UMA TRANSPOSIÇÃO TEATRAL DE “MISSA DO GALO”

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Ensaio sobre uma transposição para palco do conto “Missa do Galo”(1894), de Machado de Assis (1839-1908) por Alexander Martins Vianna – somente para Academia.edu – 03 de março de 2016

UMA TRANSPOSIÇÃO TEATRAL DE “MISSA DO GALO” por Alexander Martins Vianna

*** UM CONTO DE MACHADO PUBLICADO EM 1894

Entre Balzac e Flaubert, o conto machadiano “MISSA DO GALO” revela as sutilezas do comportamento centrado nas aparências de respeitabilidade social da classe média carioca patriarcal da segunda metade do século XIX. O enredo do conto se localiza na corte do Rio de Janeiro, Rua do Senado, em 1861, no suposto universo respeitoso do escrivão Menezes – Chiquinho, para sua Esposa de trinta anos, Conceição. Há no enredo, além destes, a sogra (dona Inácia), duas escravas e a chegada de um jovem estudante em seus ingênuos e interioranos 17 anos: vindo de Mangaratiba, Nogueira estava na fase dos preparatórios e não tinha outros vínculos sociais na Corte. As escravas não têm vozes no conto, mas risos, para demarcar a ingenuidade de Nogueira em relação ao comportamento de Menezes. Nogueira era primo da primeira esposa de Menezes, o que significa que não tinha vínculo parental direto com o escrivão e a sua atual esposa Conceição, que casara aos 27 anos com Meneses. Conceição já seria considerada em idade avançada para casar enquanto solteira, o que tornava um viúvo escrivão bem situado à Rua do Senado uma boa opção de segurança social. Portanto, a sua primeira núpcia era a segunda núpcia do seu marido, sem filhos do primeiro casamento. Passados três anos, quando Nogueira chegou de Mangaratiba, o novo casal ainda não tinha filhos. Tudo leva a supor que há uma considerável diferença etária entre Menezes e Conceição. Menezes mantém uma tacitamente consentida relação extraconjugal, codificada na

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família como “ida ao teatro”. Na noite de natal, Menezes resolveu “ir ao teatro”, o que causou grande incômodo e insônia em Conceição, mas tudo demonstrado de forma sutil: “desalinho honesto”. Assim, os tipos estão postos e a trama se desenvolve, revelando todo o horror civilizado de tanta respeitabilidade social da classe média cortesã imitativa da aristocracia, particularmente as estratégias de sobrevivência social e afetiva de Conceição (e, por extensão, de sua mãe viúva). O papel social e cultural do romance e um código de decoro visual são também revelados por meio do conto: gravuras santas para salas respeitosas patriarcais; gravuras clássicas eróticas para salas de rapazes ou barbearias; romances românticos como compensativos ingênuos de aventuras impedidas pelos decoros e exigências de “vida respeitosa”, mas ao mesmo tempo apontando para quais decoros seguir, como acontece na citação por Conceição do romance “A Moreninha” (1844, de Joaquim Manoel de Macedo), no qual o espaço físico da casa de Paquetá é representado como claramente dividido entre gineceu e androceu. Sabemos que Machado sempre cita romances românticos para corroê-los com suas ironias ditas ou subentendidas por meio do desenvolvimento das tramas e personagens. Conceição tem lembranças de Paquetá, mas, diferentemente da protagonista de “A Moreninha”, não conseguiu se casar antes dos 20 anos – e nem submeter as ânsias sexuais donjuanescas do marido mais velho. Não vou aqui antecipar o desenvolvimento do enredo do conto de Machado de Assis (1839-1908). Quem nunca o leu que o leia. Está acessível em: http://www.projetodemaoemmao.com.br/downloads/livros-machado-assis.pdf.

*** A TRANSPOSIÇÃO DO CONTO PELO “AGRUPAMENTO TEATRAL” EM 2010

Aqui, o que eu gostaria de focar são as soluções teatrais do Agrupamento Teatral para transpor o conto de Machado para palco em 2010. No início do espetáculo, há dois Nogueiras: aquele do passado, jovem, ao fundo (representado pelo ator Felipe Ramos); o atual, maduro, à frente (representado pelo ator Arô Ribeiro). Nos momentos de pausa de diálogos, quando se introduz a música de tormento emocional do “desalinho honesto”, ambos usam a técnica do butô na forma de codificar os gestos. O cenário, em fundo escuro, forma a perspectiva de aproximação taciturna entre passado e presente, reforçado por uma iluminação perfeitamente condizente com o roteiro para teatro montado para o conto. Os movimentos cênicos das duas únicas cadeiras (atores) do cenário também demarcam isso, até haver os momentos de nivelamento e/ou choque de reminiscências entre as temporalidades narrativas dos dois Nogueiras – algo que cria uma solução cênica original para as marcas temporais do conto, expondo cenicamente uma dobra de sentido que lhe era latente.

