Unipolaridade no século XXI: Dificuldades conceituais em uma ordem transitória

July 18, 2017 | Autor: Danillo Alarcon | Categoria: Theory of International Relations, Unipolarity
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Título: UNIPOLARIDADE NO SÉCULO XXI: dificuldades conceituais em uma ordem transitória1 Autor: Danillo Alarcon Afiliação institucional: Docente do curso de Relações Internacionais da PUC-Goiás; Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Franca); Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília

Resumo: Com a transição da ordem bipolar da Guerra Fria para o mundo unipolar inaugurado nos anos 1990 pela supremacia dos Estados Unidos, surgiram diversas questões quanto a essa configuração específica das relações de força entre os Estados. Diante do cenário inaugurado por essa condição sistêmica relevante, o objetivo deste trabalho é fazer uma revisão bibliográfica sobre a questão da “unipolaridade”, confrontando com o debate acerca da “hegemonia”. Concluímos que “unipolaridade sem hegemonia”, ou a adoção de políticas hegemonistas por parte do unipolo, trazem consequências nefastas tanto para a reorganização do mundo em um momento de transição e ascensão de novos grandes centros de poder quanto para o próprio unipolo. Palavras-chave: Unipolaridade; Hegemonia; século XXI; poder; “ascensão do resto”.

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Artigo apresentado no III Simpósio Internacional de Ciências Sociais – A comparação nas Ciências Sociais, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia (Goiás) – Setembro de 2013. ISSN: 2237-6518. GT5 - Política internacional: discursos, atores e o poder no sistema internacional.

2 Após o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos detinham importantes ativos na política internacional, que iam além da possessão de milhares de armas nucleares e um poder econômico global capaz de influenciar e incentivar a adoção dos ditames econômicos neoliberais, seguidos, em maior ou menor medida, na América Latina e na zona de influência da extinta União Soviética2. O poder norte-americano era considerado imbatível e incomparável a outros Estados. Diante dos desafios impostos por essas mudanças, os estudos acadêmicos em Relações Internacionais, em especial, nos países desenvolvidos, se debruçaram sobre as consequências, riscos e vantagens dessa circunstância atípica no sistema internacional vestfaliano, tido como, a partir de então, “unipolar”. Ao indicarmos que o sistema internacional continuou nos moldes vestfalianos levamos em consideração duas ressalvas importantes: primeiro, entendemos que os Acordos de Vestefália, de 1648, foram restritos no sentido de apaziguar as relações entre o Império e os seus oponentes, em especial a França. Todavia, as consequências em si dessa guerra, que fortaleceu a França como Estado territorial e o próprio Império como entidade multinacional, são fundamentais para as relações internacionais dos séculos vindouros, e para o campo de estudo das mesmas3. Em segundo lugar, indicamos que o foco do artigo se dá no papel dos Estados na política internacional, que não é, contudo, arena exclusiva desses atores. Todavia, como a bibliografia que lida com as questões de polaridade no sistema internacional está voltada majoritariamente para as relações entre os Estados, não adotaríamos postura diferente, quando parte do nosso propósito é revisitar parte desses escritos. Para Raymond Aron, a questão da polaridade trata da configuração das relações de forças no sistema internacional, sobre a qual temos que fazer algumas questões fundamentais: “Quais os limites do sistema? Qual é a distribuição de forças entre os diferentes atores? Como se situam os atores no mapa?” (ARON, 2002, p. 154). Para o autor, há duas configurações de forças típicas, que representam as possibilidades de organização sistêmica: a multipolar, caracterizada pela existência de mais de três potências com interesses globais, e a bipolar, situação em que o sistema está polarizado pelo interesse de duas grandes potências. Em qualquer uma se forma uma hierarquia

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Para um debate acerca das diversas manifestações do poder, ver NYE, Joseph S (2012). Para mais sobre essa questão específica, verificar: OSIANDER, Andreas. Sovereignty, International Relations and the Wetsphalian Myth. International Organization, vol. 55, n. 2, Spring 2001, p. 251-287. 3

