UMBANDA: ABRAÇANDO AS LUZES E SOMBRAS NA CULTURA BRASILEIRA

July 1, 2017 | Autor: Sibele Heil | Categoria: Psicologia Analitica
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SIBELE HEIL DOS SANTOS

UMBANDA: ABRAÇANDO AS LUZES E SOMBRAS NA CULTURA BRASILEIRA

PSICOLOGIA ANALÍTICA

CURITIBA 2014

Objeto de Análise A Umbanda é uma religião genuinamente brasileira, muitas vezes confundida com as religiões africanas, que vêm crescendo exponencialmente por todo o país. Em vários terreiros podemos observar que os maiores interessados em seus rituais e cultos não são, como poderia se supor, os afrodescendentes, mas brasileiros de todas as etnias, que diante da crise da espiritualidade por que passa a sociedade ocidental, encontrou nesta religião brasileira uma forma mais autêntica de acessar a transcendência.

Elementos do Culto Os rituais na Umbanda são praticados em locais que seus praticantes chamam de Terreiros e também carinhosamente referenciados como “casa”. Este espaço geralmente é composto por um altar no fundo da sala, chamado de Congá, onde se encontram as imagens dos Orixás e das principais entidades reverenciadas na casa. A sala deve ser ampla, praticamente vazia, pois o culto acontece com os praticantes em pé. Ao fundo há o espaço para a Assistência - público que assiste à gira e pode realizar consultas com as entidades. Há também um espaço reservado para os tambores, chamados de Curimba. Sua direção é executada pelos chamados Mães e Pais de Santo que presidem as Giras – nome dado a cada culto realizado. Os praticantes são chamados de médiuns integrantes da corrente, e devem trajar branco. O culto é todo executado ao som dos atabaques, que considerado a “Alma Musical”, prepara o ambiente ou as energias para as incorporações das entidades. Ao contrário do Candomblé, onde as incorporações ou transes se dão pela assimilação da energia dos Orixás, portanto energias divinas e arquetípicas puras, a Umbanda se baseia na incorporação de entidades – alma ou espírito de seres humanos desencarnados que já possuíram um corpo físico e hoje encontram-se em um outro plano astral. Estas entidades correspondem a grupos que representam diferentes ramos das minorias brasileiras que serão comentadas posteriormente. Não há uma doutrina específica, sendo considerada muitas vezes a doutrina Espírita de Kardec como referência espiritual.

Origens Prática relativamente recente, a Umbanda teve seu início em um Centro Espirita, em 1908, e mais tarde foi incorporando diferentes elementos das práticas do Catimbó e do Candomblé.

Do Catimbó – culto afro-religioso que misturava cultos indígenas e africanos, trouxe a incorporação de entidades indígenas – Caboclos – e escravos negros – Pretos Velhos, bem como os Malandros. Do Candomblé – também um culto afrodescendente – trouxe a reverência a alguns Orixás específicos, já sincretizados com os Santos do Catolicismo, que são: Oxalá (sincretizado com Jesus Cristo), Iemanjá (Nossa Senhora da Conceição), Oxum (Nossa Senhora), Iansã (Santa Bárbara), Oxóssi (São Sebastião), Ogum (São Jorge), Xangô (São Pedro). Podemos concluir, portanto que a Umbanda é o resultado do sincretismo de várias vertentes religiosas que permearam a construção da sociedade brasileira. Do ponto de vista sociológico constatamos que a alma mestiça brasileira se formou quer pelo acasalamento do europeu branco o com a mulher índia, quer pelo acasalamento do europeu branco com a mulher negra. Destes dois tipos de acasalamento surgiram mestiços de origem ameríndia e mulatos. “Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado”. (BOECHAT, 2014, p. 46)

