UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

June 8, 2017 | Autor: Rodrigo Pereira | Categoria: Machado de Assis
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

RODRIGO DONIZETE PEREIRA

Controvérsia sem tédio: as polêmicas em torno da imigração na crônica de Machado de Assis

São Paulo 2009

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA

Controvérsia sem tédio: as polêmicas em torno da imigração na crônica de Machado de Assis

Rodrigo Donizete Pereira Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Hélio de Seixas Guimarães

São Paulo 2009

AGRADECIMENTOS

Sem sombra de dúvida, a primeira pessoa a quem devo agradecer é ao orientador e co-autor desta dissertação, Prof. Dr. Hélio de Seixas Guimarães, cujo "verdadeiro apreço e sintonia com a ironia de Machado", ao qual se refere John Gledson na "Apresentação" ao livro Os leitores de Machado de Assis, parece ser apenas um reflexo de sua capacidade de compreensão do outro. Agradeço também aos integrantes da minha banca de qualificação, Prof.ª Dr.ª Lúcia Granja e Prof. Dr. Antonio Dimas, pelas valiosas observações e pelas críticas construtivas. Por fim, agradeço aos colegas do grupo de estudos sobre a crítica machadiana, que proporcionaram discussões enriquecedoras, dúvidas e idéias novas sobre Machado de Assis, sua obra e os críticos que a ela têm se dedicado.

RESUMO

Esta dissertação trata da crônica de Machado de Assis e seu diálogo com discursos parlamentares e outros textos publicados em periódicos sobre temas específicos, no caso a crise do escravismo, a substituição da mão-de-obra e a questão da imigração, além das relações desses temas com a ciência da época e com a questão racial. Esta abordagem tem como objetivo mostrar como o escritor tratou dos temas ligados à imigração por meio de suas crônicas e como esse tratamento se inseria em um contexto maior de discussão. O método utilizado se baseia na leitura e análise das crônicas selecionadas, as quais foram "cruzadas" com as leituras de outros escritos produzidos no mesmo contexto, especialmente discursos e debates parlamentares e artigos da imprensa carioca. Como resultado, chega-se a uma contextualização da produção do gênero crônica em Machado de Assis e à conclusão de que é possível notar uma "participação" do autor em discussões que se configuravam cruciais para o Brasil. Também é possível perceber, em alguns momentos, uma "tomada de posição" do escritor com relação a vários temas, embora de maneira oblíqua e com o uso de procedimentos utilizados mais freqüentemente em obras ficcionais.

Palavras-chave: Crônica. Machado de Assis. Imigração. Ciência. Política.

ABSTRACT

This dissertation covers Machado de Assis' newspaper column and its dialogue with parliamentary speeches and other texts published in newspapers on specific themes, which refer to the crisis of the slavery, the substitution of the labor and the immigration issue, as well the relations of these themes with the science of that time and with the racial question. This outlook's aim is to show how the writer faced of the themes linked to the immigration by means of his newspaper column and how his viewpoint was inserted in a larger context of discussion. The used method here is based on the reading and analysis of the selected newspaper columns, which were "compared" with the readings of other texts produced at the same time, especially speeches and parliamentary debates and articles of the Rio de Janeiro city press. As result, a contextualization of the production of the newspaper column in Machado de Assis' works was reached and it is led to the conclusion that it is possible to notice the "author's participation" in discussions that figured critical for Brazil. It is also possible to recognize, in some moments, the writer's "taking of position" with regard to several themes, although with an oblique way and with the employment of manners used more frequently in fiction works.

Key words: Newspaper column. Machado de Assis. Immigration. Science. Politics.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 6 . CAPÍTULO 1: As primeiras discussões sobre a imigração .............................................. 23 . CAPÍTULO 2: A imigração chinesa ......................................................................................... 32 . CAPÍTULO 3: A crônica machadiana e as "Coisas políticas" de Ferreira de Araújo. 52 . CAPÍTULO 4: Uma opção aos "chins": a possibilidade da imigração japonesa ........ 65 . CAPÍTULO 5: Imigração e manutenção da "identidade" brasileira ................................ 73 . CAPÍTULO 6: Por dentro da controvérsia: o projeto de lei do senador Taunay ........ 88 . CAPÍTULO 7: A crônica machadiana como participante do processo histórico ........ 94 . CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 105 . BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................... 109 . ANEXOS ....................................................................................................................................... 117 .

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INTRODUÇÃO

Este trabalho surgiu do interesse pelas referências críticas à ciência do século XIX, ou de uma parte dela, algo recorrente na obra de Machado de Assis, especialmente no que se refere às teorias que abusavam das noções de raça e de "evolução" aplicadas fora dos domínios estritamente naturais. Embora o assunto esteja presente em vários romances, como o Quincas Borba, e em muitos contos, entre os quais o mais célebre talvez seja "O alienista", era necessário restringir o estudo a apenas um gênero, dada a extensão da obra machadiana e a complexidade do assunto. Para isso, escolhi a crônica. No decorrer do estudo, notei que a presença, neste gênero da produção machadiana, das questões em torno da substituição da mão-de-obra escrava e da imigração era freqüente e quase sempre servia para pôr em dúvida a validade dos argumentos da ciência racial e do evolucionismo. Durante a pesquisa também deparei com um problema que não podia ser posto de lado: o modo como a crônica de Machado de Assis, ao abordar as questões acima referidas, entrava em diálogo com o que estava sendo discutido à época sobre os mesmos assuntos. Tanto os políticos, em seus discursos e debates, quanto o restante da imprensa, em suas linhas eminentemente jornalísticas – ou seja, sem intenção literária –, abordavam a questão da imigração, muitas vezes com argumentos que buscavam sustentação na "ciência racial"1 da época. Um dos objetivos deste trabalho é mostrar como a crônica machadiana não apenas registra essa discussão como parece participar dela, muitas vezes se aproximando de várias opiniões, expressas de modo mais direto e objetivo, que buscavam minimizar a depreciação da população brasileira implícita nos argumentos "científicos" – raciais e evolucionistas – utilizados por tantos outros. Essa contextualização de algumas das crônicas de Machado de Assis está longe de ser definitiva, apenas pretende apontar que o autor tinha alguma filiação ideológica, melhor dizendo, que os textos das 1

O historiador Sidney Chalhoub, em seu livro Machado de Assis: historiador (São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 128) define essa "ciência racial" do século XIX como "a tentativa de relacionar as características físicas dos povos a seus supostos estágios ou graus de civilização, de modo a fazer com que tais características sejam determinantes para atribuir maior ou menor grau de civilização para esta ou aquela nação".

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crônicas de Machado de Assis concordavam ou discordavam de determinados pontos de vista que apareciam, quer na própria imprensa brasileira, quer nos discursos e debates com os quais os parlamentares brasileiros faziam sua política. Mais do que simples referências informativas, os comentários presentes na crônica machadiana, a respeito do que se passava em contextos tão "microscópicos" como um bairro do Rio de Janeiro ou uma cidade pequena no interior de alguma província brasileira, sobre assuntos relativos à política e à economia nacionais ou, ainda, concernentes a temas de importância global, como conflitos imperialistas, pareciam estar em diálogo com tantas outras opiniões, de jornalistas, políticos e mesmo de pessoas comuns, as quais expressavam suas opiniões nos bondes e nas ruas do Rio de Janeiro em que Machado viveu. Muitas vezes, esses comentários e "diálogos" são tão evidentes que o cronista chega a citar a "fonte", ou seja, elucida em qual jornal leu determinado comentário/notícia ou qual político – ou grupo político – defendeu determinada posição. Mesmo que o nome não fosse citado, alguém bem informado podia facilmente saber de quem se tratava. A imagem de Machado de Assis como escritor em cuja obra os problemas sociais, políticos, econômicos, culturais e de formação histórica do Brasil são ignorados já está abundantemente refutada. Uma questão que persiste se refere ao grau em que essas preocupações aparecem na obra machadiana. Dependendo do crítico, se enxerga mais ou menos "militância" em sua literatura. Um elemento "interno" que dificulta o estudo de um conjunto de crônicas machadianas reside no fato de que nestas obras há uma grande variedade de temas, estratégias literárias, abordagens, procedimentos retóricos etc. Às vezes são crônicas jornalísticas, noutros momentos são quase contos, de tal forma que uma análise encontra muitas dificuldades. Pela extensão e variedade da obra machadiana que se encaixa nesse gênero, ele adquire certo caráter enciclopédico, multifacetado, podendo dar margem a várias leituras e interpretações. No entanto, não se pode negar que as crônicas estavam mergulhadas em seus contextos de produção, o que fica evidenciado pelas referências constantes a acontecimentos, comentários e debates os quais se desenrolavam praticamente ao mesmo tempo em que as crônicas eram escritas e vinham a público. As próprias notícias de jornais – e não somente daquele para o qual Machado estava escrevendo – serviam de inspiradoras para muitas crônicas, assim como discursos e

