Uma teoria sobre a narrativa grega: Aspectos e Tempos verbais na Gramática Grega

June 30, 2017 | Autor: Igor Paulino | Categoria: Ancient Greek Language, Ancient Greek Grammar
Share Embed


Descrição do Produto

1 1 Uma teoria sobre a narrativa grega Este artigo tem por fim expor uma nova teoria que dê conta do jogo aspectual em uma narrativa, em um relato sobre o passado, porém, não de toda e qualquer narrativa, mas de uma que surja em um diálogo. Após a exposição desta teoria, analisaremos um a um todos os trechos do texto platônico Hípias Maior que se encaixem nesta categoria, que possam ser chamados de narração. 4.1 A linha narrativa, posições axiais e periféricas: formas esperadas e inesperadas Estes conceitos estão no núcleo da teoria e são, portanto, essenciais a ela. Toda narração necessita de um fio para ser seguido, caso contrário, torna-se uma mera elencação de eventos, ainda que este elenco esteja em ordem temporal, o que não deixa de ser uma linha narrativa pretensamente objetiva. De toda forma, assim como uma narração dificilmente segue a linha temporal de forma rígida, a linha narrativa não prescinde de fatos acessórios, ainda que alheios a esta linha. Os fatos, sempre compostos de predicados, dividem-se entre os que fazem parte da linha narrativa e os meramente acessórios, que não raro podem ser excluídos do discurso sem a perda do fio narrativo. Nossa proposição é que o aspecto do verbo núcleo do predicado e a leitura deste aspecto estão em função da posição axial ou periférica em que estes predicados se inscrevem. É claro, podemos pensar em frases sem verbo, em predicados nominais. Nosso objetivo, não obstante, é explicar porque um aspecto e não outro ocorre, a teoria narrativa e sua aplicação é acessória a este objetivo. Assim, repartindo os predicados verbais ou verbo-nominais deste tipo discursivo, a narração, na dualidade posição axial/ posição periférica, propomos que o mesmo aspecto, dependendo da posição em que surja, assume diferentes valores: para a posição axial existe um aspecto próprio a expressá-la, ou seja, quando este aspecto surge nesta posição, temos a forma esperada. Este mesmo aspecto, se ocorre na posição que não lhe é própria, no caso a posição periférica, assume uma forma inesperada. Se analisarmos estas formas sob outro ângulo, o do leitor, diremos que ele, ao ler (ou ao ouvir, se pensarmos em um ouvinte) uma narrativa, identifica de maneira mais fácil as formas esperadas, enquanto as inesperadas requerem um esforço de processamento maior. Um assunto mais complexo, com o qual não lidaremos aqui, diz respeito a como este leitor (ou ouvinte) identifica a linha narrativa e os fatos acessórios, como ele consegue dizer quais predicados fazem parte da linha e quais são acessórios a ela. Trabalharemos com esta identificação como dada.

2 Chega a hora de “dar nome aos bois” e dizer qual aspecto é próprio a qual posição, qual lhe é estranho. Antes disso, devemos notar que a dualidade esperado/inesperado divide os aspectos em dois, enquanto o grego tem quatro aspectos. Descartando-se o futuro, que não é aspecto propriamente dito, sobram três. Mas o perfeito é só raramente utilizado para a narração, no caso a ser analisado, o Hípias Maior, ele ocorre apenas duas vezes1. Restam o presente e o aoristo. Tentaremos aqui inscrever nosso trabalho na tradição sintática, pois que se nossa teoria é nova, é estruturada no estudo desta tradição. Dos autores aos quais recorremos na estruturação desta teoria, Humbert2 é o mais claro neste ponto, de fato, toda sua argumentação sobre a oposição presente/aoristo nos termos objetivo/subjetivo só pode levar a uma conclusão: o fio narrativo é subjetivo, envolvido de interesse, enquanto os fatos acessórios são objetivos, logo o aspecto presente é próprio às posições axiais, está na forma esperada quando nelas ocorre, já o aoristo é esperado nas posições periféricas. Se o presente ocorre nas posições periféricas, está na forma inesperada, assim como é inesperado que o aoristo assuma uma posição axial. Resta dizer o que significa para o leitor uma forma esperada ou uma inesperada em termos de aspecto, qual o significado de este ou aquele aspecto ocorrer nesta ou naquela forma. Fazendo uma comparação com a vida cotidiana, passamos pelo que é esperado de forma desatenta e descuidada, enquanto retemos nossa atenção frente a um evento inesperado. Assim são vistos os aspectos: na forma esperada, tanto o presente (na posição axial) quanto o aoristo (na posição periférica) são lidos quase sem aspecto: o único resquício deste é o fato de ele não ocorrer; se pensarmos em termos de tradução, traduzir um verbo sem levar em conta seu aspecto significa tão somente lê-lo tal qual ele aparece em uma das acepções do dicionário, desde que esta acepção não destaque o aspecto, não ocorra apenas no presente ou em outro aspecto qualquer, mas que ela seja comum a todos os aspectos. Se quando esperado o aspecto é “desaspectualizado”, o contrário ocorre quando este mesmo aspecto não é esperado, quando o presente está em posição periférica ou o aoristo está em posição axial. Aqui o verbo tem seu aspecto ressaltado e este relevo aspectual aparece com maior destaque na tradução. Um exemplo de tal destaque são os aoristos terminativos e os incoativos, bem como os presentes de conatu, embora não pensemos serem os únicos. 1 2

Mesmo assim, ele exerce um papel na nossa teoria a ser descrito posteriormente. Ver artigo anterior