Método de Análise

A escolha da Umbanda como objeto de análise se deu devido ao envolvimento pessoal com o tema nos últimos meses. Motivada pelo convite de um amigo para conhecer os rituais de uma religião afro-brasileira, e receber o “axé” da casa, passei a frequentar um Terreiro pequeno, onde pude observar os cultos, primeiramente na assistência e posteriormente fazendo parte da própria corrente. Impossível não se deixar afetar pela atmosfera amistosa e exótica do local, que parece abraçar sem julgamentos as mais variadas facetas das luzes e sombras de nossa cultura judaico-cristã. Não foi sem um preconceito escancarado que julguei ser “do mal” as figuras mais populares da Quimbanda: os Exús. Como veremos mais a frente, este arquético toma para si a própria imagem do mal ou dos demônios que assombram as mentes ocidentais, utilizando-se de capas pretas e vermelhas, caveiras, tridentes e caldeirões que nos remetem imediatamente à figura do diabo da cultura cristã. Estes geralmente vêm acompanhados de suas contrapartes femininas: as Pomba-Giras, entidades que se apresentam como bruxas, feiticeiras e cortezãs, conhecedoras das artes da magia e do amor – parte do princípio feminino até hoje renegado na cultura ocidental. Estas figuras, apesar de todo um temor cultural, causaram-me profunda curiosidade e atração, pois é inegável que no meio de tantos símbolos considerados inapropriados para alguém criado na cultura evangélica - mas que já havia passado

pelos círculos de meditação do yoga e do budismo - havia ali algo de poder, liberdade e aceitação a diferentes formas da natureza humana.

Contextualização O objetivo deste trabalho é sugerir como esta religião vêm suprindo a necessidade de transcendência de seus praticantes através do culto e do respeito a vários elementos ou símbolos das minorias encontrados na cultura brasileira. A vida interior que Jung descreve é a vida secreta que todos levamos, dia e noite, em companheirismo constante com nosso self interior não visível, inconsciente. Quando a vida há na está equilibrada com o fluxo constante de energia na dimensão do sonho, da visão, do ritual e da imaginação. O desastre que assola o mundo moderno é a completa separação da mente consciente das suas raízes no inconsciente. Todas as formas de interação com o inconsciente que alimentaram nossos ancestrais - sonhos visão ritual e experiência religiosa - estão em grande parte perdidas para nós, menosprezadas pela mente moderna como supersticiosas ou primitivas. Assim, cheios de orgulho e arrogância, com profunda crença em nossa razão inabalável, cortamos as nossas origens no inconsciente e nos desligamos da parte mais profunda de nós mesmos. Nosso isolamento do inconsciente é sinônimo do nosso isolamento da alma, da vida do espírito. Resulta na perda de nossa vida religiosa, pois é no inconsciente que encontramos nossa percepção individual de Deus e de nossas entidades divinas. (JOHNSON, 1989, p. 18)

Apesar de seu culto se basear na veneração dos Orixás herdados diretamente da religião dos escravos que aqui aportaram, a Umbanda também apresenta culto e respeito a vários segmentos da sociedade que foram marginalizados no processo de formação da nação brasileira, como os Pretos-Velhos (afrodescendentes), as Crianças, os Caboclos (índios), Malandros (pobres do cais e do morro), Exús (personalidades não ajustadas à sociedade tachadas como maus), Pomba-Giras (curandeiras e feiticeiras), Ciganos, Cangaceiros, dentre outros. O comportamento humano segue padrões que podem ser compreendidos de forma mais ou menos nítida pelos chamados arquétipos. Todo os seres humanos, independentemente de raça ou origem cultural, possuem os mesmo arquétipos, estruturas básicas da mente humana, os conteúdos do inconsciente coletivo como o chamou Jung. (BOECHAT, 2008, p.56)

