«Uma Retórica do Silêncio. Túa Blesa, Logofagias. Los trazos del silencio», Estudios Portugueses. Revista de Filología Portuguesa, nº4, Salamanca, Caja Duero, 2005, pp. 246-258. [1ª ed. da resenha publicada na revista ‘on line’ Ciberkiosk. Livros, artes, espectáculos, sociedade, 2000, n.p.].

May 25, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Deconstruction, Poetics, Teoría poética
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UMA RETÓRICA DO SILÊNCIO [Resenha do livro de Túa Blesa, Logofagias. Los trazos del silencio] PEDRO SERRA

UM

Silence can be a plan rigorously executed The blueprint to a life It is a presence It has a history a form Do not confuse it with any kind of absence

Adrienne Rich (1)

Logofagias, de Túa Blesa, é um livro seminal. Trata-se, como nos diz o próprio autor, professor da Universidade de Zaragoza (2), de um tratado de “retórica”, ou mais concretamente, de uma ampliação do repertório de figurae da elocutio da retórica “clássica”. É neste quadro que devemos entender a extensa reflexão sobre a “logofagia” que propõe: ela é, na verdade, a “arqui-figura” tratada no livro. Arqui-figura e figuras são, pois, a parte destacável do estudo de Túa Blesa que, ainda assim, não se esgota na “teoria” delas (3). O ensaio, sub-titulado Los trazos del silencio, é um bom exemplo da notável saúde que, no âmbito universitário do Estado espanhol, gozam os estudos de retórica. Este facto, como sabemos, não é de hoje; lembremos as propostas de Antonio García Berrio, Ángel López García, J. M. Pozuelo Yvancos, Tomás Albaladejo, Francisco Chico Rico, entre outros (4), desde os idos de 80.

Acaba de ser publicado Téchne Rhetoriké. Reflexiones actuales sobre la tradición retórica, conjunto de ensaios reunidos por Isabel Paraíso, como corolário das “Terceras Jornadas de Teoría de la Literatura” que tiveram lugar em Março de 1997 na Universidade de Valladolid. Diz-nos a editora-prefaciadora, a propósito do lugar actual da retórica: “Por sorte, nos nossos dias [a Retórica] conhece um vigoroso renascimento, na obra conjunta de teóricos da literatura, filólogos clássicos e filósofos. E nalguma Universidade volta a re-implantar-se o seu ensino” (5). São certamente muitas e complexas as razões que assistem a declarada implicação das Universidades nesta promoção: o empenhamento institucional, com a organização de congressos, a promoção de programas de investigação e constituição de equipas de investigadores de diferentes universidades, é francamente notável. Sobre a actualidade da retórica remeto para um recente ensaio de referência da responsabilidade de António López Eire, professor da Universidade de Salamanca (6).

Figurae retoricae (7) Segundo Túa Blesa, a “logofagia” é a “arqui-figura” do “silêncio”. Isto é, marca, vestígio ou traço “textual” da experiência poética do “silêncio”. O poeta-logofaga é aquele que não renunciou, literalmente, à “palavra”: em vez de “estar calado”, opta por “dizer”. Por outras palavras – e se bem entendo Túa Blesa – opta por “ser poeta”. Com a ressalva de que escolhe uma “[escrita] em que a renúncia ficou incorporada mediante alguma das figuras da logofagia” (8). Assim, o “logofaga”, “sem refúgio para onde fugir, não renuncia a continuar a sua tarefa” (9). Ora, passo em revista, antes de mais, os factos da “logofagia” em modo de síntese. No ponto DOIS coloco algumas questões a propósito do conceito de “silêncio”. As figurae retoricae tratadas por Túa Blesa são, fundamentalmente, seis: ÓSTRACON (10), ÁPSIDE (11), ADNOTATIO (12), BABEL

(13), HÁPAX (14) e CRIPTOGRAMA (15). Cada uma delas, por seu turno, pode revestir subformas: todas, como já disse, são compartimentações da extensa figura da “logofagia”. Por óstracon entende Túa Blesa a “Forma literária que se constrói já como pura ruína, feita de restos, sem nenhuma aspiração de completude. Contudo, num gesto paradoxal, tais textos estão ‘completos’, daí o termo óstracon, pois uma consulta a um dicionário informa que a voz grega ὄστρακον pode ser traduzida tanto por ‘vasilha de barro’ como por ‘pedaço de vasilha quebrada’. O texto óstracon será o resultado da figura retórica do mesmo nome pela qual a totalidade se torna presente em ausência” (16). O óstracon é, pois, a figura do “fragmento”. O textocomo-fragmento opõe-se, num primeiro momento, (i) à “unicidade” do texto; num segundo momento, (ii) é o vestígio da “totalidade” desse texto. Túa Blesa faz, ainda a propósito desta figura, algumas precisões: (iii) o óstracon é uma figura da “escrita”, alheia ao “universo da oralidade” (17); (iv) e, por último, apresenta diferentes “variedades”: (a) a fenestratio, i.e., a utilização de sinais – diría – paleográficos que marcam o lugar de uma ou várias letras – por exemplo o “ponto” ou a “crux philologica” (18), reconhecendo muito embora que a lista que apresenta é “provisória” (19); (b) a lexicalização, i.e., a actualização do óstracon na aposição a um texto de vocábulos como “fragmento” (20), “continuará” ou “incompleto” (21); (c) o leucós ou “branco” na folha, podendo sinais de pontuação como [os dois pontos] ou [a vírgula] em final de verso ser signos do “texto-leucós” (22); (d) por último, o risco (23), marca gráfica que indicia um gesto de auto-censura, que pode afectar segmentos textuais de diferente extensão (24), que é vestígio da “mão” e do “corpo” do poeta (25), e que se perfila ainda como uma “espacialização” do continuum temporal literário (26). Outra figura da logofagia é a ápside. O termo, como esclarece (27), provém da astronomia e refere os dois pontos mais afastados e equidistantes da órbita de um astro. Esta figura aplica-se, então, aos textos que são assumidos como “variantes”. Esclarece Túa Blesa: “Os

