Uma trajectória tradicional

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Uma trajectória tradicional

Durante todo o fim-de-semana o Brasil, um dos países mais relevantes da América Latina, tem estado envolvido num dos casos mais mediáticos e mais polémicos dos últimos anos do século XXI na região. O retorno do tão popular presidente Lula da Silva ao cerne brasileiro e as acusações de grande parte da oposição e da opinião pública às posições assumidas por Dilma desacreditaram a legitimidade da democracia brasileira e confirmaram o declínio há tanto tempo expectável. Embora muitas das razões para este declínio esteja nas posições ambivalentes e duvidosas da agora destituída Dilma, a desintegração brasileira correlaciona-se com outros tantos factores que procurarei explorar durante este texto. O primeiro passa por uma reafirmação/revalorização do que é o populismo latino-americano no seu sentido mais estrito e que, a priori, condiciona em grande parte as posições assumidas tanto na política interna como na política externa brasileira. O segundo baseia-se numa confirmação das teorias do declínio das grandes potências regionais onde nas quais se inclui o Brasil e na necessidade de reestruturação dos mesmos. No terceiro e último ponto, argumentarei que o Brasil repete agora os erros do passado numa política que se assemelha às posições assumidas desde a presidência de José Sarney.
Uma das características do Brasil e, grosso modo, dos países da América Latina centra-se no populismo bem como no presidencialismo. Caracterizado por uma crença de que as instituições da democracia liberal clássica como é o caso dos tribunais e das legislaturas não se coadjuvam com a "vontade popular" segundo Mitchell Seligson, o populismo constrange as acções de cada um destes estados quer seja endógena (moldando as políticas internas seguidas pelo chefe de Estado) ou exógena (definindo o caminho seguido pelo país nas suas relações externas, nomeadamente, a nível regional com os seus países vizinhos cujo caminho tem sido particularmente ardiloso, quer com os EUA que não podem ser descurados enquanto actor de enorme preponderância na definição do caminho seguido pela América Latina, quer em termos internacionais como representa a necessidade de reformar as organizações internacionais a seu bel prazer). No caso brasileiro, esse apoio popular, recuperado desde a presidência de Fernando Henrique Cardoso fruto do Plano Real na década de 90 do século XX, tem sido proeminente e factor de união e apoio ao caminho seguido pelo país. Paulatinamente, o Brasil foi conquistando o apoio interno e externo sendo caracterizado como uma das potências saídas do Terceiro Mundo para se afirmar como grande potência num sistema internacional pós-Guerra Fria que se expectava ser multipolar. Essa tendência popular que se pensara perder com o fim do mandato de Cardoso fruto dos receios da ascensão do Partido Trabalhista brasileiro foi, no entanto, reforçada com o fenómeno Lula e a "viragem à esquerda" da América Latina em geral. Uma miríade de posições que colocavam o Brasil num crescimento interno sem precedentes, as novas relações com a China, a Rússia e a Índia, e a oposição aos EUA apoiada por grande parte das facções brasileiras reflectiam uma tendência proactiva por parte de Lula. Porém, com o fim da era Lula e a entrada de Dilma, o Brasil entrou numa espiral descendente e de perda relativa de apoio popular. Contrariamente ao que acontecera em países como o Chile ou a Argentina, actores relevantes na região latino-americana, a maior potência regional parecia ter perdido o apoio da opinião pública, divergido das tendências populistas à revelia do que aconteceria com a Venezuela embora em circunstâncias diferentes numa época pós-Chávez, e teria perdido o seu apoio e espaço de manobra nas suas decisões. Ainda que essa tendência não se tivesse reflectido imediatamente durante o primeiro mandato de Dilma uma vez que foi recebida como continuação do fenómeno Lula bastante presente nas acções da mesma, um conjunto de incongruências e incompreensão do panorama interno degradou lentamente a estabilidade interna brasileira e a sua projecção externa. Dois acontecimentos conduziram ao culminar dessa posição brasileira: a primeira durante o período do Mundial de 2014, alvo de manifestações populares duras stricto sensu; a segunda com o caso Lava Jacto e o retorno de Lula à política interna brasileira depois das acusações de corrupção das quais toda a opinião pública tem conhecimento. A destituição de Lula votada ontem, significou o eclodir do populismo brasileiro e esse necessitará de ganhar a confiança do novo presidente que o Brasil possa ter nos próximos meses.