3 entre os Estados, o que dá ordem à política internacional. Assim, tanto o sistema quanto os Estados vão ser limitados pela distribuição dessas forças entre os diferentes atores. Apesar de serem importantes essas questões, há, todavia, outros elementos que levam as nações a lutar para além de manter uma posição de força, tais como interesses, preferência sentimental e a busca do equilíbrio. A partir dessa constatação, é importante notar como Aron (2002) aborda a questão dos sentimentos e ideias nas relações internacionais: para ele, estes influenciam as decisões dos líderes internacionais e tem influência direta em outra classificação sistêmica relevante, que seria entre sistemas homogêneos e heterogêneos. Os primeiros reúnem Estados de um mesmo tipo, ou seja, que tenham um mesmo entendimento de política. Um exemplo de tal sistema foi o europeu até a Revolução Francesa. Tal variedade é mais estável e favorece maiores limites à violência, pois o inimigo não é necessariamente um adversário. No segundo, os Estados são organizados por princípios diferentes, com valores contraditórios. A partir de 1945, como aponta Aron (2002), o sistema, além de bipolar, era heterogêneo. Neste, o inimigo é um adversário. A abordagem de Aron (2002) guarda profundas diferenças com outra formulação do pensamento realista avançada por Kenneth Waltz, em 1979, ao lançar o livro “Teoria das Relações Internacionais”, no qual debateu a estrutura internacional a partir de suas três características centrais: o princípio ordenador, que é a própria anarquia; o caráter das unidades, e já que “a anarquia impõe relações de coordenação entre as unidades de um sistema” (WALTZ, 2002, p. 132), estas desempenham as mesmas funções. Por fim, a distribuição das capacidades das grandes potências, que são as unidades efetivamente relevantes na política internacional. Para o autor, “o poder é estimado pela comparação das capacidades de certo número de unidades” (WALTZ, 2002, p. 138). Da proposta desenhada por Waltz (2002), dois tipos de distribuição de capacidades eram possíveis no sistema internacional: a bipolaridade, considerada mais estável pelo autor, e a multipolaridade, que por permitir a aliança entre os diversos polos era menos estável. Ou seja, para este autor, ao contrário de Aron (2002), as paixões e sentimentos são irrelevantes quando se estuda a política internacional, pois a estrutura internacional é necessariamente o teatro das interações das unidades, e é a partir desta que virão os incentivos e constrangimentos para a ação dos Estados. Sendo assim, cabe a estes ampliarem suas capacidades para manterem seu poder, entendido nestes termos.

4 Apesar de os modelos defendidos por cada um dos autores aqui apontados divergirem quanto à suas concepções de poder, podemos deles apreender que tanto as relações de força a partir da interação entre os Estados, quanto a efetiva possibilidade de influenciar a política internacional por meio das capacidades, sejam importantes para os atores internacionais. Postura relativamente semelhante é apontada por Robert Gilpin quando propõe em 1981 um “modelo de mudança da política internacional”, preocupado com o fato de o grande público à época começar a se preocupar com uma guerra entre as grandes potências. Diante do cenário imposto pela perturbação da Pax Americana, era exigida, assim, uma análise desapaixonada da questão. Para Gilpin (1981), os custos para a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos aumentaram consideravelmente diante de sua capacidade econômica titubeante. Os sintomas clássicos apontados pelo autor para que se identificasse uma potência decadente eram: inflação galopante, dificuldades crônicas com o balanço de pagamento e altas taxas. Para o autor, todavia, mesmo que houvesse uma hegemonia sendo erodida, era possível acreditar que isso não levaria a guerras hegemônicas, pois a experiência histórica indicava que estas haviam sido particularmente sangrentas, e em uma época de armas nucleares, as possibilidades de tal conflito se tornaram ainda mais sombrias. Como se percebe, a abordagem de Gilpin (1981) se debruça para além das questões da polaridade, para o efetivo uso do poder no cenário internacional, em especial através da “hegemonia”. Assim, podemos dizer que as abordagens das Relações Internacionais que se debruçam sobre a questão da polaridade no sistema têm que dar conta das diversas possibilidades apresentadas pelos novos arranjos sóciopolíticos-econômicos globais. Além do mais, o simples recurso à categorização dos Estados de acordo com suas capacidades não é mais capaz de trazer chaves analíticas construtivas para o século XXI, cabendo ao debate acerca da hegemonia a devida interface com a questão. A partir de Aron (2002), Waltz (2002) e Gilpin (1981) fica nítido como o debate da polaridade no sistema internacional e a efetivação do poder do(s) Estado(s) que detém mais poder envolve mais elementos que a detenção de recursos físicos. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é justamente ampliar essa revisão bibliográfica sobre a questão da “unipolaridade”, confrontando com o que tem sido chamado de emergência dos países em desenvolvimento, ou para usar um termo popularizado, mas não isento de críticas, “ascensão do resto” (ZAKARIA, 2008). Esse movimento global não se relaciona ao declínio dos Estados Unidos, mas a um gradativo empoderamento de