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debates políticos em torno de assuntos variados, às vezes de crucial importância, às vezes banais. A imprensa e os políticos podem ser considerados, portanto, duas das principais "fontes" utilizadas pelo Machado de Assis cronista, sempre temperados "com dois ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões de estilo", como ele esclareceu na crônica de "A semana" de 10 de julho de 1892. O tom bem humorado e/ou irônico da maioria das crônicas era conveniente, pois evitava que tais colunas dessem margem a embates diretos e polêmicas pessoais, que, ao que tudo indica, Machado procurou evitar a partir de um determinado momento. Mas, por outro lado, essas características davam uma liberdade de expressão da qual o escritor soube tirar o máximo proveito, com o inconveniente do risco de não ser entendido ou de ser entendido de maneira equivocada, como ocorre quando o cronista de "A semana" faz uma "defesa" da vinda de trabalhadores chineses para o Brasil, exemplo que veremos no segundo capítulo desta dissertação. Ao ler algumas das crônicas de Machado de Assis, alguém com certo conhecimento da História do Brasil no século XIX e sobre as idéias que circulavam no mundo à época poderá notar que o escritor brasileiro dialoga com muitas delas, freqüentemente parodiando-as e ironizando-as. Nada extraordinário em se tratando de um gênero "ligeiro" e muito ligado aos acontecimentos e idéias da época em que é escrito e vem a público. A presença dos problemas brasileiros – e concernentes à relação Brasil-Mundo –, aliás, ocorre em toda a obra machadiana. Os romances, desde alguns daqueles que tiveram filiação romântica, mas em especial a partir das Memórias Póstumas de Brás Cubas, retratam, com olhar oblíquo, as peculiaridades brasileiras e seus vários aspectos. Quanto aos contos, vários deles colocam não só problemas que podemos chamar de "filosóficos" e "universais", mas também questões nacionais ou que, pelo menos, podem ser interpretadas como referências a problemas brasileiros. Até a poesia retrata, por exemplo, a crueldade das relações próprias do regime escravista, como é o caso do poema "Sabina", de Americanas. Mas de todos os gêneros praticados por Machado, é nas crônicas que podem ser observados "diálogos" mais evidentes com as questões que eram discutidas no momento em que o autor escreve. De fato, as crônicas, com poucas exceções, são muito marcadas pelo momento em que foram escritas, sendo suas referências quase que simultâneas aos

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acontecimentos tratados, o que se explica pelo fato de estarem condicionadas ao caráter predominantemente efêmero do jornal. Mas então onde reside o interesse em relacionar as crônicas de Machado de Assis com a sua época e com as idéias e questões de seu tempo, se é "natural" que este gênero esteja impregnado do momento em que foi escrito? A resposta não é simples, sobretudo levando em consideração a advertência de Alfredo Bosi a respeito do estudo da crônica machadiana: Documentos exigem crítica textual e histórica. Com maior força de razão, crônicas literárias de um grande escritor requerem sondagens que identifiquem o seu ponto de vista, o húmus do seu pensamento, os seus valores e antivalores, o seu pathos, o seu estilo de narrar, os seus procedimentos retóricos. É uma tarefa ainda por fazer e constitui o limiar da interpretação, abaixo do qual tudo se dissipa no anedótico ou se presta ao desnorte de arbitrárias alegorias. 2

Sem dúvida, a tarefa é árdua. No fragmento, propondo algo que em parte lembra o método de "crítica total" de Gustave Lanson em Essais de méthode de critique et d'histoire littéraire, o crítico quer mostrar o tamanho da responsabilidade para quem estiver predisposto a estudar a crônica machadiana. Deve-se tomar cuidado para que não sejam inferidas alegorias históricas de tudo o que o escritor produz no gênero e para que o caráter anedótico e "engraçado" de muitas das crônicas não impeçam, igualmente, uma compreensão mais profunda das mesmas. Mas será que a proposta do crítico é, de fato, "tarefa ainda por fazer"? Será que ninguém conseguiu, até o momento, transpor as "barreiras" do alegórico e do anedótico na crônica de Machado de Assis? Não creio que isso corresponda à realidade dos estudos machadianos. Autores como John Gledson, Sidney Chalhoub, Lúcia Granja e Leonardo Affonso de Miranda Pereira, entre outros, embora notem a presença de prováveis alegorias e anedotas referentes ao Brasil do século XIX nas crônicas de Machado de Assis, não deixam de fazer análises muito mais profundas, que abarcam senão todos, ao menos vários dos elementos enumerados por Alfredo Bosi. Quando Bosi opõe crônicas a documentos, vemos que ele parte do pressuposto de que aquelas são obras mais próximas dos contos e romances, gêneros amiúde vistos como mais literários, que de escritos objetivos, passíveis de 2

"O teatro político nas crônicas de Machado de Assis". In: Brás Cubas em três versões: estudos machadianos, pp. 102-103.

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serem usados para esclarecer algo sobre acontecimentos reais ou opiniões pessoais de seu autor. Concordo com o autor na medida em que penso que a crônica está mais para a literatura que para o documento; no entanto, estou convencido de que o caso da crônica é um pouco mais complexo: partindo de assuntos reais, "práticos", a maioria deles "no calor da hora", a crônica é um gênero híbrido, em que o que há de literário está intimamente ligado aos acontecimentos do dia, ao momento histórico mais imediato, ao tipo de sociedade sobre e para a qual seu autor escreve. Acredito que um estudo que observe a relação entre ficção e história tenha, necessariamente, que ser aplicado de maneira diferente quando os textos os quais servem para a análise se encontram numa região limítrofe do campo estritamente ficcional. Contos e romances muitas vezes refletem a pretensão de permanência e de "universalidade" por parte do autor num grau bem maior que as crônicas. Nestas, a relação mais próxima e "interativa" com o leitor, a possibilidade mais direta de "participação" em discussões que se dão no momento em que se escreve, além de uma visibilidade imediata maior, são condicionantes de um tipo de literatura – ou gênero de fronteira3 – que guardará uma relação com seu contexto histórico um tanto diferente do modo como esse mesmo vínculo se processa em textos normalmente vistos como mais literários. Todavia, é certo que pode ocorrer uma "interpenetração de gêneros", com a crônica inspirando a obra ficcional, e esta emprestando seus procedimentos e seu estilo à primeira, algo que é observável na produção literária de Machado de Assis. No caso da crônica de Machado, notamos que "o húmus do seu pensamento", ao menos na medida na qual se observa por meio de seus textos, é até mais amplo que aquele se evidencia em sua obra ficcional. Nesta notamos com clareza a presença de assuntos, obras e autores os mais variados, passando por literatura, filosofia, história, política, economia e ciência, desde a antiguidade até a época do escritor. Nas crônicas vemos, além da mesma matéria fertilizante presente na obra ficcional – o Machado cronista cita autores e obras com a mesma facilidade e às vezes de forma muito parecida com que o faz nos contos e romances –, as leituras de muitos periódicos da época, de discursos parlamentares, decretos e leis, antigos

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A expressão é usada para definir gêneros (ou pelo alguns espécimes de cada um desses gêneros) como a crônica, a narrativa de viagem, o ensaio, a correspondência, os prefácios, entre outros, no livro Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário (São Paulo: Xamã, 1997).

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e contemporâneos, matérias com as quais o cronista está em constante estreito diálogo. É possível mesmo especular que essa dupla inspiração, que parte de obras "universais" e do cotidiano local, explica o motivo pelo qual, na literatura de Machado, "juntam-se por um momento os dois processos gerais da nossa literatura: a pesquisa dos valores espirituais, num plano universal, o conhecimento do homem e da sociedade locais"4, como propôs Antonio Candido. Sobre o papel da crônica na formação do Machado ficcionista, Sonia Brayner afirma que "o contato cotidiano com o leitor historicamente datado, o trabalho sobre uma oralidade necessária ao gênero, vão dar-lhe elementos para pesquisar a tessitura literária [...]"5 que o autor vai levar às últimas conseqüências no conto e no romance. Assim, a crônica parece ter exercido papel fundamental nesse "conhecimento do homem e da sociedade locais" a que Antonio Candido se referiu. O eixo central deste trabalho são as relações entre as crônicas de Machado de Assis, com as possíveis opiniões do autor implícitas nesses textos, e as apreciações não-literárias do mesmo período, que expressam opiniões diversas sobre ciência, raça e política de mão-de-obra, assuntos que alimentam polêmicas e debates, tanto no meio político como na imprensa, exatamente no mesmo período em que Machado escreve suas crônicas. E, por meio delas, veremos que o escritor não fica alheio a essas discussões. A relação entre ciência, raça e política de mão-de-obra é de especial interesse, pois diz respeito a mudanças que estavam se processando na sociedade brasileira. Mais do que simples mudanças, a questão da imigração estava relacionada com os novos rumos, completamente diversos, que seriam tomados pela sociedade brasileira, a qual havia se "acostumado" com o uso secular da mãode-obra escrava. Como no contexto em que isso ocorre uma parte da ciência busca justificativas para a dominação imperialista de nações brancas sobre não-brancas, a "raça" dos imigrantes passa a ser uma "idéia fixa" para boa parte da elite política, econômica e intelectual brasileira. Machado de Assis, ao lidar com essas questões, em vários momentos sugere que a mestiçagem não era "degenerativa" como se

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CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978, vol. 2, p. 115. 5 BRAYNER, Sonia. "Metamorfoses machadianas: o laboratório ficcional". In: BOSI, A. et al. (orgs.). Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p. 426.

