União Europeia: caminhos do futuro (2013)

June 14, 2017 | Autor: João Pedro Dias | Categoria: União Europeia
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União Europeia: caminhos do futuro João Pedro Simões Dias - Conferência proferida na Universidade de Aveiro em 2013.03.05

I A União Europeia vive, inequivocamente, a mais grave crise desde o advento do projeto comunitário, no início dos anos cinquenta - para desgosto de todos aqueles que nele acreditaram, que o defenderam convictamente contra muitos dos adversários que sempre teve, e que hoje assistem (assistimos) ao esboroar diário de um sonho bonito, de uma utopia que chegou a ser realidade, em que creditámos seriamente. E há mesmo quem afirme, inclusivamente, que esta é a mais grave crise que o continente europeu conhece desde o início do século XX (se descontarmos, obviamente, os dois períodos de guerra mundial que marcaram esse século). II Neste cenário crítico, falar de caminhos de futuro da União Europeia tem tanto de adivinhação como de atrevimento ou ousadia. Quiçá, mesmo, de surreal. Sejamos muito claros: a realidade, uma vez mais, escapou às previsões de quem se dedica a refletir sobre estas coisas da respublica europeia e nada indica ou garante que no futuro as cosas venham a ser diferentes ou se venham a passar de forma significativamente distinta. O máximo que se poderá fazer, e com um esforço já acentuado de boa vontade, será tentar prever ou tentar antecipar alguns possíveis caminhos que poderão vir a ser trilhados e, em simultâneo, esperar que a Providência ou os deuses (para que

acredita), ou o simples destino (para quem não acredita no sobrenatural ou acha que o Criador tem coisas mais importantes com que se ocupar do que com o futuro do projeto europeu) não venham estragar muito essas possibilidades. Em todo o caso, o que com segurança já se pode - direi mesmo: já se deve! - fazer, será tentar perceber onde estamos e como é que aqui chegámos. Que mais não seja, para melhor compreendermos o presente e tentarmos evitar a repetição futura dos erros que conseguirmos identificar. É uma elementar manifestação não só de inteligência como de simples bom-senso. A primeira pergunta de que deveremos partir será, pois, esta: como chegámos à situação em que estamos, em que a União Europeia se encontra? III Direi que, como ponto de partida inicial, a União Europeia iniciou a sua reversão ou a sua marcha recessiva a partir do momento em que o mundo, no qual o projeto europeu germinou e nasceu, morreu ou se foi radicalmente transformando. Nesta abordagem, necessariamente sintética, valorizo principalmente dois tipos de causas: a) causas exógenas, exteriores à União Europeia, mas que nesta se refletiram inapelavelmente e a arrastaram para a crise que conhecemos; e b) causas endógenas ou erros próprios, de variado tipo, que contribuíram para que o resultado tenha sido aquele que conhecemos.

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IV Comecemos por analisar as principais causas exógenas que se me afigura que devem ser levadas em consideração como responsáveis pela atual situação que vivemos no quadro da UE. Creio serem duas as principais dessas causas exógenas: Por um lado, em primeiro lugar, o irreversível fenómeno da globalização, que nós portugueses iniciámos com a saga dos descobrimentos mas que se acentuou de forma dramaticamente acelerada nas últimas décadas. Fenómeno esse que, fruto do desenvolvimento da ciência e da técnica, tornou o mundo inequivocamente mais pequeno, aproximou o que dantes estava distante, relativizou todas as distâncias e pôs em contacto quem outrora apenas coexistia mas não se contactava. Pois bem: no quadro desse amplo, vasto, mas irreversível, processo de globalização, a União Europeia foi generosa em demasia; quiçá imprudente; não se precaveu; não se defendeu; abriu-se de forma quase automática e, dum momento para o outro, passou a ter de competir com e em mercados em tudo diferentes dos seus, onde se praticavam (e continuam a praticar) condições económicas e laborais muito menos reguladas, muito menos exigentes, muito menos solidárias. A liberalização ocorrida no quadro da OMC ilustra na perfeição o que sucedeu. A União Europeia, fruto do seu modelo social, manteve os benefícios que foi instituindo, manteve os seus custos de trabalho a um nível que se tornou insusceptível de qualquer concorrência à escala global. Foi uma determinante externa, com algum grau de responsabilidade própria - assumamo-lo - mas contra a qual, num mundo de grandes áreas e grandes blocos, a União Europeia, isoladamente, pouco ou nada poderia fazer.