5 outros Estados no cenário internacional, o que não deixa de trazer consequências consideráveis. Assim, as principais perguntas a serem respondidas são: em que medida a classificação da polaridade do sistema internacional é relevante para se analisar a política internacional na primeira década do século XXI? E, de que maneira, os aspectos centrais da conceptualização da “unipolaridade” nos auxiliam a analisar a primeira década do século XXI? O trabalho proposto recorrerá a uma revisão bibliográfica sobre a questão da polaridade no sistema internacional, tendo como ênfase fundamental desvelar o que se tem escrito sobre a “unipolaridade”. Como aponta Ngaire Woods (1996), a taxonomia é uma tarefa crucial nas ciências sociais, assim como para as Relações Internacionais. Como a autora aponta, encaixar em categorias a realidade não somente clarifica nosso estudo, mas também reflete seu propósito. O conceito central está dado e será assim objeto de escrutínio. Em conjunto, e a partir da bibliografia que discute a “unipolaridade”, será analisada a “ascensão do resto” na primeira década do século XXI.

1. Unipolaridade e Hegemonia: conceitos afins, mas nem sempre atados

Como apontado na introdução do trabalho, os pensadores realistas como Aron (2002) e Waltz (2002) vêm discutindo a questão da distribuição de forças na política internacional há décadas. As divisões claramente aceitas são as da bipolaridade e da multipolaridade. Por mais que seja evidente que o período da Guerra Fria tenha sido bipolar, após o fim da União Soviética defendeu-se que os Estados Unidos eram a única superpotência global, o que inauguraria uma era de unipolaridade, situação que perduraria na primeira década do século XXI. Por exemplo, para Ikenberry, Mastanduno e Wohlforth (2009) vivemos em um mundo de uma única superpotência, que tem capacidades (militares, tecnológicas, e geográficas) superiores sem precedentes. O conceito de unipolaridade para os autores está justamente relacionado com a distribuição de capacidades no sistema internacional, e não com relações políticas ou influência, melhor representados pelos conceitos de “hegemonia” e “império”. Para eles, “scholars use the term unipolarity to distinguish a system with one extremely capable state from systems with two or more great powers (bi-, tri-, and multipolarity)” (2009, p. 4).

