UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional – PGDSCI

May 30, 2017 | Autor: J. Pinheiro | Categoria: Biopolitics, Biopower, Use of Force, Strategy, UNSC
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional – PGDSCI Orientador: Lytton Leite Guimarães

AUTORA

Juliana Sandi Pinheiro (Matrícula UnB: 11/0153430)

“Artigos, Ensaios e Entrevistas”

REVISTA PERSPECTIVAS DO DESENVOLVIMENTO *Chamada para publicação na 4ª Edição (Prazo 06/04/2015)*

Brasília, 15 de fevereiro de 2015

SUMÁRIO

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Resumo da Entrevista Concedida pelo General Augusto Heleno Ribeiro Pereira

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Brasília – 18 de Agosto 2008

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Resumo da Entrevista Concedida pelo General Augusto Heleno Ribeiro Pereira

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Brasília – 17 de Março 2011

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Artigo: A Política Externa e de Segurança da União Europeia e a Multi/Dimensionalidade Institucional: Perspectivas quanto ao Tratado de Lisboa e o Conselho de Segurança das Nações Unidas 7 Brasília – 07 de Dezembro de 2009

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Artigo: O Discurso Doméstico-Diplomático e o Multilateralismo Democrático do Governo Lula

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Brasília – 30 de agosto de 2010

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Ensaio: Os Zeróis e o Eu

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Brasília – 26 de abril de 2012

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Ensaio: Vulnerabilidade e Inventividade

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Brasília – 2 de julho de 2012

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Ensaio: O Eu a Educar

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Brasília – 16 de setembro de 2012

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Artigo: O Que é o Valor? Uma proposta para o estudo comparado da presença portuguesa no Oriente

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Brasília – 13 de fevereiro de 2013

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Artigo: O Estado em Desenvolvimento

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Brasília – 6 de março de 2013

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Ensaio: A Ideia de Cooperação

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Brasília – 3 de abril de 2014

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Ensaio gráfico: Promoção do Documentário Auroras do Diretor José Walter Nunes, professor do PPGDSCI-CEAM-UnB 68 Brasília – 8 de novembro de 2012

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Ensaio gráfico: “Mercúrio”

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Brasília – 31 de janeiro de 2015

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Resumo da Entrevista Concedida pelo General Augusto Heleno Ribeiro Pereira à Juliana Sandi Pinheiro Brasília – 18 de Agosto 2008 Setor Militar Urbano – Clube dos Oficiais do Exército – por volta das 10:30 da manhã

Questionado sobre como o uso da força poderia ser definido, o General Heleno afirma que é preciso encarar a força em duas situações distintas. A primeira seria a força com o objetivo de guerra onde ela praticamente não teria limites no tempo e no espaço. A segunda refere-se ao uso da força em um contexto de operações de paz onde o conceito estaria submetido a uma resolução das Nações Unidas. Esta resolução estabelece o capítulo da Carta ao qual uma determinada missão de paz está vinculada. São estabelecidas regras de engajamento menos rigorosas, as quais concedem uma maior flexibilidade ao uso da força que precisa ser proporcional e limitado. Portanto, segundo o General Heleno, há diferença entre o uso da força em uma situação de guerra e o uso da força em uma missão de paz. Qualquer comandante militar em nível estratégico levaria isto em conta a todo o momento. De acordo com Juliana, a evolução dos mandatos concedidos pela ONU que primeiramente autorizavam o uso da força visando autodefesa e que passaram a considerar também o alcance dos objetivos estipulados para a missão, tornou um tanto quanto ambíguo o uso da força. É interessante observar essa diferenciação da ação em missões de paz e ações que são semelhantes àquelas desenvolvidas em uma situação de guerra, porém diferenciadas da guerra. Segundo o General Heleno, isso ocorre justamente pela necessidade de haver comprovadamente uma proporcionalidade no emprego da força. O General Heleno também acredita que houve uma evolução na atribuição do capítulo que seria usado nas missões de paz, mas afirma que não foi a ONU que evoluiu. Foram as missões de paz que foram modificando suas características e obrigando a ONU a deixar que o uso da força fosse mais admitido. Segundo o General, do Capítulo VI para o Capítulo VII da Carta a diferença é grande em termos de terreno, em termos de emprego da força no terreno. O conceito de força de paz modificou-se em função da experiência nas décadas de 60, 70, 80 e 90. A força de paz precisou ter uma proteção maior em termos de regras de engajamento para evitar que as tropas que são enviadas sem nenhuma intenção de provocar uma guerra, de repetente têm um número de baixas tão excessivas que seu envio passe a ser questionado nos países de origem. Houve vários incidentes, por exemplo, na Somália, em Ruanda, na Costa do Marfim. O mesmo processo teria acontecido no Haiti. Segundo o General Heleno, no tocante a MINUSTAH, em nenhum momento houve dúvidas que seria uma missão a ser estabelecida com base no Capítulo VII da Carta, apesar de ter havido uma percepção de ambiguidade. O General Heleno acredita que essa ambiguidade tenha sido decorrente da rapidez com a qual a missão foi estabelecida e do consenso, principalmente na América do Sul, para que vários países participassem da missão. No entanto, as tropas desses países

que estavam acostumadas a trabalhar no Capítulo VI, não estavam preparadas para trabalhar, do ponto de vista psicológico e do ponto de vista operacional, no Capítulo VII. Daí teria advindo essa ambiguidade. O contingente brasileiro acabou sendo totalmente formado com base no Capítulo VI, mas quando chegou ao Haiti ficou claro que a situação era para o Capítulo VII. Modificar a concepção filosófica de emprego da tropa em uma missão de paz que sai do Capítulo VI para o Capítulo VII é extremamente complicado, conclui o General. O General Heleno questiona e explica qual seria a diferença entre os Capítulos VI e VII da Carta. No Capítulo VI qualquer reação das tropas de paz seria condicionada a uma ação da força oponente, da força adversa. Já o Capítulo VII seria bem mais flexível. Ele atribui ao comandante de cena, aquele que está enfrentando a situação, a possibilidade de poder antever uma intenção do inimigo ou, nesse caso, da força adversa. Essa intenção pode ser atribuída em virtude de atos anteriores. Portanto, essa atribuição de intenção da força adversa é uma especificidade do Capítulo VII que não consta no Capítulo VI. O ato ou intenção hostil permite a antecipação a uma agressão que possa ser desencadeada contra você. Isso concederia ao comandante uma maior flexibilidade, apesar de haver a recomendação para o uso proporcional e para a observação de todos aqueles procedimentos do Capítulo VI em situações normais. Segundo Juliana não existe um consenso interno na ONU sobre qual seria a melhor forma de lidar com a questão do Haiti. Por exemplo, Martha Dogget (Vice-Diretora da Divisão de Américas e Europa do Departamento de Assuntos Políticos) teria sido bem clara ao afirmar que a questão do Haiti, pelo fato de envolver em grande medida gangues e tráfico de drogas, demandaria uma ação muito mais de cunho policial do que o emprego de forças armadas. Para Juliana, há um nítido interesse em transferir a questão do Haiti do Departamento de Peacekeeping Operations para o âmbito do Departamento de Assuntos Políticos. O General Heleno, apesar de concordar plenamente com a senhora Dogget, ressalta que as informações que confirmaram o cenário descrito somente foram levantadas a partir do seu comando e da presença das tropas da MINUSTAH. Europeus e norte-americanos que possuem as principais funções de comando na ONU acreditavam que o maior problema a ser solucionado para que uma força de paz tivesse êxito no Haiti seria a neutralização das forças armadas, afirma o General. Como as forças armadas haviam sido extintas, o novo foco passou a ser os ex-militares. Essa quase obsessão daqueles que haviam participado das missões de paz anteriores, fez com que a MINUSTAH fosse montada com força militar e planejada para confrontar os ex-militares haitianos. De posse dessas informações e na condição de comandante militar e responsável pela condução estratégica da operação militar, o General Heleno considerou que os ex-militares seriam a força adversa a ser confrontada; os demais objetivos seriam secundários. No entanto, de acordo com o General, frente sua rápida apreensão da situação no terreno, houve a constatação de que no Haiti pós-Aristide os militares eram um problema, mas não eram o maior problema. O maior problema eram as gangues dentro das favelas. O ponto crítico era Porto Príncipe e as gangues estavam implantadas com algum cunho político, mas primordialmente com característica de bandidagem. Portanto, conclui o General, os contingentes da missão foram se modificando e adaptando ao longo do tempo, também em função dos novos objetivos. Se a MINUSTAH fosse constituída hoje, certamente o contingente policial seria mais numeroso do que o militar.

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De acordo com o General Heleno, um force commander deve possuir profundo conhecimento da história do país aonde ele vai atuar. As tropas também devem estar igualmente informadas e preparadas. Não se trata de uma força de ocupação, de uma força de guerra. Uma força que se propõe a conduzir uma missão de paz não pode estar alheia às tradições do país, aos seus costumes, aos valores daquela população porque se houver qualquer infração nesse sentido, a própria missão seria prejudicada. Jamais seria possível conseguir aquele mínimo apoio da população que é indispensável para que a missão de paz tenha êxito. Questionado sobre como o Brasil poderia contribuir para a solução do problema do Haiti, o General Heleno explanou detalhadamente sobre as raízes sociais, econômicas e estruturais que colaboraram para o subdesenvolvimento do Haiti. Sua conclusão remete à necessidade de investimento maciço em infraestrutura e elementos duráveis que realmente tragam mudança para a vida da população. As políticas assistencialistas teriam caráter apenas paliativo. Confrontado com a afirmação de que estas seriam questões de governo, de políticas governamentais, o General afirma que de fato isso extrapolaria a força de paz. Segundo o General Heleno, a MINUSTAH, diante da situação do Haiti, deveria possuir um departamento de gestão de projetos que pudesse oferecer garantias e receber diretamente a doação de países interessados. No entanto, isso poderia se transformar em um ônus que a ONU talvez não estivesse interessada em assumir, afirma o General. Além disso, um dos aspectos mais idiossincráticos da sociedade haitiana seria justamente a questão da soberania. Os haitianos, de acordo com o General, são extremamente ciosos quanto a qualquer iniciativa que possa ser interpretada como uma interferência em sua soberania. De fato, os aspectos culturais e os relativos à ingerência certamente devem fazer parte das decisões da ONU. A cultura do Sudão, por exemplo, não é a cultura do Haiti, conclui o General. “Quem são os grandes responsáveis pelas ações humanitárias no Haiti?”, questiona o General Heleno. São as forças militares, principalmente as companhias de engenharia brasileira, chilena e equatoriana em função da natureza dos seus equipamentos. De acordo com o General, o chefe da missão à época, o embaixador Valdez, também defendia a tese da necessidade da missão ter autonomia para gerenciar algo mais palpável e não necessariamente dependente das ações dos militares na área humanitária. Entre outros trabalhos, são realizados a abertura, limpeza e colocação de asfalto nas ruas, a retirada do lixo que em função da grande quantidade afeta operacionalmente a missão, a escavação de poços artesianos, a restauração de praças e do sistema elétrico, e o combate ao tráfico de drogas. Segundo o General Heleno, o tráfico de drogas no Haiti é periférico. Não há dentro de Porto Príncipe pontos de venda de drogas de forma análoga como as encontradas nas favelas no Rio de Janeiro. A população haitiana não tem capacidade financeira para comprar drogas. O tráfico usa os aeroportos do litoral ou de Porto Príncipe. Em função dessa constatação, a ONU decidiu incluir na força de paz um componente marítimo composto por dezesseis embarcações para ampliar a fiscalização na costa haitiana e tentar coibir a entrada de drogas, explica o General. Questionado sobre como a questão operacional foi desenvolvida e sobre como o povo haitiano recebeu as tropas em seu território, o General Heleno ressalta que qualquer tentativa de padronizar esse procedimento é típica da falta de conhecimento do terreno. Quem conhece o Haiti, afirma o General, sabe que a situação é altamente volátil. Isso seria natural porque nenhum povo estaria contente em ver uma força estrangeira, ainda que seja uma força de paz, transitando em seu 3

país com uma viatura militar armada. Algumas ações humanitárias auxiliam na angariação da simpatia e do apoio da população. No entanto, a vulnerabilidade persiste. A partir dessa constatação, o General Heleno postulou que cada operação militar deveria ser acompanhada de uma ação humanitária com o objetivo de mostrar à população civil que não se tratava apenas de uma operação tipicamente de repressão, uma operação militar ou até uma operação de pacificação, mas sim uma ação que trazia algo positivo à população. O General Heleno acredita que a partir dessas iniciativas a receptividade poderia ser outra, o que de fato aconteceu com relação à tropa brasileira a partir da instalação completa da companhia de engenharia. Em função dessas ações, o apoio da população haitiana à permanência das tropas brasileiras seria evidente. Portanto, conclui o General, as operações de paz devem ser amplamente ancoradas em ações humanitárias.

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Resumo da Entrevista Concedida pelo General Augusto Heleno Ribeiro Pereira à Juliana Sandi Pinheiro Brasília – 17 de Março 2011 Setor Militar Urbano – Quartel General do Exército – Bloco G Sala do General por volta das 09:40 da manhã

Questionado se existe uma política brasileira para as operações de manutenção da paz e intervenções humanitárias, o General Heleno considera que como política de Estado a participação brasileira em tais operações teve incremento nos últimos anos. Segundo o General, o Brasil tem participado em missões de paz desde 1947. Depois houve uma participação que pode ser considerada relevante na “Missão de Suez”. De lá para cá, fomos atores, às vezes relevantes, às vezes mais coadjuvantes, em várias missões de paz (Moçambique, Angola), explica o General. De acordo com o General Heleno, de um tempo para cá, houve a intenção do Governo de se fazer presente em missões de paz e se valer disso como um trunfo para uma possível colocação do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Isso, então, teria modificado a visibilidade da missão de paz. Para o General, é importante considerar o papel do Congresso Nacional, tendo em vista que há restrições na Constituição Federal relativas à participação brasileira em missões de paz. Logo, para Heleno, há sim uma política brasileira que é uma política de Governo, mas que é preciso entender que tal política precisa ser encarada como uma política de Estado, caso contrário ela perde força. Ou seja, a política de Governo assume um caráter meramente partidário, o que não é o caso, já que envolve instituições de Estado. Para o General é melhor considerar que a política brasileira de participação em operações de manutenção da paz é uma política de Estado e não uma política de governo. Questionado sobre que tipo de contribuição conceitual e doutrinária poderiam as forças armadas agregar a uma política brasileira de operações de manutenção da paz e sobre qual seria a relevância do Ministério da Defesa nesse processo em comparação com o antigo Estado Maior das Forças Armadas, Heleno ressalta que do ponto de vista conceitual não houve grande modificação em relação a nossa participação, mas sim uma grande evolução. No aspecto doutrinário, como o país nunca havia comandando uma missão de paz de Capítulo VII, que é a grande modificação nos últimos tempos, não só em relação à participação brasileira, mas sobretudo relativo às próprias missões de paz da ONU, é importante reconhecer que a doutrina brasileira tem sido bem sucedida no Haiti. Logo, essa é a grande contribuição brasileira para a doutrina de missões de paz, qual seja, o entendimento do que implica uma missão de Capítulo VII, de como essa missão em princípio deve ser conduzida. Segundo Heleno, hoje há na própria ONU a certeza de que a missão do Haiti forma um exemplo de condução de missão de Capítulo VII. Para Juliana tem-se, então, um equilíbrio muito complexo e instável, conforme esclarece o General Heleno, já que quais outras forças, que outras mãos poderiam estar promovendo, no caso,

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um auxílio humanitário em um país esfacelado por uma guerra civil ou por um ambiente tremendamente instável em termos de instituições políticas. De acordo com Heleno, é fato que a própria ONU não entendia o que hoje o próprio americano nas suas intervenções que não têm haver com missão de paz, mas nas suas intervenções ele passou a pregar que é a “conquista de corações e mentes”. A primeira vez que houve intenção de se conquistar corações e mentes, segundo o General Heleno, foi com a força brasileira no Haiti. Outras missões não consideravam essa abordagem. Primeiro porque as características das missões eram diferentes. Depois porque a ideia era a utilização pura e simplesmente da força e, a partir da imposição de uma tropa de paz no terreno, se imporia a normalização política do país. Para Heleno isso é muito claro no Haiti. Primeiro porque a tropa estrangeira jamais é bem vinda. “Uma tropa armada em um país estrangeiro jamais será bem vinda”, afirma Heleno. Ela pode até ter seus momentos de aproximação com a população, ela pode ser tolerada. Pode ser respeitada e até chegar a ser considerada útil, mas jamais será saldada como uma tropa amiga. No Haiti há uma linha muito tênue entre a insatisfação e aquela falsa sensação de amistosidade. Parece até utópico, mas de acordo com Heleno, a utilização racional e extremamente comedida dos meios de força disponível faz com que a tropa seja entendida pela população como alguma coisa necessária naquele momento. E por que a população coopera, questiona o General. Porque ela tem esperança que aquela tropa traga atrás das operações militares, das operações de garantia da lei e da ordem, porque no fundo no Haiti é uma operação de garantia da lei e da ordem, que por trás disso venha a ação humanitária e até mesmo a reconstrução do país.

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Artigo: A Política Externa e de Segurança da União Europeia e a Multi/Dimensionalidade Institucional: Perspectivas quanto ao Tratado de Lisboa e o Conselho de Segurança das Nações Unidas Brasília – 07 de Dezembro de 2009 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

Resumo: Sociedades humanas projetam no espaço estruturas organizacionais sistematizadas a partir de planos ideológicos e políticos. Uma análise preliminar do processo de integração na Europa com base nas funções políticas e em fundamentos organizacionais permite a identificação de lógicas associativas que visam a introdução de novos elementos de mediação entre as vontades emanadas das esferas pública e privada. A política externa situa-se na confluência para avaliação e identificação dessas funções políticas. Todavia, o espaço político é simultaneamente composto por suas funções e estruturas, o que realça a importância da multi/dimensionalidade institucional para o estudo da política externa. Uma análise multidimensional do espaço político internacional ou simplesmente das relações internacionais e do processo de integração europeu pode vir a oferecer perspectivas relevantes quanto à ascensão da União Europeia ao Conselho de Segurança da ONU a partir da adoção do Tratado de Lisboa. Palavras-chave: União Europeia, Lisboa, Conselho de Segurança da ONU.

