Uma Vida Sonhada de Trás para Frente: um estudo de caso com diário de sonhos e trabalho com argila

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UMA VIDA SONHADA DE TRÁS PARA FRENTE: UM ESTUDO DE CASO COM DIÁRIO DE SONHOS E TRABALHO COM ARGILA Pablo de Assis (NEDHU-UFPR e Instituto Zeitgeist de Psicologia) 1 – INTRODUÇÃO Hoje mais do que nunca temos inúmeros caminhos disponíveis para o tratamento de transtornos mentais. Mas, também, hoje mais do que nunca sabemos menos sobre os sofrimentos que nos afligem. Existem muitos caminhos e muitas visões de mundo diferentes e cada um tem uma explicação diferente para isso. Isso acaba dando conta de uma infinidade de possíveis profissionais e possíveis clientes, sendo seguro afirmar que existem tantas técnicas e métodos quanto existe terapeutas e pacientes. Porém, o que se pretende aqui não é dar conta dessa infinidade de visões e possibilidades, mas ilustrar um caminho específico, o caminho da imagem como ferramenta possível na prática psicoterápica. Por imagem devemos entender “não somente ‘aquilo que’ se vê, mas, também ‘aquilo através do que’ se vê” (HILLMAN, 1995, p.35). E esse ato de se ver imagens pode ser chamado de fantasia. É claro que atualmente a fantasia não é vista dessa forma, pois hoje ela é entendida como imaginação, obra ou criação da imaginação, um capricho da imaginação ou um mero devaneio (FERREIRA, 1975, p.610). Mas fantasia nem sempre foi isso. Fantasia vem do latim phantasia, ‘imagem mental’, que vem do grego phantasia, ‘imagem, imaginação, aparição’, de phantazien ‘tornar visível’, de phainen ‘mostrar’, do indo-europeu bhanyo- ‘mostrar, colocar à luz’, com sentido implícito de ‘tornar visível um objeto colocando-o à luz, onde brilha’, que vem de bha- ‘brilhar’ (GÓMEZ DE SILVA, 1995, pp.260, 296). Dessa forma, a fantasia pode ser entendida como o ato de mostrar algo, de apresentar uma imagem. Por isso, para este trabalho, imagem e fantasia estão intimamente relacionadas. Aqui entendemos a imagem da forma como os gregos também a concebiam, como eidos, eidolon, que significa não só aquilo que é visto, mas também o próprio ato de se ver. A imagem então deixa de ter um caráter puramente reprodutivo e passa a ser também um processo criativo (DAWSON et al, 2002, p.85). Por isso o psicólogo e psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) identificou a psique com imagem ao dizer que “imagem é psique” (HILLMAN, 1995 p.27). Essa abordagem, por sua contribuição no estudo das imagens e processos de fantasia, nos servirá como base para este estudo. Em sua teoria, “Jung considera a produção imagética espontânea, os sonhos, as fantasias e as expressões artísticas como fontes vitalmente indispensáveis de informação e orientação fornecidas pelo aspecto saudável – e não patológico – da psique” (WHITMONT, 1995, p.34). Baseado nisso, poderemos oferecer um método de trabalho com imagens, que pretende buscar o lado saudável do psiquismo humano, e não só um método voltado para as doenças ou o sofrimento. Porém, aqui é importante lembrar o aviso de Jung quando ele diz que “todo psicoterapeuta não só tem o seu método: ele próprio é esse método” (JUNG, 1985, p.84). O que trabalha na psicoterapia, o que conduz à cura, não são os métodos e técnicas, mas sim a personalidade do próprio terapeuta. Por isso é importante que o terapeuta se conheça bem, justamente para permitir que o que é do paciente possa vir sem interferências do terapeuta. Uma das formas que a psicoterapia encontrou para que essas questões, que para o paciente são inconscientes, possam surgir livremente, é através da projeção e das