3 Segundo esta leitura, o aspecto perfeito está destinado a adquirir um valor ambíguo, mas somente se não o dividirmos em dois, como já faz a tradição e os estudos de sintaxe sobre ele. Se o dividirmos, veremos um, mais próximo do presente, e outro, mais próximo do aoristo. Alinhando-se ambos aos seus respectivos aspectos mais próximos, veremos que o perfeito mais antigo, intransitivo, atua da mesma forma que o aspecto presente, sendo esperado na posição axial e causando surpresa na posição periférica, quando demanda uma interpretação mais robusta de seu aspecto. Em uma narração, este perfeito poderia aparecer somente no mais-que-perfeito, posto que seu indicativo presente estaria no tempo presente. Todavia, este é o fato para o estado mais antigo da língua. Um estudo mais pormenorizado é requerido para afirmar isto do grego clássico ou ático, quando já temos evidências de que o perfeito mais recente, transitivo, tem sua oposição frente ao aoristo de tal forma neutralizada que as três formas do indicativo destes dois aspectos, o indicativo aoristo, o presente do perfeito e o mais-que-perfeito, todas elas se encontram muito semelhantes, semelhança esta destinada a suprimir o aspecto perfeito como um todo. Este último perfeito, enfileirado ao aoristo, assume forma esperada na posição periférica e inesperada na posição axial. 4.1.1 Valores aspectuais do presente Destes valores, o mais evidente é o presente de conatu, certamente pela possibilidade de traduzi-lo pelo verbo “tentar” mais uma completiva reduzida de infinitivo. Este significado conativo certamente não está separado de forma muito distinta do significado dos verba dicendi quando aparecem no presente, ainda que o aoristo possa parecer mais adequado. Humbert proporciona esta análise quando fala de esforço nos dois casos3. Outros valores menos evidentes, sugeridos na nossa análise do Hípias, ainda que não abonados pela tradição gramatical, são os de pano-de-fundo/primeiro plano ou os de tensão/descarga. Todavia, tratam-se aqui de valores opositivos, em que a posição periférica, juntamente com a posição axial, formam uma estrutura destinada a expor os valores aspectuais dos verbos participantes desta estrutura: no primeiro caso a posição periférica, no presente, portanto com aspecto destacado, assume um valor de pano-defundo, diante do qual a ação axial ocorre; já no segundo caso, o aspecto presente na

3

Humbert, págs. 139 e 140

4 posição periférica assume um significado de tensão, destinada a chegar a uma descarga, representada pelo aspecto aoristo na posição axial. Para expor mais detalhes destas duas estruturas faz-se necessário falar dos valores aspectuais do aoristo. 4.1.2 Valores aspectuais do aoristo Os dois valores principais são o terminativo e o incoativo. Ambos requerem na tradução um verbo auxiliar se referindo ao início ou ao fim da ação ou estado em questão4. Apesar de parecerem valores opostos e até mesmo paradoxais, o início e o fim têm algo em comum, o que nos parece ser o que chamaríamos de a essência do aspecto aoristo quando de seu destaque: um momento crítico de inflexão e de mudança. Este momento inflectivo pode representar, para além do começo e do final, um feito, uma façanha, um sucesso mesmo. Este valor moral está ressaltado em traduções como a apresentada na sintaxe de CRESPO GÜEMES, CONTI JIMÉNEZ e MAQUIEIRA, página 276, onde a passagem “οὖν ἔπειθον αὐτοὺς καὶ οὓς ἔπεισα τούτους ἔχων ἐπορευόµην σοῦ ἐπιτρέψαντος” da Ciropédia de Xenofonte é traduzida assim: “yendo, pues, traté de persuadirles y a los que logré (grifo nosso) persuadir, teniéndolos a ésos, me puse en marcha”. Pode parecer que apenas o chamado aoristo terminativo está apto a adquirir este valor moral, porém não cremos assim: a citação de uma passagem (982b) da Metafísica de Aristóteles mostra-se conveniente: ὥστ᾽ εἴπερ διὰ τὸ φεύγειν τὴν ἄγνοιαν ἐφιλοσόφησαν. Como aqui se falava dos primeiros a filosofar, e não há evidência de que eles tenham completado esta ação segundo a visão de Aristóteles, pode-se muito bem usar a tradução: “tentando escapar da ignorância começaram a filosofar”. Uma tradução que procurasse melhor captar e expor o esforço dos que primeiro filosofaram poderia dizer: “conseguiram começar a filosofar”. Temos agora as ferramentas necessárias para explicar mais a fundo as estruturas de valores opositivos: a dualidade pano-de-fundo/primeiro plano aplica-se melhor quando os verbos desta estrutura são compreendidos como indeterminados ou de estado, enquanto a dualidade tensão/descarga é mais apta a verbos determinados. Como muitas vezes a determinação de um verbo depende não só do contexto, mas de como se lê tal contexto5, acontece de um mesmo trecho poder ser lido das duas maneiras: tome-se esta 4

Sobre quais verbos admitem quais valores, ver Adrados, 429 a 432. Todavia ele mesmo admite que o valor terminativo (ou perfectivo) pode ser assumido por qualquer verbo, télico, atélico ou de estado. 5 Como de resto afirmam as sintaxes expositoras destes termos.