1. INTRODUÇÃO À MULTI/DIMENSIONALIDADE Muros e blocos não são elementos anacrônicos das relações humanas. Aparentemente, tais edificações fazem parte do subconsciente cosmopolita das sociedades humanas que projeta formas organizacionais com base em estruturas conhecidas e em precedentes constitutivos. Fronteiras e Estados seguem essa tendência, ao passo que também servem aos propósitos organizacionais materializados a partir da vontade humana e de seus desígnios. A projeção da vontade a partir do espaço, seja ele criado, conquistado, delimitado ou imposto, compõe um plano sistemático de ideias em seu sentido mais estrito e encontra planos políticos em um sentido mais amplo. Todavia, a projeção da vontade não depende da sincronia entre as suas fontes e tende a associar-se a fatores eletivos particulares a cada elemento organizacional. Logo, tem-se um processo cumulativo e de distribuição heterogênea dificilmente associado às dimensões constitutivas das sociedades humanas e suas projeções organizacionais. Esse fato decorre da vaga percepção quanto às implicações, ao logo do tempo, das interações humanas e de suas faculdades criativas quanto aos processos organizacionais que as acompanham. Daí esse caráter multidimensional da política. O caráter multidimensional é particularmente relevante em um contexto cuja projeção da vontade tende a integração. Apesar da expressão da vontade ser fundamental para o início de

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processos criativos e/ou destrutivos, é importante considerar, conjuntamente, o quadro cumulativo e orgânico com o qual as sociedades humanas planificam suas ações e expressam sua vontade. Daí a importância da construção de uma base orgânica para o estudo das funções políticas e dos fundamentos organizacionais da integração, de modo a tornar possível a introdução de novos elementos de mediação entre as vontades emanadas das esferas pública e privada nas sociedades humanas, principal objetivo da integração. Frequentemente, ortodoxias e heterodoxias analíticas encerram perspectivas estéreis da realidade por se dissociarem dos planos ideológicos e políticos nos quais as sociedades humanas constroem sua vontade, depositam suas expectativas e eventualmente se organizam. Como lidar, então, com limites ontológicos acumulados ao longo do tempo durante a identificação, arregimentação e consecução das vontades políticas? Talvez por meio da eliminação gradual das fronteiras intelectuais e da integração entre os sistemas sociais. Uma análise preliminar do processo de integração na Europa com base nas funções políticas e em fundamentos organizacionais permite a identificação de uma diversidade de lógicas associativas que visam uma paz consensual; a integração e independência energética; a independência jurídica e política; a unificação da política externa e de segurança; a segurança ambiental; e a proteção social e das liberdades fundamentais. Entretanto, o caráter dicotômico do processo de reconstrução europeu no pós-guerra e da própria sociedade internacional tendeu a fortalecer resistências internas e pressões externas contrárias ao aprofundamento da integração. Esses movimentos contribuem para um efeito cumulativo que não pode ser dispensado ou demasiadamente atribuído a eventuais retrocessos institucionais. Daí a importância de uma perspectiva multidimensional para avaliação das diversas tendências organizacionais a partir da expressão da vontade e das próprias contradições inerentes ao processo. Portanto, o sentido da integração europeia não deve ser subestimado.

2. PARALELISMOS INSTITUCIONAIS: A INTEGRAÇÃO; LISBOA E O CSNU O texto do Tratado de Paris que Institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), assinado em 1951, dá início à integração com vistas ao governo da matéria, qual seja, o carvão, o aço e a guerra. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço foi dotada de personalidade jurídica e instituições comuns cujas atribuições atendem a uma hierarquia funcional própria da tradição normativa europeia. Além disso, em seu preâmbulo, é feita menção a paz mundial, a manutenção de relações pacíficas, a solidariedade efetiva e a necessidade de esforços criativos a altura dos perigos que ameaçam a paz. Adicionalmente, atribui-se ao “progresso da causa da paz”, “a expansão das suas produções fundamentais”, propondo a substituição das rivalidades seculares [sobre o carvão e o aço] por uma “fusão dos seus interesses essenciais”; lançando “as bases de instituições capazes de orientar um destino doravante compartilhado”. A integração com base na fusão dos interesses essenciais ao progresso da causa da paz correspondeu a uma contrapartida lógica da continuidade da guerra cuja progressão se orientava 8

dicotomicamente a leste e oeste. A recém-constituída Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) protagonizou e registrou muitas dessas tendências. Daí os movimentos difusos nos planos ideológicos e políticos entre Estados em guerra e uma organização internacional criada em afirmação da fé no ser humano com o objetivo de preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra. Esses movimentos não são simplesmente utópicos ou realistas em sua essência. Tratam-se de expressões legítimas da vontade e, portanto, passíveis de serem analisadas a partir das funções políticas nas quais se inserem. Em novembro de 1949, a Assembleia Geral adotou a resolução 290 (IV) intitulada Essentials of Peace. No documento, os membros da AGNU ressaltam os princípios essenciais a uma paz duradoura propagados pela Carta e afirmam que é dever de todas as nações preservar a dignidade e o respeito da pessoa humana, a plena liberdade a expressão pacífica da oposição política e o amplo respeito aos direitos fundamentais expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dirige-se ao recém criado Conselho de Segurança (CSNU), mais precisamente aos seus cinco membros permanentes, pedindo que exercessem moderação ao uso do veto de modo a tornar o Conselho um instrumento mais efetivo para manutenção da paz. Finalmente, conclama a todas as nações a cooperarem em apoio aos esforços das Nações Unidas para solução de problemas difusos; e a exercerem sua soberania conjuntamente para que se possa alcançar o controle internacional da energia atômica, tornando efetiva a proscrição das armas atômicas e garantindo o uso da energia atômica somente para propósitos pacíficos. Às fontes enérgicas foram sendo tecidos caminhos que em certa medida se confundem com os propósitos da paz ou com as causas da guerra, mas que ainda assim são consumidos como expressão da vontade. Carvão, aço, energia nuclear, recursos humanos são objeto dos tratados de integração europeia. Enquanto a CECA governaria a partir de sua Alta Autoridade a política comercial [relativa ao carvão e ao aço] e também atuaria na regulamentação dos mercados; em Roma, a partir da assinatura em 1957 dos Tratados que Instituem a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atômica (EURATOM), o “progresso da causa da paz” seria estendido ao domínio nuclear. Já “a defesa da paz e da liberdade” (CEE) ficaria adjacente ao âmbito econômico-social e serviria aos propósitos associativos para os outros povos da Europa que partilhassem desses ideais. O Tratado que institui a CEE determinou um período de transição de doze anos para o estabelecimento de um mercado comum. Ademais, consistiu em um instrumento mais amplo e invasivo quanto às políticas sociais e de desenvolvimento. Entre as Comunidades Europeias, a CEE é a única a fazer menção direta aos princípios da Carta das Nações Unidas em um contexto de solidariedade que liga a Europa aos países ultramarinos, de modo a assegurar-lhes o “desenvolvimento da prosperidade”. Dentre outros fatores, a livre circulação de pessoas, serviços e capitais favoreceria os investimentos, a instalação e o rápido crescimento das indústrias, inclusive as indústrias nucleares, tendo em vista o desenvolvimento econômico e social de uma Europa em reconstrução. Tratava-se,

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adicionalmente, de velar pelo acesso regular e equitativo aos minérios e combustíveis essenciais. Dessa forma, a EURATOM organizaria e disciplinaria a produção energética e a produção do conhecimento de modo a favorecer o progresso no domínio da energia nuclear; ao passo que a CEE promoveria um mercado comum por meio da adoção de uma política aduaneira e da eliminação gradual das fronteiras intra-regionais aos fluxos comerciais e humanos. Entretanto, o que governaria a lógica do processo de integração europeu, o “progresso da causa da paz” ou a “defesa da paz e da liberdade”? Enquanto o primeiro movimento denota algo inerente ao domínio governamental dos países membros da CECA e da EURATOM (Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos); o segundo movimento reflete uma finalidade subjacente e reativa. Em tempos de guerra, por que a defesa da paz se associaria à causa da liberdade? (Em tempos de paz, por que a defesa da liberdade se associaria à causa da guerra?) Por que a extensão dos princípios associativos da CEE foi definida a partir da “defesa da paz e da liberdade” e não do “progresso da causa da paz”? Quando se analisa a política externa é relevante ter em mente os fundamentos ideológicos e associativos que determinam as funções políticas e organizacionais segundo as quais uma comunidade escolhe projetar-se no espaço, ou simplesmente nas relações internacionais. Porém, a função externa da política, qual seja, aquela projetada a partir do espaço, também é componente da política externa dessa comunidade. Daí a relevância do paralelismo institucional para identificação do grau de unidade e de independência da função política emanada a partir da comunidade, qual seja, a política externa. Uma vez definido como internacional, o espaço político assume caráter muitas vezes dicotômico quanto aos princípios regulatórios e a natureza dos processos associativos. Logo, nem sempre a expressão política de Estados e sistema de Estados corresponde às aspirações e a expressão da vontade política das sociedades humanas. Essa dualidade constitutiva está registrada e permeia todo o âmbito decisório da Organização das Nações Unidas e, por consequência, a função externa da política estatal. Um exemplo é a resolução 291 (IV) adotada em 1949 pela Assembleia Geral. Intitulado Promotion of the stability of international relations in the Far East, o texto da resolução talvez reproduza um dos momentos mais explícitos do caráter dicotômico das relações internacionais: quando a continuidade da guerra convergia analogias sociais associadas aos propósitos das Nações Unidas. A partir da resolução 291 (IV), a Assembleia Geral conclama a todos os Estados a respeitarem a independência política da China e o direito do povo da China, naquele momento e no futuro, a escolher livremente suas instituições políticas e a preservar um governo independente do controle estrangeiro. Ressalta, ainda, a necessidade de se evitar: a) a aquisição de esferas de influência ou a criação de regimes controlados por estrangeiros dentro do território da China; e b) a busca pela obtenção de direitos especiais dentro do território da China. Entretanto, é no preâmbulo da decisão a respeito da independência política do “povo da China”, onde as analogias sociais são expressas como vontade dos povos: aos povos das Nações Unidas cabe a conjunção de forças para preservação da paz e segurança internacional, uma vez que 10

estes povos expressaram na Carta sua determinação quanto a prática da tolerância e do convívio em paz uns com os outros, como bons vizinhos. Um dos propósitos das Nações Unidas é desenvolver relações amistosas entre nações com base no respeito aos princípios da igualdade de direitos, da autodeterminação dos povos e da igualdade soberana entre todos os Membros. Todos os Membros devem evitar em suas relações internacionais a ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma inconsistente com os propósitos das Nações Unidas. A questão chinesa evoluiu da revolução comunista. Todavia, a integração dos povos chineses sob os auspícios de um partido voltado aos pobres do campo não parecia contar com a simpatia ideológica e o apoio político de qualquer uma das potências militares do período. Em 1949, durante o Politburo presidido pelo líder Mao Zedong, foram definidas as estratégias de segurança e a política externa que serviriam de instrumentos para consolidação das conquistas da revolução comunista. Dessa forma, a estratégia de defesa da China foi associada a uma política externa em defesa da consolidação do partido e do regime comunista. Em discurso proferido em Xibaipo em janeiro de 1949, durante a assembleia em comemoração ao vigésimo oitavo aniversário de fundação do partido comunista, Mao Zedong afirmou aos demais líderes revolucionários que a vitória era possível mesmo sem o auxílio internacional. Logo em seguida, Chiang Kai-shek e suas tropas rebeldes foram derrotados e exilados em Taiwan. Entretanto, foi somente em 1971 por meio da resolução 2758 (XXVI) da Assembleia Geral que o governo da República Popular da China (RPC) retomaria sua representação na ONU e o assento permanente no Conselho de Segurança da Organização. De fato, o caráter revolucionário do processo de integração chinês não poderia e não deveria ser menosprezado. A linguagem revolucionária produzida pelO partido comunista inevitavelmente questionava a legitimidade das normas e das instituições das “relações internacionais”. Em defesa da China, o partido comunista promoveu uma lógica singular que atribuiu, na elaboração da política externa, pesos distintos a função externa da política, o que favorecia a identificação com o socialismo soviético. Esse movimento acirrou os ânimos da dinâmica militar no pacífico, estendendo-se à península coreana e culminando com a guerra da Coréia. Logo, a dinâmica internacional possui correspondências que não necessariamente se restringem ao âmbito estatal. Ao passo que, inversamente, grande parte das transgressões decorre justamente da usurpação dos limites e da independência administrativa nas diversas esferas de governo. Então, como construir um processo de integração entre nações soberanas diante de pressões externas e da presença de forças aparentemente tão díspares? Não existe uma fórmula precisa para essa finalidade, mas o paralelismo institucional pode realçar a relevância do componente de defesa nas funções políticas que irão compor a política externa. Talvez a existência de um ambiente exterior hostil e instável quanto à disponibilidade energética venha corroborando para a consecução de um projeto de integração simultaneamente pautado nas lógicas do progresso e da paz, e na lógica da defesa. Tem sido 11

assim com o movimento chinês. De fato, após os processos associativos, de reforma e de expansão das Comunidades, os Estados membros da União Europeia (UE) decidiram “executar uma política externa e de segurança que inclua a defInição, a prazo, de uma política de defesa comum que poderá conduzir, a momento próprio, a uma defesa comum, fortalecendo assim a identidade europeia e a sua independência, em ordem a promover a paz, a segurança e o progresso na Europa e no mundo”. Portanto, o Tratado de Maastricht, assinado em 1992, estabelece como pilar da integração o movimento político iniciado nos anos 50 e que se a associa a definição de uma esfera de defesa regional independente. A partir dos anos 90 a União Europeia passou a investir na construção de sua identidade internacional por meio da ampliação das funções políticas ligadas a execução de uma política externa e de segurança comum (PESC). Conforme previsto pelo Tratado de Maastricht, “a União asseguraria a coerência do conjunto da ação externa, no âmbito das políticas por si adotadas em matéria de relações externas, de segurança, de economia e de desenvolvimento”. Entre os objetivos da política externa e de segurança comum está “a manutenção da paz e o reforço da segurança internacional, de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas”. Tratou-se, inclusive, de destacar a legitimidade e a tipicidade do projeto europeu a partir do fomento a amplos programas de pesquisa. Christopher Hill foi um dos primeiros estudiosos a trabalhar a projeção externa da União Europeia. Seus estudos são instrumentais para identificação de muitas lacunas organizacionais do processo de integração europeu. A partir dos anos 90, as iniciativas para construção de uma identidade sistêmica europeia nos moldes das configurações analíticas do mainstream, deu início a um amplo projeto de pesquisa sobre a análise de política externa (FPA) e o caráter sui generis da análise de política externa europeia (EFPA). Segundo o autor, seria possível construir a identidade internacional europeia a partir de uma abordagem pré-teorética quanto aos conceitos de “ator” e de “presença” internacionais. O conceito de ator permitiria a incorporação da dinâmica interna às funções políticas que irão compor a política externa, frente a natureza transitória do ambiente internacional no qual esta desempenha suas funções. Ou seja, frente a função externa da política. Um ator internacional seria uma entidade independente, autônoma e que possuísse certos pré-requisitos normativos que lhe conferissem personalidade jurídica e a capacidade para negociar acordos internacionais. Já a presença internacional seria uma variável multidimensional que convergiria os interesses e impactos da política integracionista, mas não negligenciaria a percepção de terceiros países. Entretanto, determinadas patologias funcionais têm interferido nos recursos, nos instrumentos e na própria capacidade da UE de construir consensos e alcançar acordos. Esse processo, segundo o autor, é chamado de capability-expectation gap que, de maneira geral, revela uma dissonância entre os recursos empregados e as demandas particulares da política comunitária. Uma política externa independente, todavia, necessitaria de um poder executivo capaz de tomar

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decisões claras em assuntos relevantes da agenda internacional, e que tivesse comando dos recursos e dos instrumentos necessários para apoiar essas decisões. Portanto, uma política externa independente necessitaria de todos aqueles instrumentos que garantissem a operacionalidade externa de um Estado aplicado a uma entidade supranacional, tais como a legitimidade democrática e uma burocracia sofisticada. Nesse sentido, a consecução da PESC seria possível a partir da reforma e reestruturação das instituições comunitárias, inclusive com a observância das hierarquias funcionais. Contudo, a continuidade de um amplo capabilityexpectation gap estaria associada, em primeiro lugar, a falta de um sistema coerente e a plena capacidade de articulação independente (ser ator); e, em segundo plano, a problemas quanto à percepção das demandas dos Estados membros e da dinâmica internacional. O assunto de defesa, no entanto, consiste em uma categoria de problema distinta a partir da qual o autor identifica uma relação dialética entre o que é possível e o arcabouço normativo. De fato, segundo HILL, existe um relacionamento circular entre o poderio militar europeu e a questão geral do uso da força nas relações internacionais. Esse problema apresenta três aspectos fundamentais: obrigação mútua, capacidade operacional e recursos. As obrigações mútuas estariam inseridas no contexto de uma comunidade de segurança pluralista, conforme prevista por Karl Deutsch, que privilegia a unidade no lugar da centralidade. A capacidade operacional refere-se ao papel da inteligência e a institucionalização da cooperação militar e os precedentes práticos e políticos que estes criariam. Já a distribuição de recursos seria dificultada por causa da sobreposição dos sistemas de defesa. Logo, a política externa e de segurança comum europeia possui dois eixos distintos: o grau segundo o qual a política é conduzida de forma coletiva; e os vários assuntos a partir dos quais essa política se converte em ações práticas. Nesse sentido, seria pertinente ampliar a imagem dessa política para uma conceituação mais ampla, a partir de círculos concêntricos, com o objetivo de caracterizar a relação dessa comunidade com terceiros países e organizações. Portanto, de acordo com HILL, as sobreposições externas e o capability-expectation gap continuarão intervindo no projeto de integração se não houver uma decisão para aceitar uma geometria variável e o multiinstitucionalismo funcional da política externa. A adoção do Tratado de Lisboa, em certa medida, corrigiu muitas dessas lacunas organizacionais e funcionais. Entre outros aspectos, cabe destacar a disposição relativa às “cooperações reforçadas” expressa no Artigo 20.º que faculta a criação de grupos entre os Estados membros que desejem aprofundar sua cooperação, inclusive no tocante à segurança e à defesa; e o Artigo 25.º que atribui à União a condução da política externa e de segurança comum. No que se refere a PESC, é importante destacar a coordenação política estipulada pelo Artigo 34.º onde determina-se que “os Estados-Membros coordenarão a sua ação no âmbito das organizações internacionais e em conferências internacionais. Nessas instâncias defenderão as posições da União. O Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança assegura a organização dessa coordenação. Nas organizações internacionais e em 13

conferências internacionais em que não tomem parte todos os Estados-Membros, aqueles que nelas participem defenderão as posições da União”. Além disso, determina que “os Estados-Membros que sejam igualmente membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas concertar-se-ão e manterão os outros Estados-Membros, bem como o Alto Representante, plenamente informados. Os Estados-Membros que são membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas defenderão, no exercício das suas funções, as posições e os interesses da União, sem prejuízo das responsabilidades que lhes incumbem por força da Carta das Nações Unidas. Sempre que a União tenha definido uma posição sobre um tema que conste da ordem de trabalhos do Conselho de Segurança das Nações Unidas, os Estados-Membros que nele têm assento solicitam que o Alto Representante seja convidado a apresentar a posição da União”. A partir de Lisboa, a União Europeia compartilha o assento permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas por meio do exercício das funções de seu Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança. Conforme descrito no comunicado da Comissão (COM2003–526), esse procedimento faz parte de uma política estratégica de adesão ao multilateralismo e de aprofundamento da coordenação política para a ampliação da presença internacional. Essas medidas visam impulsionar a eficácia do sistema ONU para além de suas restrições orçamentárias e de pessoal. Reflete, ainda, as iniciativas de criação da capacidade militar e do emprego de forças nas operações de manutenção de paz e de pacificação sob mandato das Nações Unidas. Consiste, portanto, em um instrumento eficaz para promoção da presença internacional e dos valores e normas consistentes com uma política europeia de integração. Resta saber se essa fórmula política resistirá à divergência de posições, e quais seriam os impactos nos círculos políticos para além do sistema ONU.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Hu Jintao, dirigindo-se ao Congresso Nacional do Partido Comunista chinês, em 15 de outubro de 2007, declarou a necessidade do desenvolvimento de uma perspectiva global e estratégica condizente com um “mundo harmonioso de paz duradoura e de prosperidade comum. Para essa finalidade, todos os países deveriam respeitar os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas, observar o direito internacional e as normas universalmente reconhecidas das relações internacionais, e promover democracia, harmonia, colaboração e win-win solutions nas relações internacionais”. A estratégia de ação global chinesa encontra paralelo na estratégia de adesão multilateral europeia. Às fontes enérgicas serão tecidos caminhos que poderão ser associados aos propósitos da paz ou à causa das guerras. Cabe, portanto, definir os princípios para equalização harmoniosa entre os diferentes sistemas sociais.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Artigo: O Discurso Doméstico-Diplomático e o Multilateralismo Democrático do Governo Lula Brasília – 30 de agosto de 2010 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

Palavras-chave: Democracia; Política Externa; Multilateralismo.

