UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO HISTÓRIA CULTURAL, MEMÓRIA E IDENTIDADE 1 Apagamento indígena na Quito do início do século XX

May 22, 2017 | Autor: Patricia Cunegundes | Categoria: Photography, Identity (Culture), Latin America
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO HISTÓRIA CULTURAL, MEMÓRIA E IDENTIDADE 1

Apagamento indígena na Quito do início do século XX

Patrícia Cunegundes Guimarães

Novembro de 2016

Apagamento indígena na Quito do início do século XX Patrícia Cunegundes Guimarães1 Resumo Com os olhos voltados para a Espanha e passando por um processo de modernização, a capital do Equador do início do século XX não era lugar para o elemento indígena, que “tornava a cidade feia e dava uma pobríssima ideia da população e da cultura quitenha”2, nas palavras do fotógrafo José Domingo Laso. Ele produziu, entre 1911 e 1925, fotografias que buscavam retratar uma Quito moderna e higienizada, com a eliminação dos indígenas, riscando as placas de vidro – os negativos da época – e cobrindo as marcas do que representava o passado. Podemos interpretar a frase de Laso (1870-1927) como uma antecipação da gentrificação dos centros urbanos dos dias de hoje.

Palavras-chave: fotografia; indígenas; representação; colonialidade; gentrificação

Introdução O presente artigo tem o objetivo de analisar a série de fotografias La huella invertida, do equatoriano José Domingo Laso, organizada pelo bisneto do fotógrafo, o pesquisador François Laso, à luz das discussões sobre multiculturalismo, colonialidade, alteridade e representação. A análise acontecerá em dois momentos: primeiro, através da breve discussão teórica da crítica à imagem colonialista; depois, através da análise da série de fotografias como forma de apagamento da identidade indígena da população quitenha dos anos de 1910. A base teórica será o livro Crítica da Imagem Eurocêntrica, dos teóricos estadunidenses Ella Shohat e Robert Stam, e o artigo Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina, do peruano Aníbal Quijano.

1. Multiculturalismo, etnocentrismo e colonialidade A discussão deste trabalho deve limitar-se a temáticas mais caras à representação colonial. Inicia-se então a apresentação teórica, de forma que seja conceituado, antes de mais nada, o multiculturalismo. Mais amplamente, o multiculturalismo se refere à diversidade cultural e identitária que compõe uma região ou país. Por isso, deve-se

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Mestranda da linha Imagem, Som e Escrita, do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) 2 Tradução nossa

diferenciar o multiculturalismo como fato – sociológico – do multiculturalismo como projeto – teórico-estético. Diz Stam que: Distingo, portanto, o ‘fato’ multicultural – a multiplicidade de culturas mutuamente impactantes no interior e entre as nações – do ‘projeto’ multicultural – a tentativa de reestruturar o conhecimento e as relações culturais em função de uma perspectiva anti racista, anti colonialista e antiimperialista (STAM, 2008, p. 38)

O multiculturalismo que guiará este trabalho trará, portanto, uma análise crítica e revisionista, de forma a evidenciar a falta de alteridade envolvida nas representações dos indígenas na série de fotografias La huella invertida. Tendo definido o multiculturalismo, cabe agora uma definição da visão eurocêntrica, que originou a necessidade de revisão. Uma rápida análise etimológica evidencia que o pensamento eurocêntrico é aquele que coloca “a Europa no centro” e pela convenção de que a Europa foi o berço do Ocidente. Na visão do peruano Aníbal Quijano, a constituição do eurocentrismo ocorreu “associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à expectativa e às necessidades do padrão mundial de poder estabelecido a partir da América”. No caso da América, de acordo com Quijano, a ideia de raça foi uma maneira de “outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista”. A posterior constituição da Europa como nova id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e nãoeuropeus. (QUIJANO, 2005, p.118)

