Uma tradição francesa na historiografia brasileira

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Entre espacios: la historia latinoamericana en el contexto global Actas del XVII Congreso Internacional de la Asociación de Historiadores Latinoamericanistas Europeos (AHILA) Freie Universität Berlín, 9-13 de septiembre de 2014

editado por Stefan Rinke

Berlín Freie Universität Colegio Internacional de Graduados “Entre Espacios” 2016

ISBN-13: 978-3-944675-35-0 DOI: 10.17169/FUDOCS_document_000000024129 URL: http://edocs.fu-berlin.de/docs/receive/FUDOCS_document_000000024129 Publicado bajo Creative Commons Attribution 4.0 Licence (CC BY 4.0): http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Prólogo Entre el 8 y el 13 de septiembre de 2014 tuvo lugar en la Freie Universität Berlin (Universidad Libre de Berlín) el XVII Congreso Internacional de la Asociación de Historiadores Latinoamericanistas Europeos (AHILA) organizado por el Colegio Internacional de Graduados “Entre Espacios”. El congreso, titulado “Entre Espacios: La historia latinoamericana en el contexto global”, contó con cerca de 1000 participantes, provenientes un 60% de países latinoamericanos y era de lejos el congreso más grande en la historia de AHILA. Nunca antes tantos latinoamericanos habían sido partícipes de un evento académico en Alemania. Por tanto, este ha sido hasta el momento el congreso de Estudios Latinoamericanos más grande realizado en Alemania. El congreso fue patrocinado por la Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG) y la Universidad Libre de Berlín, a las que les debo mis agradecimientos. En 102 simposios se discutieron diferentes temas de la historia latinoamericana frente a la globalización. Además de los simposios, hubo conferencias magistrales, discusiones en paneles y un amplio programa cultural. El repertorio de los simposios y conferencias incluyó desde las tendencias de la historiografía en el contexto global, pasando por la circulación de conocimiento en Latinoamérica y Europa, hasta temas como la corrupción, la migración y el exilio. La meta académica del congreso fue alcanzada satisfactoriamente. Llamó la atención también la congruencia interdisciplinaria de los diferentes simposios, los cuales enriquecieron profundamente el debate académico. Gracias a la cercana interacción surgieron a partir del congreso nuevas redes académicas intercontinentales. Finalmente, es de resaltar la participación activa de jóvenes historiadores en el congreso. La presente publicación de las Actas reúne los resultados del congreso. Por primera vez en la historia de AHILA publicaremos las actas en un formato de libre acceso, para alcanzar así su máxima difusión. Agradecemos a los coordinadores y autores que participaron con sus artículos o resúmenes [(R)]. Doy un especial agradecimiento al equipo de trabajo del Colegio Internacional de Graduados liderado por Ingrid Simson, así como a mis asistentes Karina Kriegesmann, Felipe Fernández y Philipp Kandler, quienes fueron vitales para la publicación de las Actas. Berlín, marzo de 2016

Stefan Rinke Presidente de AHILA

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Uma tradição francesa na historiografia brasileira Tiago Almeida Universidade de São Paulo, Brasil / Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Francia

Resumo:

A História da Medicina ocupa um lugar destacado no rol dos estudos brasileiros e, para os historiadores formados na tradição epistemológica dos franceses Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e Michel Foucault, foram a própria vida e seus conceitos adjacentes, como normal e patológico ou saúde e doença, que vieram se instaurar no seu foco de atenção. Mais que simplesmente seguir, no Brasil, essa filiação em epistemologia histórica, propomos investigar alguns desdobramentos metodológicos de sua filosofia crítica na Historiografia brasileira da medicina e no campo da Saúde Coletiva.

Palavras-Chave: Bachelard; Canguilhem; Foucault; Historiografia brasileira; Epistemologia Histórica.