1. INTRODUÇÃO O processo de redemocratização no Brasil empreendeu uma ampla reforma das instituições políticas domésticas com consequências para a formulação da política externa. A própria condução da política externa passou a ser exercida também pela Presidência da República, o que a tornou mais permeável às ideologias e ao conteúdo programático dos programas de governo. De fato, ao longo do governo Lula, houve a inclusão de diretrizes concretas dos programas de governo no perfil de inserção internacional do Brasil. Tais diretrizes podem ser rastreadas a partir da análise dos programas de governo de 2002 e 2006 e dos mais de 650 discursos do Presidente da República que fizeram referência ao processo de redemocratização e consolidação democrática no Brasil e a democracia. Essa comunicação direta entre programa de governo e política externa no tocante a democracia ao longo do governo Lula é o objeto de análise do presente artigo. Em termos teóricos, a presente análise baseia-se no papel das ideias na ação em política externa. A premissa realista tradicional enfatiza o interesse nacional, reduzindo o escopo das escolhas, já que os modelos construídos a partir dessa premissa são excessivamente centrados no sistema internacional como fonte de significados e limites da ação externa dos Estados. A análise da política externa, em contrapartida, propõe a decomposição da unidade analítica estatal e explica o processo decisório em política externa em função do papel dos indivíduos e das instituições, e também do sistema internacional. Essas análises foram desenvolvidas em paralelo com explicações a partir de fatores domésticos como o desenvolvimento e o sistema político, ou seja, o plano doméstico também constitui uma fonte para explicação da ação externa dos Estados. Segundo Carlsnaes (1987, p. 70), as ações em política externa poderiam consistir em si uma unidade analítica. De acordo com o autor, … foreign Policies consist of those 'actions' which, expressed in the form of explicitly stated directives, and performed by governmental representatives acting on behalf of their sovereign communities, are manifestly directed toward objectives, conditions and actors both governmental and non-governmental - which clearly lie beyond their sphere of territorial legitimacy.

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Essas ações, por conseguinte, podem resultar em um processo de institucionalização de ideias. Segundo Silva (1998, p. 143-144), as ideias contribuem para a construção de conceitos e para elaboração de mapas cognitivos que irão informar os formuladores e executores da política externa. As ideias, ao servirem de guias de comportamento, podem oferecer caminhos conceituais, uma vez que estimulam modelos causais ou incitam motivações éticas ou morais para a ação. As ideias também servem como pontos focais em situações onde qualquer resultado é possível. Finalmente, as ideias tornam-se, com o tempo, institucionalizadas e a partir daí exercem influência mais prolongada. Essa ação mais prolongada realça a importância da institucionalização. As ideias tornam-se institucionalizadas em função de interesses e do conjunto de preferências; e sob a forma de marcos conceituais, regras organizacionais legalmente prescritas, procedimentos, processos de recrutamento e socialização, produção legislativa, entre outros. Uma vez institucionalizadas, as ideias irão influenciar a formulação de políticas por períodos mais longos. A partir desse pressuposto é possível associar a ação externa do País a uma identidade internacional construída com base em um acervo permanente contendo um conjunto de normas e posturas que informam os formuladores e executores da política externa brasileira. Se considerarmos que a ação em política externa compreende construções argumentativas expressas por meio de discursos do Presidente da República e que estes discursos conjugam ações em paralelo voltadas a consecução de políticas públicas, então as realidades subjetivas dos ambientes domésticos e internacional também influenciam a formulação discursiva em política externa. Dessa forma, o acervo permanente da diplomacia brasileira, qual seja, o pacifismo, a não intervenção, a defesa da igualdade soberana entre as nações, o respeito ao direito internacional e o multilateralismo, pode ser associado a ação política dos governos. No caso do Governo Lula, esse acervo tem sido reconstruído a partir dos programas de governo e expresso por meio de uma dinâmica doméstico-diplomática. Por exemplo, em discurso proferido em 28 de maio de 2004, por ocasião da Reunião de Trabalho sobre Multilateralismo durante III Cúpula América Latina e Caribe - União Europeia realizada no México, Lula argumenta que: ... o multilateralismo representa para as relações internacionais o que a democracia foi e é para as nações. Faço profissão de fé na superioridade do tratamento multilateral dos problemas e desafios internacionais que enfrentamos... É necessário reafirmar e reforçar o multilateralismo para dar a legitimidade necessária à administração dos riscos e dificuldades que enfrenta a comunidade internacional e que requerem ação concertada para a sua superação... O multilateralismo, como a democracia, exige representatividade e participação. Os resultados da cooperação internacional dependem da eficácia das ações empreendidas... Essas preocupações, distintas e complementares, devem orientar a reforma da estrutura e funcionamento das Nações Unidas. Devem, igualmente, inspirar a busca da maior transparência, do aprimoramento e a constante atualização de práticas e mecanismos de que dispõem os países e as instituições financeiras internacionais para a cooperação no âmbito do sistema desenhado em Bretton Woods, há mais de meio século.

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2. CONSTRUÇÃO CONCEITUAL Em 14 de dezembro de 2002, ao ser eleito, em discurso proferido durante a cerimônia de diplomação no Tribunal Superior Eleitoral, Lula comunica que: ... a sociedade brasileira deu a si mesma - e ao mundo - um exemplo extraordinário de democracia... O vasto comparecimento popular às urnas revelou o apreço pela democracia e a consciência cívica que hoje existem em nosso país... nunca me cansarei de [fazer], o povo brasileiro, sujeito maior da democracia.” Essa posição foi reiterada em 13 de fevereiro de 2003, durante a abertura da Reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social: “nós sabemos que a democracia definitiva só irá acontecer quando, neste país, nós soubermos que todos, sem distinção de credo religioso, de raça, sem distinção da origem social, tenham tido acesso às coisas elementares que todo ser humano deva ter: o direito de trabalhar, o direito de morar, o direito de estudar, o direito de ter acesso à saúde e o direito de tomar café, almoçar e jantar todo santo dia.

O discurso doméstico-diplomático veio a inserir dentro dos princípios mais gerais da política externa, os planos ideológicos do programa de governo transformando-o em ativo para ação externa. No Programa de governo de 2002 “Um Brasil para Todos: Crescimento, Emprego e Inclusão Social”, do então candidato Lula, argumenta-se que somente: ... um novo contrato social que favoreça o nascimento de uma cultura política de defesa das liberdades civis, dos direitos humanos e da construção de um País mais justo econômica e socialmente permitirá aprofundar a democratização da sociedade, combatendo o autoritarismo, a desigualdade e o clientelismo... A política externa será um meio fundamental para que o governo implante um projeto de desenvolvimento nacional alternativo... a política externa será indispensável para garantir a presença soberana do Brasil no mundo... Uma nova política externa deverá igualmente contribuir para reduzir tensões internacionais e buscar um mundo com mais equilíbrio econômico, social e político, com respeito às diferenças culturais, étnicas e religiosas.

O projeto de desenvolvimento nacional e de consolidação das instituições democráticas foi ampliado no programa de governo “Lula Presidente” de 2006: ... Lula mostrou seu compromisso com um projeto nacional de desenvolvimento, que ponha fim à exclusão e à pobreza, amplia a democracia com reformas institucionais e a universalização da cidadania e garanta ao Brasil um lugar soberano e solidário no mundo. As políticas aplicadas a partir de 2003... não só evitaram a catástrofe econômica, como lançaram os alicerces de um desenvolvimento sustentável que, no médio prazo, permitirá ao Brasil ingressar em um círculo virtuoso capaz de combinar crescimento econômico, bemestar social, democratização política, soberania nacional e integração continental... O processo de inclusão social exige a generalização da cidadania, reformas do Estado e do sistema político que garantam não só o aprimoramento da democracia representativa, como a criação de um espaço público capaz de permitir a geração de novos direitos... O Brasil acentuará sua presença soberana no mundo. Lutará nos foros internacionais pelo multilateralismo, contribuindo para reforma das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, onde reivindica uma vaga permanente... defenderá um relacionamento entre as nações baseado nos princípios de respeito à soberania nacional, de não agressão e de não ingerência nos assuntos internos de outros estados.

Ou seja, a redemocratização trouxe consigo uma maior permeabilidade entre os ambientes doméstico e internacional e a ampliação das redes transnacionais de interação a partir da organização da sociedade civil e dos grupos financeiros e comerciais. Em 26 de janeiro de 2003,

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durante a sessão plenária Diálogo com Presidente do Brasil no XXXIII Fórum Econômico Mundial em Davos, Lula discorre sobre a necessidade de um novo contrato social no Brasil: ... Nós vamos estabelecer um novo contrato social. O que é isso? É tentar fazer o ajuste que precisa ser feito, nas relações entre a sociedade brasileira. É costurar um pacto social, não pensando cada um na sua corporação, mas pensando que o Brasil precisa de uma chance.

A vertente doméstica do novo contrato social brasileiro teria de ser compatível com um programa de coesão social. Em 13 de fevereiro de 2003 durante a cerimônia de instalação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Lula afirma que: ... a democracia contemporânea, até para evitar uma atitude injusta e negativista dos cidadãos perante a política, para fazer com que os cidadãos aprendam a valorizar a difícil arte da política, exige um nível maior de envolvimento da sociedade, um nível maior de corresponsabilidade social. E todos sabemos que ninguém se torna corresponsável por aquilo que não ajudou a construir... As reformas têm justamente a finalidade de criar as condições para o crescimento, que não será um crescimento qualquer e, sim, um crescimento capaz de assegurar uma nova coesão social, pela inclusão cada vez maior do conjunto da população na democracia e na economia.

A vertente externa desse contrato encontra respaldo na proposição de um multilateralismo democrático nas relações internacionais. A composição do discurso doméstico-diplomático foi comunicada em 10 de janeiro de 2003 durante a sessão solene de posse no Congresso Nacional. Lula declara que: ... a democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da Humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada estado... Vamos valorizar as organizações multilaterais, em especial as Nações Unidas, a quem cabe a primazia na preservação da paz e da segurança internacionais... Enfrentaremos os desafios da hora atual, como o terrorismo e o crime organizado, valendo-nos da cooperação internacional e com base nos princípios do multilateralismo e do Direito Internacional... Apoiaremos os esforços para tornar a ONU e suas agências instrumentos ágeis e eficazes da promoção do desenvolvimento social e econômico, do combate à pobreza, às desigualdades e a todas as formas de discriminação, da defesa dos direitos humanos e da preservação do meio ambiente... temos uma mensagem a dar ao mundo: temos de colocar nosso projeto nacional democraticamente em diálogo aberto como as demais nações do planeta, porque nós somos o novo, somos a novidade de uma civilização que se desenhou sem temor, porque se desenhou no corpo, na alma e no coração do povo, muitas vezes, à revelia das elites, das instituições e até mesmo do Estado. O conceito de democracia vem sendo construído a partir de definições formais que interpretam as variadas formas de organização social entre as sociedades humanas. A representação da organização social assume caráter participativo, representativo, político, econômico, social, e até mesmo um sentido humanista. Por exemplo, em discurso proferido em 21 de abril de 2003, por ocasião das solenidades em comemoração ao dia de Tiradentes, Lula declara que:

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... Acabar com a fome e a pobreza, gerar trabalho digno e paz social, avançar nesse sentido é um desafio e tanto, requer o aprofundamento da dimensão republicana da democracia, significa criar uma forte corresponsabilidade social, aperfeiçoando cada vez mais a democracia representativa e envolvendo toda a sociedade na definição das políticas públicas e do modelo de desenvolvimento.

Em 29 de junho de 2004, por ocasião da abertura da Conferência Nacional dos Direito Humanos, o presidente reitera que: ... trata-se de reforçar a democracia, dando-lhe uma dimensão cada vez mais prática, não só política, mas também econômica e social... Trata-se de mais um ponto de luz. Um ponto de apoio na missão mais desafiadora e, ao mesmo tempo, a mais bonita de toda a humanidade, que é a de humanizar-se. Milhões de homens e mulheres de todo o mundo fizeram a sua parte, no seu tempo, reagindo diante da coerção, do obscurantismo e da desigualdade. A sucessão dessas lutas é que assegura hoje o espaço, a força e a extensão da democracia e dos direitos humanos entre nós.

Ainda que uma organização social não se dê exclusivamente por meio de regimes políticos definidos como democráticos, faz-se relevante refletir sobre a construção do conceito de democracia. Collier e Levitsky (1997), por exemplo, afirmam que os conceitos e as definições de democracia frequentemente refletem um significado que é útil em relação a objetivos específicos de um determinado autor e aos casos que por ventura possam estar sendo analisados. A conceitualização da democracia é reconhecida por tais autores como relevante, uma vez que variadas formas de democracia necessitariam da construção de conceitos que funcionassem como alicerces a diferentes formas de representação. Há, entretanto, o risco da extensão demasiada do significado do conceito. Em outras palavras, os refinamentos conceituais frequentemente distanciam-se de sua conotação explicativa aproximando-se da estratégia propositiva do autor. Nesse sentido, o debate poderia ser organizado por meio da construção de estratégias discursivas embasadas em definições mínimas como elementos norteadores dos princípios que irão constituir o conceito a ser elaborado . Se considerarmos as sociedades ocidentais e a forma como a maior parte desse debate tem sido estruturado, as definições mínimas sobre democracia consistiriam na identificação de procedimentos e não simplesmente na adoção de políticas cujo resultado substantivo venha a ser respaldado como democrático. Tais definições são consideradas como sendo mínimas porque deliberadamente enfatizam o menor número possível de atributos coletivamente aceitos e institucionalmente respaldados como democráticos. As dúvidas, então, perpassam sobre quais seriam os atributos mínimos necessários para construção de um conceito que contenha uma definição amplamente aceita sobre a democracia. Collier e Levitsky (1997) sugerem as definições procedurais propostas por Schumpeter e Dahl. Enquanto Schumpeter propõe um mecanismo para escolha de lideranças políticas em eleições periódicas, Dahl chama atenção para um outro conjunto de procedimentos mínimos que incluiriam liberdades civis e políticas. De acordo com Dahl, não existe um país moderno que tenha alcançado o ideal de participação efetiva, equidade eletiva, compreensão elevada, controle da agenda e inclusão social. No lugar, foram constituídas as chamadas poliarquias, as quais desenvolveram instituições capazes de criar múltiplos centros de poder político. 21

Por outro lado, a definição de democracia poderia ser melhor delimitada por meio da inclusão do princípio da autonomia democrática. De acordo com David Held (2001), esse processo requer um elevado grau de responsabilidade do Estado e uma reordenação democrática da sociedade civil. Ainda, segundo o autor, se não houver garantias quanto a direitos econômicos e sociais, os direitos emanados a partir do Estado jamais poderiam ser totalmente usufruídos, dando vazão a novas formas de desigualdade de poder, riqueza e status social, as quais eventualmente iriam de encontro às liberdades civis e econômicas. Dessa forma, a definição trazida por Dahl contribuiria para demonstrar eventuais impedimentos à construção da democracia, enquanto que o argumento proposto por Held (2001) expandiria as definições procedurais mínimas para uma maior liberalização e participação. Em outras palavras, Held (2001) propõe um passo evolutivo a democracia política proposta por Dahl, o que resultaria na eventual autonomia democrática. Contudo, segundo Held (2001), quando as sociedades lutam pela liberdade e para superar a fome e a pobreza, pode haver outros impedimentos a democracia do que as definições procedurais fazem transparecer . Neste sentido, Huber, Rueschemeyer and Stephens (1997) argumentam que fatores sociais, políticos e históricos estão associados ao desenvolvimento da democracia e das políticas sociais redistributivas. Tais fatores expandiriam as formas neoliberal, formal e participatória da democracia em direção à sua dimensão social. Com base na evidência histórica dos fatores políticos, econômicos e sociais associados às avançadas democracias capitalistas ocidentais, essa abordagem normativa do conceito estaria além das definições procedurais da democracia. De fato, os autores sugerem um processo de aprofundamento da democratização para os países em desenvolvimento ao demonstrar como democracias formais podem vir a viabilizar democracias sociais onde elevados graus de mobilização política promoveriam políticas sociais igualitárias, possibilitando aos cidadãos a participação no processo político em um círculo virtuoso. Contudo, pode haver uma grande variação quanto aos critérios pelos quais as democracias formais alcançariam esse patamar, razão pela qual as bases democráticas são relativamente vulneráveis dando margem a círculos viciosos de organização. Em seu discurso doméstico-diplomático Lula parece seguir essa lógica argumentativa. Em 10 de janeiro de 2007, durante Cerimônia de Compromisso Constitucional perante o Congresso Nacional, o Presidente declara que: ... as formas de democracia participativa não são opostas às da democracia representativa... É tempo do nascimento de um novo humanismo, fundado nos valores universais da democracia, da tolerância e da solidariedade.

Em 22 de janeiro do mesmo ano, na cerimônia de lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Lula afirma que:

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A cultura produtiva, aliada a um novo humanismo, deve ser o motor para transformar o País. O melhor de tudo é que conseguimos implantar bases bem sólidas para que isso aconteça. Hoje, na síntese final e completa da soma dos resultados econômicos, social e político, o Brasil, sem sombra de dúvida, se coloca em uma posição privilegiada no mundo. Aqui não se cresce sacrificando a democracia, aqui não se fortalece a economia enfraquecendo o social, aqui não se cria ilusões de distribuir o que não se tem, nem de gastar o que não se pode pagar. Aqui, o econômico, o político e o social estão plenamente enlaçados em um moderno projeto de nação.

Contudo, cabe questionar se a democracia está diretamente relacionada ao desenvolvimento. De acordo com Leftwich (2005), a democracia não conjugaria apenas um grupo de instituições e regras pelas quais o jogo político é conduzido. A democracia representaria, antes de tudo, um processo de desenvolvimento que envolveria a transformação da sociedade para além do mero crescimento econômico. Leftwich (2005) acredita que as instituições democráticas e as instituições desenvolvimentistas possuem natureza fundamentalmente contraditória. Enquanto o desenvolvimento necessitaria de instituições voltadas à acumulação, à mudança e à transformação; as instituições necessárias para a sustentação e a consolidação da democracia seriam caracteristicamente aquelas que promovessem políticas de acomodação, comprometimento e centralização. Logo, a lógica política da democracia é geralmente consensual, conservadora e instrumentalizadora da mudança que acarreta. Sendo assim, o autor discorda da proposição de que a democracia promoveria o desenvolvimento por causa de seu conservadorismo inato. Em virtude desse viés consensual a democracia seria incapaz de promover uma mudança radical no sistema de riqueza. Essa mudança seria necessária para construção de oportunidades de desenvolvimento especialmente nas sociedades marcadas pelo desenvolvimento tardio. Caberia, então, analisar o papel do Estado como forma de superar problemas de desenvolvimento e como promotor do crescimento sustentado. Conforme argumenta Bhagwati (2002), a democracia envolveria um processo de governança por meio do consenso sustentado pelo direito ao voto, independência do judiciário e imprensa livre. O desenvolvimento, em contrapartida, estaria associado a outros aspectos e não apenas a taxa de crescimento da renda. As verdadeiras carências sociais como saúde pública, proteção ambiental e a pobreza, não poderiam ser solucionadas ao menos que os governos tenham os recursos que apenas o crescimento pode gerar. Porém, o uso desses recursos não necessariamente conduz à solução desses problemas, a não ser que o sistema político permita e conceda incentivos à mobilização, traduzindo essas necessidades em demandas efetivas. Bhagwati (2002) afirma que os países que promovem o livre mercado e a competição em suas economias crescem mais rápido, ceteris paribus. Logo, o mercado e a competição poderiam promover o crescimento independentemente da democracia. Assim, de acordo com o autor, a democracia não seria uma pré-condição ao desenvolvimento. Somente quando combinada a abertura de mercados é que a democracia poderia oferecer as melhores perspectivas a uma sociedade dinâmica, eficiente e desenvolvida. A posição brasileira, entretanto, advoga um sentido distinto a essa percepção sobre a democracia e o desenvolvimento. Em discurso proferido em 2 de dezembro de 2004, por ocasião da abertura da Conferência Internacional Democracia na América Latina, Lula afirma que:

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... o desafio que se impõe à democracia latino-americana somente será resolvido com o estreitamento cada vez maior dos laços econômicos, culturais e políticos que nos permitam redesenhar o novo espaço da soberania na era da globalização... Nada mais falso do que enxergar nesse cenário um dilema entre democracia e desenvolvimento... Na verdade o que existe é o oposto: uma interdependência em marcha forte. Ela conduz a uma espiral ascendente de participação econômica e política que não se restringe mais ao perímetro de cada Nação, mas deve mobilizar todo o continente em busca de formas inovadoras de representação popular... Nossos problemas com a democracia, portanto, serão resolvidos com mais desenvolvimento sustentado. E os nossos problemas com o desenvolvimento, serão resolvidos com mais democracia econômica, ou seja, com distribuição de renda e poder... Todos nós sabemos que ainda estamos longe de consolidar a combinação entre democracia política, democracia institucional, democracia social e democracia econômica, até porque todos os países são detentores de uma dívida secular com a parte mais pobre da população, e recuperá-la exige perseverança, exige maturidade e exige determinação.