6 Essa definição é capaz de abarcar um aspecto da questão da unipolaridade, em consonância com a abordagem neorrealista de Waltz (2002)4, acima apresentada, e que foca na questão das capacidades dos Estados. Para os autores, o estudo da polaridade na política internacional é relevante porque esta “structures the horizon of states’ probable actions and reactions, narrowing the range of choice and providing subtle incentives and disincentives for certain types of behavior” (IKENBERRY; MASTANDUNO; WOHLFORTH, 2009, p. 5). Poderíamos então indicar que a polarização do sistema em torno dos Estados Unidos, do final da Guerra Fria e ao longo da primeira década do século XXI, indicaria os limites à ação dos outros Estados criando um ambiente propício, ou não, às relações internacionais. Para Robert Jervis (2009), dizer que o mundo é unipolar não é nem engrandecer o poder americano, nem dizer que os EUA estabeleceram um império global. É simplesmente reconhecer um fato, que é, todavia, difícil de ser explicado, por debilidades nas teorias e por falta de evidência sobre como funciona um sistema unipolar. Para este autor, apesar de apontar uma perspectiva semelhante a dos autores logo acima indicados, a prospecção para os Estados Unidos desse exercício de poder unipolar não é sempre tão interessante. Primeiro porque "regime and leadership characteristics are likely to matter more in unipolarity than in other systems because of the weakness of external restraints" (JERVIS, 2009, p. 204). Ou seja, a política interna do unipolo5 se torna cada vez mais relevante e importante em determinar a política internacional. Segundo, porque alguns valores desse Estado podem não ser compatíveis com a unipolaridade. Como Jervis (2009, p. 2020) aponta, "international liberalism implies juridical equality among the states, but under unipolarity states differently positioned claim different rights and responsibilities". Invertemos a ordem da exposição do autor para que fique nítida a relevância, em primeiro lugar, da variável doméstica no estudo da polaridade, e por fim, para indicarmos como a unipolaridade baseada nos Estados Unidos tende a trazer desafios políticos e acadêmicos significativos, que continuaremos explorando no artigo.

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Os autores reconhecem que o comportamento do Estado unipolar é importante, mas não se debruçam tanto sobre a questão, pois preferem enfatizar a questão das capacidades. 5 Recorremos ao neologismo “unipolo” para indicar o Estado capaz de ocupar essa posição de primazia em um sistema unipolar. “Unipole” tem sido usado na bibliografia da área em inglês, mesmo não constando nos principais dicionários da língua. Por ser um termo que tem sido usado correntemente, optamos por incorporá-lo ao texto, com a devida adaptação à língua portuguesa.

7 Até o momento percebemos como a pesquisa somente por meio dessa divisão “uni-bi-multi” não é significativa para que analisemos e avaliemos a política internacional no início do século XXI. Sendo assim, é relevante que nos debrucemos sobre as condições que propelem ou impedem o unipolo (qualquer que seja ele) a efetivamente exercer o poder que adquiriu através de suas significativas capacidades. Essa questão é postulada por David Wilkinson (1999), que defendeu que a unipolaridade norte-americana instaurada após o colapso da União Soviética não estava vinculada a elementos hegemônicos. Para o autor, “unipolarity without hegemony is a configuration where the preponderant capability of a single state is not matched by a predominant influence” (WILKISON, 1999, p. 143). Essa situação é demonstrada pelo fato que evidências da hegemonia dos EUA só são encontradas em suas relações com potências pequenas e médias, e não em relação às grandes (França, Grã-Bretanha, China e Rússia), por mais que haja pressão. Uma distinção importante que Wilkinson (1999) faz, e que nos é relevante a partir desse momento, é entre hegemonia e hegemonismo. Enquanto que o primeiro é definido como uma relação de influência (que pode ser coerciva, consensual, econômica, e mesmo legítima), o segundo é precisamente a busca ou tendência a formular políticas voltadas a um projeto hegemônico, o que indica uma prova da falta de hegemonia de um determinado Estado. É exatamente isso que indicamos como um problema fundamental na unipolaridade: não basta ao Estado adquirir capacidades relativamente maiores às dos outros. Estas podem ser alcançadas, como tem acontecido com a “ascensão do resto”, mas a hegemonia, ou seja, a verdadeira capacidade de liderar – na maior parte das vezes de maneira legítima – o sistema, quando falha, pode ser na verdade um fator desestabilizador do mesmo, muito mais que a configuração básica de forças. Há, é importante notarmos, outras concepções de “hegemonia”, mas todas, em maior ou menor medida, dialogam diretamente com o que Wilkinson (1999) definiu. Por exemplo, Adam Watson (2004), expoente da Escola Inglesa das Relações Internacionais, entendeu a hegemonia como a situação em que “alguma potência ou autoridade num sistema pode ‘escrever as leis’ sobre a operação do sistema, ou seja, determinar em alguma medida as relações externas entre Estados-membros, enquanto os deixa inteiramente independentes” (p. 29). Outra vertente teórica das Relações Internacionais, a Teoria Crítica, cujo um dos grandes expoentes é Robert Cox, vislumbra a hegemonia “como uma estrutura social,