“Conservar a saúde e curar as doenças: esse é o problema que a medicina se colocou desde a sua origem e para o qual ainda persegue a solução científica.” Foi com essa declaração que, em 1865, Claude Bernard inaugurou sua famosa Introdução ao estudo da Medicina Experimental. No entanto, aquém dessa serena – e apenas aparente – continuidade da finalidade da medicina, existe o fato de que os conceitos de saúde e doença também possuem histórias próprias, isto é, que eles pertencem a tipos de racionalidade específicos, e que, com eles, variam também os problemas que a medicina se coloca, as tarefas que ela se impõe. Assim, por exemplo, se a medicina de meados do século XIX privilegiou a dupla tarefa do diagnóstico e da terapêutica, um século após a publicação daquela obra de Claude Bernard ela se apresentava como a sistematização de quatro condutas fundamentadas em vários ramos das ciências: diagnóstico, prevenção, terapêutica e reabilitação. A compreensão de que a historicidade dos conceitos de saúde e doença e das relações que mantêm entre si influi diretamente sobre a prática médica está longe de ser uma novidade para os historiadores brasileiros – pelo menos desde a recepção, entre nós, das obras Georges Canguilhem e, principalmente, de Michel Foucault. Um fato já solidificado em nossa historiografia, diz que tem sido assim no Brasil desde a década de 70, como atestariam os livros Danação da norma (1978), de Roberto Machado (et al.), e Ordem médica e norma familiar (1979), de Jurandir Freire Costa. As primeiras palavras de apresentação do livro de Roberto Machado são esclarecedoras: “Estudo de história dos saberes, este livro tem

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por objetivo dar conta do nascimento de um tipo de medicina característico da sociedade capitalista”. Ele segue explicando: “[este livro] analisa os conceitos básicos da medicina social e da psiquiatria brasileiras; mas não se limita a uma abordagem interna: pretende refletir sobre esses saberes como prática social”.1 Num livro bem mais recente, Práticas médicas e de saúde nos municípios paulistas, nós encontramos uma boa indicação sobre os caminhos da historiografia da medicina no Brasil: após afirmarem, na introdução à obra coletiva, o interesse crescente dos historiadores profissionais pela história das ciências, os autores, Antonio Celso Ferreira e Tania Regina de Luca, avaliam que também é crescente “a contribuição da história (e das ciências humanas em geral) à medicina desde a abordagem pioneira de Michel Foucault, sobretudo, em O nascimento da clínica”. A maior contribuição da história para a medicina, eles deixam claro, é a sua função crítica, ou seja, a “possibilidade de investigar os modos próprios de constituição dos saberes no que tange a vários aspectos: seus caminhos e desvios; os agentes e sua relação com a sociedade, lugares de produção e instituições reguladoras; modelos epistemológicos e técnicas; terrenos de atuação e tipo de prática” 2. Preocupação crítica de inspiração foucaldiana que se fez sentir, um pouco antes dos livros de Machado e Freire Costa, em outra obra menos conhecida pelos pesquisadores em Ciências Humanas, a tese de doutorado “O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva”3, apresentada em 1975 por Sérgio Arouca à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas. Esse tipo de história das ciências, preocupado com as relações entre Medicina e Sociedade, nasceu do encontro entre marxismo (aquele de Althusser) e epistemologia na França, na década de 60. Atenta aos conceitos, mas também às suas condições históricas de possibilidade, um de seus debates mais férteis, certamente o que chegou com mais força no Brasil na década seguinte, foi sobre a relação entre ciência e ideologia. O vigor da tese de Arouca se deve muito ao desvelamento das ideologias e práticas ideológicas que estão na origem das insuficiências da Medicina Preventiva: “a Medicina Preventiva, mais do que a produção de novos conhecimentos, mais do que mudanças na estrutura da atenção médica, representa um movimento ideológico”, afirmou logo na sua Introdução. Segundo Guilherme Rodrigues da Silva, orientador de Arouca no doutorado, O Dilema Preventivista “foi fundamental para a construção de uma teoria social da saúde no Brasil e tem sido um dos trabalhos mais citados pelos pesquisadores dessa área”4. A concretização da teoria social à qual se refere Rodrigues da Silva teria se dado através da incorporação da declaração de direito à saúde na Constituição de 1988 e, nos anos seguintes, da institucionalização do Sistema Único de Saúde. É evidente que as limitações da Constituição e do SUS não devem ser colocados na conta de Arouca, e tampouco servem para uma leitura retroativa da sua tese. Se destacamos o seu protagonismo nas discussões políticas sobre a Saúde no Brasil é porque os paradigmas da Saúde Coletiva ali articulados, segundo seus intérpretes, foram lançados por Arouca mais de dez anos antes em sua crítica histórico-epistemológica da Medicina Preventiva, que logo se tornou objeto de ampla discussão MACHADO, 1978, p. 11. FERREIRA, Antonio Celso e LUCA, Tania Regina. “Medicina e práticas médicas em São Paulo: uma introdução”, p. 15. 3 AROUCA, Sérgio. O Dilema Preventivista: Contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003. 4 Do “Prefácio” à edição supracitada da obra de Arouca, p. 15. 1 2