O interesse cada vez mais crescente nestes cultos nos sugere que há uma tendência dos indivíduos a viverem e respeitarem estes padrões que até então estavam relegados à sombra do inconsciente coletivo brasileiro. Através da espiritualidade, a Umbanda realiza hoje um resgate destes elementos que foram negados e rechaçados pela cultura ocidental hegemônica no processo de formação da sociedade brasileira. É fato que seu culto lembra muito os antigos cultos aborígenes e por isso mesmo parece reservar aos seus praticantes alguns meios interessantes de se acessar o conteúdo inconsciente. O inconsciente é um universo maravilhoso composto de energias invisíveis, forças, formas de inteligência - até personalidades distintas - que não são percebidas mas

que vivem dentro de nós. (...) Na maioria de nós só uma pequena porção deste deposito de energia bruta foi assimilada na personalidade consciente. (...) Se vamos a esse reino conscientemente, é pelo nosso trabalho interior: nossas preces meditações trabalho com os sonhos cerimônias e imaginação ativa. (JOHNSON, 1989, p. 15) Mas existe outra diferença básica entre nós e os aborígenes: eles mantiveram as formas antigas de adoração e de acesso ao mundo interior. Quando vão ao encontro do espiritual eles usam formas preestabelecidas para invocar os espíritos para entender seus sonhos e visões cerimônias preestabelecidas para encontrar seus deuses no círculo mágico ou no altar. Para nós a maior parte desses velhos caminhos está perdida. (JOHNSON, 1989, p. 19)

Analisaremos rapidamente alguns desses elementos e como podem contribuir no processo de individuação dos seus praticantes, visto que cada elemento do culto visa a proporcionar ao praticante não apenas um ritual, mais um contato direto com estes vários tipos e estereótipos. Análise do Significado Psicológico

É interessante notar como a Umbanda traz em seu culto a reverência a diferentes arquétipos e temas considerados pela psicologia analítica como importantes para o Processo de Individuação. Além disso, seus princípios dão vazão a diferentes processos simbólicos que beneficiam a exploração do inconsciente de seus praticantes de forma coletiva, como o compartilhamento de sonhos e das vivências nas incorporações. Uma vez que as incorporações não se dão de forma inconsciente ou de transe, é possível para o médium observar o que acontece enquanto seu corpo está servindo de veículo a uma entidade. Esta enquanto “trabalha” dá conselhos não só para quem a procura, mas também ao próprio médium, com quem tem uma afinidade energética. Uma das crenças desta tríade: entidade, médium, incorporação, é que uma entidade se aproxima do médium por afinidade, ou seja, carrega em si características psicológicas que o médium possui e precisa tomar consciência. Música A música tem papel importantíssimo durante o culto. São estas, que chamadas de Ponto, iniciam e finalizam os trabalhos e permitem a incorporação. Sua presença ativa as camadas mais profundas da psique, como referencia Clarissa Pinkola Estes: Em quase todas as culturas, no momento da criação os deuses dão canções ao seu povo, dizendo-lhes que seu uso irá chamar os deuses de volta a qualquer instante, que a canção irá lhes trazer o que precisarem e transformar ou eliminar o que não quiserem mais. Nesse sentido, a doação da música é um ato compassivo que permite aos humanos convocar os deuses e as grandes forças até os círculos humanos. A música é um tipo especial de linguagem que realiza essa função de um jeito impossível para a voz falada. A música, como o tambor, cria uma consciência diferente, um estado de transe, de oração. Todos os seres humanos e muitos animais

são suscetíveis a terem sua consciência alterada pelo som. (...)Portanto, a canção entoada e o uso do coração como tambor são atos místicos para despertar camadas da psique não muito usadas ou vistas. Não sabemos dizer para cada pessoa o que será invocado pelo canto, despertado pelo tambor, porque eles atuam sobre frestas estranhas e raras no ser humano que participa. No entanto, podemos ter certeza de que seja o que for que acontecer terá uma irresistível força numinosa. (ESTES, 1999, p. 204)

Pretos Velhos A linha mais alta dentro de um Terreiro de Umbanda e que geralmente dá nome ao mesmo são os Pretos Velhos. Entidades femininas e masculinas são formados por entidades que quando encarnadas eram em sua maioria escravos ou ex-escravos do período colonial brasileiro. Estas figuras apresentam o arquétipo do Velho Sábio. Quase sempre acompanhado das crianças, estas duas linhas nos falam do eixo puer-senex. O eixo puer-senex é vertical, espiritual; o puer aeternus perde-se nas concretudes e materialidades da mãe. O senex enquanto espírito tradicional, saturnino, necessita do jovem puer para vitalizar-se; este último procura a madura sabedoria do senex. Cria-se assim uma polarização necessária à renovação psíquica que iremos encontrar frequentemente nos processos tranferenciais. O aspecto de verticalização espiritual é necessária para o desenvolvimento pleno da masculinidade, e esta relação vertical puersenex é pedra angular no seu desenvolvimento. (BOECHAT, 2008, p. 62)