5 passagem de Platão: καὶ ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος(1) καὶ συνὼν(2) τοῖς νέοις χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο(3) [282ξ] ἐκ τῆσδε τῆς πόλεως. Se pensarmos em (1) e (2) como posições periféricas e (3) como uma posição axial, poderíamos tanto pensar que as exposições (1) e a compania dos jovens (2) são ações indeterminadas ou estados, representando o pano-de-fundo, diante dos quais a conquista do dinheiro aparece, como também poderíamos ver estas mesmas exposições e companhia como destinadas a um determinado fim, tensões destinadas a uma determinada descarga, a aquisição do dinheiro. 5 Hípias Maior: Introdução Antes de começar a análise deste texto, ou melhor, de trechos deste texto, é necessário estabelecer como se deu a escolha de tais trechos. Não foi aleatória, mas intentada nas passagens onde uma narração surgia. Esta narração tem características formais que a separam do restante do texto: entre outras, a presença marcante de aoristos no indicativo e imperfeitos. A análise não chegou a todas as partes da narração, restringindo-se aos modos indicativo, particípio e infinitivo: é que nosso propósito era analisar somente os aspectos, sendo que nos outros modos, no subjuntivo, optativo ou imperativo, ocorrem também fenômenos de parataxe que podem não estar completamente independentes dos aspectos. Limitamo-nos ainda ao discurso indireto, deixando de lado trechos em que o autor assume voz alheia, por não se tratar de uma narrativa propriamente dita. Portanto, a seguinte análise recaiu sobre toda narração do texto platônico que satisfizesse as condições acima. 5.1 Hípias Maior: Análise Se a beleza é a questão em torno de que o diálogo gravita, a vaidade é o vácuo no centro do redemoinho em torno do qual Hípias gira. Sócrates, mestre do vácuo e da falta, sabe disto e usa esta falta como um engodo para atrair Hípias a uma armadilha da qual só poderá sair ao preço da mesma vaidade que o fez lá entrar. A vaidade é, portanto, o fio condutor de todas as narrativas presente neste diálogo. Para demostrar isto, vamos analisar, um a um, os trechos narrativos deste diálogo, na ordem em que eles aparecem no texto. 282b Γοργίας τε γὰρ οὗτος ὁ Λεοντῖνος σοφιστὴς δεῦρο ἀφίκετο(A) δηµοσίᾳ οἴκοθεν πρεσβεύων(A), ὡς ἱκανώτατος ὢν(X) Λεοντίνων τὰ κοινὰ πράττειν(A), καὶ ἔν τε τῷ δήµῳ ἔδοξεν(A) ἄριστα εἰπεῖν(X), καὶ ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος(A) καὶ συνὼν(A) τοῖς νέοις χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο(X) [282ξ] ἐκ τῆσδε τῆς

6 πόλεως: εἰ δὲ βούλει, ὁ ἡµέτερος ἑταῖρος Πρόδικος οὗτος πολλάκις µὲν καὶ ἄλλοτε δηµοσίᾳ ἀφίκετο(A), ἀτὰρ τὰ τελευταῖα ἔναγχος ἀφικόµενος(A) δηµοσίᾳ ἐκ Κέω λέγων (A) τ᾽ ἐν τῇ βουλῇ πάνυ ηὐδοκίµησεν (X) καὶ ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος(A) καὶ τοῖς νέοις συνὼν (A) χρήµατα ἔλαβεν(X) θαυµαστὰ ὅσα. τῶν δὲ παλαιῶν ἐκείνων οὐδεὶς πώποτε ἠξίωσεν(A) ἀργύριον µισθὸν πράξασθαι (X) οὐδ᾽ ἐπιδείξεις ποιήσασθαι(X) [282δ] ἐν παντοδαποῖς ἀνθρώποις τῆς ἑαυτοῦ σοφίας: οὕτως ἦσαν (A) εὐήθεις καὶ ἐλελήθει (A) αὐτοὺς ἀργύριον ὡς πολλοῦ ἄξιον εἴη. Dado o tamanho deste excerto, vamos recortá-lo em partes e, quando necessário, reordená-las. ὡς ἱκανώτατος ὢν(X) Λεοντίνων τὰ κοινὰ πράττειν(A) O verbo ser não possui forma inesperada e seu aspecto não pode ser ressaltado, mercê da ausência de oposição entre o presente e o aoristo, logo, sua classificação como verbo auxiliar de um estado axial não causa maiores dificuldades. O mesmo não ocorre com o verbo πράττειν, núcleo verbal de um sintagma auxiliar6, pois, como a forma esperada seria pra/cai, o significado do aspecto se sobrepõe ao do verbo. A tradução é uma forma de exemplificar o significado deste aspecto, que pode assumir aqui o valor de uma empresa ou um empreendimento, muito parecido com um presente de conatu. Assim, Górgias era o mais competente (ἱκανώτατος) dentre os leontinos não para fazer as coisas públicas, mas para empreendê-las (fazer).7 Dizer que o significado do aspecto se sobrepõe ao do verbo significa dizer que, na tradução, por exemplo, pode não haver necessidade de verter o significado do verbo (empreender fazer (ou praticar) as coisas públicas), mas tão somente o do aspecto. Esta sobreposição do aspecto ao verbo também não é de todo independente do significado do verbo. No caso em questão, o significado “fraco” do verbo (‘fazer’) ---e lhe alcunhamos fraco porque quase todo verbo tem este significado--- certamente contribui para a sua sucumbência frente ao aspecto. 6

Sintagmas auxiliares, desde que seu núcleo verbal esteja na forma esperada, são sempre periféricos, pois sua omissão não torna o texto ininteligível. No caso em questão, poderia dizer-se tão somente que Górgias era o mais competente dentre os leontinos. A relação entre a posição periférica e a possibilidade de sua omissão não é completamente esclarecida nesta análise, todavia já podemos dizer com segurança que tudo o que pode ser omitido de um texto sem prejudicar sua coerência ou sua coesão está em posição periférica, ainda que existam posições periféricas inaptas à omissão.---Ainda que o núcleo verbal em questão não esteja na forma esperada, a classificação deste núcleo como periférico será esclarecida mais à frente, quando da elencação de todos os verbos em posição periférica e de seu subsequente pareamento aos verbos em posição axial. 7 Cabe aqui também considerar que a expressão em questão, τὰ κοινὰ πράττειν, pode ser uma expressão fixa, uma frase feita, invariável quanto ao aspecto. Neste caso, muito semelhante ao do verbo ser e do aspecto futuro discutidos mais abaixo, não cabe falar de forma marcada ou não marcada, mas apenas de uma forma à qual nenhuma outra pode se contrapor sem a perda da fixidez da expressão e de seu correspondente sentido.