textos ápside não podem escapar da órbita que os traça, não podem acabar na excentricidade, mas, por todo o sistema se encontrar em deslocamento permanentemente, uma das variantes, um dos textos ápside jamais poderá voltar a passar pelo mesmo ponto ápside que já traçou no seu percurso” (28). O poema-variante é “texto-ápside” porque mantém com o poema-origem ou outro(s) poema(s)-variante(s) uma relação de “simetria”/”assimetria” (29). Isto significa, por lógica, que o próprio poema-origem não seja considerado o ponto fixo das suas variantes: pelo contrário, ele próprio tem o estatuto de “texto-ápside”. Por outras palavras, o “texto-ápside” é precisamente aquele texto não instalado numa lógica “hierárquica”: é este o sentido do paradoxo – a aludida “simetria”/”assimetria” – que define a relação que estabelece com o(s) texto(s)-ápside da constelação a que pertence. Proporciona, ainda, outras achegas: (i) entre si, um “texto-ápside” [A] devém um “texto-ápside” [B], pelo que o conceito de “metamorfose” se torna relevante (30); (ii) por outro lado, podemos ter a figura do “texto-ápside” por tradução (31); (iii) a figura do “texto-ápside” suspende a noção de “stemma” (32); (iv) uma constelação de “textosápside” pode ser constituída por dois ou mais “textos-ápside” (33); (v) ainda, podemos ter dois textos que, entre si, sejam “textos-ápside” e não contenham nenhum elemento comum, obedecendo antes a uma “variabilidade absoluta” (34). Outra das figuras apontadas por Túa Blesa é a da adnotatio. Em primeiro lugar, preocupa-se em distinguir a “adnotatio” da notação paratextual “clássica” – tal seria o caso das notas filológicas: “As notas dos textos anotados de que se fala aqui não são, contudo, as mencionadas. Não são notas extra-textuais, nem sequer, na verdade, podem considerar-se como fazendo parte do paratexto; pelo contrário, formam, desde o lugar do paratexto, parte do texto” (35). Na verdade, para termos a figura retórica “adnotatio”, são necessárias duas condições: (i) as notas devem acompanhar o texto desde a editio princeps; (ii) as notas devem ser da responsabilidade do “autor” (36). Ainda a propósito desta figura, acrescenta: (iii) a “adnotatio” está

intimamente ligada à “paródia”, já que as notas do “texto-adnotatio” emulam com fins paródicos o aparato crítico de um texto clássico (37). Babel é a seguinte figura da logofagia tratada por Túa Blesa, sendo definida nos seguintes termos: “Figura da logofagia pela qual se renuncia à língua materna e/ou à da comunidade a que o texto vai dirigido num primeiro momento, em benefício de outra ou outras línguas. A renúncia pode alcançar todo o texto ou apenas algumas das suas palavras” (38). Trata-se, pois, da incorporação no texto de duas ou mais línguas, contrariando-se, deste modo, a “virtude da puritas” (39) do uso exclusivo de uma só língua. Mais ainda: (i) consideraremos “texto-babel” aquele em que temos segmentos – que podem ser “citações” (40) – noutra(s) língua(s) e de extensão variável, podendo chegar a estar integralmente escritos numa língua-outra (41); (ii) a figura do “texto-babel” passa pela (limitada) competência linguística do seu destinatário, para quem a língua-outra é “ruído”, afectando o próprio destinatário no seu estatuto, paradoxalmente “leitor-não-leitor” (42). Segue-se, por seu turno, o hápax figura da logofagia que consiste na invenção de palavras num poema. Com esta figura “já não tem sentido interrogarmo-nos sobre como as palavras remetem para as coisas, o discurso ao mundo; pelo contrário, o hápax não remete para nenhuma outra instância, pois é o lugar de todas as instâncias, palavra e coisa, estranha aglomeração do signo de uma fala sem língua” (43). O “hápax” (i) admite gradações e, sobretudo, (ii) mais do que situado nas margens da Literatura, mais do que “excepção” ou “apêndice”, revela o próprio centro do literário: “[proclama] um ponto de partida que anuncia que a linguagem não nos conduz a nenhum lugar” (44). Por último, temos a figura retórica do criptograma. Trata-se da “Figura da logofagia pela qual se utilizam tanto signos convencionais, usados com diferente valor daquele que foi convencionado, como inventados, substituindo letras, sílabas ou palavras” (45). Note-se, pois, que o criptograma ou o “texto-criptograma” podem oscilar entre a re-

semantização de signos convencionais – o sentido jogar-se-á, pois, na desautomatização da convenção – e a fabricação autista de signos privados – isto é, que se suspendem como signos num sistema de signos. Acrescenta ainda Túa Blesa que (i) se trata de uma figura da logofagia que afecta a “escrita” (46); e que (ii) haverá que distinguir dois casos fundamentais de criptografia: (a) quando o “texto-criptograma” proporciona a chave de leitura; (b) ou quando o “texto-criptograma” se mantém indefinidamente “críptico” (47). Sistematizando, teremos: [1.] Logofagia [1.1.] Óstracon [1.1.1.] Fenestratio [1.1.2.] Lexicalização [1.1.3.] Leucós [1.1.4.] Risco [1.2.] Ápside [1.3.] Adnotatio [1.4.] Babel [1.5.] Hápax [1.6.] Criptograma Gostaria, ainda, de chamar a atenção para os seguintes aspectos, que podemos subtrair da “teoria” da logofagia levada a cabo por Túa Blesa: (i) cada uma destas figuras fundamenta um tipo de poema/texto: explicitamente, o “óstracon” refere tanto um “recurso retórico” como um “texto” (48); o “hápax” pode limitar-se a uma palavra ou ser um “textohápax”, aquele em que “a logofagia mostra toda a sua voracidade” (49); (ii) no caso da figura “ápside”, embora o não refira, creio que Túa Blesa aceitaria a reversibilidade do esquema mínimo apresentado: dizer que um texto [A] devém um texto [B], uma vez que nenhum deles é origem, é o mesmo que dizer que o texto [B] devém o texto [A]; (iii) o “textoápside” obedece a uma lógica inflacionista da unidade textual que,

multiplicada, paradoxalmente se re-investe numa “unidad que es (com)unidad” (50); (iv) a “adnotatio” é um “ponto de fuga” (51) pelo qual, uma vez mais, o texto se multiplica, podendo chegar a ser/conter um “texto-variante”, activando a figura do “texto-ápside” (52); assim, (v) pode dar-se o cruzamento de algumas destas figuras, o que significa que, em alguns casos, somos confrontados com uma indecidibilidade, não tanto “textual” – também pode acontecer – mas “categorial”; (vi) por último, o “texto-babel”, que é, do meu ponto de vista, sobretudo uma figura da leitura e do leitor, actualiza o topos da “página em branco” em “página negra” (53).