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nas escolas médicas e serviu de base teórica para a organização do movimento pela Reforma Sanitária da década de 80. Além da tese de Arouca, podemos destacar, nessa recepção das ideias de Canguilhem e Foucault no Brasil, nos anos 70, os trabalhos da “escola uspiana” de saúde coletiva. Foi Ricardo Bruno Mendes Gonçalves5 quem primeiro chamou a atenção para a existência de uma “escola” constituída a partir da obra e do ensino de Cecília Donnangelo no Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, e da qual ele mesmo foi um dos mais importantes contribuidores. A esses nomes, acrescentamos os de Ricardo Lafetá Novaes, Lilia Blima Schraiber e José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, sem, no entanto, pretendermos que eles delimitam definitivamente o alcance dessa escola (que poderia se estender para compreender alunos diretos ou menos diretos desses professores do Departamento de Medicina preventiva da USP) marcada pela reflexão histórica sobre o processo saúde-doença nas populações. Uma história da recepção no Brasil dos livros O normal e o patológico, de Canguilhem, e O nascimento da clínica, de Michel Foucault, certamente teria um capítulo, e provavelmente o primeiro, dedicado à escola uspiana e a Sérgio Arouca, que citavam esses textos fundadores do estilo francês de história da medicina antes mesmo deles serem traduzidos no Brasil, a partir das traduções para o espanhol publicadas pela editora Siglo XXI. Se conferimos à escola uspiana e a Arouca um lugar na história da recepção da epistemologia histórica no Brasil, não é por acreditarmos que eles foram os primeiros a ler ou citar os filósofos-historiadores franceses, a incluí-lo nas referências bibliográficas de um trabalho qualquer, mas porque eles foram os primeiros a fazer de O normal e o patológico e de O nascimento da clínica os leitmotivs de uma reflexão sobre a historicidade da prática e do pensamento médico, conferindo um conteúdo original à fortuna crítica de Canguilhem e Foucault. O pensamento social em saúde, para o qual a temática do capitalismo, bastante influenciada pela leitura de Louis Althusser (no Brasil foram os althusserianos quem primeiro traduziram os trabalhos de Bachelard, Canguilhem e Foucault), transformou-se num pilar, causou um desequilíbrio historiográfico a favor da “saúde coletiva” em relação às especialidades médicas e suas racionalidades específicas. O movimento político pela reforma sanitária no Brasil, que certos autores tratam como parte de um “momento revolucionário da medicina social” na América Latina, pôs no centro da discussão a relação entre saúde e sociedade. O que se seguiu foi um predomínio dos estudos históricos sobre saúde pública e a medicina social, os movimentos sociais, o Estado, o sistema de produção. Assim, os estudos sobre “o social da saúde” estariam em continuidade com o projeto político de Arouca e da escola uspiana de formulação de uma teoria social da saúde, mas foram se afastando do modelo historiográfico e epistemológico que eles empregaram (as exceções, como José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, Naomar de Almeida Filho ou Dina Czeresnia se destacam facilmente). Com a “revolução sanitarista” na década de 80, a relação entre saúde e sociedade assumiu um papel tão central no campo das Ciências Humanas que a História da Medicina, com seu programa de crítica epistemológica, atenta à historicidade do discurso médico, perdeu espaço para os chaNo prefácio a AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. Epidemiologia e emancipação. Rio de Janeiro: Hucitec/ ABRASCO, 1995.