7 Γοργίας τε γὰρ οὗτος ὁ Λεοντῖνος σοφιστὴς δεῦρο ἀφίκετο(A) δηµοσίᾳ οἴκοθεν πρεσβεύων(A), καὶ ἔν τε τῷ δήµῳ ἔδοξεν(A) ἄριστα εἰπεῖν(X) Os verbos ἀφίκετο e ἔδοξεν são de análise relativamente simples: descrevem funções marginais, na medida em que sua omissão não danificaria o texto (não há necessidade de dizer que Górgias chegou (ἀφίκετο) no lugar em questão, poder-se-ia tão simplesmente omitir esta informação e dizer que ele fazia parte de uma embaixada (πρεσβεύων) por lá. Também não é mister dizer que foi opinião geral (ἔδοξεν) que ele conseguiu falar muito bem (ἄριστα εἰπεῖν), bem se poderia dizer tão simplesmente que ele conseguiu falar muito bem). Já a análise de πρεσβεύων e ἄριστα εἰπεῖν é mais complexa, pois os aspectos em que estão estes verbos não é o esperado para a função exercida por estes na narrativa. Novamente, temos aqui um caso em que o significado aspectual se sobrepõe ao verbal, embora não chegue a anulá-lo. Assim é que πρεσβεύων faz as vezes de um pano de fundo, contra o qual a ação axial (ἄριστα εἰπεῖν) adquire seu valor: Górgias não somente falou bem, mas conseguiu falar bem em um contexto especial, o de uma embaixada. Outra possível relação entre estes termos é a de tensão durante um empreendimento (πρεσβεύων) e seu subsequente resultado (ἄριστα εἰπεῖν)8. Em ambas é patente o relevo aspectual dos verbos em questão. καὶ ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος(A) καὶ συνὼν(A) τοῖς νέοις χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο(X) [282ξ] ἐκ τῆσδε τῆς πόλεως A frase anterior serve-nos de modelo: as duas ações periféricas podem tanto ser vistas pela perspectiva da relação pano de fundo/ação principal quanto pela chave tensão/descarga, pois tanto as palestras privadas (ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος) quanto a companhia dos jovens9(συνὼν τοῖς νέοις) são ou a rotunda em relação a qual o ato de conseguir muito dinheiro (χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο) ganha relevo ou a tensão que desemboca neste mesmo resultado (χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο).

8

Escolher uma ou outra interpretação equivale a dizer se os verbos em questão são determinados (tensão/descarga) ou indeterminados (pano de fundo/ação principal) 9 Interpretamos aqui o verbo não como um verbo de ligação composto, mas como um verbo apto a ser núcleo de um sintagma, portanto aproximamo-lo do verbo acompanhar. No entanto, seria também possível vê-lo como mero verbo de ligação, caso em que seu aspecto não estaria nunca marcado. Então, ao invés de fazer as vezes de uma tensão, descreveria meramente uma ação periférica sem um caráter aspectual marcado, sendo que assim teríamos de pensar neste estado (estar junto, com os jovens) como passível de ser omitido sem comprometer a linha narrativa. Optamos pela outra forma de ver a questão justamente porque pensamos que este estado é mais importante do que quer parecer a interpretação alternativa constante nesta nota de rodapé.

8 Pelo mesmo motivo da frase anterior, o aspecto aoristo na ação axial é passível de ser traduzido pelo verbo auxiliar “conseguir”, tradução esta que visa ressaltar o significado aspectual frente ao significado do verbo em questão. ὁ ἡµέτερος ἑταῖρος Πρόδικος οὗτος πολλάκις µὲν καὶ ἄλλοτε δηµοσίᾳ ἀφίκετο(A), ἀτὰρ τὰ τελευταῖα ἔναγχος ἀφικόµενος(A) δηµοσίᾳ ἐκ Κέω λέγων (A) τ᾽ ἐν τῇ βουλῇ πάνυ ηὐδοκίµησεν (X) Esta frase é bem parecida com as duas primeiras deste excerto. Ambas as formas do verbo (afikne/omai) estão no aspecto aoristo e representam ações periféricas, que bem poderiam ser omitidas sem comprometer o significado do texto. Já λέγων ἐν τῇ βουλῇ é um correspondente de πρεσβεύων, enquanto ηὐδοκίµησεν o é de (ἔδοξεν) ἄριστα εἰπεῖν. καὶ ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος(A) καὶ τοῖς νέοις συνὼν (A) χρήµατα ἔλαβεν(X) θαυµαστὰ ὅσα Aqui a comparação não se dá só por semelhança, mas em grande parte por igualdade, haja vista a idêntica ocorrência dos dois primeiros sintagmas duas frases acima. O mesmo que foi dito deles então, pode ser dito agora, assim como o que foi dito de χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο pode ser dito da expressão irmã χρήµατα ἔλαβεν. τῶν δὲ παλαιῶν ἐκείνων οὐδεὶς πώποτε ἠξίωσεν(A) ἀργύριον µισθὸν πράξασθαι (X) οὐδ᾽ ἐπιδείξεις ποιήσασθαι(X) [282δ] ἐν παντοδαποῖς ἀνθρώποις τῆς ἑαυτοῦ σοφίας: οὕτως ἦσαν (A) εὐήθεις καὶ ἐλελήθει (A) αὐτοὺς ἀργύριον ὡς πολλοῦ ἄξιον εἴη. Estas duas últimas frases apresentam dificuldades maiores. Antes de adentrarmos nestas dificuldades, precisamos dizer algo mais sobre as ações periféricas e axiais nas frases anteriores. Se elencarmos estas ações destes dois grupos, teríamos a seguinte divisão10: Ações periféricas: ἀφίκετο; τὰ κοινὰ πράττειν; πρεσβεύων; ἰδίᾳ ἐπιδείξεις ποιούµενος; τοῖς νέοις συνὼν; ἀφίκετο; ἀφικόµενος; λέγων ἐν τῇ βουλῇ. Ações axiais: ἱκανώτατος ὢν; ἄριστα εἰπεῖν; χρήµατα πολλὰ ἠργάσατο; ηὐδοκίµησεν; χρήµατα ἔλαβεν 10

A possibilidade de dividir os verbos em dois grupos homogêneos e distintos entre si é uma grande prova da relevância e acerto da teoria aqui discutida, pois, se os verbos de um grupo são homogêneos entre si, isto significa que tal agrupamento é possível, enquanto a distinção entre ambos os grupos verbais comprova a oposição entre ambos. A questão da relevância do critério utilizado para efetuar tal divisão também está ligada à inviabilidade de outra distribuição segundo outro critério que reorganize verbos de ambos os grupos em um mesmo grupo oposto a outro que também tenha verbos de ambos os grupos aqui expostos, todavia esta inviabilidade é de caráter empírico (tentativa e erro), e não conceptual.