Uma retórica pós-estruturalista Como podemos constatar, o livro de Túa Blesa é muito mais do que uma ampliação da retórica clássica. É verdade que podemos reconhecer as figuras que a obra nos propõe à luz de determinados elementos da elocutio, porque é ao nível desta parte artis que Túa Blesa situa Logofagias (54). Assim, (i) estamos perante figuras que decorrem das operações lógicas (55) detractio – é o caso de [1.1.3.] -, adiectio – é o caso de [1.2.] e [1.3.] -, inmutatio – [1.1.1.], [1.4.], [1.5.] e [1.6.]. No caso de [1.1.2.], faz-se equivaler a detractio e a adiectio; (ii) por outro lado, trata-se fundamentalmente figuras de dicção, implicando quer o código grafemático – os casos mais evidentes são [1.1.3.], [1.1.4.] e [1.6.] – mas também o código verbal – [1.1.2.], [1.2.], [1.3.], [1.4.] e [1.5.]. Contudo, ao contrário do que é frequente nas diferentes sistematizações neorretóricas – nos finais da década de 50, como sabemos, foi encetado um verdadeiro “renascimento” do estudo da retórica (56) -, (iii) Túa Blesa não reordena o corpus tradicional de figuras, antes opta pela nomeação de figuras novas; (iv) mais ainda, se a neorretórica tem vindo a rever a elocutio clássica a partir da Linguística,

Túa Blesa fá-lo, fundamentalmente, a partir de alguns tópicos desconstrucionistas. Veja-se, neste sentido. No capítulo dedicado aos “metaplasmas” (57), o Grupo m trata a operação metaplástica – aquela que altera o contínuo fónico ou gráfico da expressão -, identificando alguns fenómenos metagráficos. Ora, depois de estabelecer uma tipologia de operações metagráficas, nomeadamente a “supressão”, a “adição”, a “supressão-adição” e a “permuta”, refere um quinto conjunto de “casos particulares” (58). Neste último, a páginas tantas, diz-se: “It is also possible to conceive of addition by nongraphemic signs, as in Hotel*** or Croe$u$, but we are leaving the linguistic field proper. These are other elements coming into play: support and other diverse semiological substances” (59). Pois bem, figuras da “logofagia” como [1.1.3.], [1.1.4.] e [1.6.] abandonam precisamente o âmbito linguístico. Digamos que a de Túa Blesa é uma tentativa de retórica pós-estruturalista. Esta incorporação de formulações pós-estruturalistas aos estudos de retórica perfila-se, mesmo, como uma opção programática. Digo-o tendo presente as reflexões de Antonio García Berrio contidas em “Retórica e comunicación literaria”, texto incluído em Téchne Rhetoriké. Reflexiones actuales sobre la tradición retórica, a que já fiz referência. Vale a pena sumariar as ideias aí contidas. Depois de sublinhar a actualidade da Retórica como “metodologia de trabalho técnico insuspeitadamente clarificadora” (60), e de reclamar a “conversão da Retórica em ciência e metodologia directiva na ordenação social das disciplinas do discurso” (61) ou, dito de outro modo, “como paradigma central das várias disciplinas sobre a comunicação e o discurso” (62), García Berrio aponta alguns perigos de um programa semelhante: (i) “que a recuperação do pensamento histórico sobre a mesma [Retórica] não se reduza e extravie em operações de puro narcisismo monumentalista” (63); (ii) “[que] não degenere num pan-retoricismo” (64); (iii) no âmbito específico da didáctica, argumenta que a “tradição normativa e didáctica da Retórica, que em países como Espanha conheceu um colapso quase total pelo

menos ao longo do século que está prestes a terminar, necessita nalguns casos de modernizar a suas inércias de inactualidade pedagógica nos programas mais tradicionais” (65). A inactualidade dos programas tradicionais, deduzimos ainda das palavras de García Berrio, reside, por um lado, na excessiva confiança no valor interpretativo da Retórica e, por outro, na sua desmesurada normatização. Creio que devemos entender que García Berrio aponte estes perigos à luz da sua proposta de emancipação da Retórica da apropriação “formalista” dela. O carácter “fechado” das “poéticas formalistas” – remete para o Grupo µ, Todorov, Genette e outros -, que lê ainda como cedência à “universalização” de comportamentos literários (66), colide com o seu programa de des-poetização da Retórica. Pois bem. Depois destas considerações, a modo de conclusão, García Berrio faz a seguinte reflexão sobre Paul de Man, que, apesar de extensa, transcrevo na sua totalidade: “Gostaria de chamar especialmente a atenção para o extraordinário interesse e a oportunidade literária que alcança a articulação crítica das categorias e esquemas figurais na análise des-construtiva, com propósitos paradoxais só muito superficialmente aporéticos, que Paul De Man propugnara como modelo de 'leitura alegórica' a partir do seu livro Alegorias da Leitura. Em minha opinião, poucas iniciativas de base retórica resultam tão construtivamente ricas como esta de Paul De Man para a analítica universalista literária; isto é, a que contempla a perspectiva de una tipologia 'fechada' de formas de argumentação poética. Claro que o ênfase conjuntural da eloquente propaganda apocalíptico-desconstrutiva com que se promoveu o astuto patriarca da crítica pós-moderna na América, perturba a percepção da viabilidade das suas categorias e deduções analíticas figurais” (67). García Berrio propõe, pois, um De Man expurgado do De Man retoriqueur! Ou, o que é o mesmo, García Berrio convida a que se “reconstru[a] a desconstrução”: “o modelo de análise figural alegórico de Paul De Man sugeriu-me – e creio que em linhas gerais o permitirá a quem quer que seja – a pauta invertida para uma analítica universalista