Já Amartya Sen (2000) acredita que a democracia e as liberdades políticas têm um papel instrumental para o desenvolvimento. De acordo com o autor, a democracia tem sido associada à criação de um conjunto de oportunidades e o usufruto dessas oportunidades requer uma análise diferenciada que lide com a prática de direitos democráticos e políticos. O maior desafio para os povos ao redor do mundo seria fazer com que a democracia funcionasse para as pessoas comuns. De acordo com Sen (2000), as liberdades políticas e as liberdades associadas à democracia são vantagens permissivas, e sua eficácia dependeria de como essas vantagens seriam exercidas. Com o objetivo de estabelecer a interligação entre a democracia e o desenvolvimento, o autor contesta a aparente dicotomia entre as necessidades econômicas e as liberdades políticas. Na verdade, as liberdades políticas poderiam ter um papel importante na promoção de incentivos e na construção de informações para solução de graves problemas econômicos. A conceitualização desses problemas dependeria fundamentalmente de debates e discussões públicas, cuja garantia exige liberdade política e direitos civis. Essa construção conceitual é condizente com o discurso brasileiro. Em 15 de outubro de 2007, por ocasião do Colóquio 'Democracia e Desenvolvimento na África', em Burkina Faso, Lula afirma que: ... temos o desafio de traçar estratégias e formular propostas para que nossos continentes sejam definitivamente unidos na luta comum pela consolidação da democracia e do desenvolvimento... Quando falamos em democracia e desenvolvimento precisamos ter em conta uma palavra mágica, que é, na minha opinião, aquela que pode permitir que a gente possa, com mais rapidez, resolver os problemas do mundo e, dentro do mundo, dos países mais pobres. Essa palavra chama-se paz. Sem paz, nenhum país do mundo vai se desenvolver... A América Latina vive um momento excepcional de democracia. Os governos progressistas estão ganhando as eleições em quase todos os países numa contrariedade ao que aconteceu na década de 80 e na década de 90. Mas nós estamos convencidos de que, como a África, a América Latina não pode desperdiçar o século XXI. O século XX nós perdemos, a Europa ganhou grande parte do século XIX, os Estados Unidos ganharam, praticamente, o século XX, e agora os países africanos, os países latinoamericanos, a China, a Índia e outros países asiáticos, que não tiveram chance no século XX, precisam conquistar o século XXI como o século da consolidação da democracia nos nossos países, como o século da consolidação de um desenvolvimento com justiça social, como o século em que a gente possa combater as graves doenças existentes nos nossos países. Mas, sobretudo, como o século em que a gente devolva para o nosso povo, não apenas a liberdade de gritar que está com fome, mas o direito de estudar, o direito de trabalhar, o direito de tomar café, almoçar e jantar todos os dias. Afinal de contas, o direito de ter orgulho e de fazer valer esse regime, que é cheio de defeitos, mas é o melhor que nós temos até agora, que é a democracia.

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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma base de pesquisa contendo, até a presente data, 652 discursos realizados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em que foi mencionado o termo democracia foi construída para elaboração deste artigo. Esses discursos foram organizados por ordem cronológica. Posteriormente, houve a seleção de passagens que fizessem menção aos programas de governo e a política externa. Foram, então, extraídos argumentos que ilustrassem a intersecção entre programa de governo, política doméstica e política externa conjugando o chamado discurso domésticodiplomático. Análise posterior tornou possível a identificação de uma pluralidade de significados da organização social brasileira em consonância com o emprego discursivo do termo democracia pelo Presidente da República. A qualificação argumentativa evidenciou uma construção conceitual em torno da consolidação da democracia no Brasil e da ação externa voltada a este propósito e a promoção do multilateralismo democrático nas relações internacionais. Tal movimento encontra respaldo nos programas de governo do Presidente Lula. Pesquisas futuras podem vir a ampliar o potencial da abordagem doméstico-diplomática da ação externa brasileira conforme antecipado pelo Presidente Lula em 13 de Julho de 2005 por ocasião da abertura do Colóquio "Brasil: Ator Global" em Paris: Um mundo plural - ou "multipolar", como às vezes se diz - não é um desejo piedoso de diplomatas ou acadêmicos idealistas. É uma exigência dos dias que correm. A negação da pluralidade de pólos, pretensamente "realista", reduz as relações internacionais apenas à expressão da força militar... Para afirmar a democracia no plano internacional, é preciso reconhecer que a pluralidade de visões é legítima e que há um espaço crescente a ser dado à ação diplomática... Ser democrata no plano global é acreditar que todos têm direito a ser atores, que cada ator tem suas razões e que, enfim, nem sempre a razão do mais forte é a mais forte das razões.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fonte primária Base de discursos construída pela autora contendo, até a presente data, todos os discursos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em que foi mencionado o termo democracia. Fontes secundárias BHAGWATI, Jagdish N. Democracy and Development: Cruel Dilemma or Symbiotic Relationship? Review of Development Economics, vol. 6, no 2, 2002. CARLSNAES, Walter. Ideology and Foreign Policy: Conceptualization. Oxford/New York: Basil Blackwell, 1987.

Problems

of

Comparative

___________________. The agency-structure problem in foreign policy analysis, International Studies Quarterly, v. 36, n. 3, 1992. ___________________. Foreign Policy. In: Walter Carlsnaes, Thomas Risse e Beth Simmons (eds.), Handbook of International Relations. London, Sage Publications, 2001.

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COLLIER, David; LEVITSKY, Steven. Democracy with Adjectives: Conceptual Innovation in Comparative Research. World Politics, v. 49, n. 3, 1997. HELD, David. Globalization, Cosmopolitanism and Democracy. Constellations, 8(4), 2001. HUBER, Evelyne; RUESCHEMEYER, Dietrich; STEPHENS, John D. The Paradoxes of Contemporary Democracy: Formal, Participatory, and Social Dimensions. Comparative Politics. v. 29, n. 3, 1997. LAFER, Celso. A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001. LEFTWICH, Adrian. Democracy and Development: Is There Institutional Incompatibility. Democratization, v. 12, n. 5, 2005. SEN, Amartya. The Importance of Democracy. In: SEN, Amartya. Democracy as Freedom. New York: Anchor Books, 2000. SILVA, Alexandra de Mello. O Brasil no Continente e no Mundo: Atores e Imagens na Política Externa Brasileira Contemporânea. Estudos Históricos, v. 8, n. 15, 1995. _______________________. Ideias e Política Externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 41, n. 2, 1998.

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Ensaio: Os Zeróis e o Eu Brasília – 26 de abril de 2012 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

“Ele se educou para a originalidade”. É a partir dessa citação de Goethe que Adorno reflete sobre a educação para a individualidade. De acordo com o filósofo, “hoje existe uma ampla carência de possibilidades sociais de individualização, porque as possibilidades sociais mais reais... já não exigem mais as propriedades especificamente individuais” (ADORNO, 1995, p. 152). Segundo Adorno, “talvez a individualidade se forme... na experiência do não-eu no outro” (1995, p. 153-154). Mas e se o outro não for nada além do que o eu imaginado? Imaginar é criar. A intervenção criativa do artista Ziraldo ao retratar os heróis nos transporta para o reconhecimento do eu no outro. Mas isso não é um processo automático. Trata-se de um embate de fronteira acerca da diferença cultural, conforme nos orientada Bhabha (1998, p. 21), que demanda certa conscientização. As cores presentes nas obras Zeróis, exuberantes em sua tonalidade, dão forma a imaginação do criador e nos aproxima do universo paralelo onde os personagens curiosamente assumem o papel do nosso eu. Ou seja, contrariamente aos heróis fictícios, os Zeróis envelhecem como no quadro “O Super-Asilo”. Há, neste contexto, certa alternância entre distância e proximidade, conforme realça Latour (2004, p. 353). Essa alternância releva as propriedades mais heroicas dos personagens retratados por Ziraldo: a de cingir o tempo-espaço e a de aproximar o eu do outro pela não indiferença. Talvez os Zeróis nos aproximem da fala-ação da religião tão bem exemplificada por Latour (2004, p. 354). Ambos carregam consigo uma mensagem que transforma ao aproximar o eu do outro. Os heróis estão ali, bem próximos, ao nosso alcance. Mais do que isso. Os Zeróis representam um espaço de transformação ao se interpor na arte e retratar o passado, o presente e o futuro. Dessa forma, Ziraldo nos oferece a oportunidade para desenvolver um processo de interação simbólica que possibilita a reconstrução do eu, abrindo espaço para um hibridismo cultural que acolha a diferença sem uma hierarquia suposta ou imposta, conforme lembra-nos Bhabha (1998, p. 22). Isso nos leva de volta à educação para a originalidade. Ziraldo é original porque sua mensagem é transformadora. O potencial de transformação a partir da imagem-ação dos Zeróis revela o seu poder de convencimento do eu. No entanto, algumas pessoas apresentam aversão à educação quando percebem que a reflexão crítica quanto ao eu imaginado pode levar ao questionamento da própria realidade. Adorno (1995, p. 150) ressalta que muitas pessoas odeiam o 27

que é diferenciado e o que não é moldado porque poderiam sentir-se excluídos e porque isso dificultaria sua orientação existencial. Em outras palavras, a educação é um instrumento para transformação, mas é preciso que as pessoas desenvolvam aptidão à experiência, de modo a remover os mecanismos de repressão do eu.

REFERÊNCIAS Exposição Zeróis: Ziraldo na Tela Grande, Brasília – DF, abr. 2012. ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. LATOUR, Bruno. ‘Não congelarás a imagem’, ou: como não desentender o debate entre ciênciareligião. Mana, v. 10, n. 2, 2004.

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Ensaio: Vulnerabilidade e Inventividade Brasília – 2 de julho de 2012 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

A sociedade e o Estado brasileiro padecem de crônicas vulnerabilidades estruturais historicamente constituídas e associadas a uma macroestrutura de poder cujos agentes centrais mostram-se comprometidos com estratégias de desenvolvimento e de inserção internacional que, contraditoriamente, contribuem para a perpetuação de desigualdades sócio-políticas e econômicas no país, graças a uma combinação de esquemas de força, de desarticulação social e de persuasão ideológica. Essa é a síntese dos argumentos do diplomata Samuel Pinheiro Guimarães no primeiro capítulo do livro “Desafios brasileiros na era dos gigantes”. Segundo Guimarães (2005, p. 23), essas vulnerabilidades decorrem da forma de criação e de expansão da economia capitalista brasileira e de sua inserção na economia mundial; do modo como se estruturou ao longo dos tempos o sistema político brasileiro; de sua inserção no sistema mundial de poder; e do processo de formação da cultura brasileira e de seus vínculos com a cultura mundial, em especial com os centros dinâmicos de sua elaboração e difusão. Porém, conforme revela Ortiz (2000, p. 74), as sociedades não são estáticas. Apesar de ser atraente, a análise geopolítica de Guimarães (2005) conserva àquelas categorias analíticas que em última instância podem vir a inviabilizar visões alternativas que proponham mudanças quanto à forma e às modalidades do poder, seus elementos estruturantes e agentes participativos. Em outras palavras, Guimarães (2005) denuncia a tendência de conservação dos fatores que contribuem para o subdesenvolvimento brasileiro, mas reproduz algumas das suas principais categorias analíticas. A diferenciação entre centro e periferia em conjunto com a noção de macroestrutura de poder remete a um processo de reprodução de desigualdades que restringem a participação da sociedade civil e comprometem a autonomia do Estado-nação. Sua verossimilhança, todavia, fundamenta-se em dados concretos. Por exemplo, ao abordar as grandes interpretações do Brasil, o historiador Costa e Silva (2000) retrata a construção da identidade brasileira do ponto de vista do próprio brasileiro ao longo de todo o século XX. É curioso imaginar que em 1901 um brasileiro bem-educado, segundo os moldes e padrões predominantes à época, debruçar-se-ia em uma estante de livros recém chegados da Europa para iniciar seu percurso por leituras sobre o Brasil. A experiência o levaria a confrontarse com o receio de encarar a imagem do Brasil e a descoberta da sua própria identidade em meio a tantas misturas étnicas, uma vez que “pelos parâmetros do que se tinha por ciência, a geografia e a

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mistura de raças condenavam o Brasil, mais do que ao atraso, à barbárie” (COSTA e SILVA, 2000, p. 20). Felizmente, também havia exemplares locais elaborados por escritores, pensadores, poetas, artistas e cientistas que, a partir dos seus conhecimentos e, sobretudo, experiências, pensaram a realidade brasileira. Essas visões oscilaram entre a valorização e o desprestígio da emergente sociedade multicultural, ora afirmando a teoria de eugenia do branco-europeu, ora exaltando o indígena nativo e a contribuição do negro-africano. É triste, no entanto, constatar que “a visão de que as raças formadoras do país e a sua mistura condicionavam negativamente o nosso destino permeia boa parte do que se escreveu na primeira metade do século” (COSTA e SILVA, 2000, p. 22). Esses vaticínios do início do século passado guardam semelhanças com o posicionamento de muitos intelectuais brasileiros da atualidade que tendem a embasar suas análises em preceitos igualmente abstratos e eurocêntricos, reduzindo a realidade brasileira a esquemas mentais preconcebidos. Apesar de se mostrar confinado às categorias analíticas que representam esse reducionismo, Guimarães (2005, p. 70) é um crítico dos condicionantes estruturais que viabilizam os mecanismos de concentração de poder político, econômico e social, tanto no plano doméstico, quando no âmbito internacional. É neste contexto que Guimarães (2005, p. 24) discute a vulnerabilidade cultural brasileira, realçando a valorização excessiva da cultura dos centros europeus – e hoje americanos – em comparação com a desvalorização, o desprezo sistemático e irônico das manifestações culturais brasileiras. Contudo, conforme argumenta Ortiz (2000, p. 93), essa discussão sobre as culturas nacionais reatualiza a dicotomia entre interno e externo, promovendo um pensamento dualista. Segundo o autor, Os países centrais são vistos como núcleos difusores de uma determinada formação cultural, chocando-se em princípio com a veracidade dos costumes locais... Dentro desta perspectiva, o mundo seria formado por unidades distintas, submetidas, é claro, à hegemonia dos mais poderosos... Existiriam espaços difusores de cultura (em particular os Estados Unidos) e locais periféricos, sujeitos às suas influências (ORTIZ, 2000, p. 93-94).

O próprio Ortiz (2000, p. 94), todavia, mostra-se cético quanto ao potencial explicativo do dualismo dado que a realidade contemporânea caracteriza-se pela fluidez e pela presença de espaços cada vez mais descentralizados e desterritorializados. Ou seja, no lugar da lógica da globalização que reduz a cultura a um processo de competição econômica e tecnológica, Ortiz (2000, p. 97) argumenta em termos de um processo de mundialização onde a cultura norte-americana, por exemplo, pode ser pensada enquanto mecanismo interno de uma “megassociedade” que se expandiu. Nesse contexto, as relações sociais exprimem a estrutura interna de um processo mais amplo que apresenta novas formas de dominação. Entendê-las, afirma Ortiz (2000, p. 104), é refletir sobre as raízes de nossa contemporaneidade.

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No entanto, os argumentos de Guimarães (2005) permitem concluir que estruturas de poder globais tendem a refletir estruturas de poder domésticas dominadas por elites tradicionais e vice-eversa. Essa é uma visão que infelizmente permeia as escolhas políticas e o pensamento estratégico brasileiro. Digo isso porque trata-se de uma concepção opaca do complexo cultural que envolve a sociedade brasileira e suas relações com a contemporaneidade. Essa visão maniqueísta tende a reproduzir fórmulas tradicionais de asserção do poder e de seus condicionantes estruturais ainda que procure justamente contestá-los. Segundo Weber, todas as dominações procuram despertar e entreter a crença na sua legitimidade (WEBER apud ORTIZ, 2000, p. 103). O mundo da cultura, argumenta Ortiz (2000, p. 103), é o espaço no qual essas crenças se transformam em conivência. Trata-se, então, de discernir as instâncias e as formas como tal legitimidade se implanta. No caso brasileiro, assume-se como um dado a tese da “ninguendade” segundo a qual Darcy Ribeiro declara que o mameluco não era português, como o pai, nem índio, como a mãe, e o mulato não era europeu nem africano, e que, por não serem uma coisa nem outra, tornaram-se os primeiros brasileiros. A mestiçagem foi e continua a ser o nosso processo de fazimento (COSTA e SILVA, 2000, p. 38). Mas por que, então, um pilar da diversidade se transforma em matéria infecunda nas opções diplomáticas brasileiras? Acredito que estar-se subestimando o que se passa com o povo brasileiro e seu processo de autocriação. Se é verdadeira a tese de Glissant (2001, p. 18) quanto ao fato de que o mundo se criouliza, então por que não incorporar o processo de fazimento da sociedade brasileira aos fundamentos estratégico-políticos que projetam o país na sociedade-mundo? É possível resistir à tentação da reprodução de instrumentos de dominação que condicionam a cooperação internacional para o desenvolvimento a interesses estratégicos e comerciais? A sociedade civil organizada brasileira vem desenvolvendo, ao longo do tempo, um conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida. São as chamadas tecnologias sociais. Essas tecnologias são instrumentos importantes no processo de conversão das vulnerabilidades estruturais da sociedade brasileira em oportunidades para o desenvolvimento. Recentemente, essas práticas foram incorporadas a programas e projetos de cooperação internacional. Todavia, os avanços de consciência coexistem com teses conservadoras, trazendo novos perigos, desafios e esperanças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA E SILVA, Alberto. Quem fomos nós no século XX: as grandes interpretações do Brasil. In: MOTA, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000) – a grande transação. São Paulo: SENAC, 2000. GLISSANT, Édouart. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

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GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2000. Tecnologias Sociais. TS. 2004.