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técnicas projetivas, principalmente expressões artísticas. Essas manifestações possibilitam que o paciente crie suas próprias imagens, ao invés de simplesmente percebê-las passivamente. “Nesta fase, passa a ser ativo. Passa a representar coisas que antes só via passivamente e dessa maneira elas se transformam em um ato seu. Não se limita a falar do assunto. Também o executa” (JUNG, 1985, p.46). Isso pode parecer banal, mas psicologicamente traz grandes efeitos. Há uma diferença entre simplesmente conversar algumas horas por mês com o terapeuta e outra passar algumas horas lidando com a imagem produzida. Muitas vezes, abrir mão da conversa em nome de trabalhos com a arte pode parecer sem sentido, mas como nos lembra Jung, “se para o paciente esse pintar realmente não tivesse o menor sentido, o esforço exigido lhe repugnaria tanto, que dificilmente o convenceríamos a pegar no pincel uma outra vez” (JUNG, 1985, p.46). Mas de alguma forma, a fantasia do paciente faz algum sentido para ele, e esse processo artístico acaba acentuando processos inconscientes. “Além disso, a execução material do quadro obriga-o a contemplar cuidadosamente e constantemente todos os seus detalhes. Isso faz com que o efeito seja plenamente desenvolvido. Desse modo, introduz-se na fantasia um momento de realidade, o que lhe confere um peso maior e conseqüentemente, lhe aumenta o efeito” (idem, ibidem). Sobre essas manifestações artísticas, Bennet complementa: A pintura e a modelagem são auxiliares preciosos em psicoterapia. (...) Jung constatou que a arte espontânea realmente ajuda os doentes a exprimir a atmosfera de um sonho ou de um encontro com a imaginação ativa. Através da pintura (ou modelagem) a impressão que se tem do inconsciente torna-se realidade. Tal experiência surpreendente assusta muito aqueles para os quais o inconsciente não é nada além que uma palavra abstrata do vocabulário psicológico. Tal constatação localiza bem as coisas. Esse resultado dá à arte espontânea seu valor prático (BENNET,1968, p.123- 124). Uma outra forma de se trabalhar com as questões inconscientes é através dos sonhos. De certa forma, o sonho é parecido com o trabalho com a arte, pois tanto um quanto o outro trabalham com imagens. Para Johnson, Podemos comparar o sonho a uma tela na qual o inconsciente projeta seu drama interior. Nela vemos as várias personalidades interiores que compõem grande parte de nossa personalidade total e a dinâmica entre as forças que compõem o inconsciente. Essas forças invisíveis e suas atividades liberam cargas, por assim dizer, que são transmitidas para a tela. Elas tomam a forma de imagens e a interação das imagens dos sonhos representa exatamente a dinâmica que se processa em nosso íntimo (JOHNSON, 1989, p.30). Então, se queremos compreender essa dinâmica que se processa interiormente, os sonhos são um excelente caminho, já que “o sonho retrata a situação interna do sonhador, cuja verdade e realidade o consciente reluta em aceitar ou não aceita de todo” (JUNG, 1999, p.14). Diante disso, e diante de um trabalho anterior onde se demonstrou que é possível usar imagens como ferramentas no processo terapêutico (ASSIS e VALENTE, 2007,

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p.3), este trabalho pretende estudar um caso onde essas imagens foram usadas como ferramentas. Foram utilizadas duas técnicas, uma de trabalho com argila e outra de diário de sonhos e diante das imagens produzidas foi possível ter uma compreensão maior do processo da paciente, muito mais do que várias horas de conversa seriam possível.

