não se deve à cor da pele. Não existe isso, no Brasil: “É negro, deixa na pobreza.” Nos últimos cem anos, nosso modelo foi concentrador de renda: quem era pobre boas chances teve de continuar pobre. Há menos de uma década o país tem enfrentado esse desafio. Com uma melhor distribuição de renda, a condição do negro vai melhorar acentuadamente. Porque, aqui, cor não é uma questão. (Kamel, 2003)

À primeira vista, já podemos entrever a afirmativa diligentemente velada: assim que puderem ter alguma oportunidade, os negros também tornar-se-ão senhores e escravocratas. Para melhor velar a afirmativa de que o pobre assim que se faz rico adquire os mesmos vícios dos senhores, não chega ao cúmulo de destacar os traficantes de escravos negros, ou a escravidão nas sociedades africanas, como o fez o lídimo xxi

senador Demóstenes. Aqui a cor não é uma questão porque o negro pode se tornar viciado quanto o mais lídimo senhor branco – basta dar-lhe oportunidade. Não se aprofunda na questão sobre como os negros que escravizavam viviam, sua terra natal ou os dilemas que enfrentava em terras outras, pois talvez isto soasse racista ou poderia dar a aparência de uma cruzada contra a raça negra. Simples insinuações já são o suficiente, e assim se monta um argumento. O problema todo para ele é o dinheiro e só o dinheiro (os números que, segundo ele, provam o improvável). Não espanta que sua prosa seja tão árida, tão difícil de ser lida em alguns momentos apesar da falta de profundidade contumaz: afora o preconceito, acha que, como um legítimo “cabeça-de-planilha” tudo pode resolver por numerologia – e tudo encobrir e ocultar. Tudo bem, senhor Kamel. Se a questão toda se resume numa suposta melhor distribuição de renda, que a sociedade a qual você defende possa fazer jus a esse princípio. Não consta que as políticas econômicas que defende, fora toda a ufanização que se cria ainda hoje sobre o Plano Real, tenha trazido o resultado pretendido em qualquer época ou em qualquer lugar do mundo. Não aponta isso agora a crise que Europa e EUA vivem. Não aponta para isso as políticas neoliberais em qualquer país da América Latina. A Rússia, na década de 1990, desabou sob esse tipo de reforma, transformando-se numa Meca para os banqueiros inescrupulosos e os traficantes internacionais de todos os produtos. Como se entre banqueiros e traficantes houvesse alguma diferença; como se houvesse qualquer diferença entre a política que prega o diretor de jornalismo da rede Globo e a moeda ancorada nos juros mais altos da história mundial, que acabou com a inflação reduzindo o poder de compra do trabalhador, criando um monstruoso desemprego e elevando a dívida externa e pública nacionais a patamares nunca antes vistos. Haja igualdade! O que dá dinheiro para Ali Kamel, e para Miriam Leitão, Reinaldo Azevedo e tantos outros, é essa utopia de igualdade que acirra ainda mais as desigualdades sociais. É o mesmo argumento neutralizador dos cientistas do fim do oitocentos e inícios do novecentos. É a eugenia que procurava abarcar todas as raças, colocando todas num determinado patamar de igualdade através de argumentos pseudocientíficos, caso não fosse certas características pontuais. O negro não poderia se destacar em qualquer área por não ter o cérebro suficientemente desenvolvido ou por simplesmente pertencer a uma raça inferior, de baixo grau de desenvolvimento civilizacional. Havia exceções não explicáveis e que admiravam ou intrigavam os cientistas. Agora as exceções continuam a existir e só não se transformam em regra por um simples detalhe: não mais o cérebro xxii

não evoluído, mas a conta bancária minguada, a incapacidade talvez congênita de não ganhar dinheiro. Sua utopia de distribuição de renda não se afirma, pois no sistema que defende os negros irão continuar congenitamente incapazes e, caso transformados em senhores, com certeza tão corruptos quanto todos esses irão continuar a ser. É o discurso não mais simplesmente eugênico, mas “globalizante”, integrador, politicamente correto, igualmente pseudocientífico, mas que sabe que nunca todos aqueles que são considerados inferiores irão poder ombrear com os da Casa Grande, e caso os igualarem nunca os irão superar. Padeceram dos mesmos vícios. Não possui a mesma franqueza dos cientistas proto-nazistas, mas com sua retórica defende o desmantelamento de toda a estrutura social em prol de uma minoria de iluminados, geralmente de cunho estrangeiro e alourado. Fica, por fim um último dizer de um dos nossos maiores representantes do mito da democracia racial, e toda sua fala doce e açucarada, como a dos senhores nos velhos engenhos:

Não, Leílson [negro bem sucedido profissionalmente] ganhou todas as vagas que disputou porque nós, brasileiros, conseguimos construir um país que, apesar de muitos defeitos, tem uma grande qualidade: a inexistência de ódio racial. Isso não é sorte. É o fruto da construção de gerações que experimentaram sempre a tolerância. Perder isso, agora, não será azar. Será o resultado de boas intenções que não conseguem ver a riqueza que temos. (Kamel, 2003)

Algum eco de Gilberto Freyre? Onde?

Referências bibliográficas

Livros BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global Editora, 2006. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ROMERO, José Luis. El pensamiento político de la derecha latinoamericana. Buenos Aires: Paidós, 1970.

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Artigos AZEVEDO, Reinaldo. Assim não, Miriam Leitão! http://veja.abril.com.br/, 08/03/2010. KAMEL, Ali. O racismo e os números. Jornal O Globo, 12/12/2003. LEITÃO, Miriam. 25/05/2008 Ora, direis. Jornal O Globo, 25/05/2008. WERTZ, William. Obama Saudi-connection: the Obama – Al-Qaeda alliance. http://larouchepac.com/, 04/05/2013.

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