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Ensaio: O Eu a Educar Brasília – 16 de setembro de 2012 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

Duplo-clique... Imagem e ação, tempo e espaço. Há algumas décadas, assisti na TV algo que me instigou: jovens em uma nação estrangeira avançavam contra um muro. O muro dividia uma cidade em duas e estendia-se ao longo de todo um território. Os jovens e nem tão jovens, vigiados de perto por soldados armados que guarneciam o muro, traziam consigo algumas ferramentas: martelos, picaretas, instrumentos de percussão, além da própria voz... duplo-clique. Algo de importante acontecia ali, dizia a TV... duplo-clique. Ainda que a realidade daqueles jovens que se puseram a derrubar o muro que divida a sua cidade, a sua identidade e o seu orgulho parecesse tão distante dos telespectadores brasileiros, algo de importante parecia acontecer ali... duplo-clique. Não sou uma especialista em tempo e espaço, mas hoje reconheço que os efeitos temporais de mudanças materiais fazem-se sentir de forma descontínua e subjetiva. Minha cidade não era dividida por muros, mas havia soldados. Até àquele momento, não sabia muito bem o que guarneciam. À vezes, apresentavam-se perfilados no alto de edifícios governamentais empunhando suas pesadas armas, mas como as ruas estavam sempre vazias, permanecia sem entender o que ali faziam... duplo-clique. Que pena, em minha cidade as ruas são repletas de vazios. Melhor voltar-me para a TV, será? As narrativas televisivas diziam que a queda do muro era um fato histórico. Falavam em mudança, mas não em revolução... duplo-clique. Para muitos telespectadores, a TV pode ter a legitimidade de um mapa. Imagens em ação com contornos bem definidos e conclusões acabadas. Porém, até os mapas são subjetivos, podem omitir e distorcer. Pois bem, acreditemos que a queda do muro em Berlim trata-se de um fato verdadeiramente histórico e relevante para o resto das nossas vidas... duplo-clique. Relevante? Por que? Talvez porque, apesar da distância, tenha sido uma experiência coletiva, não apenas da coletividade que se reuniu para derrubar o muro, mas também daquela que, sintonizada em aparelhos de TV, acreditou nos informes acerca de mudanças. No entanto, conforme lembra-nos Latour (2004, p. 351), “conversa de informação é uma coisa, e de transformação, outra”. Acredito que é chegada a hora de discutir a “originalidade estratégica” (LATOUR, 2004, p. 352) do poder da fala, e, por que não, da narrativa televisiva, que ao transportar pessoas e informações, convence, dissimula, coopta, constrange e partilha. Para Latour (2004, p. 371), a palavra crença expressa uma mistura necessária de confiança e desconfiança com que temos 33

necessidade de considerar todas as coisas que não podemos ver diretamente. Em termos do eu, acho que a crença traz confiança e nos auxilia a desconfiar. Acredito, igualmente, que a narrativa televisiva se aproxima da fala religiosa a que Latour (2004) se refere em “ ‘Não Congelarás a Imagem’, ou: como não desentender o debate ciênciareligião”. Tem-se, nesse contexto, um embate de fronteiras, onde as potencialidades da fala não estão aparentes. Enxergá-las demanda certa conscientização. O Eu, dividido entre a ciência e a consciência, busca significados que espelham experiências vividas e imaginadas. É justamente aí que repousa a armadilha da reprodução. O passado-presente, internalizado e naturalizado por meio da narrativa televisiva voltada às coletividades, uma tendência da contemporaneidade que também se expressa no fenômeno da simultaneidade, tem, em seu âmago, a dinâmica do continuísmo, ainda que disfarçado de mudança. As mudanças não necessariamente levam a transformações, algo que procuro ilustrar. Em outras palavras, há uma tendência de empatia e aproximação que atrai o interesse das coletividades tanto na fala religiosa quanto na narrativa televisiva. Porém, a questão a ser realçada converge para o poder de convencimento da imagem-ação, um aspecto fundamental para a originalidade estratégica do poder da fala. Lembro que o muro e sua queda podem significar um embate de fronteiras: localinternacional, passado-presente, pensamento-ação, mudança-continuidade, revoluçãotransformação... duplo clique. Todavia, é preciso evitar as armadilhas da reprodução. Em um embate de fronteiras, nem tudo é o que parece. Lembram-se quando disse que os efeitos temporais de mudanças materiais fazem-se sentir de forma descontínua e subjetiva. Pois bem, a comunicação duplo-clique, instrumentalizada por meio das narrativas do convencimento, “quer que acreditemos que é factível transportar, sem a menor deformação, uma informação precisa qualquer sobre situações e coisas que não estão presentes aqui” (LATOUR, 2004, p. 355). Parece-me que o muro ainda se sustenta. É possível que o significado histórico da mudança reproduzida pela TV possa estar dissociado da experiência histórica da mudança por meio das coletividades. Assim, a realidade reproduzida remete a significados coletivamente imaginados, mas não experimentados. A construção de significados é, nesse caso, um elemento-chave para a compreensão das falácias da comunicação duplo-clique. Por exemplo, se a queda do muro é imbuída de significados quanto a mudanças, então, por que não vivenciamos as experiências da mudança? Não há uma resposta simples para essa questão. Pode ser que a comunicação duplo clique venha contribuindo para a dissociação das coletividades dos eventos de mudança que, em função disso, tendem a ser governados por outras esferas, igualmente coletivas, porém proporcionalmente

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minoritárias. A sujeição à repetição é um problema sério que, no caso do evento de fronteira em debate, obscurece a compreensão quanto ao próprio significado histórico da queda muro. Fala-se em mudança, mas seus antecedentes e possíveis consequências não participam das representações reproduzidas na TV. Pelo menos de forma verdadeira. Ou seja, a queda do muro torna-se uma “imagem congelada” no tempo e no espaço, um marco demarcador para o início do fim da guerra, mas que, contrariamente, legitima sua reprodução. Existem fatores diversos que servem de causa e instrumentalização para a guerra, mas estes não estão em discussão aqui. O que gostaria de assinalar é como eventos de fronteira, no lugar de proporcionar transformações, servem a propósitos reprodutivos que naturalizam o fenômeno em questão, tornando-o opaco à percepção coletiva. Para José Maria Valcuende (2009, p. 19), que nos oferece aproximações teóricas sobre a noção de fronteira, “a fronteira, desde um ponto de vista territorial, é também uma forma de defesa e controle, um mecanismo que protege enquanto domina e onde converge lógicas de ação, diferentes âmbitos de poder que se encontram nas margens do espaço, regulamentado a partir das normas definidas pelos centros do poder e pela própria ação cotidiana das populações ali assentadas”. Porém, o próprio Valcuende (2009) lembra-nos que há diferentes contextos fronteiriços. Em termos mais abstratos, “a fronteira é sempre princípio e final, ponto de chegada e de partida, âmbito do cotidiano e do desconhecido, geradora de medos e desconfianças, espelho e escudo, eterna contradição de um ser que necessita dos outros, ao mesmo tempo em que necessita se diferenciar para continuar sendo esse, essencialmente humano (2009, p. 19). Segundo Latour (2004, p. 368), “mostrar e ocultar é o que faz a verdadeira reprodução”. Ao apontar para a humanidade, Valcuende (2009) oferece-nos uma saída para os problemas da comunicação duplo-clique e para os perigos da reprodução. Acredito que um dos efeitos naturalizados da guerra remete à coisificação dos objetos e criações humanas, separando-os do seu sentido verdadeiramente social. Eventos associais, como a imagem congelada do muro em queda nos fazem crer, são destituídos de humanidade. Sua reprodução permite a continuação da guerra e acelera o distanciamento entre os diferentes grupos sociais divididos entre aqueles que exercem comando sobre os efeitos da reprodução e aqueles que, condicionados pela fala que não transforma, reproduzem seus efeitos, concedendo-lhe legitimidade. Desde quando tais objetos e criações perderam suas propriedades, tornando-se coisificados? Conscientizar-se para perceber o que acontece é certamente um grande desafio. Curiosamente, foram justamente as soluções herméticas de hierarquização das estruturas de poder entre as sociedades que, ao longo do tempo, têm permitido que se reproduzam eventos imaginados, mas não experimentados. Para essa finalidade, considerando as potencialidades estratégicas do

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poder da fala, é importante realçar os processos de construção e de reprodução da memória coletiva por meio da qual mudanças não transformadoras têm lugar. De acordo com Valcuende (2009, p. 19), “a proximidade e a distância são parte de um jogo de unidade e alteridade que estrutura limites e fronteiras”. Já Latour (2004) utiliza as noções de proximidade e distância para realçar as propriedades empáticas da fala religiosa, sua proximidade com o discurso pretensamente científico e o descompromisso de ambos com a verdade. Tem-se nesse sentido, um processo de construção de identidades coletivamente condicionadas. Um fato compreendido como verdadeiramente histórico para o resto das nossas vidas, como afirmei anteriormente, é reproduzido por meio do que Pollak (1989, p. 3) caracteriza como “comunidade afetiva”. Trata-se de um tipo de memória construída através de uma linguagem essencialmente performática que instiga, desperta o interesse, mas que informa no lugar de transformar. Tem-se, então, uma importante razão para o educar-se.

REFERÊNCIAS LATOUR, Bruno. ‘Não congelarás a imagem’, ou: como não desentender o debate entre ciênciareligião. Mana, v. 10, n. 2, 2004, p. 349-375. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. VALCUENDE, José Maria (coord.). Histórias e Memórias das Três Fronteiras: Brasil, Peru e Bolívia. São Paulo: EDUC, 2009, p. 19-25.

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Artigo: O Que é o Valor? Uma proposta para o estudo comparado da presença portuguesa no Oriente Brasília – 13 de fevereiro de 2013 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

Resumo: Pensa-se que a noção de valor, frequentemente associada ao impulso comercial das rotas de navegação e da exploração dos recursos humanos e ambientais, pode ser igualmente analisada pelo impulso do conhecimento redistribuído em termos dos valores culturais e seus impactos sobre os objetos produtos do empenho humano, as pessoas e as estruturas sociais, além dos valores associados ao impacto humano sobre o ambiente medido pelos reflexos sobre a paisagem em termos territoriais e os reflexos sobre as estruturas materiais modificadas pela intervenção humana e observadas, por exemplo, nos sistemas biológicos animais e vegetais. A análise da expansão marítima portuguesa em direção ao Oriente, sob a perspectiva do valor, pode vir a demonstrar a resiliência de componentes culturais e ambientais da presença portuguesa como parte da identidade-nação dos espaços antes conquistados. Pensa-se, então, que o valor em si é um importante veículo para pesquisa do passado e do presente, principalmente quando observado o impacto da presença portuguesa sobre o ambiente e sobre as sociedades autóctones em Goa, Malaca, Timor, Japão e Macau. Palavras-chave: Valor, Cultura; Império; Biopoder; Biopolítica.

1. INTRODUÇÃO A presença portuguesa no Oriente vem de longa data, à época das grandes descobertas e navegações quando a maior parte dos povos ainda podiam viver insulada em suas próprias microrregiões e sociedades. A expansão europeia em termos das grandes navegações ampliou o conjunto das possibilidades humanas, já experimentado com os grandes impérios romano, helênico, turco, assírio, entre outros. Contemporâneos do grande império chinês, da eclética sociedade indiana, das micro sociedades africanas e dos povos das Américas, espanhóis e portugueses ousaram expandir seus conhecimentos geográficos e culturais para além dos limites regionais e comunicar-se com sociedades que, até então, não haviam diretamente contribuído para sua constituição humana e organizacional. O conhecimento, porém, tem implicações contrastantes. Em certa medida, avanços de consciência coexistem com teses conservadoras, trazendo novos perigos, desafios e esperanças. Ainda que a presença portuguesa no Oriente tenha contribuído permanentemente para a transformação da paisagem e dos costumes locais, algo que se propõe analisar sob a ótica do valor, sua imposição, por meio do domínio dos espaços territoriais e dos povos originais, sobreveio aos ganhos culturais e ambientais, auferidos pelo contato entre as diferenças, redistribuídos, pela força das circunstâncias, em termos das relações entre povos colonizadores e colonizados.

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Em certa medida, é preciso reconhecer que muitas vezes a ética mercantilista sobreveio à noção de valor, oculta nas práticas sociais e religiosas de colonos e exploradores e, por que não, também dos povos nativos. Porém, essa mesma noção de valor não precisa ficar restrita ao impulso economicista tão frequentemente expresso nos discursos geopolíticos do colonialismo e do póscolonialismo. Ou seja, a noção quanto ao valor pode, igualmente, ser um importante veículo para pesquisa do passado e do presente, principalmente quando observado os impactos sobre o ambiente e as sociedades autóctones quando do contato com povos não-originários. O presente artigo estrutura-se, então, em termos de uma proposta para o estudo da passagem portuguesa pelo Oriente tendo a noção de valor, suas variações ambientais e culturais, como elo de conexão entre territórios uma vez ocupados por portugueses, quais sejam, Goa, Malaca, Macau, Timor e Japão. Trata-se de uma primeira proposta para análise da resiliência dos objetos socioculturais de origem portuguesa no Oriente que almeja angariar apoio para sua consecução e desenvolvimento. Seu início dar-se com base nos seguintes questionamentos: O que é o valor? Onde está o valor?

2. A IDEIA QUANTO AO VALOR Pensa-se que a noção de valor, frequentemente associada ao impulso comercial das rotas de navegação e da exploração dos recursos humanos e ambientais, pode ser igualmente analisada pelo impulso do conhecimento redistribuído em termos dos valores culturais e seus impactos sobre os objetos produtos do empenho humano, as pessoas e as estruturas sociais, além dos valores associados ao impacto humano sobre o ambiente medido pelos reflexos sobre a paisagem em termos territoriais e os reflexos sobre as estruturas materiais modificadas pela intervenção humana e observadas, por exemplo, nos sistemas biológicos animais e vegetais. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, HOUAISS, confere a seguinte descrição à palavra “valor” 1: Quadro 1 – Substantivo masculino “valor”

1

Recebimento ou paga em bens, serviços ou dinheiro por algo trocado.

1.1

2

Quantidade monetária equivalente a uma mercadoria, em função de sua capacidade de ser negociada no mercado; preço.

Preço alto, elevado.

1

HOUAISS, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, acessado em sua versão Beta eletrônica, em 28 de janeiro de 2013, disponível para assinantes do Universo On-Line (UOL) no endereço http://www.houaiss.uol.com.br.

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3

Economia: qualidade que confere a um objeto material a natureza de bem econômico, em decorrência de satisfazer necessidades humanas e ser trocável por outros bens.

4

Economia: medida variável de importância que se atribui a um objeto ou serviço necessário aos desígnios humanos e que, embora condicione o seu preço monetário, freq. não lhe é idêntico.

5

Determinação quantitativa obtida através de cálculo ou mensuração; número, dígito.

6

Qualidade humana de natureza física, intelectual ou moral, que desperta admiração ou respeito.

6.1

Ausência completa de medo; valentia, coragem, intrepidez.

6.2

Qualidade excepcional; talento, habilidade, mestria.

6.3

Resignação heroica; paciência.

7

Capacidade de satisfazer necessidades; utilidade, préstimo, serventia.

8

Qualidade do que apresenta validade, do que é legítimo, válido, veraz.

9

Qualidade do que alcança a excelência, do que obtém primazia ou dignidade superior.

10 Importância, destaque em uma escala comparativa.

10.1

Importância estabelecida de maneira puramente arbitrária, através de convenção preestabelecida.

11

Reconhecimento, de um ponto de vista afetivo, da importância ou da necessidade (de algo ou alguém).

12

Por extensão de sentido: conjunto de traços culturais, ideológicos ou institucionais, definidos de maneira sistemática ou em sua coerência interna.

13

Artes plásticas: grau de intensidade luminosa de uma cor, em escala de tonalidades que vai do branco ao preto.

14 Economia: poder aquisitivo variável (de uma moeda nacional, uma ação, um título etc.).

15

Economia: papel estampado, com valor financeiro representativo (papel-moeda, letra de câmbio, ação, título etc.), sendo mais usual no plural.

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16

Ética: conjunto de princípios ou normas que, por corporificar um ideal de perfeição ou plenitude moral, deve ser buscado pelos seres humanos.

Ética: no pensamento moderno de tendência relativista, cada um dos preceitos ou princípios 17 igualmente passíveis de guiar a ação humana, na suposição da existência de uma pluralidade incontornável de padrões éticos e da ausência de um Bem absoluto ou universalmente válido. 18 Jurídico: força que tem um ato jurídico de produzir determinado efeito. Linguística: segundo Ferdinand de Saussure (1857-1913), o conjunto de relações e oposições que determinam o papel das unidades da língua no sistema linguístico, independentemente da 19 substância que lhes serve de suporte [Assim, temos o fonema /t/ cujo valor no português é o de opor palavras distinguindo tapa e papa, tia e pia, p.ex., apesar da diferença fonética existente entre [t] em tapa e [tch] em tia em certos dialetos.]. 20

Música: tempo relativo de duração de uma nota musical (valor positivo) ou de uma pausa (valor negativo).

21 Música: relação de uma figura de duração com outras. Fonte: Grande Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, versão Beta eletrônica, 2013.

Quadro 2 – Substantivo masculino plural “valores”

1

(1899) classificações apreciativas dos resultados obtidos por aluno ou candidato através dos resultados de trabalhos escolares, testes, provas, avaliações etc.

2

Bens, haveres, riquezas.

3

Direito comercial: quaisquer títulos de crédito, públicos ou particulares, e outros bens disponíveis representativos de dinheiro, que são livremente negociáveis na bolsa de fundos públicos.

Fonte: Grande Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, versão Beta eletrônica, 2013.

A associação da palavra valor ao materialismo das trocas comerciais, ao comércio de bens e serviços e à teoria econômica é corriqueira e quase imediata. HOUAISS reproduz essa tendência logo no início de suas explanações quanto ao valor, principiando quantidades e relativizando qualidades. Porém, até mesmo esse tipo de associação remete ao sentido histórico mais conhecido da palavra valor que, segundo HOUAISS, na língua portuguesa, tem origem no século XIII e associa-se ao latim romano “valore”, frequentemente usado como sinônimo de coragem e intrepidez (vide Quadro 1, itens 6, 6.1, 6.2 e 6.3). Durante esse período, o ímpeto da expansão europeia por meio das cruzadas, relativizada em seus valores religiosos, quantificava-se no transporte de bens

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comercializáveis, sejam humanos, vegetais ou objetos materiais, e no domínio territorial para o estabelecimento de postos avançados e para estabilização de rotas comerciais. Não há como negar, portanto, que a noção de valor tem serventia ao ímpeto exploratório orientado para conquista, certamente, mas, igualmente, para os avanços de consciência incorporados no conhecimento do outro, no intercâmbio cultural e no aprimoramento técnicocientífico. O empreendimento exploratório valora-se, transporta e transforma o valor, atribuindo-lhe quantidades e qualidades. Talvez, seja com base em seus princípios éticos e morais, ou por meio da significação atribuída por aqueles que conquistam, a noção de valor possa servir de fundamento para a comparação dos reflexos da passagem humana em territórios societários não originários. Do tom musical, onde há valoração da pausa tanto quanto de outras figuras de duração, assinalando tendências positivas e negativas, passando pelas noções de direito comercial, quando pareceres ou títulos públicos e privados distinguem-se por sua representação social imbuída da força de fazer ser, chegando às escalas representativas do valor e da valoração ao longo de um período pré-determinado, algumas vezes até mesmo em oposição à percepção ética, que enfatiza tendências relativistas ou esmera-se em realçar as qualidades da norma e de princípios morais, estendendo-se ao reconhecimento afetivo do grau de importância ou necessidade, geralmente vinculado ao outro, igual em natureza, culminando em um “conjunto de traços culturais, ideológicos ou institucionais, definidos de maneira sistemática ou em sua coerência interna” (HOUAISS, 2013, v. web). São muitas as possíveis representações do valor. A tentativa de delimitá-lo em “ideia” é por si só um desafio. O problema, nesse caso, está em como, quando e onde começar. O enfoque é um fator fundamental, tendo em vista sua relação direta com os possíveis resultados. Como, então, avaliar a passagem dos povos portugueses pelo Oriente se o valor dessa passagem já encontra-se representado nas ilustrações heroicas do descobrimento, nas narrativas do Império, na logística dos postos de passagem e de transporte de bens, na vergonha da escravidão e na divisão entre autóctones e quase-autóctones, divisão esta cruelmente construída segundo percepções puramente valorativas da realidade? Talvez seja melhor iniciar com a “percepção de valor” dos povos nativos e dos exploradores portugueses, antes da sua chegada, durante sua presença e após sua passagem. Porém, este é um empreendimento analítico de difícil realização, tendo em vista a dependência da existência de fontes de informações válidas e reconhecidas, tanto dos povos autóctones quanto dos portugueses e seus descendentes. Ainda assim, o questionamento “O que é o valor?” permanece válido como constructo para avaliação da passagem portuguesa no Oriente. Parece uma questão simples, mas grande parte das narrativas históricas assumem ou atribuem posições puramente valorativas quanto aos “objetos” humanos e materiais sem sequer conjecturar o porquê o fazem e em que medida assumem tais posições. A presente proposta de estudo oferece uma “fórmula conceitual”, descrita logo no início, que pode ser esquematicamente representada da seguinte maneira:

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Esquema 1 – Ilustração da fórmula conceitual

O QUE É O VALOR?