2 – O ESTUDO DE CASO COM DIÁRIO DE SONHOS E ARGILA Este trabalho pretende ilustrar um caso de trabalho com argila e diário de sonhos durante um período de cinco semanas. Para tal, foi utilizado o material produzido por uma paciente do sexo feminino, de 22 anos, com curso superior completo e estudante de pós-graduação. Inicialmente ela procurara a psicoterapia após ser vítima de violência sexual. Durante vários meses de terapia, muito foi conversado, mas aparentemente o que lhe levara até lá não era o que mais lhe incomodava. Parece que com o tempo, o processo terapêutico foi ficando estéril e percebeu-se que as atitudes da paciente estavam cada vez mais infantis. Foi então que se propôs um trabalho menos racional, mais voltado às imagens, como tentativa de encontrar e acompanhar o caminho regressivo da paciente. Propôs-se então inicialmente que a paciente produzisse um diário de sonhos, que consiste na anotação diária dos sonhos, assim que a pessoa acorda, para que eles sejam trabalhados durante a psicoterapia. Esse relato diário permite que os sonhos sejam trabalhados em série e não somente como imagens isoladas, nos dando uma imagem mais plena do paciente. Segundo Jung, A interpretação só adquire uma relativa segurança numa série de sonhos, em que os sonhos posteriores vão corrigindo as incorreções cometidas nas interpretações anteriores. Também é na série de sonhos que conteúdos e motivos básicos são reconhecidos com mais clareza. Por isso insisto em que meus pacientes façam um cuidadoso registro dos seus sonhos... Oriento-os igualmente sobre a preparação do sonho, para que o tragam à sessão por escrito (JUNG, 1999, p.21). É importante ressaltar também que as imagens que aparecem nos sonhos não são códigos secretos que revelam conteúdos escondidos no inconsciente, mas sim imagens psíquicas que revelam exatamente o que precisa ser revelado. “Em si, os sonhos são claros, isto é, eles são exatamente como devem ser, nas condições do momento” (JUNG, 1999, p.17). Ao mesmo tempo propôs-se também trabalhar com a produção de peças em argila. O trabalho com argila dura cinco sessões, cada sessão de uma hora por semana. O material utilizado é um pedaço de argila branca ou clara, quantidade suficiente para a produção das peças, tinta guache e pincel para pintar as peças após prontas e secas e cola branca, caso alguma peça se quebre. O trabalho consiste em permitir que a paciente produza espontaneamente a imagem que quiser, utilizando a argila, sem pretensões artísticas ou que as imagens façam algum sentido com alguma coisa. Caso ela queria, ela pode pedir para o terapeuta produzir alguma peça junto com ela ou ajudá-la a pintar, conforme suas orientações. Enquanto a paciente produz as peças, ela conversa com o terapeuta sobre o que quiser. Neste caso, como estavam sendo trabalhados os sonhos da semana anotados no diário, esse era o tema das conversas. Dedica-se duas sessões para a produção das peças e mais duas sessões para que a paciente possa pintá-las da forma como quiser e uma última quinta sessão para o trabalho com o sentido dessas imagens.

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Parte-se para esse trabalho do pressuposto que a imaginação inconsciente materializada na argila permite a expressão de conteúdos inconscientes que necessitam ser trabalhados. Como o trabalho com argila dura cinco semanas, propôs-se também que o trabalho com os sonhos durasse cinco semanas. A cada semana a paciente traria escritos os seus sonhos em um diário, e enquanto falássemos sobre eles, ela teria a liberdade de trabalhar e formar com a argila a imagem que quisesse, fizesse ela sentido com os sonhos ou não. Os sonhos trazidos pela paciente, a cada semana, foram: Primeira semana: 1) Está em uma agência bancária desorganizada e depois está com o pai comprando sombrinhas, mas parece que sua opinião “não valesse nada” (sic) 2) Estava próxima a um terminal de ônibus, mas estava muito tarde para ir para casa, então se abriga em uma construção redonda que depois parece ser seu trabalho, onde ela e seus colegas pedem um lanche para entrega. 3) Está em sua casa, no alto de uma escada, olhando para o telhado da casa, onde havia um enorme vão. Ela discute com o pai sobre o péssimo estado do telhado. Parece que ao tocar nas telhas, elas envelhecem mais e se quebram. 