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Por outro lado, em segundo lugar, sofremos ainda hoje as consequências e os efeitos terríveis da gravíssima crise financeira do subprime que eclodiu nos EUA em 2007/2008 e que terá tido na falência do "Lehman Brothers", em Setembro de 2008, um dos maiores bancos dos EUA, o seu momento mais emblemático. Um facto que, pelas suas repercussões e consequências, transformou em planetária uma crise que era nacional, norte-americana, e com uma origem bem determinada e bem identificada, relacionada essencialmente com a bolha imobiliária norte-americana. Este foi, todavia, o rastilho para ruir quase por completo um sistema financeiro que se veio a descobrir assentar em riqueza virtual, em riqueza tóxica, em fraude entrelaçada com alta finança. A Europa, e sobretudo a Europa da União, não ficou - nem podia ter ficado - imune ou indemne a tal cataclismo. Estes dois factos, alheios ou exógenos à Europa, contribuíram, indiscutivelmente, para chegarmos aqui, onde estamos hoje. E já veremos como estamos. V Mas também houve muitos erros próprios, da própria União Europeia, que contribuíram para que chegássemos ao ponto a que chegámos. Identifico, sumariamente, cinco. O primeiro e mais relevante, do meu ponto de vista, tem a ver com o facto de a União Europeia não se ter sabido adaptar convenientemente às mudanças geopolíticas que decorreram desde a origem do projeto europeu. Este facto é muito interessante e convém determo-

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nos breves instantes para recordar qual era esse contexto geopolítico. Vejamos: As Comunidades Europeias, iniciadoras e antecessoras da atual União Europeia, surgiram num mundo bipolar: i) existiam dois grandes blocos estratégicos: o Ocidente e o Oriente; ii) existiam duas superpotências: os EUA e a URSS; iii) existiam duas Europas: a Europa Ocidental e a Europa Oriental; iv) existiam duas organizações de defesa: a NATO e o Pacto de Varsóvia; v) existiam duas organizações económicas: a CEE e o COMECOM; vi) existiam duas Alemanhas: a República Federal da Alemanha e a República Democrática da Alemanha; vii) e, para cúmulo, existiam duas cidades de Berlim: Berlim ocidental e Berlim leste. Isto foi assim desde o fim da segunda guerra mundial até 1989/1991 e foi neste ambiente geopolítico que o projeto europeu nasceu. Porém, em 1989/1991, tudo mudou: i) o Presidente dos EUA, George Bush, proclamou ou decretou o fim da guerra-fria; ii) implodiu a URSS – e onde havia um Estado, surgiram dezassete Estados novos e vários outros territórios ou Repúblicas, mais ou menos autónomas, aspirando a essa condição; iii) sobrou uma única superpotência – os EUA - que muitas vezes passou a atuar como polícia do mundo sem que alguém lhe tivesse outorgado mandato para tanto; iv) caiu o Muro de Berlim; v) reunificou-se a Alemanha; vi) unificou-se a cidade de Berlim; vii) desapareceu o Pacto de Varsóvia; viii) acabou o COMECOM; ix) desmembrou-se a Jugoslávia originando seis novos Estados, aí já se contando essa realidade anacrónica, porque totalmente inviável, chamada Kosovo, independente apenas com base em motivos étnicos, que tem estado a ser defendido pelos EUA, economicamente mantido pela União Europeia e cuja criação não deixou de revestir 5