ONDE ESTÁ O VALOR?

LINHA DO TEMPO

ANTES DA PRESENÇA PORTUGUESA

DURANTE A PRESENÇA PORTUGUESA

CULTURA

APÓS A PRESENÇA PORTUGUESA

AMBIENTE REFLEXOS NA PAISAGEM TERRITORIAL

OBJETOS PESSOAS

ESTRUTURAS SOCIAIS

REFLEXOS NA PAISAGEM ANIMAL E VEGETAL

REFLEXOS NA PAISAGEM ESTRUTURAL

Fonte: Elaborado pela autora, 2013.

Estruturas de valor variam ao longo do tempo, geralmente em função da percepção e da intervenção humana. As sociedades autóctones do Oriente, assim como as sociedades europeias como a portuguesa, possuem um núcleo organizacional construído em torno de noções de valor, observadas, por exemplo, nas hierarquias funcionais e organizacionais que marcam os instrumentos de governo e os micro-conjuntos sociais como as famílias. É importante lembrar que as variações temporais são geralmente descritas nas reconstruções históricas, porém é incomum encontrar a noção ou a percepção do valor como um marco delineador para as análises. Argumenta-se que os aspectos valorativos, quantitativos e qualitativos, do empreendimento humano da descoberta, da fixação em território não-originário e, posteriormente, da secção administrativa pode ser reorganizado em torno da ideia quanto ao valor. Prioriza-se, nesse contexto, o conjunto das edificações humanas em termos culturais, tais como as construções valorativas da

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pessoa, os objetos que a adornam e que servem para sua instrumentalização e valoração, além das estruturas sociais seguramente associadas à ideia quanto ao valor. Conjuntos humanos organizados em sociedades tendem a constituir sistemas complexos conectados ao ambiente por meio da ocupação de espaços afetos a sua presença, modificando-os conforme seu domínio técnico e instrumental disponível. Esse processo deixa rastros, ou seja, pode ser apreendido por meio dos reflexos humanos na paisagem encontrados, por exemplo, em referências quanto ao território, às estruturas materiais (represas, pontes, edificações habitacionais, entre outras) e aos sistemas biológicos animal e vegetal, transformados pela vontade humana. O conjunto de referências ilustrado pelo “Esquema – 1”, bem como seu desencadeamento em termos de associação e distribuição, não têm por objetivo constituir, neste momento, relações que marcam correlação ou funções de causa e efeito. Trata-se apenas de uma tentativa para organizar e/ou distribuir os macro conjuntos observáveis da passagem portuguesa pelo Oriente com a intenção de identificar e analisar sua ponderação valorativa ao longo do tempo (antes, durante e após a presença portuguesa). Cultura e paisagem são elementos contextuais de convergência que balizam não apenas a ideia quanto ao valor, como possibilitam sua construção conceitual e teórica. Em termos conceituais, a fórmula de convergência pressupõe a centralidade humana na concepção quanto ao valor, bem como os ganhos concretos e relativos emanados a partir da intervenção humana, seja ela intencional ou não. Considerando esses aspectos, a definição proposta por HOUAISS (2013) ao substantivo masculino “valor” reforça o sentido conceitual da fórmula proposta ao defini-lo a partir dos seus traços culturais (vide Quadro 1, item 12). HOUAISS (2013) aprofunda ainda mais o sentido humano da ideia quanto ao valor ao incorporá-lo ao conjunto das suas necessidades e capacidade de servir (vide Quadro 1, item 7). Logo, cultura e paisagem são constructos fundamentalmente humanos que podem ser ilustrados da seguinte maneira: Figura 1 – Cultura, valor e ambiente Paisagem territorial

Objetos

IDÉIA quanto ao VALOR

Pessoas Estruturas

Paisagem estrutural Paisagem

S i i

animal e CULTURA

ANTES

AMBIENTE

DURANTE

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APÓS

Fonte: Elaborada pela autora, 2013.

Enquanto o ambiente e seus conjuntos sistêmicos são mais facilmente apreendidos, a cultura é um constructo ainda mais complexo porque lida com a percepção de quem a subtrai do meio social e com as variações ocasionadas pela intervenção humana e pelas circunstâncias ambientais, temporais e sociais. Um conceito tentativo de cultura precisa lidar com as complexidades que o ambiente provê, além das suscetibilidades individuais e coletivas, fatalmente condicionadas por humanidade. De maneira geral, um constructo é algo perceptível e operacionalizável e que tem intensidade cognitiva, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Jahoda (2012), em um artigo de revisão quanto às recentes definições e reflexões críticas a respeito do “conceito de cultura”, observa que apesar de existirem muitas concepções distribuídas entre os mais diversos ramos científicos, nenhuma constitui ou serve de alicerce para uma verdadeira teoria da cultura. Porém, apesar do autor preocupar-se em distinguir definições que realcem o valor interno, ou seja, inerente ao ser humano, e o valor externo, qual seja, aquele de origem ambiental que influencia o comportamento humano, interessa-nos justamente a convergência entre o bem cultural interno e o bem cultural externo na conformação da ideia quanto ao valor, além das ponderações valorativas quanto aos respectivos bens culturais interno e externo (nossa autoria, 2013). Argumenta-se, nesse contexto, que a implicação mútua entre humanidade e ambiente é um forte fator de condicionamento comportamental, algo que pode ser aproveitado na pesquisa a ser realizada. Preliminarmente, a concepção quanto à cultura definida por Hong (2009) e discutida por Jahoda (2012, p. 4) pode servir de parâmetro para pesquisas subsequentes em termos da valoração interna dos bens culturais. Hong pensa a cultura como: ...redes de conhecimento que consistem em rotinas do pensamento, dos sentimentos e das interações aprendidas com outras pessoas, assim como o corpus de asserções substantivas e ideias a respeito do mundo... A cultura é compartilhada..., entre uma coleção de indivíduos interconectados, os quais frequentemente são demarcados por meio da raça, da etnia, ou da nacionalidade; b) algo externalizado através de importantes símbolos, artefatos, construções sociais e instituições sociais (por exemplo, ícones culturais, anúncios e jornalismo); c) algo usado para constituir o alicerce comum para comunicação entre membros; d) algo transmitido de uma geração para a próxima...; e) algo que passa por modificação contínua... (tradução nossa)2.

A definição proposta por Hong (2009) traduz a cultura em termos das suas consequências afetivas, cognitivas e comportamentais. Outras definições como as apresentadas por Cole e Parker (2011) são operacionalizadas por meio das suas consequências ou valores externos. Para os autores, a cultura corresponde:

2

…culture as networks of knowledge consisting of learned routines of thinking, feeling, and interacting with other people, as well as a corpus of substantive assertions and ideas about aspects of the world… it is… shared…, among a collection of interconnected individuals who are often demarcated by race, ethnicity, or nationality; (b) externalized by rich symbols, artefacts, social constructions, and social institutions (e.g. cultural icons, advertisements and news media); (c) used to form the common ground for communication among members; (d) transmitted from one generation to the next…; (e) undergoing continuous modifications… (Hong apud Jahoda, 2012).

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...a um ambiente dinamicamente variável que é transformado pelos artefatos criados por gerações antecedentes... um artefato é um aspecto do mundo material que tem sido modificado ao longo da história da sua incorporação dentro do pensamento e da ação humana orientada para finalidades... um artefato é simultaneamente ideal (conceitual) e material. É material na medida em que está incorporado em forma física [materialidade], tanto na morfologia de uma palavra dita, escrita ou sinalizada, um ritual ou criação artística, quanto em um objeto sólido como uma caneta. É ideal na medida em que essa forma material tem sito moldada pela participação histórica em (bem sucedidas, adaptáveis) atividades humanas... cultura pode ser vista como o meio do desenvolvimento humano que [prepara as pessoas] para interação com o mundo (tradução nossa) 3.

Ambas definições quanto à cultura incorporam ponderações que ora valorizam a consciência humana em suas ações e interações, ora relativizam suas experiências em termos dos aspectos valorativos acumulados ao longo do tempo e emanados a partir do ambiente. Tal conceitualização vem ao encontro dos argumentos apresentados e da fórmula conceitual proposta e, como tal, serve de alicerce para a pesquisa quanto ao valor da passagem portuguesa pelo Oriente. Todavia, além da delimitação conceitual e do tipo de observação a ser realizada, resta agora situar o caminho da passagem portuguesa. Onde está o valor? Será que a sincronia com a noção de cultura permite situar a ideia quanto ao valor com o local da sua emanação? Ou, tendo em vista os aspectos afetivos e sencientes associados à percepção humana, cabe primeiro realçar a intenção do empreendimento valorativo? Talvez o valor esteja em tudo aquilo que é humano, até mesmo nas contradições inerentes à exploração do ambiente desconhecido ou do próximo, igual em natureza. Talvez, ainda, a noção de valor esteja associada às causas da ambição exploratória. Estas são algumas das questões que poderão ser respondidas com a consecução da pesquisa subsequente a esta proposta de estudo. A fórmula conceitual descrita anteriormente permite a comparação da passagem portuguesa pelo Oriente, tendo em vista a convergência de cultura e ambiente com a noção de valor. O viés comparativo, nesse caso, é extremamente proveitoso e relevante para identificação de nuances e ponderações do empreendimento exploratório português ao longo tempo. A paridade comparativa dar-se justamente pela sobreposição dos critérios conceituais já assinalados em observância das transformações quanto à noção de valor a partir da passagem portuguesa em ambientes tão culturalmente distintos quanto os encontrados em Goa, Málaca, Macau, Timor e Japão. Pensa-se, nesse caso, que a variação das diferenças é tão ou mais importante do que as possíveis semelhanças. Estruturas sociais são conjuntos complexos suscetíveis à modificação, transformando-se ainda mais aceleradamente quando em contato com conjuntos estruturais e valorativos de outras sociedades. Assim sendo, tendo em vista os parâmetros assinalados, propõe-se que a passagem portuguesa pelo Oriente pode orienta-se com base na seguinte ilustração: 3

[We] think of culture as a dynamically changing environment that is transformed by the artefacts created by prior generations... an artefact is an aspect of the material world that has been modified over the history of its incorporation into goal-directed human thought and action... an artefact is simultaneously ideal (conceptual) and material. It is material in that it is embodied in physical form, whether in the morphology of a spoken, written, or signed word, a ritual, or an artistic creation, or as a solid object like a pencil. It is ideal in that this material form has been shaped by historical participation in (successful, adaptive) human activities . . . culture can be seen as the medium of human development which [prepares humans] for interaction with the world (Cole e Parker apud Jahoda, 2012).

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Esquema 2 – Delimitação comparativa

GOA

MACAU

MALACA

JAPÃO

TIMOR

Fonte: Elaborado pela autora, 2013.

Tendo em vista a delimitação proposta, considera-se que a fórmula conceitual prevê a alternância valorativa ao longo do tempo observada, comparativamente, em Goa, Málaca, Macau, Timor e Japão. Analiticamente, o estudo pode orientar-se com base no seguinte esquema:

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Pessoas

Estruturas Sociais

Cultura

Paisagem Territorial

Japão

Paisagem Estrutural

Ambiente

Animal

Vegetal

Paisagem

Objetos

Pessoas

Cultura

Estruturas Sociais

Paisagem Territorial

Macau

Paisagem Estrutural

Ambiente

Animal

Vegetal

Paisagem

Esquema 3 – Variação do valor ao longo do tempo Presença Portuguesa

Antes

47 Durante Após

48

Estruturas Sociais

Cultura

Paisagem Territorial

Paisagem Estrutural

Ambiente

Malaca

Animal

Vegetal

Paisagem

Objetos

Pessoas

Cultura

Estruturas Sociais

Paisagem Territorial

Timor

Paisagem Estrutural

Ambiente

Animal

Vegetal

Paisagem

Objetos

Pessoas

Vegetal

Objetos

Animal Paisagem Estrutural Pessoas Objetos

Cultura

Estruturas Sociais

Goa

Paisagem Territorial

Ambiente

Paisagem

VALOR

LINHA DO TEMPO Fonte: Elaborado pela autora, 2013.

Localizada na costa Ocidental da Índia, Goa serviu como base estratégica para a expansão comercial portuguesa do século XVI, permanecendo como sua província até 1961 quando as forças armadas indianas retomaram o controle do território. Goa é um dos estados indianos mais ricos, possuindo também índice de desenvolvimento humano superior à média indiana. Já Malaca, localizada no litoral sul da Malásia, foi outra importante base portuguesa de expansão das chamadas Índias Orientais. Porém, com a dissolução da colônia, Malaca tornou-se parte da União Malaia. O domínio português também expandiu-se para o Timor, Japão e Macau.

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O Timor foi colônia até 1975 quando, no auge da Revolução dos Cravos em Portugal, sob pressão da comunidade internacional, inclusive da própria Organização das Nações Unidas (ONU), o Timor Português declarou sua independência, sendo posteriormente invadido e anexado pela Indonésia. Já a chegada dos portugueses ao Japão data de 1543 com forte presença de missionários jesuítas que se fixaram na região de Nagasaki. Os portugueses foram decisivos para o processo de unificação japonês com o comércio e o fornecimento de armas de fogo. Todavia, acabaram sendo expulsos e perseguidos. Foi a partir do Japão que os portugueses partiram para o domínio de Macau que permaneceu sendo um importante entreposto comercial lusitano até dezembro de 1999, quando voltou à soberania chinesa. Além das atividades comerciais tradicionais, a economia de Macau destaca-se pelo acentuado desenvolvimento dos setores turístico e de jogos com a presença de grandes e importantes cassinos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A escolha dos casos a serem analisados baseia-se na sua disposição estratégica (presença de valores e criação de rotas seguras e acessíveis) e na relevância histórico-cultural da passagem portuguesa pelo Oriente. De fato, são raros no Brasil os estudos que analisam comparativamente a trajetória da expansão portuguesa em busca do conhecimento e de caminhos mais seguros para o transporte de valores, além da subsequente fixação nos territórios conquistados. Porém, é importante observar que a maior parte desses estudos, como o realizado por Ramos e Quintela (2003), fixam-se no discurso colonialista e pós-colonialista, priorizando o sistema político internacional e negligenciando sua raiz sociocultural, segundo a qual ponderações valorativas da realidade encobrem a existência de sistemas de dominação mais sutis, afetos ao ideário do progresso e às disposições anticolonialistas. O principal valor em questão refere-se à noção de soberania, curiosamente reconhecida, ao mesmo tempo, como fator de igualdade e de desigualdade entre domínios territoriais contínuos e não contínuos. A soberania é um construto político, mas sua raiz é sócio estrutural. Segundo Biersteker e Weber (1996, p. 3), em “State Sovereignty as Social Construct”, o sistema estatal moderno não é mais baseado em um princípio de soberania atemporal, mas na produção de uma concepção normativa que conecta autoridade, território, população (sociedade, nação) e o reconhecimento da soberania de uma maneira singular e em um determinado local, no caso, o Estado. No entanto, o domínio sociocultural da noção de soberania nem sempre fundamenta os valores da igualdade e da solidariedade, perpetuando hierarquias funcionais onde Impérios coloniais como o espanhol e o português deram lugar a Impérios culturais como o britânico e o estadunidense (nossa autoria, 2013). A análise da expansão marítima portuguesa em direção ao Oriente, sob a perspectiva do valor, pode na realidade vir a demonstrar a resiliência de componentes culturais e ambientais da presença portuguesa como parte da identidade-nação dos espaços antes conquistados. Ou seja, talvez seja possível falar na existência de um Império cultural português. Desde as grandes guerras mundiais, teses culturais, por terem ao mesmo tempo servido e suscitado nacionalismos extremistas 50

de toda espécie, têm sido recebidas com ceticismo pela comunidade acadêmica de maneira geral. No entanto, a convergência valorativa entre os anseios e o comportamento das populações locais com fontes singulares de emanação cultural, seja portuguesa e/ou brasileira, pode resultar no que Hardt e Negri (2001, p. 14-15) descrevem como “fenômeno da multidão”, qual seja, um corpus composto por redes de relações sociais, políticas e econômicas [e por que não culturais] capaz de ao mesmo tempo sustentar ou se contrapor ao Império com base no biopoder e no pleno exercício da biopolítica. Tanto o biopoder quanto a biopolítica sustentam-se no pensamento moderno, em grande parte tributário das concepções desenvolvidas por Foucault, que estrutura a vivência humana a partir de sistemas disciplinares que favorecem o exercício do autocontrole. Hardt e Negri (2001, p. 42-43) aprofundam ainda mais essa noção ao conceberam o poder e a política como frutos da consciência humana e da sua capacidade de se autogovernar. De acordo com os autores, o biopoder é a forma de poder que regula a vida social por dentro, acompanhando-a, interpretando-a, absorvendo-a e a rearticulando. O biopoder, portanto, se refere a uma situação na qual o que está diretamente em jogo no poder é a produção e a reprodução da própria vida (Hardt e Negri, 2001, p. 43). O Império, segundo essa perspectiva, é uma forma evoluída de organização social onde o controle e o governo inicia-se a partir da mente e dos anseios de cada indivíduo. A historicidade moderna, no entanto, por motivos que poderão ser explicitados ao longo da pesquisa, contraditoriamente às noções defendidas por Hardt e Negri (2001), associa a noção de Império com o empreendimento exploratório da conquista territorial, com a imposição da vontade e com o derramamento de sangue. Não há como negar que a exacerbação do poder em opressão à vontade do outro tem como consequência a oposição por meio até mesmo da violência. Porém, a própria história demonstra que tamanhas atrocidades independem da forma organizacional das estruturas sociais. Talvez, quando conduzido pela vontade do povo, as forças criadoras da multidão possam sustentar uma organização política alternativa, na forma de um Contra império, capaz de arregimentar fluxos políticos e intercâmbios globais em um projeto de “paz perpétua e universal fora da história” (Hardt e Negri, 2001, p. 15). A presente proposta de estudo, no entanto, sustenta apenas a importância da “ideia quanto ao valor” como veículo condutor de uma revisão sociocultural da passagem portuguesa pelo Oriente. A maior parte dos discursos coloniais e pós-coloniais, apesar de assumirem juízos de valor, não explicitam essa tendência e, ao fazê-lo, renegam um componente importante do empreendimento exploratório que motiva descobertas e impõe desafios. O estudo ora a ser realizado precisará efetuar pesquisas de campo para observação in loco das influências portuguesas sobre a população e a paisagem local, além de consultar fontes primárias, dentre as quais, os acervos da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), fundada em 1875. Os acervos portugueses, além de dados cartográficos e relatórios de bordo, são extremamente ricos em imagens e objetos colhidos ao longo das expedições portuguesas. Adicionalmente, assim que forem localizados, os acervos presentes em Goa, Málaca, Macau, Timor e Japão também poderão ser consultados. Por fim, espera-se que este artigo corrobore para obtenção do acesso às fontes primárias e para o financiamento da pesquisa.