dos tipos esquemáticos da argumentação poética. A fórmula de câmbio, como acabo de dizer, consiste em converter a descrença des-construtiva em fé retórica; ou, o que é o mesmo, em reabilitar o poder simbólicoexpressivo dos esquemas figurais, entendendo-os como meio discursivo e não como fim – como o faz De Man – talvez no fundo por causa do seu domínio apenas superficial da Retórica de figuras” (68). Não creio que seja possível reconverter Paul De Man, nos termos em que quer García Berrio, sem que deixe de ser Paul de Man. Se bem entendo o ilustre professor da Universidade Complutense, quando recrimina ao autor de Allegories of Reading o tomar os “esquemas figurais” como “fim”, o que não aceita nele é condição sine qua non em De Man: a intrínseca retoricidade da linguagem. Por outro lado, não deixa de desconcertar que García Berrio, num primeiro momento, pretenda resgatar a Retórica da sua poetização formalista por ter tido esta pretensões “universalistas” e, num segundo momento, se queira servir do modelo demaniano “invertido” como fundamento de uma “analítica universalista dos tipos esquemáticos da argumentação poética”. Separa De Man e García Berrio uma questão de fé, ou, se quisermos, separa-os a distância que medeia entre um homo rhetoricus e um homo seriosus (69). O desconstruccionismo de De Man não se encontra no horizonte de Logofagias. A figura tutelar do estudo de Túa Blesa é, antes, Derrida. Neste sentido, não deixa de surpreender que o autor se (auto-) inscreva na tradição genética do Grupo µ (70) quando, na prática, subordina a sua retórica a certas reflexões do autor de De la gramatologie sobre a linguagem, que como sabemos, na sua crítica à “metafísica da presença”, se demarcou do estruturalismo. Em modo de síntese, podemos constatar que são sobretudo os seguintes os topoi derridianos que reverberam no ensaio de Túa Blesa: (i) o texto-”ápside”, como multiplicação deshierarquizante, obedece a uma lógica de disseminação; (ii) ao tratar o “hápax” o autor faz equivaler esta figura ao conceito derridiano de signature; (iii) a ideia da “logofagia” como superação do

“fonocentrismo” e do “logocentrismo”; (iv) a ideia da “logofagia” como transgressão à “Literatura-como-Lei”.

DOIS No, no souls, or bodies, or birth, or life, or death, you've got to go on without any of that junk, that's all dead with words, with excess of words, they can say nothing else, they say there is nothing else, but they won't say it eternally, they'll find some other nonsense, no matter what, and I'll be able to go on, no, I'll be able to stop, or start, another guzzle of lies but piping hot, it will last my time, it will be my time and place, my voice and silence, a voice of silence, the voice of my silence

Samuel Beckett (71)

“Silêncio” e fonocentrismo Apesar de Túa Blesa pospor, para um futuro desenvolvimento da sua teoria da “logofagia”, o tratamento da inventio, devo dizer que ela não deixa de estar presente ao longo de todo o livro. O “silêncio” é, do meu ponto de vista, o topos semântico que se projecta sobre – e determina – toda a elocutio tratada na obra (72). Vejamos. O sentido com que é investido o significante “silêncio” é absolutamente fundamental para entender o alcance da retórica que nos é proposta. Túa Blesa, é verdade, não isola uma qualquer tentativa de definição sistemática do termo. Contudo, como disse, podemos discernir sentido(s). Penso que são dois os que confere à palavra: (i) um sentido a que chamarei ético; (ii) e um sentido que direi, com alguma liberdade, gnosiológico. Argumentarei, ainda, que são complementares. O “silêncio” revela um conteúdo ético na medida em que, ao ser assumido, é uma valentia de poetas. O poeta – outro conceito que é importante ir esclarecendo – é aquele que opta pela palavra renunciando ao mutismo literal. Ao longo de Logofagias o poeta e a poesis vão sendo

definidos em função de, por um lado, (i) uma compulsão à fuga – da própria “palavra” – e, por outro, de (ii) um retorno ao ponto de partida – a própria “palavra” -, num gesto de valentia: é uma “não renúncia”, é a assumpção de habitar um lugar que, se não é “refúgio”, é desamparo. Se digo que a opção pela poesia faz dos poetas valentes é porque, trazendo para dentro dela a suspensão dela, os poetas garantizam que a poesia continue a sê-lo. A seguinte alegoria que Túa Blesa nos propõe – com ecos de caverna conhecida – diz-nos isto muito bem: “Iniciados no silêncio, [os poetas] regressaram da cripta das sombras com um halo mistérico na sua escrita, agora legível e ilegível. Por terem levado, estes poetas, o risco à sua escrita, cada uma destas páginas é escrita como uma homenagem” (73). Como também podemos constatar, a valentia é tal coisa porque a palavra não diz o mundo. Neste sentido, o “silêncio” tem, pois, este outro sentido gnosiológico: quer significar a ausência do mundo, quer significar o impoder de a palavra representar o mundo. Dito de outro modo, o sentido do termo “silêncio” joga-se entre uma acepção literal – o “silêncio” é sinónimo do sintagma “não dizer” – e uma acepção figurativa bifronte: (i) refere o mundo não verbalizado (ii) e a infinita disjunção entre a palavra e mundo. Contudo, estas acepções devem ser complexificadas. Porque há que esclarecer, do meu ponto de vista, o que devemos entender por, segundo Blesa, ter sido o “silêncio” inscrito no poema. Quando se afirma que “o silêncio foi integrado no poema” revelamos investir “poema” com um sentido verbal. No poema, espaço do “verbo”, é incorporado o “silêncio”. Esta imperatividade do verbo – no fundo, é em função do verbo que o “silêncio” é definido – diz-nos que o “silêncio” só é visível porque deixa um rasto, um traço. E este traço não remete apenas para o “risco”, figura do “óstracon” como vimos. É o próprio excesso logorreico que mostra o “silêncio”, isto é, que o traz – é uma imagem – à superfície. Se a logofagia – daí o nome – é entendida como rasura do logos e da phoné... esta mesma phoné é, na verdade, reinvestida por ser ela a que

manifesta/inscreve o “silêncio”. Não se trata de uma contradição: precisamente o que nos propõe o autor é uma palavra completamente desinvestida da pregnância da phoné. Deste modo, a inflação logorreica ou, por exemplo, a figura da lexicalização, não recuperam “o centro” para a palavra. Ora bem. Para ter sentido dizer que à palavra lhe falta o mundo, para nos ser possível dizer que a palavra perdeu o centro, ou até conceber uma arqui-figura como a “logofagia”, necessitamos do topos do fonocentrismo. Isto é: para que a “poesia-como-logofagia” continue a ser Poesia, os topoi da phoné e do logos devem ser activados. Em modo figurado, diria que colado a um poema teremos um meta-Poema. Deste modo, podemos entender que, para Túa Blesa, um “texto-intexto” conserve um “halo mistérico” (74). Isto leva-me a tentar mostrar como a maneira fundamental de Logofagias é a da “homenagem”.