8 uma estrutura econômica e uma estrutura política e não pode ser apenas uma dessas estruturas: tem de ser todas as três ao mesmo tempo” (COX, 2007, p. 118). Para o autor, que se baseia no neomarxismo gramsciano, as ideias e as condições materiais – econômicas – andam sempre de mãos dadas, se influenciando mutuamente. Isso é percebido na hegemonia, que une coesão com coerção. Como se percebe, há uma miríade de maneiras de se analisar a hegemonia em Relações Internacionais. Entender o conceito é fundamental, todavia, para que possamos compreender o fenômeno do “hegemonismo” na política externa dos Estados Unidos, característica marcante da chamada Doutrina Bush. É importante ressaltar que os atentados de 11 de setembro de 2001 foram fundamentais para reanimar o ímpeto hegemonista norte-americano. Como o próprio Wilkinson havia formulado em 1999, o terrorismo internacional poderia ser fator suficiente para que os Estados Unidos passassem a buscar políticas hegemonistas. Em caso de um ataque: the inclination to pursue the attackers regardless of borders, to coerce participation in the pursuit, and to punish resistance to it would likely be irresistible, but the process so difficult, drawn out, and intrusive as to alter global power relations in a centralizing way (WILIKINSON, 1999, p. 155).

Todo o debate levantado até o momento é relevante para as Relações Internacionais no início do século XXI, é há várias visões de como as forças se organizam no começo desse novo século, boa parte delas indicando um afastamento da unipolaridade. Por exemplo, como apontam Schweller e Pu (2011, p. 42), guerras hegemônicas nucleares são impensáveis no século XXI, assim, “a return to multipolarity tells us that several great powers will emerge to join the United States as poles within the international system. That is all”. Ou seja, a transformação evidente na polaridade do sistema internacional não indica que este vá se transformar em mais ou menos conflitivo, ou que os padrões da multipolaridade atualmente farão com que os Estados se comportem da mesma maneira que seus pares no século XIX. Há, assim, que ressaltar que há possibilidades para além da “unipolaridade com hegemonia”, tal como tem sido aventada por experiências internacionais durante o governo de George W. Bush nos Estados Unidos, como os discursos inflamados de certos líderes mundiais6. Outro ponto importante a ser ressaltado, é que a unipolaridade tem sido percebida de maneiras diferentes e isso traz consequências para o estudo da política 6

Vide a retórica agressiva de Hugo Chávez, ex-presidente Venezuelano, e Mahmoud Ahmadinejad, expresidente iraniano.

9 internacional. Quer percorramos os caminhos de Aron (2002), de Waltz (2002), ou mesmo Gilpin (1981), enfatizaremos um ou outro elemento nessa classificação. É evidente que as posturas estudadas nesta seção se aproximam mais ou menos do que esses autores já discutiram, mas a tendência principal é que a necessidade de se pensar a unipolaridade face à possibilidade efetiva de se exercer poder, por outros meios, que não militarmente. A hegemonia norte-americana, ponto basilar da remodelação do sistema após a Segunda Guerra, impediu que o uso da força fosse indiscriminado. Hoje, então, é irrisório falarmos de unipolaridade se não levamos em consideração a hegemonia, pois os conceitos se complementam se se quer vê-los operacionalizados.