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afirmava. O escritor não se mostra indiferente ao tipo de imigrante que entraria no país; pelo contrário, parece extremamente inteirado das questões que estavam sendo debatidas e parece criticar as justificativas raciais para que os portos brasileiros fossem abertos ou fechados para este ou aquele imigrante. O Machado cronista parece querer mostrar, como veremos, que o problema não era a raça do imigrante, mas que havia outras questões, verdadeiramente relevantes, que deveriam ser pesadas. * * * Para o presente estudo foi selecionado um corpus de quarenta e uma crônicas, do universo de todas as que o autor produziu e de cuja autoria não há dúvidas, transcritas na íntegra e anexadas ao final desta dissertação. Essas crônicas foram publicadas entre setembro de 1876 e novembro de 1900, nos periódicos Ilustração Brasileira, O Cruzeiro e, principalmente, Gazeta de Notícias. As edições utilizadas foram as mais "cuidadas" que estão à disposição até o momento. Para as crônicas da Ilustração Brasileira, as "Histórias de quinze dias", e as crônicas de "A semana" (Gazeta de Notícias) de 1894 em diante, foi utilizada a última edição da Obra Completa da Editora Nova Aguilar, reformulada e em quatro volumes (2008). Para as crônicas de O Cruzeiro, as "Notas semanais", utilizei a edição organizada por John Gledson e Lúcia Granja (Editora da UNICAMP, 2008). Entre as edições das "Balas de estalo", da Gazeta de Notícias, escolhi as Balas de estalo de Machado de Assis (Annablume) organizada por Heloisa Helena Paiva De Luca. Para a transcrição das crônicas de "Bons dias!" (1888-1889) e de "A semana" até 1893, escolhi as edições organizadas por John Gledson (Editora Hucitec). Por fim, a "Crônica" de 1900, publicada na Gazeta de Notícias fora da série "A semana", foi retirada da Obra Completa da Editora Aguilar, mas da última reimpressão (2004) da primeira edição, já que da edição mais recente não constam as duas crônicas avulsas de Machado, ambas de 1900.6 Foram escolhidos os textos que, apresentam relação direta com o tema, em especial a questão da mão-de-obra pós-Lei do Ventre Livre e as discussões em

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As duas últimas crônicas de Machado saíram anônimas na Gazeta de Notícias de 4 e 11 de novembro de 1900, época em que Olavo Bilac era o principal cronista do jornal. Galante de Sousa confia no testemunho de Mário de Alencar (filho de José de Alencar), que recolheu as duas crônicas no volume A Semana. Ver Bibliografia de Machado de Assis, de Galante de Sousa, p. 681.

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torno da imigração. Todas elas abordam, de um modo ou de outro, a questão da carência de "braços", a busca de substitutos para a mão-de-obra escrava em vias de extinguir-se, as propostas e debates sobre a vinda de imigrantes e a entrada e a permanência destes trabalhadores estrangeiros no Brasil. Algumas das crônicas selecionadas fazem referências muito breves e oblíquas à questão, mas achei melhor transcrevê-las integralmente para que o leitor tenha acesso fácil ao texto integral, perceba melhor o contexto em que os comentários se inserem – ou o "jogo" de escrita em que o assunto se insere dentro da crônica – e possa avaliar se houve ou não uma descontextualização dos fragmentos utilizados, ou equívocos de interpretação e análise da minha parte. Antes de cada crônica há um número de referência, de [1] a [41], e a referência da data, periódico e coluna em que foi publicada originalmente. Ao final de cada crônica, há a indicação da edição da qual a obra foi retirada, bem como uma breve observação para indicar mais rapidamente ao leitor o que faz com que a obra se relacione com o tema aqui desenvolvido. Fragmentos de outras crônicas (além das que constam do corpus) foram citados no decorrer da dissertação. Alguns são relativamente longos, mas não vi necessidade em transcrever as crônicas na íntegra por não terem relação direta com a questão da imigração. Noutros, mais curtos, ou quando não havia uma visão geral da crônica ou da parte da crônica a que a análise se referia, sempre que necessário fiz uma contextualização explicativa do trecho. * * * A pesquisa de que esta dissertação é fruto envolveu primeiramente leituras e releituras das crônicas de Machado de Assis, além das leituras das principais obras ficcionais, em ordem cronológica, para que as possíveis relações entre uma e outra ficassem evidenciadas. Quanto aos textos da imprensa, devido ao grande volume de periódicos contemporâneos ao escritor, selecionei alguns semestres da Gazeta de Notícias, especialmente de 1883 – ano em que Machado começou a escrever crônicas para esse jornal –, de 1888 – ano em que a escravidão foi abolida – e de 1889 – ano da proclamação da República –, que foram consultados em microfilme na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro). A consulta aos discursos e debates parlamentares contemporâneos às crônicas foi muito mais prática, pois foi possível com algumas visitas ao Arquivo do Estado de São Paulo, à Biblioteca da Faculdade

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de Direito da USP e também pela Internet, meio no qual o Parlamento brasileiro mantém a versão digitalizada de toda a sua produção desde os tempos do Primeiro Reinado. A Câmara dos Deputados disponibiliza todas as publicações institucionais da Casa no site http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp, e o Senado Federal possibilita o acesso aos seus Anais pelo endereço http://www.senado.gov.br/sf/ publicacoes/anais/asp/PQ_Pesquisar.asp. Mais árdua foi a seleção daquilo que seria utilizado neste trabalho. Como o excesso de informações colhidas dificultaria em muito a análise e, mesmo, a redação (e a leitura) da presente dissertação, tive que escolher alguns fragmentos e cada fonte. No caso dos textos de jornais, selecionei basicamente uma coluna política da Gazeta de Notícias, intitulada "Coisas políticas", escrita pelo dono, editorchefe do jornal e amigo de Machado de Assis, Ferreira de Araújo. Quanto aos debates e discursos realizados na Câmara dos Deputados, no Senado e nos Congressos Agrícolas de 1878, selecionei aqueles estritamente contemporâneos às crônicas selecionadas ou os que pareciam de alguma forma "refletidos" nessas obras, ainda que isso não significasse que o cronista machadiano realmente se referia àquela fala, daquele político. A idéia foi estabelecer aproximações, mostrar que o cronista machadiano podia estar se referindo a qualquer discurso político que tivesse esta ou aquela tendência, mais próxima ou mais distante da posição que ele aparentava tomar em determinada crônica. Tanto no que se refere aos discursos e debates, quanto aos textos jornalísticos com os quais as crônicas de Machado de Assis poderiam estar em diálogo, a intenção foi a de fazer uma contextualização das crônicas machadianas. Com aproximações e distanciamentos entre essas opiniões expressas por meios não-literários e algumas das possíveis opiniões que aparecem nas crônicas de Machado, disfarçadas pelo humor e pela ironia, podemos notar que o cronista machadiano tinha lá suas afinidades, ou seja, compartilhava dessa ou daquela opinião, não sendo uma voz solitária, embora quase sempre apresentasse um "porém" típico das consciências críticas. Por outro lado, nota-se que Machado, em suas crônicas, não adere a algumas opiniões muito em voga à época, a exemplo da ciência racial e do evolucionismo, como veremos. * * *

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Esta dissertação está estruturada em sete capítulos. O primeiro deles, "As primeiras discussões sobre a imigração", busca identificar um "diálogo" entre algumas crônicas de Machado de Assis, dos anos 1870, e as discussões sobre a substituição de mão-de-obra, que se ampliam nesta década depois da aprovação da Lei do Ventre Livre. O segundo capítulo, "A imigração chinesa", analisa como uma questão pouco conhecida da História do Brasil, a possibilidade da vinda de imigrantes chineses para o país, causou muitos debates na sociedade brasileira, algo que se reflete em várias crônicas de Machado de Assis. O terceiro capítulo, "A crônica machadiana e as 'Coisas políticas' de Ferreira de Araújo", estabelece relações entre a coluna política do editor-chefe da Gazeta de Notícias e as crônicas de Machado. O quarto capítulo, "Uma opção aos 'chins': a possibilidade da imigração japonesa", analisa a aparente simpatia de Machado de Assis pela imigração nipônica em oposição à chinesa e busca nos argumentos do cronista evidências de uma preocupação com a participação dos imigrantes na modernização do Brasil. O quinto capítulo, "Imigração e manutenção da 'identidade' brasileira", discute pontos da produção cronística de Machado de Assis em que é possível perceber a preocupação do autor com a "assimilação" dos imigrantes, com a entrada de contingentes muito grandes de uma só nacionalidade e o apelo por iniciativas práticas do Estado, como o ensino da língua portuguesa aos imigrantes, para tornálos cidadãos. A vinda ou não de imigrantes, a procedência desses imigrantes, se eles se tornariam cidadãos brasileiros, sendo "assimilados" pela população do país, ou se o Brasil se tornaria "menos brasileiro" com a vinda de uma grande quantidade de estrangeiros, tudo isso estava relacionado com a construção do país. O que o Brasil seria no século seguinte dependeria das decisões daquela época, e Machado de Assis estava completamente consciente do caráter decisivo daquele processo, de cujas discussões "participava" por meio de suas crônicas. O sexto capítulo, "Por dentro da controvérsia: o projeto de lei do senador Taunay", mostra a como a crônica machadiana se "relacionava" com a política e "participava", a seu modo, das discussões que surgiam neste âmbito. O capítulo gira em torno do projeto de naturalização compulsória de Taunay, criticado por Machado de Assis em uma crônica de "Bons dias!", de 1888.