4) Morava em uma casa no final de um corredor cheio de portas, onde recebeu visita de amigos, mas precisou sair e passar pelas portas e o corredor para recolher algo do lado de fora que haviam esquecido. Segunda semana: 5) Começa em um novo emprego. 6)Precisa escolher algo. 7) Era seu aniversário, que havia pessoas conhecidas e outras que não conhecia. O bolo de aniversário estava “bem caído, quebrado, mais parecia ser resto”. “O clima estava pesado” (sic) e antes de ela servir a todos, toca o telefone e ela atende. A pessoa da outra linha diz ser sua mãe e ela tem a sensação que essa pessoa já ligara antes várias vezes. Um tempo depois, “horas, dias ou meses” (sic), ela estava num quarto de hotel com sua irmã. Havia uma cobra em cima da cama, bastante arisca. Ela comenta que a cobra estava assim há muito tempo e que provavelmente continuaria assim. Ela joga a cobra pela janela. Terceira Semana: 8) Vai a uma festa e decide comprar uma roupa nova, mas tudo o que toca, pareciam mudar, as roupas pareciam ficar mais velhas. 9) Estava com o namorado em um encontro de igreja com outros casais, mas ela sentia que algo não estava certo, que eles não eram um casal, por mais que todos os tratassem assim. 10) Procurava um presente em uma loja de brinquedos, mas tudo que tocava parecia perder a forma e o valor. 11) Estava no trabalho, pedindo o desligamento e aguardando a formalização do pedido. 12) Estava no carro com o namorado, indo a algum lugar, quando passam rápido por um buraco grande que fez o carro voar por cima dele. Antes de ela pedir que ele parasse, eles caem em outro buraco, mas eles caem sobre uma rampa que os fizeram subir novamente. Eles descem em uma igreja, e ele some. Ela tenta encontrá-lo, mas têm muita gente e ela o perde de vista. Quarta Semana:

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13) Estava na varanda de uma casa bastante alta com o namorado e alguns amigos, onde via vários outros prédios. Quando entra, encontra vários vidros com cobras dentro. 14) Estava em um condomínio de apartamentos, quando recebe o aviso que precisavam esvaziar o local, pois havia um aviso de incêndio. Ela percebe que não há fogo e que o aviso é falso. Dizem para ela que a polícia já foi avisada, mas quando ela os procura, encontra os policiais brincando de roda com crianças. 15) Ela passeava de carro com o namorado quando ele o leva para uma favela onde existe um pequeno castelo, onde atualmente funciona uma creche. Haviam várias crianças brincando na frente e uma criança escondida num armário. Parecia que essa era a segunda vez que ela ia àquele local. 16) Andava pela cidade procurando uma casa ou apartamento, quando vê dois repórteres sendo barrados na entrada de um salão de beleza. Ela entra e vê que está muito cheio e movimentado. Logo ela também é atendida. Quinta Semana: 17) Ela era adolescente e ia visitar uma amiga em sua casa, que ficava atrás de uma igreja. Na igreja havia muita gente e ela não encontra quem procura. Ela retorna ao prédio onde morava. Ela percorre os corredores e ouve o sinal tocar, e os alunos e professores saem das salas para o corredor. Ela vê um professor alto e loiro, de cabelos cacheados, por quem se encanta, mas logo desvia o olhar. Encontra a amiga e elas decidem subir o elevador. Ela encontra outro garoto e combinam de se encontrar. O professor vê isso, ela corre dele, fazendo “um charme” (sic). Ele liga para outra pessoa e eles combinam de pegá-la. Essa outra pessoa liga para outras pessoas. Ela chega a seu quarto e encontra sua amiga, avisando que eles agora poderiam encontrá-la. Ela desce até a portaria do prédio e vê a Igreja na frente onde mora a bruxa que queria pegá-la. Ela sobe com a amiga para os quartos, para fugir da bruxa, quando o celular cai e abre, revelando um chip localizador. Ela encontra ou celular assim e conclui que foi aquele professor que modificou os aparelhos. Ela encontra outro chip escondido no quarto de seu pai. 18) Ela se encontra com algumas pessoas que estudaram com ela e conversam sobre trabalhos escolares. Eles entram em um carro e seguiram “floresta adentro” (sic). Eles vêem alguns animais e encontram um leão andando em duas patas, lendo. Eles estranham e alguém explica que “o rei havia mudado desde quando a jovem que ele gostava fugiu. (...) Os dois estavam à beira do rio e a jovem caiu nas águas, alguém reclama que ela morreu, não fugiu, mas ele continua relatando que alguém avistou ela nas águas, mais velha. De repente a imagem sai da água, já mulher, seguida de uma criança de seis ou sete anos” (sic). 