Crianças A linha de incorporação dos Erês ou das crianças é sincretizada com os Santos Católicos São Cosme e Damião, e é considerada uma das incorporações que mais trazem paz e “limpeza das energias” ao médium. Apesar de se tratarem de crianças, seus conselhos são extremamente respeitados por se acreditar que sua pureza traz consigo inocência e sabedoria. O motivo da criança não apresenta apenas algo que existiu no passado longínquo, mas também algo presente; não é somente um vestígio, mas um sistema que funciona ainda, destinado a compensar ou corrigir as unilateralidades ou extravagâncias inevitáveis da consciência. (JUNG 2011, p.124) Não admira, portanto, que tantas vezes os salvadores míticos são crianças divinas. Isto corresponde exatamente às expectativas da psicologia do indivíduo, as quais mostram que a criança prepara uma futura transformação da personalidade. No processo de individuação, antecipa uma figura proveniente da síntese dos elementos conscientes e inconscientes da personalidade. É, portanto, um símbolo de unificação dos opostos, um mediador, ou um portador da salvação, um propiciador de completude. (JUNG, KERENYI 2011 pg. 127)

Caboclos A linha de incorporação dos caboclos refere-se aos índios, pajés, curandeiros e feiticeiros das mais variadas origens, podendo ser tanto femininas quanto masculinas. O principal arquétipo explorado aqui é o xamã.

Quimbanda Com licença da Umbanda Pra Quimbanda eu vou virar. Vou chamar todos os Exus Para todo mal levar.

Esta não é uma entidade, mas uma parte da Umbanda chamada de linha de “Esquerda” que honra justamente as entidades que representam mais fortemente o arquétipo da Sombra da sociedade ocidental. Apesar de suas imagens fazerem referências claras a demônios, caveiras e diabos, e se tratarem de entidades que quando encarnadas levaram uma vida de crimes, corrupção ou lascívia, estas entidades são consideradas “da Lei” e sua missão é purificar seus karmas através da caridade e maior consciência. Cada um de nós tem uma multidão de personalidades distintas que coexistem no mesmo corpo, que partilham a mesma psique. Sabemos também que a mente humana vivencia o mundo de forma dual; dividimos o mundo e o nosso próprio ser entre escuridão e a luz, o bom e o mau, e permanecemos julgando tudo eternamente, ficando primeiro com um lado, depois com o outro, mas raramente assumindo o grande desafio de integrar todas as partes em um todo. (JOHNSON, 1989, p. 46)

É deles a missão de guarda e proteção dos médiuns contra o seu próprio lado sombrio. Uma vez que já tiveram uma vasta experiência em sua própria escuridão e pagam agora por estas atitudes, eles servem de guia para que o médium se aventure em seu lado mais sombrio. Estão associados ao Orixá Exú, que na mitologia africana carrega características do deus Mercúrio romano. Este aspecto do diabo, que também é o do deus Mercúrio, trai sua estreita identificação com o inconsciente, que também tem uma natureza de Mercúrio, sendo primeiramente uma coisa e depois outra, assumindo primeiro uma forma simbólica e depois outra. O inconsciente tem realmente uma qualidade demoníaca. Contém, as qualidades desagradáveis da nossa natureza, que rejeitamos do consciente. (...) É também um embusteiro. (STANFORD, 1988, p. 148)