É nesta perspectiva que encontramos a Quito da virada do século XIX para o século XX, e os registros de Domingo Laso da capital equatoriana, com os olhos voltados para a Espanha, para a modernidade, e de costas para o “atraso” e a para o “passado” indígena, negando a identidade de parte da população. De novo, recorremos a Quijano, que afirma que nas sociedades ibero-americanas, como o caso da sociedade equatoriana, a pequena minoria branca “não podia ter tido nem sentido nenhum interesse social comum com os índios, negros e mestiços”. Seus interesses sociais eram antagônicos com relação aos dos servos índios (...), dando que seus privilégios compunham-se precisamente do domínio ou exploração dessas gentes. De modo que não havia nenhum terreno de interesses comuns entre brancos e não-brancos, e, consequentemente, nenhum interesse nacional comum a eles. Por isso,

do ponto de vista dos dominadores, seus interesses sociais estiveram muito mais próximos dos interesses de seus pares europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da burguesia europeia. Eram, pois dependentes. (QUIJANO, 2005, p. 134)

Esses interesses antagônicos eram – ou são – terrenos férteis para a negação da alteridade e a negação do reconhecimento do outro (indígena, negro e mestiço) por parte da chamada elite branca. 2. La huella invertida – higienização de Quito no início do século XX

Sobre a falta de alteridade, recorremos à teórica Sandra Jovchelovitch que diz, em Re(des)cobrindo o outro, que “o outro, por vezes, é reduzido a coisa sobre a qual os interesses do eu se projetam”. Os interesses da sociedade quitenha da época eram os projetos de modernização da capital – o que hoje seriam os processos de gentrificação urbana em curso em diversas cidades do mundo –, que mostrariam ao mundo como Quito estava alinhada ao conceito de modernidade eurocêntrico. A fotografia, como procedimento técnico, foi apresentada publicamente na Academia de Ciências de Paris, em agosto de 1839. Em poucos meses esta técnica chegou ao continente americano. Neste contexto, no fim do século XIX, José Domingo Laso monta seu estúdio fotográfico em Quito. O fotógrafo, vindo de uma família importante – seu avó, José María Laso, advogado de Guayquil, foi senador –, entrou no mundo das artes a partir do casamento com Delina Iturralde, prima de um pintor renomado. Em 1889, Laso inaugura seu primeiro estúdio de fotografia, o Fotografia Laso. Como em todos os estúdios fotográficos da época, seu trabalho consistia em fazer retatos da burguesia local e de autoridades políticas e religiosas do Equador. Em 1903, Laso colaborou com a elaboração de um mapa da cidade de Quito, realizado por um engenheiro estadunidense chamado Henry Grant Hingley, com fotografias dos prédios da capital, apresentando a construção de uma nova cidade, moderna e turística. Posteriormente, o fotógrafo produziu fotos de indígenas em mercados, nos arredores de Quito, e até mesmo em estúdio, que viraram cartões postais. Apesar de registrar os indígenas, dando certa visibilidade ao que a sociedade tentava encobrir, suas fotos colocavam o índio no lugar dele: de servo, de exótico, de coisa.