19) Estava em uma casa grande onde era responsável por diversos adolescentes. A maioria brincava na rua, em frente à casa, quando viu um grupo de “marginais” (sic) subirem a rua. Quando esses garotos chegaram, começaram a atacar os adolescentes que ela cuidava. Eles fogem para dentro da casa. Ela tenta fechar todas as portas e janelas da casa. Ela corre para fechar a porta da frente, dizendo para todas as crianças se protegerem, mas encontra um dos “marginais” na porta. Ela tenta trancá-lo para fora, mas um deles consegue colocar o cano de uma arma para dentro. Ela pula para pegar a arma antes que atirem. Na quarta semana, ela relata que tinha a impressão que seus sonhos pareciam ao contrário, que o que sonhara antes parecia vir depois cronologicamente. Foi então que se levantou a hipótese de que os sonhos estariam revelando uma história contada ao contrário, o que inspirou o nome deste trabalho. Durante a quinta semana, fez-se a

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leitura dos sonhos ao contrário, o que produziu uma nova história, com uma certa linearidade. Ao mesmo tempo ela produziu algumas peças de argila, nas quatro semanas reservadas para a produção das mesmas. As peças produzidas espontaneamente e suas associações foram: 1) Uma flor, que se quebrou. As pétalas se tornaram um brinquedo de criança e o caule se tornou uma cobra, uma das várias dos sonhos. 2) A fachada de uma casa, que seria sua casa ou a casa do último sonho 3) A fachada de um castelo, o castelo da bruxa dos sonhos 4) Um tambor, que remetia a ritmo e a angústia, ao sentimento que sentia no início do trabalho com o diário de sonhos 5) Um teclado, que foi associado à melodia e harmonia e ao caminho encontrado durante o trabalho final com os sonhos 6) Um coração, associado ao seu sentimento de carinho 7) Bases de sustentação para as fachadas e o coração Dessas peças, somente as bases não foram pintadas, e as fachadas e o coração foram pintados somente pela frente. Com exceção dos instrumentos musicais e depois da flor quebrada, as peças pareciam ser somente bi-dimensionais. A flor inteira apresentava essa impressão, de ser uma imagem bi-dimensional em alto-relevo. Mas após se quebrar, as pétalas pareciam um brinquedo de parquinho de criança e o caule passou a ser uma das várias cobras presentes nos sonhos. A partir da impressão da paciente que os sonhos posteriores pareciam ser anteriores aos primeiros, como se ela estivesse sonhando ao contrário, decidiu-se ler os sonhos dessa maneira, começando pelo último e terminando pelo primeiro. O resultado foi uma nova história, com uma certa linearidade, como se um sonho sem sentido oferecesse base para outro. A história final, que mais parecia um conto de fadas, ficou da seguinte forma: Uma moça estava em uma casa grande onde era responsável por diversos adolescentes. A maioria brincava na rua, em frente à casa, quando viu um grupo de “marginais” (sic) subirem a rua. Quando esses garotos chegaram, começaram a atacar os adolescentes que ela cuidava. Eles fogem para dentro da casa. Ela tenta fechar todas as portas e janelas da casa. Ela corre para fechar a porta da frente, dizendo para todas as crianças se protegerem, mas encontra um dos “marginais” na porta. Ela tenta trancá-lo para fora, mas um deles consegue colocar o cano de uma arma para dentro. Ela pula para pegar a arma antes que atirem. Após esse incidente, ela se apaixona pelo rei. Esse rei acaba perdendo sua amada, que foge grávida de sua filha, entrando em um rio e lá permanecendo por anos. Ela inclusive teve a filha enquanto estava no rio. Quando essa menina tinha uns seis ou sete anos de idade, ela saiu do rio. Quando essa menina era adolescente, foi visitar uma amiga em sua casa, que ficava atrás de uma igreja. Na igreja havia muita gente e ela não encontra quem procura. Ela retorna ao prédio onde morava. Ela percorre os corredores e ouve o sinal tocar, e os alunos e professores saem das salas para o corredor. Ela vê um professor alto e loiro, de cabelos cacheados, por quem se encanta, mas logo desvia o olhar. Ela Encontra a amiga e elas decidem subir o elevador. Ela encontra outro garoto e ambos combinam de se encontrar. O professor vê isso, ela corre dele, fazendo “um charme” (sic). Ele liga para outra pessoa e eles combinam de pegá-la. Essa outra pessoa liga para outras pessoas. Ela chega a seu quarto e encontra sua amiga, avisando que eles agora