manifesta ofensa e agravo à Sérvia, que se viu despojada do seu berço histórico; x) desapareceu a Checoslováquia originando o surgimento de dois novos Estados. Em síntese - acabou a ordem internacional que saiu da segunda guerra mundial, no qual o projeto europeu tinha germinado e no âmbito da qual as Comunidades eram uma simples organização económica representativa da pequena Europa, de um conjunto de apenas uma dúzia de Estados europeus. Ora, no preciso momento em que estes acontecimentos se dão, o projeto europeu ensaiava a sua evolução, a sua profunda mutação: as Comunidades Europeias dariam origem ou seriam completadas pela União Europeia (recorde-se que o Tratado de Maastricht que criou a União Europeia data de 1992, em plena época destas transformações radicais que a Europa conhecia) e essa evolução assinalaria uma mudança completa na matriz desse projeto europeu. As Comunidades deixavam de ser uma organização sub-regional de natureza económica, representando apenas a chamada "pequena Europa" ou uma parte da então dita "Europa Ocidental" para, fruto dos pedidos de adesão que se sucediam, pretender passar a ser uma organização de âmbito pratica-mente continental, paneuropeia, e com evidente ambição política e já não meramente económica. E aqui radica, salvo outra e melhor opinião, o segundo dos cinco grandes erros próprios que a União Europeia cometeu e estão na origem da situação em que nos encontramos: a forma apressada, mal preparada e precipitada como se alargou. Sem cuidar de, previamente, definir objectivos claros, de se reformar no plano das suas instituições e dos seus processos internos de deliberação, num ápice a União Europeia viu-se composta por 27 Estados (28 a partir de Julho próximo), não estando dito ou escrito em lado algum, antes pelo contrário, que o número fique por aqui. A União Europeia inverteu a lógica e deu-se mal com essa inversão - antes de se reformar, de se

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preparar para admitir novos Estados membros, de alterar os seus processos de deliberação e só depois receber novos Estados, a União Europeia alargou-se e ensaiou reformar-se já depois do alargamento feito. Ora, se eram difíceis os entendimentos “a doze” ou “a quinze”, em matérias sensíveis relacionadas com o poder e a partilha do poder interno, “a vinte e cinco” ou “a vinte e sete” esses entendimentos têm-se revelado praticamente impossíveis. Este foi, em síntese, o segundo grande erro próprio cometido pela União Europeia e que contribuiu para que chegássemos ao ponto a que chegámos: o último grande alargamento e a forma como o mesmo se produziu. Concedo: do ponto de vista político teria sido muito complicado ter andado meio século a apregoar as vantagens e os benefícios do modelo ocidental relativamente ao modelo do leste europeu e depois - quando os Estados da Europa central e de leste se libertaram da jugo imperialista de Moscovo - fechar-lhes as portas quando batiam à nossa própria porta, quando davam mostras de se querer juntar ao nosso modelo. Admito que, politicamente, tivesse sido complicado adiar ou protelar tais adesões. Para mais, esses Estados que nos batiam à porta faziam-no, também, como forma de garantirem a própria democracia a que acabam de aceder e a própria soberania que acabavam de recuperar ou de proclamar. Mas essa dificuldade não nos deve impedir que, agora, à distância e beneficiando do distanciamento que só o tempo histórico permite e possibilita, não reconheçamos que esses alargamentos foram mal preparados, mal geridos e, sobretudo, precipitados. Em terceiro lugar - o euro. Mas aqui, entendamo-nos bem e sejamos absolutamente claros: a criação da moeda única europeia não é nem pode ser considerada como um erro ou um insucesso por parte da União Europeia. A forma como o mesmo foi criado e, sobretudo, aquilo que faltou fazer para acompanhar a criação duma zona mone-