Homenagemàpoesia Túa Blesa diz-nos, fundamentalmente, que as suas figuras são-no de uma linguagem sem mundo. Reconhecendo que há algo de provisório – e, quem sabe, imponderável e inenarrável – na “logofagia”, o livro termina, justamente, em modo quase-interrogativo: “A logofagia, nos seus traços do silêncio, quererá dizer – digamo-lo de momento – algo que estaria antes da palavra, antes do próprio querer dizer. A logofagia, finalmente, quer significar a possibilidade do texto intexto, do discurso sem phoné nem logos – portanto, não fonocêntrico, não logocêntrico –, de uma escrita que pode deixar de ser tal coisa para ser 'ex-critura'” (75). Não creio que o autor nos proponha a poesia como espaço em que se revela a descontinuidade arte/mundo. Teríamos a poesia como poetização – ou, talvez melhor, retorização – de alguns conteúdos de filosofia da linguagem. Diz-nos, antes, que a poesia continua a sê-lo precisamente por assumir a sua condição de “silêncio”. A vertente

histórico-literária do seu estudo residirá, penso, precisamente aqui: a assumpção valente da palavra sem mundo é Poesia desde o Romantismo. Já o disse, mas doutra maneira: o “silêncio” – i.e., o mundo fora do logos – na boca do poeta, é o mundo nas mãos de Midas. Dizermos que neste o “mundo” se faz “ouro” é dizermos que no primeiro o “silêncio” se faz “traço do silêncio”. Este “traço do silêncio” é apenas um ouro que reluz e em que tudo não é. Estamos diante de dois “silêncios”, o do mundo – fora do logos – e o da palavra – o logos intransitivo. Não coincidirão nunca num qualquer ponto. Diante disto, Túa Blesa reduz a palavra poética – sem eficácia mimética – à única realidade que lhe é possível: o ser “dizer”, o ser “palavra”, quando não apenas “escrita”. A poesia não mimetiza a exterioridade e vota-se a uma intransitividade – por isso é refúgio – narcisista. Todavia, o “silêncio”, a que se acede por “iniciação”, é pregante: outorga à palavra um “halo mistérico”. Um halo que, como acabamos de ler, é definido por um sintagma paradoxal – a poesia-enquanto-halo é dita como “legível e ilegível”. Daí que a “logofagia” – trata-se de uma constatação do próprio Túa Blesa – seja um “conceito-não-conceito” que quer significar “esse passo textual que convoca, simultaneamente, a palavra e a sua desaparição, a palavra e a não-palavra” (76). Mas mais ainda: quando Túa Blesa vê no “silêncio” o motor do verbo poético, o que parece argumentar é a poesia como, diríamos, um motor semiótico de auto-contextualização. Diferido irremediavelmente o mundo, o dizer poético mais não faz do que hipertofiar a memória do sistema literário. Essa memória – que é também a de uma poesia como dizer-não-dizer, recordemos – torna-se o contexto do texto. Temos, neste sentido, a poesia como the show must go on: não importa que se tenha perdido o mundo, ou que o mundo se perca na/pela palavra pois a poesia continua como (auto-) homenagem. As palavras de ordem são, como quis Beckett, “to go on”. E nesta seis letrinhas apenas temos uma “história” da Poesia.

Retórica de Logofagias Um ensaio como Logofagias revela a generosidade de permitir pensá-lo a partir da sua própria retoricidade. Gostaria, neste sentido, de destacar o lugar central que ocupa, no livro, uma figura retórica “clássica” como é o paradoxo. Simultaneamente, esta consideração é uma etapa necessária para aferir o “sentido de justeza” – recorro aqui a um conceito de Manuel Sumares (77) – da proposta de Túa Blesa. Se a “logofagia” é o fantasma que Túa Blesa considera assolar a “textualidade literária” (78), do meu ponto de vista o paradoxo é o fantasma que assombra a “teoria” que dela faz. Começo por fazer o inventário dos lugares mais significativos – alguns já foram enunciados – em que esta figura vai sendo actualizada ao longo do livro: (i) o texto logofágico é a incorporação da “renúncia” e da “não-renúncia” à tarefa poética (79); (ii) o texto logofágico é inflação e deflação da escrita (80); (iii) o texto logofágico é “texto-e-não-texto” ou, o que é o mesmo, é “texto” e “intexto” (81); (iv) a logofagia é “conceito-não-conceito”, “palavra” e “não-palavra” (82); (v) os textos-óstracon – recordo, a figura do fragmento – “num gesto paradoxal [...], estão ‘completos’” (83); (vi) o arqui-texto-ápside é “centro” simultaneamente “presente” e “ausente” da comunidade de textos a que pertence (84); (vii) o leitor é um “leitornão-leitor”; etc. Ora, o que gostaria de propor é que o paradoxo enquanto figura da retoricidade de Logofagias é a virtude da “teoria” da “logofagia” proposta por Túa Blesa. E isto porque, em nenhum momento – é um dos aspectos mais conseguidos do livro -, perspectiva o autor a sua “teoria” como ponto exterior ao objecto de que trata e sobre (ou dentro d') o qual se vai construindo. Colocar a retórica no exterior seria fazer parar o paradoxo, i.e., seria suspender a retoricidade do seu discurso sobre a “retórica do silêncio”.Penso que não devemos entender de outro modo a “incomodidade” que ao longo do estudo vai tomando corpo em relação

ao seu próprio estatuto, (auto-)assumindo-se “teoria” (85), “história literária” ou “estudo crítico” (86). Esta indecisão – entre o ser “teoria”, “história literária” ou “estudo crítico” – decorre do poder do “silêncio” para afectar. Afecta o discurso poético fazendo dele o que é, isto é, faz dele o produto de uma valentia. Afecta o discurso crítico, fazendo dele “homenagem” a poetas e poesia. Volto a citar um lugar de Túa Blesa: “Iniciados no silêncio, [os poetas] regressaram da cripta das sombras com um halo mistérico na sua escrita, agora legível e ilegível. Por terem levado, estes poetas, o risco à sua escrita, cada uma destas páginas é escrita como uma homenagem” (87). O saldo disto é que a retórica do silêncio que nos é proposta, do meu ponto de vista, serve um a priori: permite reconhecer uma poética do silêncio. A poesia é Poesia, o poeta é Poeta. Ou se quisermos, como disse antes, estamos perante uma homenagemàpoesia. Da logofagia poética pode fazer-se retórica na exacta medida em que do “risco” (88) do silêncio se pode fazer poesia. As virtudes de reconhecimento que a retórica possui decorrem precisamente da irmandade poética-retórica. Penso, pois, que a “cópula intextuosa” de que fala Túa Blesa se pode extrapolar do âmbito da poesia-comologofagia: (i) aquela poética é poética porque reconhecida pela retórica; (ii) aquela retórica é retórica porque afectada pela poética. Como se compreende, e passo agora por Derrida, a Literatura é instituição e, enquanto tal, estranha (89).