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poderiam encontrá-la. Ela desce até a portaria do prédio e vê a igreja na frente onde mora a bruxa que queria pegá-la. Ela sobe com a amiga para os quartos, para fugir da bruxa, quando o celular cai e abre, revelando um chip localizador. Ela encontra outro celular assim e conclui que foi aquele professor que modificou os aparelhos. Ela encontra outro chip escondido no quarto de seu pai. Após esse incidente, a menina cresce e torna-se mulher. Ela precisa ir a um encontro de casais com seu namorado, então ela decide se arrumar e vai a um salão de beleza. Depois, ela se dirigia ao encontro de carro com o namorado quando ele o leva para uma favela onde existe um pequeno castelo, onde atualmente funciona uma creche. Havia várias crianças brincando na frente e uma criança escondida num armário. Parecia que essa era a segunda vez que ela ia àquele local (ela associa essa creche com crianças com a creche que ela sonha por último e essa impressão de dejá vu seria por causa disso, pois aparentemente ela já esteve ali antes). Enquanto estava lá, ela recebe o aviso que precisavam esvaziar o local, pois havia um aviso de incêndio. Ela percebe que não há fogo e que o aviso é falso. Dizem para ela que a polícia já foi avisada, mas quando ela os procura, encontra os policiais brincando de roda com crianças. Ela então vai até a varanda do local e entra, quando encontra várias cobras. É então que ela conclui que a bruxa que a perseguira antes morava ali e cuidava das crianças. Ela então acaba indo à igreja com seu namorado, para o encontro de casais. Ela também decide pedir demissão de seu atual emprego. Era seu aniversário em breve e ela precisava comprar um vestido novo. Em sua festa de aniversário, havia pessoas conhecidas e outras que não conhecia. O bolo de aniversário estava “bem caído, quebrado, mais parecia ser resto”. “O clima estava pesado” (sic) e antes de ela servir a todos, toca o telefone e ela atende. A pessoa da outra linha diz ser sua mãe e ela tem a sensação que essa pessoa já ligara antes várias vezes. Ela pensa que talvez possa ser a bruxa que a persegue. Um tempo depois, “horas, dias ou meses” (sic), ela estava num quarto de hotel com sua irmã. Havia uma cobra em cima da cama, bastante arisca. Ela comenta que a cobra estava assim há muito tempo e que provavelmente continuaria assim. Ela joga a cobra pela janela. Ela pensa que pode ter sido a bruxa quem mandou a cobra, já que havia muitas cobras na casa da bruxa. Ela precisa escolher um novo emprego, já que havia pedido demissão, e logo começa no novo trabalho. Ela então se muda, na tentativa de fugir da perseguição da bruxa, para uma casa bastante escondida atrás de várias portas em um corredor.

3 – UMA VIDA SONHADA DE TRÁS PARA FRENTE Para a paciente, a série de sonhos fez mais sentido ao contrário, quando formou uma história com começo meio e fim. Ela sabia que todo o conteúdo dos sonhos se referia a ela mesma. A moça do último sonho e do início da história era ela, que após se apaixona pelo rei, mas aparentemente ela não consegue viver com isso. Ela então foge e tem uma filha, que acaba representando a própria paciente criança. Essa filha cresce e é perseguida por uma bruxa. Ela não sabe associar quem seria essa bruxa, mas pela informação oferecida pela história, essa bruxa parecia ser sua mãe. A mãe dessa menina perseguida cuidava de crianças antes, como a bruxa, e a pessoa do telefonema que ela recebeu em seu aniversário, que ela pensou ser a bruxa que a perseguia, disse ser sua mãe. A questão que se apresentou então foi que ela fugia desse aspecto feminino, que de tão negado, acabou recebendo as feições sombrias de uma bruxa.