2. Unipolaridade no século XXI: capacidades ou algo além?

A principal lição da primeira década do século XXI é que a configuração sistêmica unipolar não tende a se perpetuar indefinidamente7. Isso é plausível de acordo com as teorias aqui abordadas, mas a difusão de poder apontada por Martha Finnemore (2009) é fundamental a esse respeito. Para a autora, que escreve desde um ponto de vista construtivista, apesar do foco dos debates acerca da polaridade no sistema internacional ter sido nos aspectos materiais, dever-se-ia levar em consideração o fator social. Assim, tanto a busca pela legitimidade quanto a criação de instituições8, que sustentam a autoridade do unipolo, tem um efeito contrário à concentração de poder. Ambas podem constrangê-lo, e uma manifestação típica disso é a acusação de que este age de maneira hipócrita9. A hipocrisia é um problema especial porque indica tanto uma falha na credibilidade quanto pode ser um sintoma da miopia que atinge a grande potência, incapaz, quiçá de perseguir seus objetivos em longo prazo, abandonando assim seus interesses mais amplos, e pior, sua própria identidade (FINNEMORE, 2009). Para a autora, like any social system, the one constructed by a unipole is bound to contain contradictions. (…) Balancing these contradictions and maintaining the legitimacy of its power requires at least as much 7

E quer se perpetue, unipolaridade sem hegemonia, como já argumentado, não tende a render os frutos a que serve, sendo muito mais custosa ao unipolo. 8 Como aponta Finnemore (2009, p. 70), “unipoles have difficulty claiming they are exempt from the rules they expect other to be bound by. The U.S. has difficulty demanding human rights protections and respect for due process from other states wheny it does not abide consistently by these same rules”. 9 A autora concorda com Jervis (2009), quando indica que é arriscado generalizar sobre a estrutura social da unipolaridade, pois esta depende das particularidades do Estado unipolo.

10 attention from a unipole as building armies or banks accounts (FINNEMORE, 2009, p. 85).

A argumentação de Finnemore (2009) é relevante, pois elucida a importância dos fatores sociais juntos às capacidades. Quando não se nega nenhuma dessas esferas, abre-se caminho para uma compreensão mais ampla da política internacional contemporânea. Como já apontado, a ordem que os Estados Unidos criaram estava ligada aos próprios instrumentos que moldaram para tal. Isso faz com que o país necessariamente tenha que se valer destes, caso queira mantê-los autênticos na ordem internacional. Todavia, como aponta Andrew Hurrell (2005, p. 19) “a característica mais marcante do período pós-11 de setembro foi a falha daquele país em engajar-se de forma mais sistemática com a ONU e o direito internacional, em uma época em que vários aspectos da ordem legal estavam caminhando a seu favor”. O próprio Hurrell (2005) não acredita que os Estados Unidos sejam um império10, e prefere para tanto o termo hegemon para descrevê-los. Todavia, a crise que aponta na política externa do país após o 11 de setembro pode ser analisada sobre a ótica do “hegemonismo”, desenvolvido por Wilkinson (1999). Por isso prefere o conceito de hegemonia: uma hegemonia estável se apoia em um delicado equilíbrio entre coerção e consenso; entre o exercício do poder direto e indireto do Estado hegemônico, por um lado, e por outro, a provisão de um grau de autonomia de ação e respeito para os Estados mais fracos. Apesar de ênfases e implicações poderem variar, essa descrição geral é adequada tanto se adotarmos visões realistas, liberais ou neogramscianas de hegemonia (HURELL, 2005, p. 9).

Exemplifiquemos o que o autor aponta com o caso da França, como abordado por Finnemore (2009): houve claro questionamento por parte de Paris das tendências unilaterais dos Estados Unidos, em especial com a Guerra do Iraque de 2003. O país europeu explorou a legitimidade do multilateralismo e da multipolaridade, ambos presentes na Organização das Nações Unidas, grande obra da hegemonia norteamericana no Pós-segunda Guerra Mundial. Como é difícil equilibrar o poder com uma grande potência, o caminho que muitas vezes os outros Estados encontram é minar sua legitimidade. Assim, se mesmo a França engajou-se em questionar as políticas norteamericanas ao longo dessa primeira década de marcado “hegemonismo” unipolar, é 10

O autor ainda aponta que mesmo impérios formais necessitam de controles indiretos e que os grandes impérios caíram quando não tinham mais essa forma de sustento.