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mados Social Studies of Science. Sem intenção de realizar a crítica epistemológica da medicina ou do campo da Saúde Coletiva, não havia razão para perseguir o projeto, no qual engajaram-se Bachelard, Canguilhem e Foucault, de estabelecimento de uma teoria desta História das Ciências cujo objeto seria a historicidade dos discursos científicos, normatizados pela pretensão de dizer a verdade, mas atravessados por erros e desvios, construídos em relação com a não-ciência, as ideologias, as práticas políticas e sociais e com a cultura intelectual. Um projeto que, aliás, foi reconhecido pelo próprio Althusser já em 1964: Existem questões que jamais terão respostas, posto que são questões imaginárias, que não correspondem a problemas reais; existem respostas imaginárias, que deixam sem verdadeira resposta o problema real a que elas aludem; existem ciências que se dizem ciências, mas que não passam de imposturas científicas de uma ideologia social; existem ideologias não-científicas que, através de encontros paradoxais, fazem nascer verdadeiras descobertas – como vemos o fogo surgir do choque de dois corpos estranhos. Por isso, toda a complexa realidade da história, em todas as suas determinações – econômicas, sociais, ideológicas –, entra em jogo na inteligência da própria história científica. A obra de Bachelard, de Canguilhem e de Foucault nos dá a prova.6

Antes mesmo da defesa da sua tese, Arouca já havia publicado, em 1974, na Revista de Educación Médica y Salud, da Organização Pan-americana da Saúde, o artigo “La arqueologia de la medicina”, que ele descreveu como “uma breve introdução à nova disciplina criada por Michel Foucault – a história arqueológica – concretamente no aspecto relativo à medicina”. O artigo, embora sobre Foucault, começa com uma referência a Canguilhem: Según Canguilhem, la historia de las ciencias se define en relación con el discurso metódico que constituye su objeto científico. Por lo tanto, “el objeto del discurso [histórico] es la ‘historicidad’ del discurso científico, en la medida en que esta historicidad representa la realización de un proyecto interiormente regulado, pero surcado por accidentes, retrasado o desviado por obstáculos, interrumpido por crisis, es decir, momento de enjuiciamiento y verdad”. En estas condiciones, la ciencia tiene su propio aspecto, su ritmo y, para expresarnos mejor, su temporalidad específica; procede por reorganizaciones, rupturas y mutaciones; pasa por puntos críticos en los que el tiempo se acelera o se hace más pesado, efectúa bruscas aceleraciones y retrocesos repentinos.7

Mas, então, o que o historiador deve fazer entrar na história das ciências? De quê a história das ciências é a história? “Preferimos partir da premissa de que a história das ciências é, basicamente, a história das ideias”, sentencia Arouca. Ou seja, o objeto do discurso histórico sobre as ciências são os fatos intelectuais das ciências. A história da Medicina Preventiva – “um novo fenômeno no campo conceitual da área médica” –, deve ser escrita como a história dos conceitos sobre os quais se desenvolve sua prática. E “a história de um conceito”, Arouca cita Foucault, “é a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de usos, dos meios teóricos múltiplos em que se prosseguiu e se acabou em sua elaboração”8.

6 ALTHUSSER, Présentation, p. 03. In : La Pensée n°113, fevereiro 1964, p. 62-74. Esse artigo de Macherey, junto com a apresentação de Althusser, serve de posfácio à edição brasileira de Le normal et le pathologique (CANGUILHEM,Georges. O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) 7 AROUCA e MARQUEZ, “La arqueologia de la medicina”, p. 1. 8 FOUCAULT, A Arqueologia do saber, APUD, AROUCA, O Dilema Preventivista, p. 32. Arouca cita Foucault a partir da tradução brasileira de A Arqueologia do saber publicada pela Editora Vozes em 1971.

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A partir dessa citação, podemos recuperar um sentido para a expressão “crítica histórica” que nos permite, enfim, falar de um “estilo francês”, que, se não é predominante entre os historiadores profissionais, ainda é relevante para os estudos sobre a epistemologia da saúde coletiva. O caso exemplar, é a obra de José Ricardo Ayres, médico, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. No livro Epidemiologia e Emancipação, Ayres afirma: “Por certa afinidade metodológica, e até por expressiva proximidade temática, iniciemos a explicitação da perspectiva epistemológica a ser desenvolvida tomando como ponto de partida sua relação com a escola francesa, a chamada epistemologia histórica”. Ayres oferece, então, a seguinte explicação: As concepções de Bachelard vieram a alterar profundamente a concepção clássica segundo a qual as diferentes ciências configurariam ramificações de uma mesma e universal racionalidade humana, desenvolvendo-se linear e continuamente, ‘das trevas à luz’. De Canguilhem, Foucault herda o método histórico epistemológico, isto é, o rastreamento dos antepassados dos discursos científicos não por meio dos seus produtos práticos ou marcos factuais, mas dos conceitos, da arquitetura de constructos teóricos característicos desses discursos.