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Ao final do espetáculo, há a inversão: o Nogueira do presente fica ao fundo; o Nogueira do passado fica à frente, concluindo o enredo tal como iniciou, com o tormento sonoro e gestual em técnica expressiva de butô. Acima, no cenário, há cordas ou cabos entrelaçados que reforçam o mesmo sentido de tramas de vidas em duas temporalidades. Os figurinos dos Nogueiras não chegam a criar uma ancoragem temporal precisa em 1861: como espelhos ou espectros um do outro, ambos estão com os mesmos figurinos que corresponderiam à época do Nogueira socialmente adulto – aquele do final do século XIX, classe média de serviços. Todas essas codificações são muito oportunas porque o conto sugere que o Nogueira adulto fala com distância dos eventos, mas com a mesma incógnita do jovem Nogueira de 17 anos: nunca entendeu (na verdade, o Nogueira adulto não quis reconhecer) a natureza da conversação noturna que teve com dona Conceição naquela uma hora que antecedeu a Missa do Galo, quando todos na casa já dormiam e seu marido Menezes tinha “ido ao teatro”. Na verdade, como já sabemos, Menezes foi passar o natal com a amante, o que tirara o sono de dona Conceição e alimentara ardis de vingança, que não se concretizaram devido à falta de experiência do jovem Nogueira em decodificar a melhor forma de aproximação sexual a uma mulher mais velha (30 anos), casada, de beleza mediana e abandonada na véspera de natal. Conceição sinalizara com sutileza a sua disposição de ceder carnalmente a Nogueira, desde que este tomasse a iniciativa de cumprir o papel de sedução que lhe cabia em meio a tanto “desalinho honesto”. Portanto, roteiro e direção optaram pela duplicação cênica dos Nogueiras para que ambos os atores pudessem se alternar entre as narrativas e as vozes contidas no conto (vozes diretas de Nogueira, de Conceição e de sua mãe Inácia mantidas e adaptadas na transposição teatral; voz indireta de Menezes no conto tornada direta na transposição teatral). As duas escravas não têm vozes no conto e na transposição teatral: têm apenas risos, ou seja, são apenas mencionadas ou representadas em discursos indiretos. Os atores demonstram grande desembaraço corporal-gestual e criam um efeito de teatralidade para a narrativa e os diálogos do conto que muito o valoriza em suas dobras reflexivas de sentido, expondo-as para o espectador nos termos de uma visualidade teatral metonímica que busca dar conta dos eufemismos que perpassam o conto e o erotizam. A duplicação dos Nogueiras possibilita que o personagem converse consigo mesmo de uma forma que não estava tão explícita no conto, mas que cria um efeito muito oportuno para a sua teatralização, pois o conto/peça começa com uma afirmação inquisitiva que Nogueira faz para si: “Nunca pude entender uma conversação que tive com uma senhora...”. Considero que a transposição teatral do conto de Machado foi extremamente fiel aos sentidos comportamentais e aos valores sociais eviscerados no conto, havendo também a inserção de outros elementos inesperados de grande originalidade, como a

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masturbação cênica do jovem Nogueira. Afinal, é gozo constipado todo aquele diálogo entre ele e Conceição antes da Missa do Galo. Para tanto, a direção de Luiz Eduardo Frin propôs uma leve alteração da temporalidade (audiovisual) cênico-narrativa, o que tornou a masturbação tão viável e assentada na trama que parece que sempre fez parte do conto de Machado. Enfim, vocês podem ver tudo isso na íntegra porque o ator e fotógrafo Arô Ribeiro deixou uma apresentação completa da peça gravada em seu canal no YouTube. Deliciem-se! Vide: https://www.youtube.com/watch?v=xbAkxCEmwyk

*** FICHA TÉCNICA: Ano: 2010 Tempo: 49 minutos Direção: Luiz Eduardo Frin Elenco: Arô Ribeiro e Felipe Ramos Cenário: Claudio Zeiger Iluminação: Luiz Eduardo Frin Figurino: Arô Ribeiro Trilha sonora original: Charles Raszl Produção de trilha: Rafael Agra Fotografia: Leandro Frin

*** RESUMO: Ensaio crítico sobre a transposição teatral do conto "Missa do Galo" (1899) de Machado de Assis, feita pelo Agrupamento Teatral em 2010. Contém links de acesso ao conto e à transposição gravada da apresentação teatral em Ribeirão Preto (SP) em 2010. PALAVRAS-CHAVE: Portuguese and Brazilian Literature, Theatre Studies, Critical and Cultural Theory, Machado de Assis, and Brazilian Imperial and Colonial History Link de acesso no Facebook: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10203847143538672&set=a.1056451591 190.8239.1822871465&type=3&theater

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