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tária única é que vieram a revelar-se fatais. Desde logo - criou-se uma moeda única para países com economias muito diferentes. Uns teriam interesse em que essa moeda comum fosse uma moeda forte, outros teriam interesse em que essa moeda fosse uma moeda fraca. Este dilema, que permanece, nunca foi resolvido nem sei se alguma vez o poderia ter sido ou poderá vir a sê-lo. Depois - criou-se uma moeda única, comum neste momento a dezassete dos vinte e sete Estados da União Europeia, mas não se criaram, nem se previu a criação, de um conjunto de mecanismos que por regra e definição estão associados à existência do poder de emitir moeda. Não existe um tesouro europeu; não existe um mínimo de harmonização fiscal entre os Estados que partilham a referida moeda; não existe uma articulação orçamental entre os referidos Estados, apesar da existência dos chamados semestres europeus; o banco central europeu, em grande parte por influência do banco central alemão, aparece despojado de um conjunto de competências tradicionalmente associadas à condição dum banco emissor de moeda; só agora se dão passos sérios no caminho da união bancária; também da união orçamental; existe uma moeda única mas não existe uma governação monetária única; não existe uma supervisão bancária à escala europeia; não existe qualquer tipo de mutualização de dívida (os célebres "eurobonds"). E, questão aparentemente distinta mas profundamente interrelacionada com esta, a União Europeia continua a dotar-se de um orçamente absurdamente insuficiente para fazer face aos objectivos que a si própria se atribui, orçamento que continua a andar na casa do 1% do PIB comunitário e se prepara, inclusivamente, para decrescer em termos não só reais como, inclusivamente, nominais. A ponto de, quando a zona euro quis cerrar fileiras para defender a sua moeda, ter tido necessidade de uma enorme criatividade jurídica para criar um veículo financeiro formalmente autónomo da União Europeia, o Mecanismo Europeu de Estabilidade, no montante da 700MM€ pelo simples facto de que, no orçamento da União não havia verbas suficientes para defender a sua própria moeda dos ataques especulativos que viessem a incidir sobre esta. Ora, a introdução do euro veio, 8

em muitos Estados membros, inculcar uma ideia de dinheiro fácil, beneficiando de taxas de juro diminutas, permitir endividamentos absurdos, dívidas públicas e privadas incomportáveis; tudo condições propícias a que muitos Estados da zona euro se aproximassem a passos largos da bancarrota, do incumprimento, dos resgates financeiros, da obrigação de terem de obedecer às condições impostas pelos credores internacionais. Daí que aquilo que durante muito tempo se definiu como uma crise do erro tenha sido assim erradamente qualificado. A crise não foi nem é do euro; a crise é, isso sim, das dívidas acumuladas por alguns Estados que partilham o euro como moeda comum, as chamadas dívidas soberanas. Mas se isto aconteceu assim foi também porque a criação da moeda única não foi acompanhada dos referidos instrumentos que deveriam ter sido criados, e a "defesa" da moeda única foi confiada não a uma instituição dotada de efetivos poderes de controle prudencial mas a dezassete administrações nacionais, cada qual atuando por si e segundo os seus desígnios. O resultado, obviamente, não podia ser brilhante. Como se está a ver! Em quarto lugar - quarto erro próprio cometido pela UE, o Tratado de Lisboa. Este, recorde-se, surgiu na decorrência dos chumbos da dita Constituição Europeia através de vários referendos populares, sobretudo em França e na Holanda. E há a clara percepção que, se outros tantos chumbos não se verificaram foi porque mais referendos não se realizaram. O ambiente europeu à época era francamente hostil e adverso ao sucesso destas iniciativas. Ora, nesta matéria, tenho vindo a defender há muito tempo esta ideia que sei não ser pacífica nem unânime entre quem se dedica a pensar e refletir sobre a Europa da União: o Tratado de Lisboa mudou a natureza da União Europeia. Desde o seu início, esta assentou em dois pilares fundamentais: um de natureza supranacional, outro de