TRÊS

Apêndice I: a logofagia na república Dizia antes que as figuras da “logofagia” têm um conteúdo: são o significante de uma valentia, de uma não renúncia que inscreve a

renúncia. Neste sentido reenviam para a Poesia – pelo menos a Moderna – como história de uma atitude ética. A logofagia é uma ética e a forma de um conteúdo ético. Sobre esta questão diz-nos ainda Túa Blesa serem as práticas logofágicas um novo humanismo: “devemos falar – diz-nos – de humanismo diante destas práticas de desconstrução. De um humanismo muito mais profundo, em todo o caso, que o de quem ainda se empenha em observar a linguagem como um fluxo comunicativo preciso ou no qual é possível a precisão, a certeza e negando-se a ver a divinização que um tal olhar supõe” (90). Uma vez mais, a marca derridiana é visível. Túa Blesa não no-lo diz explicitamente, mas podemos deduzi-lo das suas reflexões – a “logofagia” é perfilada como a “arqui-figura” do diferimento, a “arquifigura” da desconstrução do logocentrismo e da metafísica da presença. A retórica do silêncio que nos propõe, poderíamos dizê-lo, é uma retórica da desconstrução. Ou talvez – e penso que não é exactamente o mesmo – a desconstrução como retórica. Quando digo que nos propõe a desconstrução como retórica quero significar que atribui ao par uma função na pólis. Isto é, essas práticas artísticas (logofágicas) neo-humanistas têm uma dimensão política: “De tudo isto se deduz a importante dimensão política que estas práticas artísticas supõem” (91). Diz ainda, já em modo de evidência: “A verdade é que a logofagia, como, por outro lado, toda a escrita, é, e não pode deixar de sê-lo, política” (92). A função fundamental da logofagia será, então, a de combater o “pensamento único”. É verdade que a Retórica nasceu “democrática”, ou é “filha legítima do Estado de Direito” como recorda López Eire (93). Contudo, creio que haveria que precisar mais o sentido de serem políticas as “práticas de desconstrução”. Uma precisão que passa por especificar a que práticas de desconstrução fazemos referência. E digo isto porque, como sabemos, alguma desconstrução é repassada de ambiguidade. Pense-se, uma vez mais, em Paul De Man cuja indecidibilidade – a crítica é conhecida – implica excentricidade “política” (94). E cabe interrogarmo-nos: se o

texto logofágico, para Túa Blesa, o é porque se assume como um the show must go on – i.e., se vota a uma continuidade que é historiada por uma recorrente e intrínseca elegia do mundo como “silêncio” -, se é retórica, como pode exteriorizar-se e ser suporte de uma ideologia?

Apêndice II: a logofagia como “cana” do cânone A República em que intervém a “logofagia” é também a das Letras. Assim, “a logofagia é uma resposta às imposições de um poder – social, literário, de mil caras – sempre ilegítimo” (95). A logofagia é, pois, segundo Túa Blesa, intrinsecamente anti-autoritária. Neste sentido, se põe em risco a Literatura-como-Lei, tem igual efeito sobre o “cânone”. Ao “cânone” “a logofagia opõe o seu excesso, o extravasar da canalização, revela-se invencível na sua divergência, na sua descanalização, uma imagem nova do cânone onde a fronteira que ditava os limites foi rasurada” (96). Dito ainda de outro modo: “ilegível” e “legível”, a palavra poética é, por isso mesmo, ilegal e legal. Aproximando-se do “silêncio” – digerindo-o, diría – a poesia transgride a Literatura-como-Lei, numa formulação assumidamente derridiana: a poesia-como-logofagia é uma “cópula intextuosa”, já que “[o] texto logofágico é um desafio e uma supressão da lei textual, que o institui texto e não texto, texto-e-nãotexto. Nele, aquilo que é exterior, o silêncio, foi interiorizado, ou então aquilo que é interno, o discurso, multiplicou-se e disseminou-se, ou, dizendo-se numa fala que não é a língua ou sem língua, se dissolveu: o texto-intexto” (97). Por seu turno, a legalidade da poesia-como-logofagia reside no facto de ser precisamente a inscrição logofágica – retoricável – o que faz dela Poesia. Diante destas formulações, cabe perguntarmo-nos como se pode explicar o facto de Túa Blesa proferir um enunciado como o que se segue: “Os textos da logofagia, como o leitor terá comprovado, são e não