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Por fim, o sétimo e último capítulo "A crônica machadiana como participante do processo histórico", pretende mostrar como havia no Machado cronista uma "consciência histórica". Se até o sexto capítulo a questão da imigração na crônica machadiana é abordada de uma perspectiva sincrônica, em "diálogo" com o que se discutia sobre o tema mais ou menos na mesma época em que Machado escrevia, o sétimo capítulo trata o mesmo tema de um prisma diacrônico. O interesse de Machado de Assis pela História e seus personagens, além de várias passagens de sua produção no gênero crônica, sugerem que o autor via seu contexto como processo de construção da História, processo do qual ele mesmo participava por meio do que escrevia. Assim, a própria crônica machadiana tinha consciência de que poderia vir a ser "documento histórico", na medida em que trazia inscrita em si a "fisionomia de um tempo"7. * * * Sem contar as crônicas de autoria duvidosa, publicadas no periódico Semana Ilustrada sob o pseudônimo coletivo "Dr. Semana" entre 1860 e 18768, são seiscentas e doze as crônicas de Machado de Assis, excluída também uma pequena "errata" à "Gazeta de Holanda" de 27 de setembro de 1887, publicada no dia seguinte. Destas, vinte foram publicadas na coluna "Comentários da semana" (18611863) do Diário do Rio de Janeiro, dezesseis saíram entras as "Crônicas" (18621863) do periódico O Futuro, quarenta e duas foram publicadas em "Ao acaso" (1864-1865), também do Diário do Rio de Janeiro. Na Ilustração Brasileira, foram publicadas trinta e sete "Histórias de quinze dias" (1876-1878) e apenas três "Histórias de trinta dias". No folhetim d'O Cruzeiro saíram quatorze "Notas semanais" (junho a setembro de 1878). Mas foi na Gazeta de Notícias que Machado escreveu quase oitenta por cento de suas crônicas, num total de quatrocentos e oitenta: cento e vinte e seis "Balas de estalo" (1883-1886), sete crônicas em forma de diálogo em "A + B" (setembro-outubro de 1886), quarenta e oito crônicas (em verso) na coluna 7

Balas de Estalo de Machado de Assis (De Luca), p. 337. São artigos diversos, crônicas e a seção "Badaladas" (1869-1876). Sobre as dúvidas sobre quais dessas crônicas teriam sido escritas por Machado, Galante de Sousa comenta: "Não julgamos prudente, porém, atribuir a Machado de Assis autoria desta ou daquela crônica, sem um exame sério e meticuloso do estilo [...], deixando aos mais argutos o prazer de resolver o problema" (Bibliografia de Machado de Assis, p. 434). De lá para cá, autores como Kátia Muricy usaram essas crônicas de autoria duvidosa em suas análises, embora outros como Freitas (1998) afirmem que algumas delas "podem ser crônicas machadianas, porém jamais crônicas de Machado de Assis" (p. 102).

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"Gazeta de Holanda" (1886-1888), quarenta e nove em "Bons dias!" (1888-1889), sendo uma delas publicada na Imprensa Fluminense, quando das comemorações pelo fim da escravidão no Brasil, além das duzentas e quarenta e oito crônicas de "A semana" (1892-1897) e duas avulsas (cada qual intitulada "Crônica") de 4 e 11 de novembro de 1900, que constam das edições das Obras Completas (Jackson) e de todas as reimpressões da primeira edição da Obra Completa (Aguilar) como parte da série "A semana", mas que na verdade foram uma colaboração avulsa de Machado na Gazeta de Notícias, como mostra Galante de Sousa em Bibliografia de Machado de Assis, obra que serviu como base para as informações aqui apresentadas. Quanto aos principais pseudônimos utilizados por Machado em suas crônicas – pelo menos naquelas em que houve continuidade no uso do criptônimo –, temos o cronista Manassés na Ilustração Brasileira, Eleazar em O Cruzeiro, na Gazeta de Notícias temos o Lélio das "Balas de Estalo", o João das Regras de "A + B", o Malvólio da "Gazeta de Holanda" e o Policarpo ou Boas Noites de "Bons dias!" – este último manteve o escritor em absoluto anonimato. As crônicas de "A semana" não eram assinadas, mas era notório que seu autor era Machado de Assis, já que, como mostra John Gledson, Artur Azevedo e uma correspondente do jornal A Cidade do Rio se referem ao escritor como o autor daquelas crônicas9. Cabe lembrar que outros textos não-literários, além dos citados acima, escritos por Machado de Assis para vários jornais, não se encaixam no gênero crônica, estando mais para a crítica ou para o comentário jornalístico. Das primeiras crônicas machadianas, escritas na década de 1860, para as crônicas escritas a partir de 1876 há diferenças notáveis. Embora, como Lúcia Granja observou, desde as primeiras obras deste gênero já seja possível perceber que "a exploração da literariedade da crônica auxiliaria o narrador a exprimir seu ponto de vista de forma privilegiada"10, após a segunda metade da década seguinte há uma "transformação" importante. Antes, podíamos notar aqui e ali mais opiniões do escritor, sua tendência política liberal era bastante evidente e, em geral, os assuntos eram abordados de forma bastante direta. A partir de 1876, as crônicas de Machado de Assis parecem tornar-se muito mais "literárias". Nelas, fica muito mais

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Essas informações são apresentadas por Gledson em Por um novo Machado de Assis (São Paulo: Companhia das Letras, 2006), p. 210. 10 Machado de Assis, escritor em formação (Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2000), p. 150.

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difícil notar o que há por trás da "máscara" do narrador-cronista, já que o recurso freqüente ao humor e à ironia dificulta muito a percepção do que há de opinativo nessas crônicas, algo que o escritor aprendeu com experiências anteriores, as quais provavelmente o ensinaram que o embate direto e a polêmica tendiam a trazer problemas a quem se expunha nos jornais, pelo menos se a opinião expressa fosse diferente da "linha editorial" defendida pelo jornal11. A adoção de um pseudônimo próprio e invariável dentro de uma série, sem qualquer relação com seu nome verdadeiro, é uma evidência dessa mudança, já que em séries anteriores o pseudônimo podia variar. Talvez o pseudônimo coletivo da Semana Ilustrada, que tanto dificulta o trabalho da crítica em estudar esse "elo" entre as primeiras crônicas e aquelas em que se nota uma maturidade literária maior, tenha indicado o caminho para o escritor. O fato é que, de 1876 em diante, as crônicas se diferenciam bastante daquelas escritas nos anos 1860. Talvez seja possível estabelecer uma relação da "evolução" da crônica machadiana com o próprio gosto do leitor, que não queria ler no espaço reservado para a crônica assuntos muito pesados, ou pelo menos que estes não fossem abordados de modo muito pesado. Por outro lado, aproximando-se mais do comentário geral, dos assuntos pequenos – embora muitas vezes relacionados com os grandes – com a presença constante do humor e da ironia, o cronista estaria mais livre para escrever e talvez mais protegido. Noutras palavras, a literatura permitia, de alguma forma, mais liberdade que o texto jornalístico, mas com o "efeito colateral" de admitir mais leituras equivocadas, interpretações que nem sempre condiziam com aquilo que o escritor queria dizer. De qualquer forma, é esta a postura que Machado, a partir do emprego do pseudônimo Manassés, vai tomar em relação ao seu texto. Num crescendo de criatividade, agilidade e refinamento lingüístico, o escritor vai chegar ao ponto máximo de "Bons dias!" e "A semana". * * *

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Sobre o interregno de quase um mês na colaboração de Machado no Diário do Rio de Janeiro, com a coluna "Comentários da Semana", e também sobre o fim desta colaboração, Jean-Michel Massa lembra, em A juventude de Machado de Assis (pp. 291-292), que: "No início de abril de 1862, a crônica cessou para retornar uma última vez em 5 de maio. Por que esta interrupção, esta parada? Parece que Machado de Assis sofreu sanção por defender uma linha política que não era a do jornal."