A afirmação brasileira no sistema internacional quer em termos regionais quer em termos internacionais, foi recebida de bom grado por toda a comunidade internacional e permitiu uma inserção nas tendências neoliberais do pós-Guerra Fria como foi suprarreferido. A defesa de novos temas (os direitos humanos, o ambiente e a não-proliferação nuclear) em convergência com países como a China, a Rússia e a Índia que formariam os denominados BRICs e os esforços de construção do G20 para os quais o Brasil necessitava do apoio para se poder inserir enquanto membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas como tem sido argumentado por autores como Monica Hirst, conferiram um novo fôlego à região e ao próprio país. Grande parte dos autores regionalistas viram a necessidade de reestruturar o conceito de regionalismo como não mais coincidente com as tendências observadas por estes países e que se afastavam do paroquialismo europeu como foi o caso de Fredrik Söderbaum. No entanto, a entrada no século XXI não foi conduzida da forma esperada por grande parte destes países: as crises económicas recorrentes, a dificuldade de inserção num sistema internacional mais abrangente, a omnipresença norte-americana e as dissidências internas impediram um estabelecimento concreto destas potências que não mais eram do que regionais e paralisaram o seu progresso. Tanto a China (fruto de vários dilemas de segurança no Sudeste Asiático e de dificuldades criadas pelo Partido Comunista Chinês); como a Rússia (fruto das dificuldades económicas e da descredibilização que lentamente tem recuperado pós-Guerra Fria) como o Brasil (fruto de uma degradação do seu ambiente económico) têm confirmado que estes países apenas demonstram uma proeminência no espectro regional e não internacional onde necessitam de debelar com a unipolaridade norte-americana. O caso brasileiro, ainda que tenha aumentado a sua relevância em várias instâncias (a CPLP, as relações Sul-Sul, e as novas interpretações nas relações do Atlântico Sul) tem acompanhado esta tendência uma vez que tem perdido a legitimidade da comunidade internacional face às crescentes acusações de corrupção por parte das entidades máximas. O Brasil necessita agora de reestruturar o seu espectro interno para conseguir manter as suas ambições no nível externo e se se quiser manter como defensor dos direitos da América Latina e para isso necessita de legitimar e estabilizar a sua economia e a sua veracidade mantendo um peso nas organizações internacionais vis-à-vis os EUA.
A situação actual do Brasil, nomeadamente, desde o início do projecto Lava Jacto parece apresentar uma situação onde este país não aprendeu com os erros do passado. Tal como acontecera durante a presidência de José Sarney (1985-1990), o primeiro mandato de Dilma correspondeu a um momento de apaziguamento da posição brasileira no sistema internacional e de pouco desenvolvimento a nível interno, um momento de quase apatia/anomia. A destituição acontecida ontem anuncia um período de entrada semelhante ao ocorrido durante o processo de impeachment do presidente Collor de Mello onde as acusações de corrupção conduziram a uma presidência de período bastante curto. O Brasil parece, portanto, entrar numa espiral quase viciante de repetição dos seus erros, mas que pode significar uma revalorização nacional e internacional através de meios pacíficos e inesperados tal como aconteceu na era pós-Itamar Franco. A esperança pode estar agora na revigoração brasileira através um presidente que seja capaz de trazer o país de volta à emergência internacional como foi o caso de Fernando Henrique Cardoso, ou pode seguir o fim da viragem à esquerda numa nova esperança à direita, num caminho costumeiro seguido por todos os países da América Latina e que se tem tornado predominante nos últimos anos. Se esse caminho for efectivado da melhor forma, então podemos esperar um robustecimento do Brasil que imediatamente dará aso a novas tentativas de liderança na América Latina e à abertura de novos desafios para uns EUA que se apresentam num momento de transição e de desgaste político e internacional como se seguissem o argumento de Jean-Baptiste Duroselle em "Tout Empire Périra".
Deste modo, o Brasil necessita de voltar a conjugar os seus factores de sucesso, principalmente, recuperar a sua economia e a confiança dos mercados internacionais para estabilizar a sua ordem interna de forma permanente, algo que tem falhado ao longo dos últimos anos (o Plano Real embora tenha tido um sucesso relevante acabou por controlar apenas a inflação e não se reflectiu em melhorias na qualidade de vida da população) para que possa recuperar o apoio da opinião pública para que, caso a sua estratégia passe por uma reafirmação do populismo e do presidencialismo segundo os moldes latino-americanos, se consolide internamente. Segundo, o Brasil necessita de, juntamente com países emergentes como a China, analisar o ambiente no qual está incluído e demonstrar que é capaz de manter um crescimento paulatino para que, a posteriori, possa ter ambições mais altas e acreditar que o multipolarismo, apesar de longínquo, é uma realidade aceitável e exequível. Por fim, o próximo presidente necessita de criar um ambiente o mais favorável possível para que o Brasil saiba superar os erros que tem cometido nos últimos anos visando dois pontos fundamentais: o garante da sua legitimidade interna que se reflectirá na América Latina através do fomento das relações Sul-Sul e na defesa do Cone Sul nas instâncias internacionais, nomeadamente na ONU e na OMC onde o Brasil tem interesses bem definidos, bem como no reforçar da sua capacidade para liderar instituições como é o caso da Mercosul e da UNASUR com um cariz marcadamente comercial; demonstrar que pode assumir uma posição central na comunidade internacional voltando à "autonomia pela integração" de Fernando Henrique Cardoso onde no qual demonstra aos EUA que pode continuar a ser um parceiro de confiança mas seguindo um caminho bastante próprio e focado nos seus interesses nacionais.

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