Malandros Linha que manifesta entidades femininas e masculinas que se identificam com a personalidade do malandro Zé Pelintra e estão ligados ao arquétipo do trisckster, o qual desobedece regras normais e normas de comportamento. A estória de Zé Pelintra, um dos mais famosos malandros, ilustra essa possibilidade criativa de transformação. Sua trajetória começa na Lapa, zona boemia do Rio de Janeiro, sendo um perigoso malandro, ágil em brigas. Acabou morto em um conflito na noite boemia por golpes de navalha. Mais tarde o Malandro Zé Pelintra vai aparecer magicamente nos rituais do Catimbó nordestino, onde exerce o papel de curador poderoso, um hábil médico, como se fosse um curador-ferido semelhante a Asclépio grego. O Malandro aparece como num espectro que oscila desde o psicopata perigoso até personagens extremamente positivos. (BOECHAT, 2014, p. 13)

Exús “Diga-me, por favor, onde posso encontrar o diabo? ”, pede o cavaleiro. “Por que o senhor quer encontrar o diabo? ”, pergunta-lhe a condenada. Porque talvez o diabo possa me falar de Deus” (STANFORD, 1988, p. 12)

Manifestações de esquerda da energia masculina. Magos, feiticeiros que tiveram sua história pregressa na civilização ocidental através de uma índole mais perversa. Apresentam-se utilizando capas, tridentes e caveiras, o que nos remete à figura do diabo cristão. Exu subverte a ordem, do espaço e do tempo, ordem necessária à consciência que é fundada no contínuo espaço tempo e causalidade. (...) Na umbanda Exu se mostra portador do rejeitado, a possibilidade de integração entre opostos irreconciliáveis. Apesar disto, está sujeito a Oxalá, pai de todos os Orixás, que determina a Lei do Retorno, o karma e a caridade, limitando a ação e Exu. (...) são pessoas falecidas de índole mais perversa e tendem a continuar a fazer maldades; mas alguns desses espíritos decidem resgatar suas faltas e tornam-se o que é denominado por exu de lei, os exus guias e guardiões que, atuando com os aspectos mais tenebrosos da vida humano, o fazem para o bem, seguindo a lei da caridade, base ética da umbanda. Em virtude dessas questões, Exu algumas vezes passou a ser associado ao diabo cristão Suas imagens representam seres fantásticos de pele vermelha, chifres, rabo, pés de cabra tridentes, capas pretas, esqueletos e outras formas distorcidas do ser humano, fazendo referência aos aspectos de animalidade, ferocidade ou à morte como putrefação. (...) gradualmente Exu foi sendo depositário dos conteúdos sombrios e rejeitados pela cultura cristã: o mal, a materialidade, o feminino e a sexualidade (...) isso levou Exu a representar principalmente três aspectos da cultura judaico-cristã dissociados da espiritualidade. São eles a agressividade violenta, a sexualidade e a malandragem. (BOECHAT, 2014, p. 151)

Pomba-Giras Manifestações de esquerda da energia feminina, inicialmente eram rotuladas como cortezãs e prostitutas que tendo levado uma vida de crimes e pecados, voltavam para se redimir. Atualmente o entendimento destas entidades têm se modificado, entendendo que a condição marginal da mulher durante toda a história, provavelmente gerou esta imagem equivocada de mulheres que desafiaram o seu tempo e a ordem social, sendo portanto qualificadas como mulheres de má índole. Isto deriva, obviamente, de toda a desvalorização do princípio feminino e da mulher, praticado por tantos anos na cultura judaico-cristão. A ideia de que o prazer sexual pudesse ter um espaço no plano de Deus como forma de expressar amor e proximidade, uma forma de intimidade física que acompanha a intimidade psicológica, ou ainda apenas para se ter um bom momento e expressar a alegria de viver, foi rejeitada como sendo do diabo porque, de acordo com o gnosticismo, o corpo era o mal. Essa rejeição do espírito feminino pode ser vista na fascinante lenda de Lilit, a primeira mulher, e mais tarde a mulher de Satã, cujo nome significa literalmente “pertencente à noite”. (STANFORD, 1988, p. 154)

Hoje encontramos personalidades muito fortes representando também curandeiras, feiticeiras e mulheres independentes que se apresentam para ajudar os encarnados a se aproximarem ainda mais do princípio feminino.