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A partir da publicação de uma seleção de crônicas de "A semana", por Mário de Alencar, em 1910, o acesso dos leitores "comuns" e da crítica a estes textos foi, evidentemente, facilitado. Embora a edição incluísse apenas cento e oito, das duzentas e quarenta e oito crônicas publicadas na série, com amputações em algumas e títulos inventados pelo organizador em outras, o trabalho foi louvável justamente por ser um primeiro passo para facilitar o acesso dos interessados às crônicas de Machado de Assis e levar alguns desses textos ao conhecimento de um público muito maior que – em sua maioria e durante décadas – só teve acesso a algumas das crônicas do autor graças a essa iniciativa do filho de José de Alencar. Antes disso, além do fato óbvio da evidência gradativa que as crônicas de Machado ganham na Gazeta de Notícias, Artur de Azevedo escreve em O Álbum, em janeiro de 1893: "Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A semana, que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística"12. Esta é provavelmente a primeira nota crítica sobre as crônicas de Machado, que evidencia que essas obras já eram vistas mais como literatura do que como textos jornalísticos. Já no século XX, Astrojildo Pereira cita em suas análises alguns fragmentos de crônicas, embora a base de seus "ensaios e apontamentos" sobre a produção machadiana seja a obra ficcional. O mesmo uso das crônicas, talvez até um pouco mais amplo, faz Lúcia Miguel Pereira, que busca nessas obras – embora o centro de seu estudo crítico esteja nos contos e romances – elementos para a compreensão da produção literária machadiana e mesmo para relacioná-los com a biografia do autor. Sem contar algumas referências soltas às crônicas de Machado em jornais e periódicos – especialmente por volta do cinqüentenário da morte do escritor –, Raymundo Faoro é o primeiro que fará uso ostensivo das crônicas machadianas em suas análises. Em A pirâmide e o trapézio, Faoro cita com igual desenvoltura trechos dos romances, dos contos e das crônicas do escritor, sempre para traçar uma relação com a sociedade brasileira oitocentista. Nos estudos machadianos mais recentes (a partir da década de 1980), vemos a ampliação e o aprofundamento das análises calcadas nas crônicas. Num dos capítulos de Machado de Assis: ficção e história, John Gledson faz uma investigação 12

Apud GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis, p. 210.

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sobre a série "Bons dias!", primeiro passo do autor no estudo da crônica machadiana, que renderá edições fartamente anotadas e comentadas desta mesma série, dos dois primeiros anos de "A semana" e das "Notas semanais" d'O Cruzeiro (esta última com Lúcia Granja), além de elementos para alguns ensaios. Por volta da mesma época, Davi Arrigucci Jr. publica o ensaio "Fragmentos sobre a crônica", no qual trata também da crônica machadiana, inclusive com alusões ao capítulo de Gledson sobre "Bons dias!". Nas duas décadas seguintes, vemos os efeitos da contribuição de John Gledson ao estudos machadianos, especialmente no que se refere à crônica. Quer seja para apoiar o crítico inglês, quer seja para tentar refutá-lo de alguma forma, ou pelo menos mostrar outros caminhos de análise, vários autores passaram a abordar a crônica de Machado de Assis, a exemplo do historiador Sidney Chalhoub, do crítico Alfredo Bosi, do especialista em literatura portuguesa Massaud Moisés e, mais recentemente, de Lúcia Granja e Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Nos diálogos entre as obras de alguns desses autores é possível observar alguns "nós" difíceis de resolver, como a diferença entre Gledson e Chalhoub a respeito do grau em que as crônicas de Machado conteriam, ainda que de modo oblíquo, opiniões pessoais do escritor (Gledson) ou representariam somente opiniões e pontos de vista de "personagens fictícios de uma história real" (Chalhoub). Com um enfoque um tanto diferente, embora não diametralmente oposto aos dos demais autores, Bosi também traz mais lenha para essa fogueira, quando reivindica, em "O teatro político das crônicas de Machado de Assis", um tratamento especialmente literário, embora com algo de interdisciplinar, para as crônicas do escritor, alegando a inutilidade de se buscar alegorias, para ele arbitrárias, da História do Brasil – ou da sociedade brasileira. Portanto, podemos notar que a crônica tem ganho espaço nos estudos machadianos nos últimos trinta anos. Não é mais tratada como mero elemento complementar no estudo dos gêneros em que Machado mais se consagrou (o conto e o romance) ou para ilustrar pontos biográficos do escritor. Mas, por outro lado, como a "acumulação crítica" sobre a crônica ainda é bem menor se comparada àquela que se deu sobre o conto e o romance, até mesmo pelo tempo menor em que tem sido estudada sistematicamente, ainda há muito o que se buscar nesse gênero.

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Neste trabalho, tomarei uma posição mais próxima da crítica de John Gledson sobre a crônica machadiana, buscando, no entanto, aproveitar as contribuições de outros críticos, especialmente Sidney Chalhoub. Portanto, as crônicas de Machado de Assis serão analisadas, nesta dissertação, como textos em que algumas opiniões do autor podem estar mais ou menos evidenciadas, ainda que de modo discreto e enviesado. * * * Sobre a escolha do título desta dissertação, cabe um esclarecimento. O leitor familiarizado com a obra de Machado de Assis se lembrará da descrição do conselheiro Aires, feita no capítulo XII ("Esse Aires") do Esaú e Jacó: "Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exatamente o que quero dizer. Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não por inclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia"13. Essa descrição de Aires é freqüentemente atribuída ao próprio Machado de Assis, por influência provável do "estudo crítico e biográfico" de Lúcia Miguel Pereira, em que se observa que o personagem tem algo do autor e também pelas declarações feitas a Mário de Alencar sobre o caráter autobiográfico do Memorial de Aires – retrospectivamente, o Aires de Esaú e Jacó também acabou associado a Machado. Isso contribuiu para construir a imagem do escritor alheio às mazelas do mundo e do seu país, já bastante refutada atualmente. Ao intitular a presente dissertação "Controvérsia sem tédio" quis fazer referência a este ponto e relacioná-lo com a idéia de que Machado de Assis, a seu modo, participou de algumas polêmicas de seu tempo especialmente por meio de suas crônicas e dos "diálogos" que estas estabeleciam com o que estava sendo tratado na imprensa e nos debates políticos. As "controvérsias" principais escolhidas para este trabalho foram "as polêmicas em torno da imigração", como consta do subtítulo. Devido ao viés lúdico, cheio de humor e ironia da crônica, ao contrário do que os textos "técnicos" da imprensa e os discursos e debates parlamentares apresentavam, escolhi o complemento "sem tédio" para caracterizar as obras machadianas que, de um modo ou de outro, abordaram as supracitadas "controvérsias". Portanto, a hipótese desta dissertação é que as muitas polêmicas suscitadas pela questão da imigração foram abordadas na crônica de Machado de 13

Obra completa, em quatro volumes, p. 1092.

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Assis, e que inclusive há evidências de que o autor "tomou posição" em relação ao assunto.

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CAPÍTULO 1 As primeiras discussões sobre a imigração

Pelo que se pôde detectar, a primeira vez em que Machado de Assis tocou no assunto da carência de mão-de-obra no Brasil, em texto cujos moldes se encaixam no gênero crônica, foi em 1º de setembro de 1876 (crônica n.º 1 do corpus) na coluna "História de quinze dias", do periódico Ilustração Brasileira. A possibilidade, cada vez mais evidente, do fim da escravidão se ampliou significativamente após 1871, ano em que a Lei do Ventre Livre foi aprovada. A alusão é breve, mas mostra que, cinco anos após a aprovação desta lei, também chamada Lei de 28 de setembro, o tema estava em evidência, e o simples fato de a crônica apontar que a carência de mão-de-obra (de "braços") no Brasil da época era uma preocupação mostra que o autor estava inteirado do problema e das discussões em torno do assunto no Parlamento. Portanto, não é por acaso que as primeiras crônicas de Machado a apresentar o problema sejam justamente dos anos 1870. Como é muito difícil determinar quais das crônicas publicadas entre 1869 e 1873 no periódico Semana Ilustrada são de Machado, parece mais seguro começar da Ilustração Brasileira, cujas crônicas publicadas entre 1876 e 1878 não deixam dúvidas com relação à autoria. Na parte III da crônica mencionada, de 1º de setembro de 1876, há uma referência à questão da carência de mão-de-obra: "Alguma coisa nos faltava há muito tempo; uns diziam que eram capitais, outros que braços à lavoura". Os assuntos abordados pelo narrador nesta parte da crônica não são, no entanto, os problemas financeiros do país, ou a falta de trabalhadores braçais para a atividade agrícola. O tema é a vinda da companhia lírica, que então passava pela Argentina e, em seguida, viria para o Brasil – "Era engano: faltava-nos música", completa. Essa estratégia de inserir assuntos sérios, referentes à economia e/ou à política, quando o tema principal era algo mais leve, ligado ao entretenimento – no caso, a ópera, cuja popularidade era enorme entre os poucos que podiam pagar para assistir a um espetáculo –, tem um efeito humorístico, talvez irônico. O cronista sugere que a falta de dinheiro e de mão-de-obra no país estavam em segundo plano se comparadas à