são uma novidade” (98)? Não me interessa tanto, aqui, o novo recurso à retórica paradoxal a que já fiz referência. Em Logofagias há, de facto, uma componente de “não novidade” visível no recurso a exempla como Mallarmé, Rimbaud, T. S. Eliot, Ezra Pound ou Fernando Pessoa (99). Ora, não quererá isto dizer que a logofagia, ela própria, já está sobejamente “canalizada”? Na verdade, penso que no e pelo “marco retórico” que nos proporciona Logofagias. Los trazos del silencio – e aqui reside a pregnância da obra – poderemos reconhecer todo um arco históricoliterário que, com Paul De Man, poderemos anticipar ao Romantismo. Estou a pensar nas reflexões do autor de The Rhetoric of Romanticism contidas num ensaio de 1955 titulado “O nada poético: a propósito de um soneto de Mallarmé” (100). De Man, como sabemos, faz remontar o topos da “página em branco” – imagem da esterilidade da escrita, homologável, pois, à “logofagia” – tanto a Hegel como a Hölderlin: “A experiência do nada poético, que [Mallarmé] tinha vivido com tal intensidade e que concebia como o correlato inevitável da própria consciência, é uma experiência especificamente 'romântica': é a 'consciência infeliz' de Hegel, a 'separação' (Trennung) de Hölderlin, a alienação que experimentaram todos os grandes espíritos daquele século [XIX]” (101) Digamos que é a própria possibilidade de se fazer retórica da “logofagia” que nos denuncia a dependência desta última em relação a um cânone. A “logofagia” como figura da desfundamentação da Literatura – i.e., como retórica de uma democraticidade poética – não parece condizer bem com a intrínseca (re)canonização da Modernidade poética que temos em Logofagias. Parte-se dela já canonizada e a “logofagia”, apesar de tudo, não faz tremer os seus fundamentos, isto é, não a desfundamenta como fundamento da Literatura: antes pelo contrário, alarga-lhe a geografia fazendo-a chegar aos novíssimos. Continua, de algum modo, a dinâmica da homenagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR E SILVA (1988), Vítor Manuel de, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina. BARTHES (1981), Roland, “A escrita e o silêncio”, in O Grau Zero da Escrita, tradução de Maria Margarida Barahona, Lisboa, Edições 70. BECKETT (1984), Samuel, Collected Shorter Prose (1945-1980), London, Calder. BLESA, (1998), Túa, Logofagias. Los trazos del silencio, Zaragoza, Universidad de Zaragoza. CARRILHO (1994), Manuel Maria, Jogos de Racionalidade, Porto, Edições Asa. DE MAN (1983), Paul, Blindness and Insight: Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism, Minneapolis, University of Minnesota Press. DE MAN (1989), Paul, “A resistência à teoria” e “O regresso à filologia”, in A Resistência à Teoria, Lisboa, Edições 70. DE MAN (1996), Paul, “La nada poética: acerca de un soneto hermético de Mallarmé (1955)”, in Escritos críticos, Madrid, Visor. DERRIDA (1992), Jacques, “This Strange Institution Called Literature. An Interview with Jacques Derrida”, in Acts of Literature, editado por Derek Attridge, tradução de Geoffrey Bennington e Rachel Bowlby, Nova Iorque-Londres, Routledge. DUBOIS (1981), J., F. Edeline, J.-M. Klinkenberg, P. Minguet, F. Pire, H. Trinon [GROUP m ], A General Rhetoric, Baltimore-London, The Johns Hopkins University Press. FISH (1989), Stanley, “Rhetoric”, in Doing what Comes Naturally. Change, Rhetoric, and Practice of Theory in Literary and Legal Studies, Oxford, Clarendon Press. GARCÍA BERRIO (1999), Antonio, “Retórica y comunicación literaria”, in PARAÍSO (1999).

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NOTAS (1) “Cartographies of Silence”, in 1978, p. 17. (2) Túa Blesa é ainda autor de uma obra de referência sobre a poesia de Leopoldo María Panero: Leopoldo María Panero, el último poeta, Madrid, Valdemar, 1995. (3) Efectivamente, o livro vale ainda pelo acumulação de exempla. O corpus é verdadeiramente amplo, contemplando sobretudo poetas e poemas das últimas décadas da poesia espanhola. Eis uma lista, quase exaustiva: Leopoldo María Panero, JoséMiguel Ullán, Eduardo Haro Ibars, Luis Alberto de Cuenca, José María Martín Triana, Juan Luis Ramos, José Luis Martínez Rodríguez, Luis Martínez de Merlo, Francisco Pina, Santiago Echandi, Luis Federico Martínez, Jordi Royo, Ignacio Prat, Andrés Sánchez Robayna, Francisco Pino, Jesús Moreno Sanz e Julián Ríos. Sobre o corpus, que não se esgota aqui, voltarei a dizer mais adiante. (4) Cfr. Hernández Guerrero, 1994, pp. 172 e ss. (5) Paraíso, 1999, p. [7]. A tradução é minha, assim como todos os passos traduzidos nesta recensão. De 23 a 27 de Novembro, teve lugar na Universidade de Salamanca um curso subordinado ao tema “La retórica como hermenéutica de la comunicación”. Os exemplos poderiam suceder-se. É um verdadeiro “tema do nosso tempo”, como podemos constatar. (6) Cfr. López Eire, 1995. (7) Ao longo desta recensão, distribuo da seguinte forma o uso das aspas, da negrita e do itálico: (i) as aspas identificam termos ou conceitos utilizados por Túa Blesa em Logofagias; (ii) a negrita destaca as figuras que propõe; (iii) o itálico é reservado para sublinhados meus. (8) Logofagias, p. 15. (9) Idem, ibidem. (10) Cfr. idem, ibidem, pp. 19-88. (11) Cfr. idem, ibidem, pp. 89-148. (12) Cfr. idem, ibidem, pp. 149-170. (13) Cfr. idem, ibidem, pp. 171-190. (14) Cfr. idem, ibidem, pp. 191-204. (15) Cfr. idem, ibidem, pp. 205-214. (16) Idem, ibidem, pp. 22-23. (17) Idem, ibidem, p. 26. (18) Cfr. idem, ibidem, p. 36. (19) Cfr. idem, ibidem, p. 38. (20) Cfr. idem, ibidem, p. 39. (21) Cfr. idem, ibidem, p. 45. (22) Cfr. idem, ibidem, p. 50 e ss. (23) Risco, nesta ocasião, traduz a voz castelhana “tachón”. (24) Cfr. Logofagias, p. 74. (25) Cfr. idem, ibidem, p. 77. (26) Cfr. idem, ibidem, p. 65. (27) Cfr. idem, ibidem, p. 100.