9 Se então distinguirmos as características comuns aos membros de cada grupo, teríamos algo que bem poderia ser chamado de neutralidade no primeiro, em oposição ao caráter afirmativo do segundo grupo. Ao analisar caso a caso, veremos que chegar, fazer os deveres públicos, ser parte de uma embaixada, palestrar, estar junto com os jovens, acompanhá-los ou falar diante do conselho, todas estas ações podem terminar bem ou mal, ou mesmo ter um resultado indiferente. O mesmo não se pode dizer de ser o mais capaz, falar muito bem, fazer ou pegar muito dinheiro ou causar sensação: tudo isto é de forte impacto, não se pode ficar indiferente a estas ações. É precisamente este critério de neutralidade e importância que torna difícil a análise das duas últimas frases deste excerto. A primeira frase, podemos pensá-la como uma mera constatação de uma realidade objetiva: dentre os antigos, ninguém jamais estimou, deu valor, a cobrar pagamento em dinheiro ou mesmo em fazer palestras (privadas). O julgamento de que estes antigos eram ingênuos e de que o dinheiro, como algo de valor, teria passado desapercebido, teria suporte na primeira frase, de modo que ela poderia mesmo ser omitida, sem comprometer a linha da narrativa. O importante, a conclusão, seria o fato de serem ingênuos e de não perceberem o dinheiro como algo de valor. Todavia, não pensamos ser assim. O ato de cobrar, assim como o de ganhar dinheiro, é de suma importância sob a perspectiva que Sócrates emula uma visão de mundo empática à de Hípias para entorpecê-lo de sua própria vaidade. Que os antigos fossem ingênuos é mera constatação, que pode, esta sim, ser omitida do texto, sem nenhuma perda substancial, pois está como que implícita no fato de que eles não estimavam o pagamento. Dito isto, resta investigar os aspectos utilizados. τῶν δὲ παλαιῶν ἐκείνων οὐδεὶς πώποτε ἠξίωσεν(A) ἀργύριον µισθὸν πράξασθαι (X) οὐδ᾽ ἐπιδείξεις ποιήσασθαι(X) [282δ] ἐν παντοδαποῖς ἀνθρώποις τῆς ἑαυτοῦ σοφίας Que ἠξίωσεν represente uma ação periférica, isto advém do fato de ele ser um verbo auxiliar finito dentro de um sintagma maior. O autor bem poderia ter optado em dizer: dentre os antigos, ninguém jamais cobrou pagamento em dinheiro... ao invés de ...ninguém jamais estimou, teve por bem, deu valor a cobrar pagamento em dinheiro... Os outros dois núcleos verbais são mais complexos, pois se tratam de formas inesperadas, em que o aspecto aoristo pode ter várias funções: podemos pensar em uma função inflexiva, muito parecida com a incoativa, que marca a passagem de um estado

10 (ou não-estado) a outro (ninguém jamais estimou passar a cobrar pagamento em dinheiro, ou mesmo passar a palestrar). Também é possível ver um aoristo consecutivo, mas qualquer que seja a interpretação desta função do aoristo, sua tradução sempre será canhestra enquanto for necessário introduzir um verbo auxiliar só para traduzir este valor aspectual, e esta falta de jeito advém do fato da frase já ter um verbo auxiliar (ἠξίωσεν). É possível que haja outras maneiras de tentar traduzi-lo, mas nosso trabalho não tem a ambição de descrever todas estas maneiras. οὕτως ἦσαν (A) εὐήθεις καὶ ἐλελήθει (A) αὐτοὺς ἀργύριον ὡς πολλοῦ ἄξιον εἴη. Sendo a mera explicitação das idéias implícitas na frase anterior, não há muito o que comentar nesta frase. Resta novamente dizer que o verbo ser não requer interpretação aspectual em função de não ter o aspecto marcado. Já o verbo ἐλελήθει , sendo um perfeito transitivo, corresponde a um aoristo, que, por expressar um estado periférico, encontra-se com seu aspecto ressaltado. O verbo εἴη11 não entra em nossa análise por não estar no indicativo nem em um modo que valha por ele (infinitivo ou particípio). 282d ἀφικόµενος(A) δέ ποτε εἰς Σικελίαν, Πρωταγόρου [282ε] αὐτόθι ἐπιδηµοῦντος(A) καὶ εὐδοκιµοῦντος(A) καὶ πρεσβυτέρου ὄντος(A) πολὺ νεώτερος ὢν (A) ἐν ὀλίγῳ χρόνῳ πάνυ πλέον ἢ πεντήκοντα καὶ ἑκατὸν µνᾶς ἠργασάµην(X), καὶ ἐξ ἑνός γε χωρίου πάνυ σµικροῦ, Ἰνυκοῦ, πλέον ἢ εἴκοσι µνᾶς: καὶ τοῦτο ἐλθὼν (A) οἴκαδε φέρων(X) τῷ πατρὶ ἔδωκα (A), ὥστε ἐκεῖνον καὶ τοὺς ἄλλους πολίτας θαυµάζειν(X) τε καὶ ἐκπεπλῆχθαι (X). Para facilitar o manuseio deste parágrafo, novamente se faz necessária a análise por partes. ἀφικόµενος(A) δέ ποτε εἰς Σικελίαν, Πρωταγόρου [282ε] αὐτόθι ἐπιδηµοῦντος(A) καὶ εὐδοκιµοῦντος(A) καὶ πρεσβυτέρου ὄντος(A) πολὺ νεώτερος ὢν (A) ἐν ὀλίγῳ χρόνῳ πάνυ πλέον ἢ πεντήκοντα καὶ ἑκατὸν µνᾶς ἠργασάµην(X) Esta passagem segue a estrutura de muitas outras já analisadas: um verbo no aoristo expressando uma ação marginal (ἀφικόµενος), uma sequência de verbos no presente (ἐπιδηµοῦντο; εὐδοκιµοῦντος) ou de aspecto na forma esperada

11

Poderíamos aventar um optativo secundário, mas a análise requerida deste modo possivelmente entrelaçaria modo e aspecto de uma maneira mais complexa do que a pretensão desta monografia.