A sombra Podemos perceber claramente como estes últimos estereótipos apresentados nos falam do arquétipo sombra. O termo “sombra”, como conceito psicológico, refere-se ao lado obscuro, ameaçador e indesejado da nossa personalidade. Nossa tendência, no desenvolvimento de uma personalidade consciente, é buscarmos incorporar uma imagem daquilo que gostaríamos ser. As qualidades que pertenceriam a essa personalidade consciente, mas que não estão de acordo com a pessoa que queremos ser, são rejeitadas e vêm a constituir a sombra. (STANFORD, 1988, p. 64)

A Umbanda parece oferecer um acesso respeitoso a estas características, tantas vezes excluídas na sociedade judaico-cristã. Em seus cultos de “esquerda” há uma reverência a todos estes atributos da sombra presentes nas entidades que se apresentam. É reconhecido que mesmo no considerado “mal” há o numinoso, e um caminho de sabedoria na sombra representada por estas entidades. A sombra possui de fato muitas qualidades vitais que podem ser adicionadas à nossa vida e fortalece-la se soubermos nos relacionar com ela devidamente. (STANFORD, 1988, p. 66) Sem nossa sombra, podemos bloquear a capacidade e reagirmos de forma saudável em situações na vida que começam a se tornar intoleráveis para nosso espírito. (...) Do mesmo modo, um homem ou uma mulher que tenham cortado seus sentimentos de instintos sexuais eróticos podem necessitar de um contato com esses sentimentos afim de obter energias vitais para um relacionamento saudável com o sexo oposto. (STANFORD, 1988, p. 68) A redenção do diabo é uma importante tarefa psicológica a ser realizada, pois não podemos ser íntegros se não recuperarmos as partes perdidas de nós mesmos. Entretanto, os perturbadores Dionísio, Pã e Afrodite deveriam estar na atitude cristã convencional e também pertencem à totalidade humana Eles não são maus em si mesmos, mas acrescentam a cor, a vitalidade e o eros de que necessitamos para que nos tornemos pessoas íntegras. (STANFORD, 1988, p. 151)

Conclusão Podemos concluir então que a Umbanda nos traz vários elementos interessantes sob a ótica da Psicologia Analítica, como fenômeno social que se propõe a aproximar os brasileiros contemporâneos de suas raízes e proporcionar uma vivência transcendente que integre suas luzes e sombras. O material apresentado foi obviamente limitado devido ao escopo do trabalho, mas muito poderia ser analisado diante do vasto material arquetípico e simbólico que o tema encerra. Embora a Umbanda não seja considerada por alguns como uma verdadeira religião, e não apresente fundamentos escritos ou dogmatizados, ela vem cumprindo seu papel de re-ligar o homem ao divino. Acredito que o sentimento despertado em um Umbandista quando questionado sobre sua fé, seja melhor explicado por uma das muitas histórias de Joseph Campbell:

“No Japão, durante um congresso internacional sobre religião, Campbell entreouviu outro delegado norte-americano, um filósofo social de Nova Iorque, dizendo a um monge xintoísta: “Assistimos já a um bom número de suas cerimônias e vimos alguns dos seus santuários. Mas não chego a perceber a sua ideologia. Não chego a perceber a sua teologia”. O japonês fez uma pausa, mergulhando em profundo pensamento, e então balançou lentamente a cabeça. “Penso que não temos ideologia”, disse. “Não temos teologia. ” “Nós dançamos. ” (CAMPBELL, 1988, p. 13)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BOECHAT, W. A Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes, 2008

BOECHAT, W. A alma brasileira: luzes e sombras. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes, 2014 CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Cultrix, 1997.

ESTES, C. P. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. JOHNSON, R. A. Innerwork a chave do reino interior. São Paulo. Mercuryo: 1989.

JUNG, C. G., Kerenyi K. A Criança Divina - Uma Introdução à Essência da Mitologia. Vozes Ltda, 2011. STANFORD, J. A. Mal,o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulus, 1988.

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