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4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bonura Jr., C. J. The oculted geopolitics of nations and culture: situating political culturewithin the construction of geopolitical ontologies”. In: Tuathail, G. O. and Dalby, S. (ed.). Rethinking geopolitics. London: Routledge, 1998, p. 86-104. Hardt, M.; Negri, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 3ª edição, 2001. HOUAISS, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, versão Beta eletrônica. Disponível para assinantes do Universo On-Line (UOL) no endereço http://www.houaiss.uol.com.br, 2013. Jahoda, G. ‘Critical reflections on some recent definitions of “culture” ’. Culture & Psychology, United Kingdom, n. 18, September, 2012, p. 289-302. Moreira, A. Teoria das Relações Internacionais. Almedina: Coimbra, 3ª edição, 1999. Ramos, D. S.; Quintela, A. C. O Brasil e o Processo de Descolonização Portuguesa na Ásia: Goa, Macau e Timor Leste. In: Guimarães, L. L. Ásia – América Latina – Brasil: a construção de parcerias. Brasília: NEÁSIA, Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM-UnB), 2003, p. 281-311.

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Artigo: O Estado em Desenvolvimento Brasília – 6 de março de 2013 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

RESUMO ESTENDIDO (cerca de 500 palavras)

Os estudos quanto ao desenvolvimento frequentemente versam sobre as possibilidades reais de incremento das estruturas sociais via crescimento econômico em concomitância com a melhoria nas condições de vida da população e a manutenção de um ambiente político que contribua para o progresso de uma dada comunidade, de um país ou mesmo de uma região. Porém, as implicações quanto ao desenvolvimento podem ser ainda mais amplas, principalmente quando considerada a sociedade internacional. Percebe-se que a narrativa geopolítica que transfere para os Estados as características organizacionais próprias das comunidades humanas tem sua neutralidade questionável quando ressalvado o fator do desenvolvimento. Estados e sistemas de Estados não necessariamente organizam-se em sociedades igualitárias e inclusivas. Propõe-se, então, uma análise crítica do Estado em desenvolvimento. Narrativas tradicionais, como as concebidas pela conclamada escola inglesa, aqui representada pelo estudo de Adam Watson (1992) quanto à chamada “evolução da sociedade internacional”, conferem uma duvidosa estabilidade teórica, além de uma falsa percepção de continuidade a partir da história, com clara preponderância de moldes metodológicos e institucionais europeus. Tais análises concebem a emergência do Estado-nação e a suposta evolução dos sistemas de Estados a partir do prisma da hegemonia, sócio-política e econômica. Tem-se, dessa maneira, um lapso explicativo quanto à percepção da sociedade em movimento voltado para a sujeição à reprodução de padrões de desigualdade. Pensar o desenvolvimento, então, implica em revisar a forma como o Estado em si é concebido. Conforme explica Preston (1996), a promoção do desenvolvimento requer a modificação dos vínculos causais que determinam a inercia social do subdesenvolvimento. E se a forma como concebemos o Estado for um elemento central desse processo? Observa-se, assim, que o tema do desenvolvimento não precisa ficar restrito às políticas de Estado. Talvez, fatores de continuidade inerentes à forma como concebemos os Estados podem estar igualmente relacionados à perpetuação estrutural da desigualdade. Tal movimento tem negligenciado o papel das próprias sociedades como proponentes da “evolução” ordenada dos sistemas sociais (Preston, 1996), movimento este que pode caracterizar o verdadeiro desenvolvimento. Pensar o desenvolvimento, então, implica em revisar a forma como o Estado em si é concebido. No entanto, não há uma fórmula consensual que represente um caminho linear que conduza sociedades e Estados a padrões mais elevados de desenvolvimento. As fórmulas usuais, conforme ressalta Harvey (1989), são marcadas pelo domínio espacial do mercado que, balizado por um dispositivo sistêmico de crises, garante e perpetua a sucessão hegemônica e sua “defesa disfuncional de interesses escusos”. Diante do exposto, realiza-se, primeiramente, uma 53

apresentação crítica da concepção quanto ao desenvolvimento histórico-social do Estado exemplificada no pensamento de Watson (1992). Em seguida, esboçam-se perspectivas alternativas que denunciam os parâmetros reprodutores de desigualdade intrínsecos a esse tipo de abordagem. Por fim, conclui-se com uma reflexão crítica quanto à realidade brasileira e o domínio espacial das abordagens tradicionais quanto ao desenvolvimento.

Resumo: Os estudos quanto ao desenvolvimento frequentemente versam sobre as possibilidades reais de incremento das estruturas sociais via crescimento econômico em concomitância com a melhoria nas condições de vida da população e a manutenção de um ambiente político que contribua para o progresso de uma dada comunidade. Porém, as implicações quanto ao desenvolvimento podem ser ainda mais amplas, principalmente quando considerada a sociedade internacional. Percebe-se que a narrativa geopolítica que transfere para os Estados as características organizacionais próprias das comunidades humanas tem sua neutralidade questionável quando ressalvado o fator do desenvolvimento. Conforme ressalta Preston (1996), é preciso que os vínculos causais que determinam a inércia do subdesenvolvimento sejam modificados. Pensar o desenvolvimento, então, implica em revisar a forma como o Estado em si é concebido. As narrativas tradicionais, aqui representadas pelo estudo de Watson (1992) quanto à chamada “evolução da sociedade internacional”, conferem uma duvidosa estabilidade teórica, além de uma falsa percepção de continuidade a partir da história, transformando os Estados em polos para sucessão hegemônica. Pensa-se, então, que o tema do desenvolvimento não precisa ficar restrito às políticas de Estado. Realiza-se, no lugar, uma análise crítica da sociedade em movimento e do próprio Estado em desenvolvimento.

Palavras-chave: Estado. Desenvolvimento. Hegemonia. Sucessão hegemônica.

1. INTRODUÇÃO Teorias de desenvolvimento nem sempre concebem o Estado em desenvolvimento. Tem-se, nesse contexto, um lapso explicativo quanto à percepção da sociedade em movimento voltado para a sujeição à reprodução de padrões de desigualdade. Exemplos desse tipo de pensamento podem ser encontrados em teorias como as de Adam Watson, um legítimo representante da conclamada escola inglesa e discípulo de Bull, que sujeita a suposta evolução da sociedade internacional à sucessão de hegemonias sócio-políticas e econômicas ao longo do tempo como uma alternativa à “ordem imperial”. Há alternativas para esse tipo de pensamento? Acredita-se que sim. O presente artigo, então, organiza-se na apresentação crítica da concepção quanto ao desenvolvimento histórico-social do Estado exemplificada no pensamento de Watson (1992), para em seguida esboçar perspectivas alternativas que denunciam os parâmetros reprodutores de desigualdade intrínsecos a esse tipo de abordagem. Conclui-se com uma reflexão quanto à realidade brasileira e o domínio espacial das reflexões tradicionais quanto ao desenvolvimento.

2. A EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL SEGUNDO WATSON A evolução da sociedade internacional proposta por Watson (1992) obedece a uma lógica singular onde há a descrição e comparação de práticas e formas de governo dos sistemas antigos, de 54

modo a identificar um caminho “histórico-evolutivo” da constituição e do desenvolvimento do sistema internacional contemporâneo. De acordo com o autor, na Idade Média, a Europa Ocidental traduzia-se na Cristandade, a qual determinava conceitos e práticas de governos, bem como atitudes diante da paz e da guerra. No entanto, a república e a concentração de poder acabaram modificando as relações internacionais do período, uma vez que essas mudanças induziram a criação de uma diplomacia permanente e a necessidade do equilíbrio de poderes. Diante desse processo, a Cristandade fragmentou-se em Estados territoriais ao término da Renascença e da Reforma religiosa. Os reis, com autoridade fortalecida, passaram a ignorar a autoridade central, o Papa, constituindo uma associação ante hegemônica em defesa das múltiplas independências. O século XVII viu a legitimação da sociedade de Estados independentes através da realização do Congresso de Westphalia (1648), primeiro grande foro internacional dos tempos modernos que consagrou a autoridade estatal sobre seus assuntos internos e externos em contraposição à ordem imperial. Segundo Watson (1992), a ordem derivada de Westphalia, fruto de intensas negociações, legitimava uma sociedade de Estados soberanos, enaltecia a associação e a aliança, mas ignorava a existência de hierarquias e hegemonias entre os Estados e a mobilidade do equilíbrio de poderes. Logo, a propensão para hegemonia era constante, o que fez com que as potências se sucedessem em sua busca. De acordo com o autor, os Acordos de Utrecht (1714), segundo grande foro internacional, consagraram os avanços do século XVII, abrindo para a Europa um período de ordem e progresso que se estendeu à Revolução Francesa. Porém, a emergência de Napoleão Bonaparte no interior do processo da Revolução Francesa, significou a ruptura do equilíbrio de poderes que caracterizou as relações entre os Estados europeus nos séculos XVII e XVIII. Com Napoleão, o pêndulo, oscilando entre império e independência absolutos, atingiu o ponto extremo da hegemonia, provocando a reação dos demais países, culminando com o desgaste e a queda da ordem imperial napoleônica. Já no século XIX, as potências europeias reunidas no Congresso de Viena (1815), terceiro grande foro internacional, decidiram que não havia mais margem para o “sistema de equilíbrio de múltiplas independências”. O objetivo era a formulação de um sistema, conhecido como “hegemonia coletiva”, que promoveria o entendimento e a colaboração entre as grandes potências, excluindo tanto a imposição unilateral da força quanto a prevalência das múltiplas independências. O sistema de Estados europeu ampliou-se mundialmente a partir do Concerto do século XIX, mas ainda permaneceu centrado na Europa. Porém, antes da Primeira Guerra Mundial esse sistema passou a sofrer intensas pressões de desenvolvimento e crescimento do poder de suas potências líderes. Tal fator, combinado com tentativas equivocadas de arranjo no equilíbrio de poderes, resultou no colapso do sistema europeu com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Contudo, a experiência europeia forneceu instrumentos para a constituição de uma nova ordem com espaço restrito para a liderança das antigas potências, as quais tiveram que se organizar segundo um ordenamento bipolar com o fim da Segunda Guerra. 55

A partir do momento em que se concretizou a constituição do Estado moderno no século XVII, e ao mesmo tempo em que se organizaram regras para o convívio desses atores, estava estruturada a força motora do sistema europeu: a tensão hegemonia-autonomia. Watson (1992) concebe a caracterização da sociedade europeia, da formação do Estado moderno à expansão do sistema internacional europeu, a partir das tensões sistêmicas provocas pelas potências líderes. A referência aos sistemas antigos visa enriquecer o caráter dinâmico e evolutivo da sociedade europeia, além de atestar que a natureza do convivo estatal não se procede de forma aleatória. Pelo contrário, na perspectiva de Watson (1992), a convivência dos atores estatais está inscrita em uma ordem derivada da experiência passada. Portanto, a narração da histórica em termos de uma cultura sistêmica que permite traçar práticas, valores e instituições da sociedade internacional contemporânea é a grande contribuição dos estudos do autor.

3. O CONTEXTO CONCEITUAL DA ANÁLISE DE WATSON Análises como a de Watson (1992) são muito difundidas no campo de estudo das relações internacionais, estando presentes inclusive em manuais de diplomacia. Infelizmente, de maneira geral, as teses em relações internacionais subordinam o vetor do desenvolvimento ao amplo campo dos estudos de segurança, servindo-se de conceitos e teorias das várias ciências, para identificar e legitimar padrões de comportamento de atores estatais e não-estatais que mais interessam aos atores centrais. Em “The Evolution of International Society” Watson (1992) desenvolve um estudo comprado de viés histórico, mas de caráter fortemente político, que almeja situar o sistema político europeu, o qual teria embasado a sociedade internacional que hoje conhecemos. Daí o porquê do uso do termo “evolução” como sucessor de sistemas políticos mais antigos como o macedônio, o persa, o assírio, o grego e o romano. A análise de Watson (1992) é ousada e tentadora no sentido de vislumbrar a presunção de controle e a comparabilidade entre sistemas políticos tão diversos enquanto distantes no tempo e no espaço. Segundo o autor, quando diversas comunidades políticas se reúnem e estão suficientemente envolvidas umas com as outras seu governo implica na constituição de sistemas de ordenação . As formas de organização desse sistema seriam análogas ao movimento de um pêndulo que oscila, em suas margens, entre a independência e o império absolutos. Watson (1992) propõe que os sistemas internacionais possam ser representados por categorias distribuídas segundo o tipo predominante de relações entre suas comunidades políticas, quais sejam, independência, hegemonia, dominação e império. No entanto, o autor não se ocupa em debater teórica e conceitualmente suas unidades analíticas. Apenas afirma e procura demonstrar que tais unidades encontram correspondência em exemplos históricos. De acordo com o autor, há uma tensão inevitável entre o desejo por ordem e o desejo por independência, uma vez que apesar da ordem demandar adesão voluntária e promover

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paz e prosperidade, ela reprimiria a liberdade de ação das comunidades e em particular suas regras em favor daquilo que é aceito pelo todo. De acordo com a perspectiva do autor, é preciso que a autoridade hegemônica saiba impor sua vontade. Do contrário, é possível que o exercício do poder possa suscitar o desejo de independência tornando o sistema instável e resultando em insegurança econômica e militar. Daí a razão pelo qual impérios territoriais tenham sido sucedidos por império culturais onde o exercício da autoridade é mais sutil e de difícil contestação. A tarefa do hegemon, na concepção de Watson (1992), seria justamente a de promover ordem no sistema de tal maneira que todos os seus membros observariam um equilíbrio de vantagem em aceitar a hegemonia, ou seja, o hegemon contribuiria para constituir um sistema que respondesse aos seus interesses e aos anseios e bem-estar dos “povos subordinados”. A hegemonia, segundo Watson (1992), consiste na capacidade de poder determinar a extensão externa da política dos Estados membros do sistema, enquanto os mantêm internamente independentes, ou seja, ser hegemônico implica em poder “lay down the law” ou, simplesmente, ter a capacidade de determinar as relações entre os membros de uma sociedade internacional. Há um diálogo contínuo entre a autoridade hegemônica e os demais Estados, sendo que ambos têm consciência do “equilíbrio de conveniência”. Aos suseranos cabe aceitar a hegemonia como legítima, mesmo que tacitamente. Sistemas hegemônicos no entendimento de Watson (1992) seriam fundamentalmente distintos dos sistemas imperiais por promoverem aquiescência natural e racional no lugar de exercerem dominação. A dominação reflete situações onde uma autoridade imperial exerce ingerência interna sobre os assuntos de outras comunidades, concedendo-lhes alguma autoridade sobre seus próprios assuntos sem subscrever sua identidade como Estado independente. Por fim, o império implica na administração por uma autoridade externa à comunidade, restringindo sua liberdade de ação. O processo de construção histórica do Estado e da sociedade internacional que hoje conhecemos é narrado por Watson (1992) em termos da continuidade entre o antigo e o moderno. Em outras palavras, o autor se distingue entre os analistas políticos ao transigir o antigo para o moderno na forma de um sistema organizacional que, a de despeito de reproduzir desigualdades, sustenta-se por evitar a anarquia e a dominação. O equilibro racional entre as antigas polis gregas pode ter inspirado Watson (1992) ao sustentar a sucessão hegemônica como uma alternativa a ordem imperial. Hegemonias são sistemas políticos complexos que resultam da ação estratégica de Estados capazes de impor sua vontade sobre seus iguais em natureza. Watson (1992) vê a sucessão hegemônica como um fenômeno natural de ordenação sistêmica, uma ordem civilizatória emanada a partir da Europa com seus tratados e princípios organizacionais. Segundo essa perspectiva, a transição para o moderno dá-se pela repetição do antigo representado pelo Estado-nação, misto cosmopolita de sociedades modernas e unificadas em seus anseios e projetos. Desnecessário 57

ressaltar que a unidade cosmopolita também oprime, às vezes por meio da violência, tudo o que parece divergente e diferente.

4. ESTADO E MARGINALIDADE O discurso político de Watson (1992), ao propor uma evolucionária sociedade internacional de matriz europeia cujo princípio ordenador preferencial caracteriza-se pelo equilíbrio hegemônico entre Estados capazes de “lay down the law”, configura o tipo de plataforma estrutural que Leopoldo Zea denuncia ao enunciar seus “Discursos Desde a Marginalização e a Barbárie”. De acordo com Zea (2005, p. 66), [a] Grécia, formada por numerosas cidades, polis, na defensiva umas frente às outras, projeta no logos ordenador do cosmos a ideia de organizações o suficientemente fortes, seguras e bem definidas, para evitar serem dominadas por outras. Cidades polis bem equilibradas no que diz respeito a limites e habitantes. Aristóteles mostra os limites que devem manter as cidades para preservar a segurança. As guerras do Peloponeso originam a ruptura desse equilíbrio interno do qual depende o equilíbrio externo entre as diversas polis como centros de poder, um poder que não deve ir além do âmbito que se considerava próprio.

No lugar da polis grega tem-se o Estado-nação, grande invenção da humanidade que marca a passagem da era feudal para o modernismo renascentista. A Renascença é particularmente importante para a caracterização do conceito de Estado enquanto nação. A essência desse movimento é o humanismo que marca a centralidade humana e de suas realizações em contraposição ao elo hierárquico de Deus enquanto medida de todas as coisas. A afirmação da essencialidade humana em termos das organizações sociais eclodiu com a cristandade romana abrindo espaço para o modelo absolutista de centralização do poder. Territórios deram lugar a Estados deslocando a centralidade governamental da cúria para as nações. A identidade das nações com seu território, com a cultura local e com o dinamismo de classes representativas da inovação renascentista promoveram mudanças substanciais das estruturas organizacionais ocidentais dos séculos XV e XVI. Segundo Wallerstein (2006, p. 42), as monarquias recém-criadas eram estruturas centralizadoras. Em outras palavras, a centralização foi necessária para garantir que as estruturas de poder regional pudessem ser subordinadas a autoridade de um monarca. A subordinação implica em controle e o meio pelo qual este foi exercido, de acordo com Wallerstein (2004, p. 42), foi através da criação de uma burocracia composta por agentes civis e militares. Além da burocracia, o controle das finanças e a constituição de redes de informação também foram decisivos para assegurar o controle (Wallerstein, 2004, p. 43). Ou seja, conforme lembra-nos Moreira (1999, 302), o fenômeno essencial do Estado, na observação que se confirma desde Trasímaco na República de Platão, até as investigações sucessivas de Schaeffle, Max Weber, Gaetano Mosca, Heller, Thoamas I. Cook, Catlin, Lasswell, Morgenthau e Raymond Aron, é o poder

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e, portanto, como sintetizou Duguit, uma diferenciação entre fortes e fracos, entre os que mandam e os que obedecem. Acontece que este fenômeno permanente não acontece apenas na organização social que em determinado período histórico foi chamado de Estado, porque designadamente foram períodos diferentes, com igual caracterização, a polis na Grécia, o imperium em Roma, a civitas christiana medieval.