11 (πρεσβυτέρου ὄντος; πολὺ νεώτερος ὢν12) estabelecendo o pano de fundo contra o qual a ação axial (µνᾶς ἠργασάµην) adquire todo o seu valor: Hípias não conseguiu simplesmente tantas e quantas minas na Sicília, mas o fez durante a estadia de Protágoras, em concorrência a sua fama (εὐδοκιµοῦντος), quando este era mais velho e o próprio Hípias, muito mais novo. καὶ τοῦτο ἐλθὼν (A) οἴκαδε φέρων(X) τῷ πατρὶ ἔδωκα (A), ὥστε ἐκεῖνον καὶ τοὺς ἄλλους πολίτας θαυµάζειν(X) τε καὶ ἐκπεπλῆχθαι (X). Tanto ἐλθὼν quanto ἔδωκα são ações marginais, subsidiárias a φέρων, θαυµάζειν e ἐκπεπλῆχθαι. Segundo a perspectiva de Hípias, tanto ir (ou voltar) para casa quanto dar o dinheiro recebido ao pai são fatos menos importantes do que ganhar13 o dinheiro de outros lugares mundo afora para dentro de casa, e devemos pensar que é esta a ação responsável pela admiração e espanto de seus concidadãos. Caso tentemos inverter a lógica, veremos que não faz sentido nem este espanto nem esta admiração provirem ou de sua volta à casa ou da doação do dinheiro ao pai. Ou ainda, pode-se pensar que, mais importante do que trazer o dinheiro, foi tê-lo dado ao pai, καὶ τοῦτο ἐλθὼν (A) οἴκαδε φέρων(A) τῷ πατρὶ ἔδωκα (X), ὥστε ἐκεῖνον καὶ τοὺς ἄλλους πολίτας θαυµάζειν(X) τε καὶ ἐκπεπλῆχθαι (X) O que seja talvez até mais verossímil, todavia a interpretação da frase não muda substancialmente. Se φέρων expressa uma ação marginal, então seu aspecto (presente) está ressaltado, o que nos faz pensar novamente na idéia do pano de fundo: tanto a doação do dinheiro ao pai, quanto o espanto e a admiração ---que agora não mais decorrem da conquista do dinheiro, mas de ele ser dado a quem foi--- todos estes fatos axiais ganham relevo e conexão frente ao lucro que ele teve mundo afora. 283e πότερον οὖν τοὺς νέους οὐχ οἷός τ᾽ ἦσθα πείθειν ἐν Λακεδαίµονι ὡς σοὶ συνόντες πλέον ἂν εἰς ἀρετὴν ἐπιδιδοῖεν ἢ τοῖς ἑαυτῶν, ἢ τοὺς ἐκείνων πατέρας ἠδυνάτεις πείθειν ὅτι σοὶ χρὴ παραδιδόναι µᾶλλον ἢ αὐτοὺς ἐπιµελεῖσθαι, εἴπερ τι τῶν ὑέων κήδονται; οὐ γάρ που ἐφθόνουν γε τοῖς ἑαυτῶν παισὶν ὡς βελτίστοις γενέσθαι.

12

Também poderíamos pensar em verbos sem oposição aspectual, pois que estes verbos não dispõem de aoristo. Para uma discussão mais aprofundada deste problema de ausência de oposição, ver mais a frente, quando da discussão do futuro. 13 Empregamos aqui a VI acepção do verbo φέρω tal como está no Liddell Scott, mais especificamente no segundo e terceiro agrupamento de acepções.