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natureza intergovernamental. Dois pilares que se equilibravam mas onde a tendência sempre apontou para o predomínio do supranacional sobre o intergovernamental. E por isso, no plano conceptual, sempre nos ensinaram e sempre ensinámos que as Comunidades sempre eram caracterizadas como organizações de tipo supranacional e não como organizações de tipo intergovernamental. Com o Tratado de Lisboa as coisas mudaram. Subrepticiamente, a matriz da União Europeia mudou. O seu pilar intergovernamental, representado pelo poder dos Estados e simbolizado no Conselho Europeu, reforçou-se na justa medida em que o pilar e o papel supranacional, simbolizado pela Comissão Europeia, se reduziu e desvalorizou. De certa forma, poderemos dizer que a intergovernamentalidade capturou a União Europeia. Há vários elementos que o demonstram inequivocamente. Se dúvidas houver, atentemos nos factos e vejamos qual a instituição da União Europeia que, recorrentemente, tem aparecido como epicentro da resolução da crise: o Conselho Europeu! O Conselho Europeu reunido a nível de chefes de Estado e de governo de toda a União Europeia ou as cimeiras dos chefes de Estado e de governo da área do euro, isto é, dos países que partilham a moeda única europeia. Têm sido os chefes de Estado e de governo dos Estados da União Europeia que têm repetido à exaustão as suas cimeiras e têm tentado encontrar soluções para a crise europeia. E, de passagem, reparemos no quase completo apagamento que a Comissão Europeia tem conhecido ao longo do mesmo período. Sei que a tese não é pacífica mas é a análise que faço dos factos. O Tratado de Lisboa - preparado todo pela Chanceler Merkel e pela presidência alemã, que o ofereceram ao Eng.º José Sócrates e à presidência portuguesa para que esta o encerrasse, assinasse e ficasse com os louros do seu acordo aparecendo na fotografia da praxe - veio reforçar o papel do Conselho Europeu, diluir o papel da Comissão Europeia. E ao reforçar esse papel do Conselho Europeu, permitir a emergência do diretório europeu formado, obviamente, pelos Estados mais importantes e mais relevantes: a Alemanha e a França. Como esta, durante um quinquénio, esteve dirigida por essa tragédia europeia chamada Ni10

colas Sarkozy, a Alemanha teve "via verde" para impor - no Conselho Europeu, nas cimeiras da área do euro, no ECOFIN e no Eurogrupo, ou seja, nas sedes do verdadeiro poder comunitário - as suas regras e definir as políticas que a União Europeia devia seguir, de acordo com o princípio que "quem mais paga mais manda". Quinto e último erro grave que, em minha opinião, a União Europeia cometeu neste período recente: a profunda crise das lideranças políticas europeias – a União Europeia deixou de sonhar, deixou de ousar e de ambicionar. A prevalência foi dada ao económico na justa medida em que feneceu em absoluto a ambição política. Se atentarmos na origem do projeto europeu, vemos que a primeira geração de líderes europeus foi a que viveu a segunda guerra mundial e idealizou esse mesmo projeto. Teve a paz como o bem fundamental a preservar, conferindo particular ênfase à paz franco-alemã. A geração seguinte de líderes europeus de referência foi a que se seguiu à guerra e ainda sofreu os seus efeitos. Continuou fiel ao sonho e ao ideal dos pais fundadores. Esta, a atual, a geração que nos governa, não viveu nem sentiu a guerra. Viveu e sentiu o «milagre económico alemão». Formou-se mais sensível às ques-tões económicas que ao sonho político. Não lançou nenhuma iniciativa de relevo e tropeçou de insucesso em insucesso: falhou na tentativa de aprovar a Constituição Europeia; aprovou, a muito custo, o Tratado de Lisboa mas com todas as vicissitudes que já lhe apontámos; e o próprio euro, a última grande criação da Europa, foi idealizada pela segunda geração de governantes e não se livrou dos vícios que também já lhe identificámos. Por culpa própria, por escolhas deliberadas, inquestionavelmente democráticas, ou por deliberada abstenção, elegemos palhaços e depois queixamo-nos e lamentamo-nos. Faz-me lembrar aquela anedota que se conta do miúdo que matou o pai, a seguir matou a mãe e depois pôs-se a berrar para terem pena dela porque era .... órfão!!!! É um pouco o que está a acontecer com a atual União Europeia. 11