O tipo de História das Ciências proposto pela epistemologia francesa servia como crítica da razão, o que exigiu a formação de um novo tipo de historiador, capaz de assumir, em relação à racionalidade científica, a dupla tarefa de diagnóstico e terapêutica que também caracteriza a Filosofia Crítica, desde Nietzsche. Isso é particularmente verdadeiro nos períodos de crise. Assim, a revolução da medicina social no Brasil, que, a partir do problema das relações entre saúde e sociedade, aproximou sociólogos, antropólogos e historiadores da medicina, exigia um olhar atento à mutação da própria racionalidade médica. O livro de José Ricardo Ayres, é ele mesmo quem diz, testemunha “uma preocupação com os rumos da saúde coletiva que não abre mão do estudo do desenvolvimento científico da epidemiologia”, uma preocupação de quem olha “de dentro” de uma disciplina que passa por uma brusca transformação. A importância daquele enunciado sobre a dupla tarefa filosófica da História das Ciências só pode ser bem avaliada se admitirmos, como fizeram Arouca e a escola uspiana, que História e Epistemologia mantêm uma relação de crítica, repetição e reforço mútuo. Segundo Foucault, que nunca deixou de mencionar seus débitos com os trabalhos de Bachelard e Canguilhem, dizer “História Epistemológica” implica o reconhecimento de “uma reflexão teórica indispensável que permite à história das ciências constituir-se de uma maneira diferente da história em geral”, ao mesmo tempo em que “abre o domínio da análise indispensável para que a epistemologia seja outra coisa que a simples reprodução dos esquemas internos de uma ciência em um dado momento”.9 Ou, como disse Sérgio Arouca a propósito de seu método, “trata-se de determinar, em dado contexto social, a que tipo de racionalidade o conceito pertence”10. Ao investigarmos essa tradição forjada no interior de faculdades médicas e preocupada com o “social da saúde”, pretendemos fazer mais que defender a vitalidade ou a recuperação do “estilo francês” de epistemologia na historiografia do pensamento médico no Brasil. Queremos reduzir o risco de que a oposição equivocada entre História Social e História Epistemológica se torne o correlato contemporâneo da velha oposição igualmente equivocada entre externalismo e interna-

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FOUCAULT, A vida: a experiência e a ciência, p. 361. AROUCA, O Dilema Preventivista, p. 32.

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lismo, que limitou, quando o objetivo deveria ser alargar o campo de investigação da história das ciências e das técnicas.

Referências bibliográficas AROUCA, Sérgio. O Dilema Preventivista: Contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. São Paulo: Editora UNESP; Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2003. AROUCA e MARQUEZ, “La arqueologia de la medicina”. In: Revista de Educación Médica y Salud, 1974; p. 331-446. AYRES, José Ricardo de Carvalho Mesquita. Epidemiologia e emancipação. Rio de Janeiro: Hucitec/ABRASCO, 1995. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. Rio de Janeiro: Forense Universitária FERREIRA, Antonio Celso e LUCA, Tania Regina. “Medicina e práticas médicas em São Paulo: uma introdução”. In: MOTA, André e MARINHO, Gabriela S.M.C. Práticas médicas e de saúde nos municípios paulistas: a história e suas interfaces. São Paulo: USP, Faculdade de Medicina: CD.G Casa de Soluções e Editora, 2011, p. 17-36. FOUCAULT, A vida: a experiência e a ciência. In: __________. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Manoel Barros da Motta (org.). Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 335-351. – ( Ditos e Escritos; II). MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Ângela; LUZ, Rogério; MURICY, Kátia. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro:Edições Graal, 1978.

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