12 Esta passagem não se presta à tentativa de interpretação empreendida aqui por se tratar de um interrogação (po/teron) feita no passado, não sendo portanto uma narração, mas uma descrição de uma possibilidade localizada no passado. 286c ἔναγχος γάρ τις, ὦ ἄριστε, εἰς ἀπορίαν µε κατέβαλεν(X) ἐν λόγοις τισὶ τὰ µὲν ψέγοντα(A) ὡς αἰσχρά, τὰ δ᾽ ἐπαινοῦντα(A) ὡς καλά, οὕτω πως ἐρόµενος(A) καὶ µάλα ὑβριστικῶς: “πόθεν δέ µοι σύ,” ἔφη, “ὦ Σώκρατες, οἶσθα [286δ] ὁποῖα καλὰ καὶ αἰσχρά; ἐπεὶ φέρε, ἔχοις ἂν εἰπεῖν τί ἐστι τὸ καλόν;” καὶ ἐγὼ διὰ τὴν ἐµὴν φαυλότητα ἠπορούµην(X) τε καὶ οὐκ εἶχον(A) αὐτῷ κατὰ τρόπον ἀποκρίνασθαι(X): ἀπιὼν οὖν ἐκ τῆς συνουσίας ἐµαυτῷ τε ὠργιζόµην(X) καὶ ὠνείδιζον(X), καὶ ἠπείλουν, ὁπότε πρῶτον ὑµῶν τῳ τῶν σοφῶν ἐντύχοιµι, ἀκούσας(A) καὶ µαθὼν(A) καὶ ἐκµελετήσας(A) ἰέναι πάλιν ἐπὶ τὸν ἐρωτήσαντα(A), ἀναµαχούµενος τὸν λόγον. Dividindo frase a frase, temos: ἔναγχος γάρ τις, ὦ ἄριστε, εἰς ἀπορίαν µε κατέβαλεν(X) ἐν λόγοις τισὶ τὰ µὲν ψέγοντα(A) ὡς αἰσχρά, τὰ δ᾽ ἐπαινοῦντα(A) ὡς καλά, οὕτω πως ἐρόµενος(A) καὶ µάλα ὑβριστικῶς Aqui uma ação axial (εἰς ἀπορίαν µε κατέβαλεν) é subsidiada, de um lado, por ações que compõe o pano de fundo (ψέγοντα; ἐπαινοῦντα), de outro, pela ação da qual é resultado (ἐρόµενος). Esta última parte é mais complexa, pois, de fato, não é ἐρόµενος de quem resulta a ação axial, mas de seu conteúdo. Como já dissemos, um verbo auxiliar finito representa sempre uma ação periférica. Acontece aqui que a outra ação axial, da qual ele é um simples verbo auxiliar e que resulta na pretensa aporia de Sócrates, encontra-se no discurso direto, fugindo do escopo de nossa análise. Se estivéssemos diante de uma oração reduzida de infinitivo, ao invés de uma desenvolvida, seria mais fácil propor uma interpretação, mas este não é o caso, estamos diante de um discurso direto. De toda forma, o verbo auxiliar ἐρόµενος se presta a nossa análise: é um aoristo que, por ocupar o espaço de uma ação marginal, não tem seu aspecto destacado, ou pelo menos esta é nossa análise, já que a forma é ambígua (ἐρόµενος pode ser tanto particípio presente quanto aoristo, já que a raiz do aoristo é a mesma do presente). Assim, não podemos descartar que se trate do presente. Neste caso, englobaríamos o verbo em questão no grupo maior dos verba dicendi, em que ocorre a tendência ao uso do presente. O aspecto assumiria um valor de tentativa ou esforço correspondente à posição de relevo que lhe é dada (posição marcada). Posto de lado este detalhe, o restante da frase se assemelha a algumas outras já analisadas: o aoristo, no posto de ação principal, tem seu aspecto ressaltado, podendo

13 ser traduzido por um aoristo terminativo (acabou por me deixar em aporia) ou por um consecutivo (conseguiu me deixar em aporia). O mesmo ressalto no aspecto é encontrado nos particípios presentes ψέγοντα e ἐπαινοῦντα, onde temos a tentativa ou a empresa como um dos possíveis significados para este destaque em que está posto o aspecto. “πόθεν δέ µοι σύ,” ἔφη, “ὦ Σώκρατες, οἶσθα [286δ] ὁποῖα καλὰ καὶ αἰσχρά; ἐπεὶ φέρε, ἔχοις ἂν εἰπεῖν τί ἐστι τὸ καλόν;” Como já foi adiantado, não analisaremos esta parte, pois está no discurso direto. Quanto ao verbo ἔφη, apesar do aoristo no indicativo e o imperfeito terem a mesma forma para este verbo, o próprio Liddel-Scott reconhece que o imperfeito é geralmente suprido pelo verbo fa/skw. De resto, este verbo é muito mais uma marca do discurso direto do que um verbo propriamente dito, não se fazendo conveniente sua análise como tal. καὶ ἐγὼ διὰ τὴν ἐµὴν φαυλότητα ἠπορούµην(X) τε καὶ οὐκ εἶχον(A) αὐτῷ κατὰ τρόπον ἀποκρίνασθαι(X): Esta frase é uma reformulação e expansão da primeira frase do parágrafo em questão. O verbo ἠπορούµην é o correlato de εἰς ἀπορίαν µε κατέβαλεν, sendo que agora não há destaque no aspecto, pois se trata de um presente na posição que lhe é própria ou não marcada, a de ação axial. Já a análise do segundo e terceiro verbos, que formam juntos uma locução verbal, merece maior delonga. O verbo finito auxiliar está no aspecto presente, o que indica destaque e relevo para este aspecto, que pode ser interpretado como um presente de conatu, pois, de fato, além da constatação da incapacidade, não se pode descartar que a tentativa esteja subjacente a esta constatação (ele não só não tinha como, não conseguia responder, mas constatou isto através de uma ou várias tentativas, “eu bem que tentei, mas não consegui responder” parece uma tradução melhor do que “eu não conseguia responder”). Também não é alheio à escolha por parte do autor de qual aspecto utilizar o fato de este verbo ser raramente empregado no aoristo, como constata um estudo anexo a este trabalho sobre as ocorrências deste verbo no texto Hípias Maior. O aspecto do aoristo ἀποκρίνασθαι também está em evidência, dado o lugar que ocupa como ação axial. Seu valor está ligado ao valor do verbo auxiliar finito ao qual ele está sujeito: enquanto este ressalta o caráter precário (tentativa) da possibilidade por ele significada, o aoristo relata que esta incapacidade diz respeito a uma ação em seu