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Com as peças de argila, ela monta um cenário, começando com a casa, do início da história, onde as crianças brincavam no brinquedo de parquinho (que antes era parte da flor). Depois vinha o castelo, que seria a casa da bruxa e a cobra (parte da flor). Ao fundo estão os instrumentos musicais, o teclado na continuidade mostrando a harmonia encontrada na história, e o tambor ao final, indicando confusão e agonia sentidas no início do trabalho com os sonhos. O coração também ficou ao fundo, mostrando o sentimento que estava perdido na vida da paciente e que talvez esse trabalho pudesse mostrar e resgatar. A paciente também diz que desde que sua mãe morreu, quando ela tinha onze anos de idade, ela comemora mais seus aniversários e foge de qualquer “prazer social”. Ela diz também ter aversão a questões femininas que se relacionam a emotividade. Lembro-lhe que o que a levou à terapia foi justamente um episódio de violência sexual, que ela relatou não sentir prazer algum ou nada assim, e o único sentimento que teve foi de medo que seu pai ficasse sozinho em casa. Parecia que, durante esse evento, ela não estivesse presente, pois não haviam sentimentos ou emoções voltadas para ela. A hipótese inicial que nos levou ao trabalho com sonhos e argila era que ela havia perdido algo na infância, talvez com a morte da mãe, justamente porque sua postura durante a terapia era infantil. Essa postura talvez pudesse indicar essa necessidade de vivenciar algo não vivido durante a infância. Mas após o trabalho com os sonhos, percebeu-se que o que ela sabia viver era justamente o seu lado infantil e que ela acabou não virando mulher. E essa mulher, por não ser vivida, acabou virando uma bruxa. Na mitologia grega, Hecate é conhecida como sendo a divindade das bruxas, associada ao mundo dos mortos, às trevas da noite, aos fantasmas, à magia e às encruzilhadas (KURY, 1992, p.172). “Ela também é conhecida como sendo o lado sombrio da deusa Ártemis, deusa da Lua e irmã de Apolo, deus do Sol. Hecate e as Bruxas são, conseqüentemente, imagens associadas ao Feminino Sombrio” (ASSIS, 2004, p. 52). Hecate acaba sendo o lado sombrio do feminino, o lado obscuro da mulher, e é a imagem que aparece, ou melhor, não aparece nos sonhos da paciente. É interessante perceber que, por mais que a paciente saiba que é uma bruxa que a persegue, e posteriormente na história, essa bruxa é sua mãe, ela de fato não é vista e está sempre nos bastidores. É essa bruxa que planeja a perseguição da jovem, é ela que manda o professor instalar os chips de localização no celular e no quarto do pai, é ela que manda a cobra e é ela quem liga, mas não é reconhecida na hora. Essa bruxa vive não se mostra, está sempre nas sombras, indicando novamente mais uma imagem desse feminino sombrio e reprimido. Junto a esse feminino foi reprimido o que era comumente associado ao feminino: os sentimentos e as emoções. Um pouco antes de começarem os trabalhos descritos aqui, a paciente trouxe que um pouco tempo antes começara a ficar mais irritadiça e nervosa com as coisas e as pessoas. E para ela era estranho isso, já que sempre fora uma pessoa racional e conseguia pensar em tudo. Inclusive durante as discussões com seu namorado, enquanto ele se esquentava e deixava as emoções tomarem conta, ela conseguia manter-se calma e pensar com clareza. O que lhe incomodava era justamente as emoções que ela reprimiu, que deixou sombrio e que agora estavam voltando à tona. E isso estava deixando a paciente confusa e agoniada. Nunca lhe acontecera algo assim. Esse sofrimento estava indicando que algo estava errado e o trabalho com os sonhos e as imagens em argila mostraram que o que estava errado era justamente o seu lado feminino que ficou reprimido, que se tornou sombrio. Podem-se levantar várias