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necessidade de espetáculos operísticos, o que poderia ser lido como uma leve crítica à despreocupação de alguns com assuntos muito mais importantes. Na crônica de Machado esse procedimento é freqüente, assim como é comum o procedimento oposto, em que o autor insere temas mais "leves" num assunto principal mais sério. Esses tipos de mudanças e misturas de registro serão muito aproveitados em suas obras ficcionais. No ano de 1876, quando Machado de Assis escreve a crônica, 30.567 imigrantes teriam entrado no Brasil; para citar um exemplo de opinião corrente, o deputado Almeida Nogueira lembrava, em seu discurso na Câmara: "O Brasil é um país novo, precisa atrair a imigração, receber em suas veias a seiva nova da civilização moderna"14. Esse tipo de discurso, que vai se tornando muito comum no último quartel do século XIX e que faz lembrar os "países novos e cálidos" aos quais Brás Cubas faz referência, já devia reverberar na mente crítica do autor que, no entanto, ainda se limita a fazer uma breve referência ao problema. O "historiador de quinzena" se dedica, com mais ênfase, ao temas leves e que mais interessem ao público, mas não deixa de lembrar que a falta de capitais e de mão-de-obra é um possível problema – um problema mais grave, se comparado ao anseio pela montagem de óperas no país. Na crônica de 1º de março de 1877, a segunda do corpus, não há referência direta à imigração. Há, no entanto, uma referência às sessões que antecederam a aprovação da Lei de 28 de setembro de 1871. Mais tarde, como funcionário do Ministério da Agricultura, Machado fará esforços para vê-la cumprida, como mostrou Sidney Chalhoub em Machado de Assis, historiador15. Esta lei serviu de forte incentivo para a política imigratória, que passou a ser, a partir de então, um dos principais assuntos do debate político e da imprensa. A mesma crônica apresenta

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Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 17 de maio de 1877. CHALHOUB, Sidney. "Escravidão e cidadania: a experiência histórica de 1871". In: Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia da Letras, 2003, pp. 131-291. Para o historiador, "o literato transformaria a experiência histórica da década de 1870 em força criadora", ou seja, todas as discussões em torno da lei de 28 de setembro de 1871 seriam húmus para a criação machadiana. Um exemplo citado por Chalhoub é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, "no qual a minúcia e densidade das alusões históricas não cessam de surpreender", como no caso da possível inspiração para o romance num discurso do político brasileiro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, o visconde de Sinimbu, em que este confessava ter uma "idéia fixa". O historiador conclui que "Sinimbu e Brás Cubas haviam diagnosticado as causas dos males da nação e adquirido a idéia fixa de curá-lo. Morto, Brás confessa tudo e diz que não fora motivado por filantropia [...]. Vivíssimo, Sinimbu não confessa nada, mas planeja depurar o corpo da nação excluindo o povo da política." Essa "força criadora" a que Chalhoub faz referência se percebe também nas crônicas de Machado de Assis. 15

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alguns dados sobre estrangeiros residentes no país, de acordo com informações do Relatório de Estatística, que Nabuco descreveria, em 1883, "como listas e apuração que espantariam a qualquer principiante de estatística". Machado – ou Manassés, seu narrador – apresenta esses dados como curiosidade para os leitores da crônica, mostrando a quantidade de pessoas de algumas nacionalidades no país: persas (iranianos), turcos (provavelmente sírios e ou libaneses, então súditos do Império Otomano), japoneses e gregos são os citados, certamente por se encontrarem em menor quantidade: "Uma arca de Noé em miniatura", descreve o autor. O destaque que o Machado cronista dá às correntes imigratórias minoritárias aparecerá novamente em outras crônicas, sendo reflexo do que ele mesmo chama "coisa de míope" – dar atenção a detalhes pouco explorados. Isso leva a efeitos muito interessantes e, ao contrário do que se possa imaginar, não exclui os grandes temas da pauta do cronista. No início do mesmo ano em que Machado escreve essas duas crônicas (1877), que coincide com a segunda regência da Princesa Isabel e com a chegada do primeiro grande grupo de imigrantes italianos à Província de São Paulo, os debates parlamentares em torno da imigração já estão bastante acalorados. Embora não faça referência às discussões sobre o tema, entre os debates que levaram Machado a ver que "a vida parlamentar tomou algum calor mais do que é costume" provavelmente estavam discussões sobre a imigração, como a que se daria, pouco mais de um mês depois da publicação da crônica, entre José de Alencar e Taunay. O primeiro vê com olhos críticos a imigração a todo custo, especialmente a contratada: É por isso que eu vejo com tristeza o espírito de estrangeirismo invadir a nossa política, ameaçando transformar a pátria em um mercado cosmopolita de idéias como de capitais, de homens como de instituições! [...] havemos de ser um grande Império, sem necessidade de recorrer a esse tráfico de europeus, muito mais odioso do que o de africanos, embora se disfarce com o nome de colonização. [...] Tem-se desenvolvido ultimamente uma espécie de fetichismo do estrangeiro. Se a nossa lavoura definha é porque faltam braços estrangeiros, enquanto a minha província aí está exuberando de gente que até quer emigrar para outras. Se a nossa indústria não se desenvolve, precisa de capitais estrangeiros. Se o nosso espírito público se abate, cumpre inocular-lhe sangue estrangeiro. E finalmente o nobre deputado por Goiás [Taunay], que sinto não ver presente, entende que nós já carecemos até de estadistas e ministros estrangeiros que nos venham governar.

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[...] mas o que devemos desejar é que os homens laboriosos que nos podem trazer o concurso de sua atividade, e os capitais estrangeiros que procurem emprego em nossa indústria, venham espontaneamente. Não está na nossa dignidade de povo mendigar uns, nem traficar outros. Esta solicitação não me parece decorosa, e é muito nociva.16

Alfredo Maria d'Escragnolle Taunay, o visconde de Taunay, que fora eleito senador já em 1866 e cumpria mandato como deputado pela província de Goiás, defendia a imigração irrestrita de europeus como forma de melhorar o país: Amo, Sr. Presidente [Alencar], como bom brasileiro, a minha pátria, mas por isto mesmo é que procuro incessantemente pensar em todos os meios que possam engrandecê-la e dar-lhe posição vantajosa no mundo civilizado. Não será por certo com idéias acanhadas de tacanho brasileirismo, [...] não será com esses sentimentos que havemos de chegar ao resultado desejado. [...] S. Ex. falou em nome do seu velho Brasil... pois bem, fique-se com ele, o Brasil do papelório, do patronato e da rotina; eu procurarei seguir, com o novo Brasil, ao encontro dos princípios, que já vão abrindo caminho na nossa sociedade, e que afinal hão de ser impostos ao Parlamento se daqui não partir a almejada iniciativa.17

Esse "calor mais do que é costume" no parlamento, descrito por Machado em sua crônica, possivelmente se referia, também, a discussões desse tipo, em torno da imigração, que se intensificaram gradativamente a partir da aprovação da Lei do Ventre Livre, cujas sessões o cronista relembra. É curioso notar que, muitos anos mais tarde, em crônicas posteriores, as questões postas pelos dois parlamentares serão retomadas, sugerindo a impressão profunda que os debates entre os dois políticos-escritores do círculo de Machado teriam deixado no escritor. Na crônica de 28 de outubro de 1888 (n.º 12 do corpus), as idéias de Taunay sobre a entrada e naturalização de estrangeiros serão, de certa forma, postas em dúvida. Este mesmo deputado, que em 1888 estará cumprindo mandato como senador, aqui se refere ao "Brasil do papelório", idéia que Machado vai criticar em crônica de 19 de março de 1893 (n.º 25), em mais uma demonstração, ao menos aparente, de "nativismo". Nesta crônica Machado escreve: Terra do papelório! costuma dizer um ancião que por falta de meios, amor ao distrito, medo ao mar, doença ou afeições de família, nunca pôs o nariz fora da barra. Terra do papelório! Ele não quer saber se a burocracia francesa é mãe da nossa. Também não lhe importa verificar se a

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Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 7 de maio de 1877. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 14 de maio de 1877.