Usando a acepção de Moreira (1999, p. 302), o Estado configura-se como uma espécie do gênero organização política das sociedades que para existir, procura um território, abrange uma população e produz um poder, variando na definição do sistema político e do regime político. Seus limites e contradições são aqueles que habitam qualquer organização social humana. Em outras palavras, onde há centralização também encontra-se marginalidade. Hoje, existem Estados em todas as regiões do planeta. Um constructo social de origem europeia finalmente foi assimilado e reconhecido como princípio organizacional entre as mais diversas nações, mas não de forma unânime. Às outras nações cabe a assimilação silenciosa e algumas vezes ruidosa entre àquelas erigidas em Estados. Porém, até mesmo Zea (2005, p. 67-69) lembra-nos que o experimento defensivo das polis gregas foi suplantado pelo movimento ofensivo de tendência imperial. O novo confunde-se com o antigo. O equilibro hegemônico preconizado por Watson (1992) é seletivo ao enfocar e escolher a polis no lugar do império. Ou seja, em última instância a alternância defensiva entre hegemons preconizado por Watson (1992) obscurece a sobreposição organizacional entre o antigo e o novo, entre a polis e o império e entre o império e a polis. Porém, o que faz um Estado? Àqueles conjuntos humanos que o habitam ou as instituições que o cercam? O Estado existe pela nação ou para a nação? O “Oxford Companion to Politics of the World” assim define o constructo estatal: Primeiro, um Estado é um conjunto de instituições que possuem meios de violência e coerção... Segundo, essas instituições em princípio controlam um território geograficamente delimitado, frequentemente definido como sociedade... Terceiro, o Estado monopoliza a elaboração de leis em seu território. Desse processo decorre a criação de uma cultura política em comum compartilhada por todos os cidadãos (Hall, 2001, p. 802, tradução nossa).

A essência organizacional contida nessa definição de Estado, aparentemente neutra, transparece a condição de pertencimento mais adequada para as estruturas sociais que desejem ser soberanamente reconhecidas como iguais. O conceito de pertencimento desloca-se do local e da nação para aquilo que pode ser amplamente replicado e difundido em termos de uma cultura organizacional. Ou seja, pensa-se em instituições, às vezes exógenas à cultura organizacional local, mas reconhecidas em termos da cultura organizacional internacional. Marginal é não ser internacional. O internacional, porém, edifica-se segundo planos organizacionais controlados por poucos Estados, conforme lembra-nos Watson (1992). Ou seja, a marginalidade é essencialmente uma condição do internacional, tendo em vista que o pertencimento não implica em governo. Logo, a

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alternativa hegemônica proposta por Watson (1992) assemelha-se mais com os antigos sistemas de susserania e vassalagem do que com o experimento moderno do Estado-nação. Para Wallerstein (2004, p. 43) a soberania, apesar de ser um princípio basilar para o sistema de Estados, é nada mais do que uma declaração de autoridade, tanto interna quanto externa, que serve a uma retórica de não interferência, principalmente nos assuntos internos de outros Estados, mas também quanto à transgressão de fronteiras. A soberania é uma qualidade a ser aspirada, mas dificilmente mantida e realizada. Historicamente, a maior parte dos Estados teve dificuldades em controlar as sociedades civis, residentes ou não em suas fronteiras, ou ainda em estabelecer seus próprios meios de monopólio quanto ao uso da força. Além disso, a segurança do Estado, aspecto fundamental das suas políticas, varia em função de fatores que muitas vezes não estão ao seu alcance e controle.

5. SUCESSÃO À HEGEMONIA O que faz um hegemon? Considera-se que há uma falsa percepção de continuidade a partir da história segundo os moldes metodológicos e institucionais europeus com consequências irremediáveis para a forma segundo a qual concebemos os Estados, congelados no tempo enquanto percebidos como polos para sucessão hegemônica. Trata-se, fundamentalmente, da perpetuação de um sistema de desigualdades e de hierarquização entre hegemons, quase hegemons e não hegemons, onde a ideia de desenvolvimento liga-se ao movimento da sucessão para hegemonia. Mas e quanto à possibilidade de coexistirem funções alternativas para os Estados que não se balizem simplesmente ou exclusivamente pela sucessão de hegemonias, mas que, diferentemente, vislumbrem múltiplas alianças para sucessão à hegemonia? A própria concepção de hegemonia enquanto sistema transmite falsas noções de neutralidade e estabilidade, além de restringir a ideia de desenvolvimento a cálculos políticos para arregimentação de poder. Trata-se do imperativo de uma ordem sistemicamente desigual de difícil contestação enquanto percebida como evolucionária e universal. Propõe-se, então, uma “involução”, onde Estados empreendedores do desenvolvimento possam fazê-lo em detrimento do sistema de hegemonias, mas a favor das sociedades, principalmente àquelas onde perduram severas deficiências socioestruturais e altos níveis de desigualdade e pobreza. Afinal, conforme explica Preston (1996), a promoção do desenvolvimento requer a modificação dos vínculos causais que determinam a inercia social do subdesenvolvimento. Todavia, a associação do desenvolvimento ao que Wallerstein (1984, p. 113) chama de “mundos econômicos”, torna essa uma tarefa extremamente complexa. Sob a égide do econômicos a promoção do desenvolvimento converteu-se em instrumental do expansionismo comercial com foco na acumulação do capital e na expansão industrial, tanto primária quanto secundária e terciária. Da acumulação primitiva à acumulação flexível, sistemas produtivos tornam-se cada vez mais

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interdependentes e independentes do voluntarismo estatal e societário. Esse “utopismo” do progresso econômico culmina com a transformação do humano em capital e da natureza em insumo. Segundo Harvey (1989, p. 147), tal movimento envolve a “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista, onde os horizontes da tomada de decisão pública e privada estreitam-se em função das possibilidades de difusão das decisões de forma simultânea e em espaços cada vez mais amplos e diversificados. Tais espaços primam por uma suposta homogeneidade institucional e cultural, porém são segmentados e hierarquizados. O utopismo, nesse contexto, abastece a crença necessária ao progresso e, como tal, fornece concretude a um ideal de desenvolvimento fundamentalmente apartado de justiça enquanto sistema reprodutor de desigualdades. As realidades globais do sistema de Estados capitalista, então, são verdadeiramente utopistas, pois fundamentam-se em parâmetros insustentáveis de uso do trabalho, dos recursos naturais e dos sistemas políticos. O utopismo implica no que Wallerstein (1984, p. 103) chama de “dominant ideology of world social science”. Como consequência, no âmbito dessa visão dominante, ainda nos dizeres do autor, o pensamento quanto ao desenvolvimento humano passou a apoiar-se em uma controversa divisão da unidade analítica, qual seja, a de que o Estado existe apartado da sociedade e vice-versa. Nas palavras de Wallerstein (1984, p. 104), … in general, the state represented what was, and was not perfect, and society represented the force that was pushing toward the perfectibility of the state.

Em tempos, esse imaginário teria sido invertido, mas isso não é relevante para Wallerstein. O que é, de fato, relevante é a presunção de “controle” que fundamenta o pensamento social moderno e que, de acordo com autor, obteve ascendência a partir da Revolução Francesa e que transcreve para a sociedade pressupostos das ciências naturais, tais como o de que os fenômenos sociais compartam-se de forma previsível (ou, ao menos, de forma analisável) e que, portanto, estariam sujeitos à intervenção e manipulação (Wallerstein, 1984, p. 103). Todavia, o Estado em desenvolvimento carece de possibilidades reais de inovação enquanto isolado analiticamente da sociedade. O contrapeso de uma economia apolítica e associal reforça o controle pelo mercado e seus circuitos de alimentação financeira perpetuando estados de subdesenvolvimento. A ascendência da sociedade, então, é benéfica para contrapor a falsa dicotomia entre o capital e o trabalho que alimenta liberalismos e marxismos de toda espécie. Mas qual seria o papel do Estado? Há um papel para o Estado? Pensa-se em um Estado mediador, mas também gestor, regulador e interventor quando os conflitos e as discrepâncias socioestruturais, tanto no âmbito doméstico quanto no domínio externo, assim o demandarem. Porém, não há uma fórmula homogênea e hegemônica que represente um caminho linear que conduza sociedades e Estados a padrões mais elevados de desenvolvimento. As fórmulas usuais, conforme ressalta Harvey (1989, p. 141-172), são marcadas pelo domínio espacial do mercado que, balizado por um dispositivo sistêmico de crises, garante e perpetua a sucessão 61

hegemônica e sua “defesa disfuncional de interesses escusos”, os quais comprometem os circuitos produtivos e as relações de trabalho ao induzirem necessidades incompatíveis e inconsistentes com a vida em sociedade e os recursos provenientes da natureza. Em outras palavras, o desenvolvimento não se reduz à transição de economias de escala para economias de escopo segundo a acepção empregada por Harvey (1989, p. 155). Independentemente da fórmula conceitual que empregam e dos pesos e medidas que distribuem em relação à dinâmica do capital e do trabalho, com maior ou menor participação do Estado, mas sempre em asserção e prevalência dos dispositivos de mercado, produtivo e financeiro, teorias de desenvolvimento econômico, conforme lembra-nos Willis (2005, p. 32-80) e, de acordo com a perspectiva de Harvey (1989, p. 141-172), costumam distribuir espacialmente a desigualdade por meio do deslocamento residual dos sistemas produtivos, mas não dos seus núcleos financeiros, de centros decisórios e dinâmicos do progresso econômico (acumulação flexível) para periferias menos dinâmicas e subcontratadas no uso da tecnologia (fordismo periférico), de modo a facilitar ganhos em escala e a exploração dos recursos naturais e do trabalho.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Romper com os parâmetros sistêmicos de desigualdade e pobreza são o grande desafio do Estado enquanto sociedade no Brasil. Historicamente, a sociedade e o Estado brasileiro padecem de crônicas vulnerabilidades estruturais associadas a uma macroestrutura de poder cujos agentes centrais mostram-se comprometidos com estratégias de desenvolvimento e de inserção internacional que, contraditoriamente, contribuem para a perpetuação de desigualdades sócio-políticas e econômicas no país, graças a uma combinação de esquemas de força, de desarticulação social e de persuasão ideológica. Essa é a síntese dos argumentos do diplomata Samuel Pinheiro Guimarães no primeiro capítulo do livro “Desafios brasileiros na era dos gigantes”. A partir das concepções de Guimarães (2005), é possível argumentar que a macroestrutura de poder, epifenômeno organizacional da sociedade brasileira que encontra correspondência na “evolucionária” sociedade internacional de matriz europeia, estrutura-se em círculos concêntricos de difusão centro-periférica. Tal analogia encontra respaldo na construção do sistema mundo proposta por Wallerstein (2004) e nas ideias de expansão do capital enquanto ideologia modernista expressas por Harvey (1989). Todavia, Guimarães (2005) é mais explícito quanto às funções de centro e as respectivas vulnerabilidades sistêmicas as quais as sociedades periféricas estão sujeitas. Para o autor, as estratégias de desenvolvimento no Brasil, tradicionalmente, não estão associadas aos anseios da sociedade como um todo, vinculando-se diretamente a interesses de setores dominantes (agrário, industrial, financeiro, religioso, militar, além do legislativo, do judiciário e da alta burocracia). Tem-se, nesse contexto, um processo de reprodução de desigualdades que restringe a participação da sociedade civil aos canais decisórios dominados por agentes centrais.

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Porém, convém ressaltar que argumentos fundamentados em bases dicotômicas como esta, ou seja, que enfocam as relações de poder em uma sociedade segundo perspectivas antagonistas, por exemplo, quanto ao centro e à periferia, ao Estado e à sociedade, ou mesmo, quanto à economia e à política, tendem a legitimar as mesmas categorias analíticas que procuram contestar. Logo, apesar de haver espaço para o embate de visões estratégicas quanto à gestão e ao desenvolvimento da sociedade brasileira e da sua inserção internacional, há claras limitações quanto à proposição de concepções alternativas que venham a fundamentar mudanças estruturais de modo a promover alterações significativas da macroestrutura hegemônica de poder e de seus agentes centrais. Ainda assim, é importante reconhecer que iniciativas administrativas do governo brasileiro, principalmente em termos de políticas distributivas com forte apelo social, de equilíbrio macroeconômico e de investimento em infraestrutura, têm empreendido algumas alterações do padrão estrutural do subdesenvolvimento brasileiro. Trata-se de um processo complexo porque envolve a construção e a alteração de mentalidades ainda suscetíveis ao utopismo do progresso dicotômico de uma economia sem sociedade. Por fim, cabe lembrar que conjunta e independentemente às iniciativas (top-down) do governo brasileiro, a sociedade civil organizada (bottom-up), vem desenvolvendo, ao longo do tempo, um conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para a inclusão social e a melhoria das condições de vida. São as chamadas tecnologias sociais. Essas tecnologias são instrumentos importantes no processo de conversão das vulnerabilidades estruturais da sociedade brasileira em oportunidades para o desenvolvimento. Entretanto, os avanços de consciência coexistem com teses conservadoras, trazendo novos perigos, desafios e esperanças.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro, Contraponto, 2005. HALL, John A.. State. In: KRIEGER, J. 2001. The Oxford Companion to Politics of the World. Oxford: Oxford University Press, 2001, 802-805. HARVEY, David. The Condition of Post Modernity: An Enquiry into the Origins of Cultural Change. Cambridge: Blackwell, 1989. LEFTWICH, Adrian. States of Underdevelopment. In: Leftwich, A. States of Development: On the Primacy of Politics in Development. Cambridge: Polity Press, 2000, p. 71-104. MOREIRA, Adriano. Teoria das Relações Internacionais. Coimbra: Almedina, 1999. PRESTON, P. W. Development theory: An Introduction. Cambridge: Blackwell Publishers, 1996. WALLERSTEIN, Immanuel. The development of the concept of development. Sociological Theory, v. 2, 1984, p. 102-116.

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WALLERSTEIN, Immanuel. World System Analysis: An Introduction. London: Duke University Press, 2004. WATSON, Adam. The Evolution of International Society: a Comparative Historical Analysis. Londres: Routledge, 1992. WILLIS, Katie. Theories and Practices of Development. Oxford: Routledge, 2005. ZEA, Leopoldo. Discurso desde a Marginalização e a Babárie. Rio de Janeiro, Garamond, 2005.

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Ensaio: A Ideia de Cooperação Brasília – 3 de abril de 2014 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

A ideia de cooperação está na base da perspectiva organicista que fundamenta o ideário sobre o Estado, concebido como um corpo organizacional subproduto da sociedade e da interação cooperativa entre seus entes, de modo que a imposição da vontade de uns sobre os outros não converta-se em princípio ordenador (FONT e RUFÍ, 2006, p. 56). A cooperação, algo tão essencial à vida em sociedade, é referida por Bobbio (1998, p. 17) como uma “comunhão de interesses”, os quais podem ser idênticos ou suscetíveis de tornarem-se idênticos durante a conformação de uma “aliança”. Nesse contexto, os interesses, inicialmente não idênticos, devem permitir uma convergência de ação que terá maior probabilidade de materializar-se quando a base da aliança for constituída por uma variedade de iniciativas distribuídas entre interesses idênticos, diferentes e, até mesmo, contrastantes (BOBBIO, 1998, p. 17-18). Essa lógica, de acordo com Bobbio (1998), permite a escolha de formas particulares de cooperação. No entanto, as interações entre sujeitos complexos e diferenciados são também caracterizadas por assimetrias associativas cujas relações também implicam em variadas formas de “cooptação”. A cooptação, na perspectiva de Bobbio (1998, p. 286-287), implica em um movimento de defesa em terreno de acolhimento do eventual opositor pela liderança das funções associativas do grupo. Porém, processos de cooptação não necessariamente implicam em subordinação, havendo espaço para alternância de ideias, orientações e programas políticos em um “sistema” de alianças e contra alianças. Logo, o exercício do poder distribui-se com base em múltiplos polos de emanação, sendo a cooperação a força motora que alimenta a comunhão de interesses, facilitando a constituição de alianças e contra alianças por meio, inclusive, da cooptação. Essas relações de espaço/movimento/poder são construções verdadeiramente sociais (COSTA, 1992, p. 24). Tal processo encontra correspondência no âmbito internacional. Conforme observa Milner (1997), é lógico presumir que as relações entre os Estados emulam o sentido organizacional das relações no âmbito doméstico. Na perspectiva da autora, as relações internacionais não são dotadas de identidade própria, constituindo-se como um espaço para a expansão das funções organizacionais dos Estados. Dessa forma, acordos de cooperação como os que deram origem à Organização Mundial do Comércio (OMC) podem ser explicados e compreendidos a partir dos embates da política doméstica realizados, por exemplo, no âmbito do Congresso dos EUA. Essa perspectiva, no entanto, não é inânime entre os analistas.

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Por exemplo, de acordo com Risse-Kappen (1995), a ação dos Estados e os resultados políticos das interações entre esses entes não acorrem apenas em função das estruturas domésticas. Ou seja, o âmbito internacional (muitas vezes chamado de “estrutura” ou “sistema” internacional) tem sim função independente para explicar o comportamento dos Estados e o desenvolvimento de variadas formas de interação, uma vez que prescrevem papeis comportamentais e atividades que restringem a ação e delimitam expectativas. Porém, diferentemente do que ocorre no âmbito doméstico, as estruturas do sistema internacional não são hierárquicas, ou seja, não têm poder para impor-se sobre os Estados. São os Estados que decidem cooperar e até mesmo ceder porções da sua soberania em favor da chamada “governança internacional”. Portanto, é possível definir a cooperação internacional como toda relação entre atores internacionais orientada para a mútua satisfação de interesses ou demandas, mediante a utilização complementar de seus respectivos poderes no desenvolvimento de ações coordenadas e/ou solidárias (CALDUCH, 1991, p. 88). Dentre os elementos que configuram uma relação de cooperação internacional, Holsti (1967, p. 494) destaca: •

A percepção de que dois ou mais interesses coincidem e podem ser alcançados pelas partes envolvidas;



A expectativa de uma das partes que a ação desenvolvida pela outra parte (ou por outros participantes em termos da cooperação multilateral), para alcançar os seus próprios objetivos, a auxilie a realizar os seus interesses e valores;



A existência de um acordo (tácito ou explícito) sobre os aspectos essenciais das transações ou das atividades a serem realizadas;



A aplicação de regras e agendas (protocolos de ação) que irão dominar as futuras transações;



O desenvolvimento de transações ou atividades para o cumprimento do que foi acordado.

A cooperação internacional é um instrumento geopolítico e como tal tem sido amplamente utilizada como plataforma para “exportação” de visões de mundo particulares, principalmente das grandes potências, de modo a reproduzir a chamada “modernidade” capitalista e o ponto de vista ocidental (SOTILLO, 2011, p. 119-120). Esse movimento tem sido acompanhado por iniciativas de cooperação alicerçadas em contrapartidas ideológicas promovidas por países em desenvolvimento como o Brasil, os quais alegam não impor condicionalidades ou visões de mundo particulares. Os estudos a serem desenvolvidos por um eventual Grupo de Pesquisada podem contribuir para elucidação das diferentes perspectivas da cooperação internacional, avaliando, por exemplo, se as iniciativas de cooperação por parte do Brasil correspondem, de fato, a uma contrapartida ideológica à cooperação internacional promovida pelos países desenvolvidos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política I. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. CALDUCH, Rafael. Relaciones Internacionales. Madrid: Ciencias Sociales, 1991. COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Política e Geopolítica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. FONT, Joan Nogué; RUFFI, Joan Vicent. Geopolítica, Identidade e Globalização. São Paulo: Annablume, 2006. HOLSTI, Kalevi J. International Politics. A Framework for Analysis. New Jersey: Englewood Cliffs, 1967. MILNER, Helen V. Interests, Institutions and Information, Domestic Politics and International Relations. New Jersey: Princeton University Press, 1997. RISSE-KAPEN, Thomas. Bringing Trasnational Relations Back-In: Introduction. In: RISSEKAPEN, Thomas (ed.). Bringing Transnational Relations Back-In: Non-State Actors, Domestic Structures and International Institutions. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. SOTILLO, José Ángel. El sistema de cooperación para el desarrollo: actores, formas y processos. Madrid: Instituto Universitario de Desarrollo, 2011.

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Ensaio gráfico: Promoção do Documentário Auroras do Diretor José Walter Nunes, professor do PPGDSCI-CEAM-UnB Brasília – 8 de novembro de 2012 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

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Ensaio gráfico: “Mercúrio” Brasília – 31 de janeiro de 2015 Autora: Juliana Sandi Pinheiro

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