11 importante que reconheçamos que outros atores estatais relevantes buscaram a mesma direção, dentre os quais Brasil, Índia, Rússia, China, África do Sul. Para Fareed Zakaria (2008), podemos reconhecer esse movimento pela terminologia da “ascensão do resto”. Apesar da conotação pejorativa que o termo “resto” possa ter para alguns analistas das relações internacionais, não nos atenhamos a isso, mas sim às suas consequências. Como o autor indica, “agora, os gigantes estão em movimento e, naturalmente, tendo em vista seus tamanhos, deixarão uma grande pegada no mapa” (ZAKARIA, 2008, p. 31). O crescimento econômico chinês e indiano, enfatizados por Zakaria (2008), indicam que não houve relativamente um declínio norte-americano, mas o empoderamento de novos Estados, que tendem a ampliar cada vez mais sua participação na política internacional consequentemente. O autor se arrisca a elencar as características que definem uma grande potência, que são: coesão nacional, sucesso econômico e tecnológico, estabilidade política, força militar, criatividade cultural e magnetismo (soft power). Por exemplo, em relação a Brasil e Turquia, o autor aponta que: Hoje, ambos são bem administrados e exibem inflação baixa, taxas vigorosas de crescimento, dívida em declínio, um setor privado próspero e instituições democráticas cada vez mais estáveis. Brasil e Turquia ainda têm problemas – que país não tem? – mas são nações sérias em ascensão (ZAKARIA, 2008, p. 36).

Isso tenderá a transferir os negócios internacionais para a mão de atores diferentes daqueles dos países ocidentais, que detiveram este controle por séculos. Não só Brasil e Turquia estão no páreo, mas China, Índia, Rússia e México são destaques, como já apontado. Essa tendência apontada pelo autor fica nítida também em outras transformações da ordem internacional. De acordo com Andrew Hurrell (2008, p. 51), think of the major emerging economies’ distancing themselves from the World Bank and International Monetary Fund, or the opposition (led by Brazil and India) to developed countries’ preferences in the World Trade Organization (WTO), or the effective breakdown of the global aid regime in the face of the emergence of new aid donors such as China and India. These countries are substantively critical to the management of major global challenges such as climate change and nuclear proliferation. And they are procedurally critical if international institutions are to reestablish legitimacy and a degree of representativeness.

12 Temos visto então que a unipolaridade suscita um número variado de reações da comunidade internacional. Quando não acompanhada de hegemonia, a tarefa do unipolo se torna excessivamente complicada, em especial em um sistema internacional marcadamente heterogêneo, com uma pretensa homogeneidade jurídica (ARON, 2002). Para Luiz Fernando Ayerbe (2006), analisando a América Latina diante dos Estados Unidos, as lutas dos atuais movimentos de resistência são contra o neoliberalismo e a acumulação de renda que acontece dentro do sistema capitalista. Não são assim lutas contra o sistema. Portanto, o autor conclui que a análise realista de Waltz, de que o sistema continuará tal como é, baseado em Estados, com uma tendência para a bipolaridade ou outra conformação de poder que não a unipolar, é uma forma plausível de se perceber que esse mesmo mundo é possível. Para o autor, mesmo os líderes latino-americanos, como Fidel Castro e Hugo Chávez, quando cooptam os elementos institucionais e sociais para seu jogo de poder, estão preocupados não com a velha revolução socialista do proletariado postulada por Marx, mas com a manutenção do status quo do sistema estatal. Assim, para Ayerbe (2006, p. 288), na perspectiva do realismo, do choque de civilizações, do institucionalismo neoliberal, do metajogo da política mundial, da democracia radical, do sistema mundial e do império, mais do que mundos alternativos, há um mundo aberto a várias possibilidades, expressão da correlação de forças entre estratégias e as ações dos que nele atuam.