A partir de estudos na Escola de Belas Artes e percebendo a estética da época, José Domingo Laso tornou-se um dos expoentes da modernidade equatoriana, registrando a cidade de Quito como uma Nova York ou uma Paris, com fotos do cotidiano da cidade, das edificações coloniais e dos novos prédios que surgiam na capital de então. O material, produzido por Laso entre 1911 e 1925 foi recuperado pelo bisneto François “Coco” Laso. A série de fotografias, que apresenta uma cidade monumental e moderna, com habitantes que formavam parte da elite branca e europeizada de Quito, eliminava os indígenas e outros grupos que não cabiam mais naquela época. Nas imagens, para eliminar os indígenas, o fotógrafo riscou as placas de vidro, os negativos do passado, e cobriu as marcas com vestidos brancos e sombreiros largos. O texto abaixo foi reproduzido do livro Quito a la Vista, de J. D. Laso e J. R. Cruz (Quito, 1911). AVISO Quando anunciamos ao público a próxima aparição de Quito a la Vista e manifestamos qual era o propósito que nos motivava a empreender a edição deste álbum, dissemos que, na medida das nossas forças, queríamos preencher uma das lacunas que sentíamos que havia entre nós em termos de publicações ilustradas referentes à capital da república. Agora, quando temos o prazer de apresentar a conclusão da primeira série da nossa obra, queremos chamar a atenção das pessoas imparciais para o cuidado especial que dedicamos para oferecer-lhes uma coleção de vistas isenta do principal defeito do qual geralmente padecem e padeceram todas ou quase todas as fotografias da capital tiradas por turistas estrangeiros e que circularam no exterior. Poucos, pouquíssimos se preocuparam em escolher o objetivo daquelas vistas, de forma que nos apresentaram como um país praticamente selvagem ou conquistável. Poderiam ter exibido edifícios ou os costumes populares, as paisagens etc. Porém, em seus trabalhos, o que aparece predominantemente, para não dizer exclusivamente, é o elemento indígena, enfeando tudo e dando uma paupérrima ideia da nossa população e da nossa cultura. Além disso, nem sempre foi possível para os filhos deste país – talvez por falta de aviso – se livrar daquele empecilho nas poucas ocasiões nas quais resolveram formar uma série metódica, de maior ou menor interesse, de vistas da capital ou dos seus arredores. Pois bem, achamos que faríamos uma obra de reivindicação, uma obra de perfeito patriotismo ao demonstrar graficamente que a capital do Equador, tanto por sua população quanto por seu aspecto externo, não deixa nada a desejar se comparada com as cidades do nosso continente. Esse é o objetivo da nossa obra. Por isso, além do nosso cuidado escrupuloso para que todas as nossas fotografias saiam limpas e livres daqueles grupos aos quais acabamos de nos referir, quisemos incluir

neste álbum quão notável é a capital no âmbito político, social, literário, industrial etc.

Figura 1 Igreja da Companhia de Jseus -Quito, 1922. Vê-se um vulto de um nativo ao lado do homem em frente à igreja

Figura 2 - Para respaldar o “olhar higienista da elite do século XX”, nas palavras do bisneto, Laso apagou os indígenas de suas fotografias e vendeu ao mundo imagens de uma cidade branca e moderna

Figura 3 - Detalhe da foto anterior

Em sua tese sobre as imagens do bisavô, François Laso explica que se desejava transformar Quito em uma cidade moderna, limpa e perfeita como outras no continente e que os indígenas eram praticamente um estorvo. Os indígenas são apagados de lugares da urbe moderna, mas deixados no espaço que lhes corresponde, como os mercados, ou aparecem sem nome, “para esconder sua identidade e sua vinculação com o Equador”.

Figura 4 - Indígena registrada em identificação

Figura 5 - O fundo borrado servia para não localizar o retratado no espaço urbano

Foi apenas na década de 1990 que os indígenas borrados foram identificados nas fotografias de Laso. Para François Laso, a matriz racista que se vê no trabalho de seu ancestral prevalece até hoje, por isso a série La huella invertida (A mancha invertida em

português) fala de um pretérito presente. “Hoje em dia os indígenas são excluídos dos bairros, são relegados às periferias ou se escondem ao deixar de se vestir como indígenas”, diz e acrescenta que “o racismo mordaz existente neste país foi modelado pela fotografia”. Podemos identificar na série organizada por François Laso uma estrutura de poder que Anibal Quijano diz estar organizada, ainda hoje, sobre e ao redor do eixo colonial. Para ele, o problema é que na América Latina, “a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria”.

Referências JOVCHELOVITCH, Sandra. Re(des)cobrindo o outro: para um entendimento da alteridade na teoria das representações sociais. In: ARRUDA, Angela (org.) Representando a Alteridade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1998. LASO, Francois Xavier Chenut. La huella invertida: antropologías del tiempo, la mirada y la memoria: la fotografía de José Domingo Laso 1870-1927. Dissertação de mestrado, Flacso Ecuador, 2015. QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e America Latina. In: LANDER, Edgardo. (org.) A Colonialidade do Saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-americanas. Clacso, Consejo Latinoamericano de Ciências Socialies, Buenos Aires, Argentina, 2005, pp.117-142. SHOHAT, E; STAM, R. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p. 262.

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