VI Foram estes erros - alheios uns, próprios outros - entre muitos outros mais, que mais terão contribuído para conduzir a União Europeia ao ponto a que chegámos. Como caracterizar esse momento? Não faltam indicadores que no-lo ilustrem na perfeição. De entre as várias dezenas a que poderíamos recorrer, prefiro reter um e apenas um de âmbito sócio-económico e um e apenas um de âmbito político. Social e economicamente, temos hoje uma União Europeia com 500 milhões de habitantes e um autêntico exército de mais de 20 milhões de desempregados! Politicamente, estamos a caminho de uma verdadeira Europa alemã (para parafrasearmos o título da recente obra do soció-logo alemão Ulrich Beck, cuja leitura recomendo vivamente) Foi a este estado que fomos conduzidos. E esta situação tem um único nome: insustentável! Nenhum projeto político pode ser edificado com base em tal chaga social. Nenhum projeto político pode ser atrativo ou mobilizador quando produz este resultado. E como nenhum projeto político pode ser erigido do topo para a base sem concitar a adesão dessas mesmas bases, quando estas estão descontentes ou não aderem, esse projeto tem de se haver por condenado a médio ou longo prazo. No imediato pode subsistir. Pode, até, merecer os encómios e os favores das elites. Mas, a longo prazo, terá de se ter por inviável. E este é o desafio que a União Europeia tem pela frente: saber concitar os favores e a adesão dos cidadãos europeus. Mas isso, sejamos práticos e realistas - nunca se conseguirá num clima recessivo, num clima de 12

empobrecimento, num clima de profunda crise financeira que evoluiu para o plano de crise económica e é hoje uma evidente crise social. Há, de resto, hoje em dia uma corrente importante segundo a qual a crise que a Europa atravessa apenas se conseguirá superar com mais Europa. O problema que se coloca é que este conceito de "mais Europa" apresenta cada vez menos sustentabilidade e menos aprovação nos diferentes Estados membros. As elites preconizam mais Europa mas os cidadãos olham com cada vez mais desconfiança para esta mesma Europa. Do ponto de vista político estamos a caminho de uma verdadeira Eropa alemã. De uma União Europeia onde a Alemanha, sem fazer nada de especialmente relevante para isso, para além de cuidar bem do seu poder, marca o ritmo, decide ou impede que se decida, subordina a marcha dos negócios europeus às suas conveniências internas. Neste quadro, Ângela Merkel aparece coroada como uma espécie de rainha europeia que só os alemães escolheram e legitimaram e que adopta uma política que se poderia sintetizar como pretendendo ser temida no exterior e amada no seu próprio país. O citado Beck, na obra que referi, ilustra com perfeição esta política, a que chama de Merkiavelismo, espécie de sucedâneo do tristemente célebre Merkozy, e ilustra a prática maquiavélica de exercício do poder pela chanceler Merkel. Poder que conduz os Estados europeus a uma posição paradoxalmente contraditória: temem e criticam o poder e a influência que a Alemanha exerce no plano europeu; mas temem muito mais que a Alemanha deixe de os apoiar e de contribuir para a sua viabilidade financeira imediata! VII Como é que a União Europeia conseguirá ultrapassar esta situação? Entramos aqui, como se advertiu atrás, no plano da especulação, da 13

adivinhação, quiçá do absoluto desconhecido. O passado recente tem-nos mostrado o quão arriscado será a assertividade neste domínio. VIII Admito, no plano teórico, como plausíveis, três cenários possíveis e um absolutamente impossível. Começando pelo cenário absolutamente impossível: a manutenção do stato quo atual. Mantermo-nos como estamos e permanecermos neste pântano que nem responde ao modelo da integração nem ao modelo da cooperação é de todo inviável. Conduzirá à morte da União Europeia - mas à pior de todas as mortes possíveis: a agonia prolongada com o sofrimento social insuportável que o modelo já conhece mas que não se pode prolongar por muito mais tempo. Sobre os cenários possíveis - que admito poderem ser três: Em primeiro lugar, a diluição ou dissolução da própria União Europeia. Recorrendo, por exemplo, ao exemplo do Império Austro-Húngaro, creio ser um erro pensar que a União Europeia é um dado adquirido. A União Europeia é uma forma de organização política. Mas todas as organizações políticas nascem, vivem e morrem. Vejamos: i) a URSS desapareceu; ii) a Jugoslávia desapareceu; iii) a Checoslováquia desapareceu; iv) a República Democrática da Alemanha desapareceu; v) várias Organizações internacionais desapareceram; vi) Municípios desapareceram; vii) Freguesias desapareceram. É um erro crasso considerar a União Europeia um dado adquirido!