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administração inglesa é o que diz dela o filósofo Spencer, complicada, morosa e tardia. Terra do papelório! É uma idéia.18

Assim como na crônica citada, de 28 de outubro 1888, o cronista pondera sobre uma suposta característica brasileira, alvo de críticas. Neste caso, a burocracia é o alvo. É difícil deixar de ver algo do Machado de Assis funcionário público na passagem. Entre os dois discursos transcritos, proferidos cerca de um mês depois que o cronista começa, discretamente, a abordar a questão da imigração e da presença de estrangeiros no país, nota-se que as possíveis idéias e opiniões expressas pelo autor em crônicas posteriores se aproximam mais das de Alencar, nas quais não há um desejo de que a imigração e, depois, a possível naturalização, sejam acima de tudo voluntárias. É evidente que o escravista Alencar, o qual viria a falecer no final mesmo ano de 1877 – fato sobre o qual Machado escreve em crônica de 15 de dezembro –, em que proferira o discurso citado anteriormente, tinha outros interesses na morosidade da entrada de imigrantes como substituição de mão-deobra, mas isso não impede que sejam notadas as aproximações. As opiniões de Machado e Alencar parecem se aproximar, os motivos e justificativas é que são diferentes. Em outra crônica de 1877, de 15 de novembro (n.º 4), Machado faz referência à carência de braços, quando trata dos discursos do deputado Franklin Dória em favor da instrução pública: "Todos pedem braços, também o Sr. Dr. Dória e eu os pedimos; mas devemos pedir com a mesma força o desenvolvimento da instrução". A referência também é breve, mas mostra que, para o cronista, a questão da mãode-obra, crucial para a economia do país, não deveria eclipsar outras, igualmente importantes. Em crônicas posteriores, o problema da instrução pública vai estar relacionado com a imigração, na medida em que se faria necessário o ensino da língua portuguesa aos possíveis novos cidadãos. A idéia de que era preciso "pedir com a mesma força o desenvolvimento da instrução" mostra, por si, que a educação era das preocupações menores dos políticos e proprietários brasileiros, mais ocupados ou com a manutenção da escravidão, ou com a substituição dos escravos por estrangeiros igualmente rentáveis. Embora a vinda de imigrantes fosse vista como possível alavanca para a "civilização" do país, poucos ou nenhum parlamentar 18

A semana (Gledson), p. 212.

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se preocupava com a idéia de que o ensino público aos estrangeiros e seus filhos seria a maneira mais interessante para torná-los cidadãos. Nas crônicas em que Machado aborda a existência de comunidades em que só se fala alemão ou italiano, a relação se torna evidente. A substituição da mão-de-obra também foi assunto principal dos dois Congressos Agrícolas realizados em 1878 no Rio de Janeiro e em Recife. Machado faz referência ao Congresso que ocorreu em sua cidade nas crônicas de 16 de junho, 7 e 14 de julho deste mesmo ano (n.os 5, 6 e 7) – todas do periódico O Cruzeiro, para o qual havia começado a escrever suas "Notas semanais" em 2 de junho. A primeira das crônicas, escrita antes do Congresso, pede que sejam esquecidas, por ora, as diferenças políticas e todas as "máscaras" às quais a política brasileira estava acostumada, para que os esforços fossem reunidos e direcionados para o bem do país. No entanto, o autor apresenta o fato de modo curioso: "A crônica menciona o fato com prazer; e atreve-se a manifestar o desejo de que seja imitado em análogas circunstâncias". Essa maneira de fingir que a crônica "fala por si", de colocá-la como a própria "narradora", serve para tirar o peso de opiniões que poderiam ser atribuídas ao seu autor. Essa crônica "autônoma" passa a idéia de que o mais comum era o fato de as disputas políticas e interesses particulares estarem acima dos interesses do país, e pede que esse costume seja abandonado temporariamente. Em 7 de julho de 1878, à véspera da reunião do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, Machado escreve: Reúne-se amanhã o congresso agrícola; e folgo de crer que dará resultados úteis e práticos. Conhecida a nossa índole caseira, a tal ou qual inércia de espírito, que é menos um fenômeno da raça, que da idade social, a afluência dos lavradores parece exceder à expectação. A obra será completa, se todos puserem ombros à empresa comum.

Desta vez aparece o uso da primeira pessoa, na qual o cronista apresenta a idéia de que "nossa índole caseira" e possível "inércia de espírito" é resultado do estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira, não de nossa "raça", termo que aqui parece permitir mais de uma leitura, mas que pode levar à conclusão de que Machado está ironizando as teorias raciais, já presentes com força nessa época. Mesmo a idéia de hierarquia civilizatória, a qual leva à noção de "idade social", parece estar posta com certa ironia, podendo ser entendido que nem uma nem outra

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explicam o caráter que se atribui à população brasileira, sendo, no entanto, preferível a idéia de juventude civilizatória à noção de que somos uma raça apática, para muitos por causa do "abastardamento" provocado pela mestiçagem. A referência ao Congresso Agrícola na crônica seguinte, de 14 de julho, com o evento em pleno transcurso, é interessante e complexa. Eleazar escreve que o Congresso estava na imprensa e na boca do povo, faz algumas observações sobre os possíveis pensamentos dos fazendeiros, passeando pelas ruas da capital, observando as diferenças com relação às suas propriedades, e trata das idéias apresentadas no evento, sem entrar em detalhes. O que de mais específico o cronista cita é o fato de apenas um dos participantes ter defendido "a introdução de novos africanos", idéia logo abafada por protestos. O panorama apresentado mostra que houve no Congresso "algumas divagações" e "idéias úteis e práticas", algumas destas mais imediatas, outras para longo prazo. Também há referência à comissão dos lavradores paulistas, que teriam se reunido para, em pouco tempo, escrever "um longo trabalho, refletido e metódico", com a afirmação, talvez irônica, de que "ingleses não andariam mais depressa". Entre as idéias apresentadas por essa comissão dos lavradores paulistas no Congresso Agrícola, havia algo do tipo: Se o país necessita de população estrangeira para desenvolver todas as indústrias e especialmente a agricultura, que é a nossa principal, é contudo inquestionável que muito se deve ter em vista a raça, origem, caráter e costumes dos povos que têm de conviver no seio da nacionalidade brasileira, porque antes de tudo precisamos retemperar nossa energia e estimular o trabalho pela moral e pela liberdade.19

A idéia de "raça" foi vastamente utilizada nesse Congresso, no qual se discutiu a possibilidade da imigração chinesa e indiana, entre vários outros temas. Ao descartar, na crônica da semana anterior, a questão racial como causa da "inércia de espírito" brasileira, o cronista de certa forma se adianta ao tema, que evidentemente seria colocado no Congresso, já que no próprio Parlamento era freqüentemente referida a "vadiagem" como traço comum ao povo brasileiro. A idéia de "retemperar nossa energia" está ligada ao branqueamento ou melhoramento do povo brasileiro, já que "a raça, origem, caráter e costumes" dos imigrantes teriam de ser levados em consideração. Portanto, para a comissão formada pelos lavradores

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Congresso Agrícola, Rio de Janeiro, 1878. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 76.

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paulistas, a "inércia de espírito" a que se referiu Machado seria, sim, fenômeno da raça, a qual deveria ser "retemperada" para que o problema fosse resolvido. Quando o cronista escreve sobre o evento, de modo genérico, não entra em detalhes, apenas na condenação da proposta de que fossem trazidos mais escravos africanos – "Uma voz apenas se manifestou em favor da introdução de novos africanos; mas, a unanimidade e o ardor do protesto abafou para sempre essa opinião singular". O último parágrafo é uma espécie de justificativa dessa suposta "imparcialidade", pois nele a crônica é apresentada como "frívola dama", que nada sabe de problemas sociais e coisas semelhantes. O modo como o autor expõe suas impressões, de modo cauteloso, para depois tirar a responsabilidade de si mesmo lembrando que o gênero não comporta "idéias graves" e "observações de peso", mostra certa preocupação em não entrar diretamente em controvérsias, como por vezes ocorreu quando escrevia para a o Diário do Rio de Janeiro. Mas esse modo sutil de se exprimir, de expressar idéias de modo oblíquo, com frases e observações incisivas no meio de um texto em que as "coisas leves" predominam, parece ser algo como lançar uma mensagem ao mar, dentro de uma garrafa: alguém, de alguns milhares de leitores, poderia perceber mais que frivolidades na crônica. Cabe lembrar que o "distanciamento" do cronista em relação ao evento é muito provavelmente (mais) uma estratégia narrativa. Machado de Assis tinha um cargo importante no Ministério da Agricultura, portanto é pouco provável que o escritor não tenha assistido ao menos a uma parte do que foi discutido naquele congresso. A negação da idéia de atribuir à raça certos problemas sociais brasileiros e da noção de que seríamos fisicamente inferiores, "débeis" por causa da mestiçagem, reaparece em crônica de 25 de agosto de 1878 (n.º 8), pouco tempo depois do Congresso Agrícola. Ao tratar da vinda de um atleta italiano, chamado Battaglia, o qual havia desafiado qualquer um a derrubá-lo, inclusive com premiação em dinheiro para quem conseguisse, Machado deixa transparecer, com malícia, suas opiniões a respeito da suposta inferioridade racial e genética dos brasileiros: [...] fato que me assombra é a existência, nesta cidade, de sete Hércules dispostos a lutar com o adventício, e tão Hércules que logo o primeiro o derrubou; sem que aliás nenhum deles haja nunca anunciado as suas valentias. Há portanto músculos nesta sociedade; estamos longe da anemia e da debilidade que nos atribui o pessimismo de alguns misantropos. Possuímos, nós somente, todos ou quase todos os Hércules das mitologias; de maneira que, se apenas um deles, o grego, fez os doze trabalhos de que

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nos falam os poetas, nós com os sete podemos terminar, quando menos, o pleito da Copacabana. O que já não é pouco.