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hipóteses de porque isso aconteceu, como dizer que ela cresceu sem um modelo de mulher, ou que ela abriu mão disso com a morte da mãe, ou ainda que isso foi potencializado com o ataque sexual que sofrera. Mas nada disso vai apontar para o que precisa ser feito. Este trabalho com os sonhos e argila em si também não apontou para a solução, mas nos mostrou mais claramente o que precisava ser trabalhado. Os sonhos “ao contrário” da paciente poderiam estar indicando um caminho regressivo, onde sua energia estivesse voltando para seu interior, e suas memórias estariam voltando para seu passado. Os sonhos mais recentes mostravam imagens de questões mais antigas ou mais escondidas, mais reprimidas. Este trabalho apontou que ali havia algo a ser trabalhado. É claro que o período de cinco sessões não é o suficiente para se fazer muito progresso, mas a possibilidade de se utilizar essas imagens dos sonhos e a materialização dessas imagens na argila possibilitou que se visualizasse com mais clareza o estado atual da paciente. Ao olhar para todos os sonhos ao mesmo tempo, formou-se uma imagem maior do processo que a paciente estava passando e precisava passar. Segundo Jung, Muitas vezes, quando examinados em séries extensas, podemos identificar, com surpreendente clareza, a continuidade do fluxo inconsciente de imagens. A continuidade manifesta-se na repetição dos chamados motivos. Estes podem referir-se a pessoas, animais, objetos ou situações. Portanto a continuidade da seqüência de imagens é expressa pelo fato de o motivo em questão sempre reaparecer numa longa série de sonhos (JUNG, 1985, p.9). A história formada pelos sonhos mostrou um grande motivo que perpassou praticamente todos os sonhos: a tentativa de fugir desse feminino sombrio que a fez se esconder ainda mais, atrás de várias portas e se esconder do contato social. A própria paciente reconhece que não se sente muito à vontade junto com outras pessoas, confirmando o motivo do sonho. Um outro motivo que apareceu bastante em vários sonhos e de formas diferentes era a perda de valor que as coisas tinham ao serem tocadas por ela. Ela parecia algumas vezes como uma versão negativa do mito de Midas, o rei que transformava tudo em ouro com seu toque. As coisas que ela tocava nos sonhos se quebravam, ficavam feias ou velhas, ou até mesmo sua opinião junto a seu pai não tinha valor. Mas a questão que se coloca é, como pode algo ter valor se o que justamente atribui valor, o sentimento, é reprimido? Como isso aparece em um sonho, pode-se talvez fazer a pergunta que Jung propôs: “sempre é útil perguntar, quando se interpreta clinicamente um sonho: Que atitude consciente é compensada pelo sonho?” (JUNG, 1999, p.24). Neste caso, parece que o pensamento da paciente estava sendo compensando pela imagem do sentimento no sonho. Mas tanto a fuga do feminino quando a perda do sentimento nos mostram que a paciente tem algo reprimido, sombrio, que quer vir à tona e que precisa ser trabalhado. Nesse curto espaço de trabalho, o que foi possível de se fazer foi justamente reconhecer o caminho que precisa ser percorrido. Agora é necessário um novo impulso por parte tanto da paciente quanto do terapeuta para percorrerem esse caminho juntos. Como a imagem com as peças de argila mostraram, agora que se sabe disso, é necessário enfrentar um período de confusão e angústia (representado pelo tambor colocado ao final). E vai ser esse período que vai poder trazer clareza, pois “Nada é pouco claro

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quando há compreensão; só as coisas que não se entendem é que parecem obscuras e complicadas” (JUNG, 1999, p.17).

4 - REFERÊNCIAS ASSIS, P. À Sombra da Lua: Uma reflexão sobre o Feminino Sombrio e Psicopatologias. Curitiba: Monografia de graduação elaborado no Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Humano – NEDHU, do Departamento de Psicologia da UFPR, 2004. ASSIS, P.; VALENTE, A. G. “A imagem enquanto caminho terapêutico”. In: Anais do III Congresso Internacional de Psicologia e IX Semana Acadêmica de Psicologia. Maringá: UEM, 2007. BENNET, E. A. Ce que Jung a vraiment dit. Londres: Stock, 1966. DAWSON T.; YOUNG-EISENDRATH P. (org.). Manual de Cambridge para estudos junguianos. Porto Alegre: Artmed, 2002. FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. GÓMEZ DE SILVA, G. Breve diccionario etimológico de la lengua española. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. HILLMAN, J. Psicologia arquetípica: Um breve relato. São Paulo: Cultrix, 1995. JOHNSON, R. A. Innerwork: a chave do reino interior. São Paulo: Mercuryo, 1989. JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis, Vozes,1985. JUNG, C. G. Ab-reação, Análise dos Sonhos, Transferência. Petrópolis: Vozes, 1999. KURY, M. G. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. WHITMONT, E. C. A Busca do Símbolo. São Paulo: Cultrix, 1995.

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