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Em segundo lugar, a integração a várias velocidades. Chamo a atenção para o facto de este ser um cenário em tudo parecido com aquele que atualmente existe. Hoje em dia a União Europeia já está integrada a várias velocidades, posto que nem todos os Estados compartilham as mesmas políticas e estão vinculados às mesmas regras e princípios. De resto, as divisões que o continente europeu hoje conhece são cada vez maiores. Acentuou-se a divisão entre os Estados do Norte e os Estados do Sul; entre os que não partilham a moeda única e os que a querem partilhar; alargou-se a divisão entre os países que partilham o euro e os que, não usando a moeda comum, assistem à tomada de decisões importantes para o futuro da União Europeia sem nelas poderem participar; e mesmo dentro dos países que usam a moeda comum europeia, as divisões são cada vez maiores entre os que cumprem os critérios do défice orçamental e da dívida pública e os que não cumprem; ou entre os que estão sujeitos a resgate financeiro e os que não estão. Para já não falarmos nos Estados que pertencem a Schengen e os que não pertencem; nos que assinaram o Pacto Orçamental e os que não assinaram. Ou seja, mesmo dentro da União Europeia, nunca existiram tantas velocidades de integração diferentes, tantos círculos de integração diferenciados. Finalmente e em terceiro lugar - o aprofundamento da integração europeia. Dir-se-á, para facilitar a linguagem, ainda que com evidente imprecisão técnica e conceptual: o modelo federal. Confesso que durante muito tempo o rejeitei e não acreditei nele. Durante muito tempo entendi que a valorização da componente intergovernamental garantiria melhores soluções para as questões europeias. Depois do exemplo dos últimos anos, depois da deriva claramente intergovernamental que a União Europeia conheceu com o Tratado de Lisboa e que abriu, de par em par, as portas ao diretório europeu, à política do "manda mais quem mais paga", revi as minhas próprias opções.

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IX Acredito que apenas o reforço da integração nos poderá ajudar a reencontrarmo-nos com a nossa própria História e a reencontrarmonos com o legado dos pais fundadores que ousaram sonhar e começar a edificar o projeto europeu. Em que é que isso se consubstancia? Enunciarei apenas, sem qualquer critério de sequência lógica, alguns princípios em que acredito, como condições de sucesso do projeto europeu. Em primeiro lugar, num mundo de grandes espaços, creio que se os Estados europeus aspiram a fazer-se ouvir no mundo, apenas o conseguirão no quadro de uma organização europeia - chame-se ela União Europeia ou tenha outro qualquer nome. Para essa organização deverão os Estados aprofundar as transferências de soberania em domínios mais vastos e mais alargados do que atualmente sucede. Em matéria de política exterior, por exemplo, deverá ser essa organização a representar os Estados europeus no quadro do Conselho de Segurança da ONU. Em matéria orçamental é absolutamente necessário que o orçamento da União Europeia seja significativamente reforçado; que novas e mais abrangentes competências sejam transferidas para as instâncias comuns; que se reforme o método de decisão comunitário; que se valorize o papel da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, em detrimento da liderança desempenhada pelo Conselho Europeu, máximo expoente da dimensão intergovernamental europeia. Dir-se-á - é uma miragem e um sonho? É-o, seguramente! Mas, como diz a canção e escreveu o inolvidável António Gedeão, na sua inesquecível Pedra Filosofal, "Eles não sabem, nem sonham, // que o sonho comanda a vida, // que sempre que um homem sonha // o

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mundo pula e avança // como bola colorida // entre as mãos de uma criança". Muito obrigado pela vossa atenção.

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