(28) Idem, ibidem, p. 101. (29) Cfr. idem, ibidem. (30) Cfr. idem, ibidem, pp. 101-102. (31) Cfr. idem, ibidem, p. 104. (32) Cfr. idem, ibidem, p. 115. (33) Cfr. idem, ibidem, p. 116. (34) Cfr. idem, ibidem, p. 117. (35) Idem, ibidem, p. 152. (36) Cfr. idem, ibidem, p. 153. Não haverá contradição em manter a intencionalidade do autor – que controla o texto – e o conceito da logofagia-como-desconstrução? (37) Cfr. idem, ibidem. (38) Idem, ibidem, p. 220. (39) Cfr. idem, ibidem, p. 180. (40) Cfr. idem, ibidem, p. 182. (41) Túa Blesa dá como exemplo a poesia em inglês do Pessoa-Search. Cfr. idem, ibidem, p. 187. (42) Cfr. idem, ibidem, p. 190. (43) Idem, ibidem, p. 202. (44) Idem, ibidem, p. 203. (45) Idem, ibidem, p. 220. (46) Cfr. idem, ibidem, p. 207. (47) Cfr. idem, ibidem, p. 214. (48) Cfr. idem, ibidem. (49) Idem, ibidem, p. 199. (50) Idem, ibidem, p. 147. (51) Cfr. idem, ibidem, p. 156. (52) Cfr. idem, ibidem, p. 219. (53) Cfr. idem, ibidem. (54) O livro de Túa Blesa não deixa de ser produto da herança de uma retórica “emagrecida”. Sobre esta questão, recorda Manuel Maria Carrilho que “[a] transformação da retórica numa disciplina que passa a interessar-se sobretudo pelo estudo e pela classificação das figuras de estilo. A Retórica de Aristóteles ocupava-se dos argumentos, das paixões e do discurso; com raríssimas excepções – em que avulta o momento romano com Cícero e Quintiliano – a história reterá apenas o último destes aspectos, dando assim origem a um processo de contracção do seu âmbito que virá a culminar na constituição de uma retórica restrita” (1994, p. 11). É verdade, contudo, que Túa Blesa coloca a possibilidade de implicar futuramente a inventio: “É uma sugestão que fica agora em aberto, mas que é necessário advertir uma vez que as operações da elocutio não poderão ser em caso algum senão uma consequência de um magma intencional que provém já desde a inventio. Enquanto não se aborda esta questão, a logofagia é considerada aqui apenas no referido nível retórico” (p. 218). Talvez fosse necessário reconsiderar esta formulação pois assenta no “tópico de sucessividade teórica” clássico que Pozuelo Yvancos recorda ser necessário rever pela neorretórica (cfr. 1989, p. 162). Seja como for, creio que Logofagias nos propõe o “silêncio” como topos temático, pelo que a inventio, afinal, aparentemente sem o autor se dar conta, esteve presente nas suas reflexões. No ponto “’Silêncio’ e Fonocentrismo” volto a esta questão.

(55) Cfr. Pozuelo Yvancos, 1986, pp. 168-194. (56) Chaïm Perelman e Olbrechts-Tyteca, Roman Jackobson, Roland Barthes, Gerard Genette, Tzvetan Todorov e o chamado Grupo m , são alguns dos nomes que se destacam na tradição neorretórica das últimas quatro décadas. (57) Cfr. Dubois, 1981, pp. 46-62. (58) Idem, ibidem, pp. 60-62. (59) Idem, ibidem, p. 62. O sublinhado é meu. (60) Op. cit., p. 9. (61) Idem, ibidem. (62) Idem, ibidem. (63) Idem, ibidem, p. 10. (64) Idem, ibidem. (65) Idem, ibidem, p. 11. (66) Cfr. idem, ibidem, p. 14. (67) Idem, ibidem, p. 15. (68) Idem, ibidem. (69) Cfr. Fish, 1989, p. 484. Lembro aqui umas palavras de Silvina Rodrigues Lopes a propósito do programa retórico de García Berrio: “A Retórica geral literária, que este movimento de retorno a ‘certezas tradicionais da filologia’ permite, pode ser considerada como uma tentativa de harmonização de concepções clássicas e românticas quanto à natureza das produções poéticas. Esse seu projecto ignora em absoluto todas as interrogações da retórica que, numa perspectiva pós-nietzscheana, puseram em causa quer a noção clássica de mimesis, quer a noção de sujeito” (1994, p. 345). (70) Cfr. Dubois, 1981. (71) “Texts for Nothing – X”, in 1984, p. 105. (72) Para o conceito de inventio, cfr. Pozuelo Yvancos, 1989, p. 163. (73) Logofagias, p. 18. O sublinhado é meu. (74) Paolo Valesio, que reflectiu sobre a relação entre o “dizer” e o “silêncio”, argumenta que os une uma continuidade inalienável (cfr. 1986, p. 400). Num certo sentido, creio que existe uma relação entre o conceito de “valentia”, aqui proposto, e o de “esperança”, cunhado pelo autor de Ascoltare il silenzio. (75) Logofagias, p. 229. (76) Idem, ibidem, pp. 16-17. (77) Cfr. “Decidindo e Voltando a Decidir (Um Prefácio)”, in Américo António Lindeza Diogo, Modernismos, Pós-Modernismos, Anacronismos, Lisboa, Cosmos, 1993, pp. 711. O “sentido de justeza” é aquele pelo “qual se mede (se pesa) a relevância e, possivelmente, a utilidade ou valor dos “dados” que compõem uma obra. As categorias criadas num ensaio são muito menos demonstrativas do que a produção de uma ressonância, num determinado público” (p. 7). (78) Logofagias, p. 11. (79) Idem, ibidem, p. 15. (80) Idem, ibidem. (81) Idem, ibidem, p. 16. (82) Idem, ibidem, pp. 16-17. (83) Idem, ibidem, p. 22. (84) Idem, ibidem, p. 102.

(85) Cfr. idem, ibidem, p. 15. (86) Cfr. idem, ibidem, p. 15. (87) Logofagias, p. 18. O sublinhado é meu. (88) Risco, aqui, traduz a voz castelhana “riesgo”. (89) Cfr. 1992, passim. (90) Logofagias, pp. 82-83. (91) Idem, ibidem, p. 87. (92) Idem, ibidem, p. 225. (93) Cfr. 1995, p. 51. (94) Cfr. Leitch, 1992, p. 50. (95) Logofagias, p. 226. O sublinhado é meu. (96) Idem, ibidem, pp. 227-228. (97) Idem, ibidem, p. 16. (98) Idem, ibidem, p. 225. (99) A poética do Modernismo percorre o livro de Túa Blesa. Eliot e Pound são apresentados como expoentes do texto-babel (cfr. p. 184). Ou, ainda, o topos da espacialização da forma, é actualizado na figura do risco (cfr. p. 78). (100) 1996, pp. 101-111. (101) Idem, ibidem, p. 111. (102) Cfr. supra nota 2. (103) Cfr. Lausberg, 19823.

[Pedro Serra, «Uma Retórica do Silêncio. Túa Blesa, Logofagias. Los trazos del silencio», Estudios Portugueses. Revista de Filología Portuguesa, nº4, Salamanca, Caja Duero, 2005. 1ª ed. da resenha publicada na revista ‘on line’ Ciberkiosk. Livros, artes, espectáculos, sociedade, 2000]

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