Mas, será mesmo que somente esse mundo é possível? Concordamos com Ayerbe (2006) que os Estados latino-americanos, para mantermos o exemplo do autor, esteja fielmente desejosa de manter o poder estatal e suas prerrogativas. Mas as relações internacionais não se alterarão em nada com a transformação de uma ordem unipolar sem hegemonia nítida, para uma ordem mais plural, não só multipolar, mas também mais multilateral? Podemos responder à pergunta retomando o pensamento de Finnemore (2009) e Hurrell (2005; 2008). Primeiro, a ordem criada pelos Estados Unidos ao longo das últimas décadas é reflexo dos valores daquele país. É impensável que, por exemplo, as organizações internacionais outrora criadas passem por um processo abrupto de desmonte, mas serão consideravelmente questionadas e transformadas pela “ascensão do resto”. Mesmo em um cenário em que Estados Unidos, e a União Europeia, se recuperem rapidamente da crise econômica que lhes acometeu desde o ano de 2008,

13 esse caminho é decisivo. Além do mais, unipolaridade sem hegemonia, como já apontada, é um caminho para uma política externa hegemonista, que não é benéfica sequer para os Estados Unidos.

3. Notas Conclusivas

Desde o final dos anos 1970, boa parte da bibliografia em Relações Internacionais sobre o declínio norte-americano não aponta para a possiblidade da ascensão de uma nova grande potência, da monta, claro, dos Estados Unidos. Sendo assim, foi preciso que a academia em Relações Internacionais se debruçasse ao longo das últimas duas décadas, quando a União Soviética caiu , a pensar sobre as condições da unipolaridade no sistema internacional, e suas consequências e desafios para o unipolo. Como apontamos no artigo, a unipolaridade é uma condição que está afeita tanto à questão das capacidades (WALTZ, 2002; IKENBERRY, MASTANDUNO, WORLFORTH, 2009; JERVIS, 2009) quanto à existência efetiva de instrumentos para que a grande potência tenha poder eficaz nas relações internacionais (WILKINSON, 1999; FINNEMORE, 2009; HURRELL, 2005, 2008). Ignorar um desses aspectos dificulta uma análise mais apurada da ordem internacional no início do século XXI, que caracterizamos a partir de Wilkinson (1999), como unipolar sem hegemonia. Diante do desafio de compreendermos o que é a hegemonia, podemos apontar que esta se reflete no controle e influência dos instrumentos da política internacional, sempre levando em consideração o elemento legitimidade do Estado que age desta maneira. Há, não podemos negar, autores como Richard Haas (2008), que acreditam que caminhamos para uma “era de não polaridade”, compreendida pela existência de vários centros de poder significativos na política internacional, na qual os atores não-estatais ganham maior relevância. A ampliação dos fluxos transfonteiriços, em favor inclusive de atores internacionais como os grupos terroristas, demonstram que o Estado tem sido suplantado. Para Haas (2008), as condições dessa “desordem não polar” (p. 73), são especialmente negativas para os Estados Unidos, que perdem gradativamente sua capacidade de liderar. Vide o caso iraniano: “debido a la no polaridade, Estados Unidos ya no puede manejar a Irá por sí solo; antes bien, Washington depende de otros para respaldar sus sanciones políticas y económicas o para bloquear el acesso de Teherán a la tecnologia y a los materiales nucleares” (HAAS, 2008, p. 73).

14 Para o autor isso demonstra claramente que a solução para a desordem gerada por essa situação está na multilateralismo cooperativo. Assim, indicamos que tanto a “ascensão do resto”, e a própria abordagem da “não polaridade” questionam os estudos internacionais voltados para as questões da polaridade internacional como uma simples divisão das capacidades. A unipolaridade, temos que ressaltar, também não é sinônimo de uma ordem injusta ou mesmo insuportável. O que é plausível concluirmos é que “unipolaridade sem hegemonia”, ou a adoção de políticas hegemonistas por parte do unipolo, trazem consequências nefastas tanto para a reorganização do mundo em um momento de transição e ascensão de novos (alguns, antigos) grandes centros de poder quanto para o próprio unipolo. Como percebemos, a comunidade internacional necessariamente dará uma resposta cada vez mais acentuada quando os Estados Unidos tentarem trilhar o caminho do desrespeito daquelas regras que eles mesmos moldaram após a Segunda Guerra Mundial, e das quais hoje necessitam para se relacionarem com os outros Estados, em especial aqueles em ascensão.

4. Referências Bibliográficas

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