14 termo, em sua consecutibilidade: o de que Sócrates bem que tentou, mas não foi capaz, foi de responder de forma cabal à pergunta, pois, se houve alguma tentativa de resposta, houve alguma resposta, mas inapta, que não chegou a seu termo. ἀπιὼν οὖν ἐκ τῆς συνουσίας ἐµαυτῷ τε ὠργιζόµην(X) καὶ ὠνείδιζον(X), καὶ ἠπείλουν(X), ὁπότε πρῶτον ὑµῶν τῳ τῶν σοφῶν ἐντύχοιµι, ἀκούσας(A) καὶ µαθὼν(A) καὶ ἐκµελετήσας(A) ἰέναι πάλιν ἐπὶ τὸν ἐρωτήσαντα(A), ἀναµαχούµενος τὸν λόγον. Esta última frase é problemática, mercê de seus diversos futuros. Por não ser um aspecto propriamente dito, muitas vezes mais parecido a um modo, não é possível interpretá-lo segundo as mesmas considerações feitas até agora aos outros aspectos. Seu lugar dentro de nossa teoria é muito parecido ao do verbo ei~nai: sendo um verbo de um só aspecto, sem outro que se preste a uma contraposição, não adquire seu aspecto relevo, esteja ele em posição axial ou periférica em relação à narrativa. Assim é com o futuro: periférico ou marginal, seu valor aspectual permanece nulo.14 Tampouco será alvo de nossa análise ἐντύχοιµι, que, por estar no modo optativo, foge do escopo do presente trabalho assim como εἴη algumas linhas acima. Esclarecida esta questão, podemos propor a seguinte organização para esta frase: ἀπιὼν(A) οὖν ἐκ τῆς συνουσίας ἐµαυτῷ τε ὠργιζόµην(X) καὶ ὠνείδιζον(X), καὶ ἠπείλουν(X), ὁπότε πρῶτον ὑµῶν τῳ τῶν σοφῶν ἐντύχοιµι, ἀκούσας(A) καὶ µαθὼν(A) καὶ ἐκµελετήσας(A) ἰέναι(A) πάλιν ἐπὶ τὸν ἐρωτήσαντα(A), ἀναµαχούµενος(X) τὸν λόγον. Como todos os presentes estão em posições axiais, assim como todos os aoristos ocupam posições periféricas, não há nada a acrescentar quanto ao relevo que qualquer dos aspectos ganhasse15. Resta apenas dizer porque pensamos que tais e quais ações são marginais e tais e quais axiais. Começando pela parte mais fácil, não se pode duvidar que ἀπιὼν, ἰέναι e ἐρωτήσαντα sejam ações periféricas, seja pelo critério da vaidade seja por um outro

14

Enquanto ἰέναι e ἀναµαχούµενος são futuros incontestes, o caso de ἀπιὼν é mais duvidoso. Apesar de ser atestado pelo Liddel-Scott como forma supletiva do futuro de a)pe/rxomai, na frase em questão o valor de tempo futuro, que caracteriza tal aspecto, está desenganadamente ausente. Se o tomarmos então por um presente, veremos que o relevo adquirido por este aspecto em função da posição periférica não encontra uma justificativa: é estranho traduzir ἀπιὼν por “tentando” ou “empreendendo ir para longe”. O mais certo é que, se o verbo a)/peimi está aqui como um presente, e não como o futuro de a)pe/rxomai, então a este verbo não corresponde nenhum outro modo que não seja o presente, de tal forma que sua situação dentro de nossa teoria permanece a mesma do verbo ser e do aspecto futuro. 15 O fato desta passagem não apresentar aspectos ressaltados certamente encontra motivo na dissimulação com que Sócrates passa a representar o ocorrido. Teríamos aqui então uma diferença de estilo em harmonia com a diferença de posição em que o locutor se coloca.

15 qualquer, a não ser que se pense que a localização espacial tenha um papel especial no diálogo. Mais complexo é o caso da sequência ἀκούσας, µαθὼν e ἐκµελετήσας. A questão aqui é pensar se este hipotético Sócrates está mais interessado em ouvir, aprender e praticar do que em recomeçar a discussão, ou se é possível que ele esteja igualmente interessado em ambos os grupos de ações. Se tomarmos novamente como fio condutor de nossa pesquisa a empatia que Sócrates busca causar em seu interlocutor, e pensarmos que esta empatia provêm de sua pretensa vaidade, veremos que ela não está nem um pouco interessada em ouvir, aprender ou praticar, mas unicamente em não permanecer em aporia devido a um conceito (de tão fácil definição!), a beleza. O mesmo fio é que nos diz porque ὠργιζόµη , ὠνείδιζον, ἠπείλουν e ἀναµαχούµενος estão em lugares axiais: é a vaidade que encoleriza(-se), recrimina(-se) e jura uma ameaça da qual o elemento principal não é nem a volta, nem o aprendizado, mas o recomeço da discussão perdida. 6 Apêndice: verbo e)xw Este verbo aparece seis vezes no texto Hípias Maior, sendo que sempre está no aspecto presente. Embora pudéssemos mesmo inferir que a construção verbo mais infinitivo só ocorre quando o auxiliar está no presente, sabemos por experiência que é possível sua ocorrência com o aspecto aoristo, ainda que rara. Abaixo seguem as passagens em que a construção acontece neste texto: 282b συµµαρτυρῆσαι δέ σοι ἔχω ὅτι ἀληθῆ λέγεις 286d ἔχοις ἂν εἰπεῖν οὐκ εἶχον αὐτῷ κατὰ τρόπον ἀποκρίνασθαι 297d σὺ δὲ ἔχεις τι λέγειν; 299b ἀλλὰ ἔχεις ἔτι τι χρῆσθαι τῷ λόγῳ 303e ἢ σύ τι ἔχεις λέγειν ἄλλο ᾧ διαφέρουσι τῶν ἄλλων

16

BIBLIOGRAFIA BRANDÃO, Jacyntho José Lins; SARAIVA, Maria Olívia de Quadros; LAGE, Celina Figueiredo. Helleniká: introdução ao grego antigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. CHANTRAINE, Pierre. Grammaire Homerique. Nouveau tirage. Paris: C. Klincksieck, 1986. p. 183-204. CRESPO GÜEMES, Emilio; CONTI JIMÉNEZ, Luz; MAQUIEIRA, Helena. Sintaxis del griego clásico. Madrid: Gredos, 2003. p. 226-280. LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. Greek-English Lexicon. Oxford: Oxford University Press, 1996. HUMBERT, Jean. Syntaxe grecque. 3. ed., rev. e aum. Paris: C. Klincksieck, 1960. p. 133-154. MURACHCO, Henrique. Lingua grega: visão semantica, logica organica e funcional. São Paulo: Discurso Vozes, 2001. PLATON. Trad. Alfred Croiset. Hippias Majeur. In: Oeuvres Complètes. 3 ed. rev. e cor. Paris: Les Belles Lettres, 1949. vol. 2. RODRIGUEZ ADRADOS, Francisco. Nueva sintaxis del griego antigo. Madrid: Gredos, 1992. p. 381-489.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.