O cronista chama de "misantropos" os que tratam da inferioridade do povo, que não eram poucos, incluindo aí políticos e homens de imprensa. Eleazar (Machado?) se diz impressionado com o fato de haverem aparecido sete homens dispostos a lutar com o estrangeiro, dos quais logo o primeiro já conseguiu derrubálo, apesar da justificativa deste de que havia "escorregado". Assim, além de termos sete homens em condições de enfrentar o atleta italiano, mais "puro" racialmente, tais "Hércules" jamais haviam feito propaganda de si, como Battaglia. Um dos "misantropos" aos quais o cronista faz referência bem poderia ser o deputado conservador pelo Ceará, Alencar Araripe, que no ano anterior havia expressado, em sessão da Câmara, as seguintes idéias: Entendo que convém-nos admitir indivíduos que por seu vigor físico e por sua capacidade intelectual venham a ser um elemento de perfeição da nossa população, e não uma causa da sua degeneração e decadência; por isso a introdução no país de colonos chins e de outras famílias asiáticas não obterá o meu voto. A mistura de raças, que temos tido, debilita a nossa população, que só com o tempo, e com a admissão de colonização européia, sobretudo de portugueses e alemães por suas qualidades especiais, pode regenerar-se, fortificando-se pela pureza do sangue e qualidades morais.20

Ao leitor atento, a crônica de Machado de Assis talvez pudesse passar uma mensagem sutil, mas corrosiva, contra os determinismos constantemente citados e reproduzidos na época. O problema é que esse tipo de leitor talvez não esperasse isso da crônica, gênero em que o tom "brincão e galhofeiro" predomina. De qualquer forma, a mensagem estava enviada. Como vimos, a discussão política e "científica" em torno de quais seriam os imigrantes mais convenientes para o país, e todas as questões que se prendem ao tema, servem de incentivo para o escritor mostrar, ainda que de modo oblíquo, algumas opiniões suas a respeito dos problemas que são postos em discussão. O principal veículo de expressão eram as crônicas, obras "ligeiras" e supostamente despretensiosas nas quais o escritor deixou vários indícios de que "participava" criticamente das principais discussões que diziam respeito ao seu país e ao mundo.

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Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 27 de junho de 1877.

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CAPÍTULO 2 As discussões sobre a imigração chinesa

[...] não serei eu, como profissional e homem prático na ciência [...], que vá com meu voto procurar abastardar mais do que está a nossa população jornaleira e laboriosa, inoculando em suas veias um sangue pobre e degenerado, tóxico e nocivo às grandes leis do cruzamento das raças. [...] 21 Dr. Pereira de Abreu [...] o chim-panzé tendo as mesmas aptidões do outro chim, é muito mais econômico. Por outro lado, os adversários, os que receiam o abastardamento da raça, não terão esse argumento, porque o chimpanzé não se cruzará com as raças do país. 22 Lélio

Em meio às considerações e polêmicas sobre a substituição da mão-de-obra, a discussão sobre as propostas de imigração chinesa para o Brasil parece ser de especial interesse, pois foi um tema que suscitou debates acalorados no Parlamento brasileiro e na imprensa, deixando vazar também concepções arraigadas sobre questões raciais em sua relação com a mão-de-obra. Na segunda metade do século XIX a mão-de-obra chinesa passa a ser estudada como opção barata para a substituição da escrava no Brasil, sendo que a partir de 1871 a discussões no Parlamento sobre tal imigração vão se tornando muito freqüentes e não cessarão nem com a mudança para o regime republicano. Para Rafael de Lima Medici, num estudo intitulado Em busca de braços ou de brancos?: raça e política de mão-deobra no Brasil (1871-88), em que trata das relações entre a questão racial e a imigração no país, "o caso mais explícito de análise racial do trabalho e da influência das idéias científicas sobre as políticas de mão-de-obra foi a questão da imigração chinesa"23. 21

Discurso feito em 1878, no Congresso Agrícola do Rio de Janeiro. In: Congresso Agrícola, Rio de Janeiro, 1878. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 39. Doutor Pereira de Abreu era representante do Barão de Silveiras neste Congresso e se refere às propostas de imigração do chins (chineses) para o Brasil. 22 Machado escreveu esta crônica para as "Balas de estalo" de 23 de outubro de 1883. Foi a sexta que o autor compôs para esta série da Gazeta de Notícias. Balas de Estalo de Machado de Assis (edição organizada por Heloísa H. P. De Luca), p. 72. 23 MEDICI, Rafael de L. Em busca de braços ou de brancos?: raça e política de mão-de-obra no Brasil

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A maioria dos defensores da vinda dos trabalhadores "chins" eram escravistas (até 1888) ou ex-proprietários de escravos (após o 13 de maio de 1888), desejosos de substituir seus antigos trabalhadores por um tipo de mão-de-obra que lhes parecia muito semelhante àquela com que estavam familiarizados. Por outro lado, boa parte dos liberais e abolicionistas tomou posição contra a vinda dos coolies chineses, para eles meros substitutos dos escravos. Outro elemento de suma importância é que o assunto acaba por ligar-se ao problema da assimilação, por parte da elite brasileira, das idéias "científicas" da época, de origem estranha ao contexto nacional. Muitas dessas idéias eram reelaboradas ou "distorcidas" para servirem de justificativa para um expansionismo imperialista do qual o Brasil só participaria como peça menos importante da engrenagem da economia mundial, como país "na periferia do capitalismo". Alguns grupos locais, identificados à modernidade ocidental, tentarão tirar proveito dessas idéias. Muitos políticos brasileiros, embora liberais e abolicionistas, usaram o argumento de que os chineses eram uma raça inferior, que "abastardaria" ainda mais o povo brasileiro. Mesmo os defensores da vinda dos chineses utilizavam argumentos raciais e evolucionistas, justificando que os chineses eram uma civilização mais adiantada que a africana, por exemplo. Machado de Assis não ficou indiferente aos debates sobre as propostas de imigração chinesa, nem a vários outros, como já vimos em linhas gerais e veremos agora com mais detalhes. A terceira crônica do corpus, datada de 15 de abril de 1877, traz a primeira referência de Machado à China, "onde havia imprensa antes de Gutenberg". A menção possivelmente deve-se ao fato de que naquela altura já estava sendo discutida no Parlamento a possibilidade da vinda de trabalhadores chineses para o Brasil. Essa referência de Machado pode ser irônica, pois, embora a informação não seja exatamente falsa, o fato de enaltecer a China por ter sido pioneira em alguns campos era um dos principais argumentos utilizados pelos defensores dos "chins" como mão-de-obra. O fato de a referência à China parecer "solta" no texto da crônica serve para reforçar a tese de que Machado estava dialogando com as discussões, em voga na imprensa e no Parlamento, sobre a possível imigração chinesa. (1871-1888). Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 2004, p. 365.

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Com relação às duas epígrafes que abrem este capítulo, pode-se afirmar que estas ilustram exemplarmente a abrangência da discussão e mostram como Machado usou a literatura para abordar o assunto. O representante do fazendeiro e negociante Barão de Silveiras no Congresso Agrícola que ocorreu no Rio de Janeiro, em 1878, expressa de modo incisivo sua opinião sobre a vinda dos chineses para o Brasil. Para ele, que se coloca como conhecedor de uma ciência "universal", a população brasileira, já "abastardada", teria ainda mais o que piorar a partir da miscigenação com o chinês. O discurso de Dr. Pereira de Abreu não era isolado, sendo endossado por diversos políticos e outros representantes da sociedade. Cinco anos depois (em 23 de outubro de 1883), com a discussão em torno do assunto ainda mais acirrada, Machado de Assis escreve uma crônica na série "Balas de estalo" (n.º 10, no corpus), da Gazeta de Notícias, em que transcreve um suposto ofício do vice-rei da Índia, em que este defende o uso de outra variedade do "chim", o "chim-panzé"24, como mão-de-obra nas colônias inglesas. O tom anedótico e humorístico dessa crônica de Machado é evidente, mas acredito que há outras coisas implícitas nesse texto, como ocorre com várias situações absurdas e igualmente "engraçadas" em vários contos do autor. Praticamente todas as alegações utilizadas pelos que defendiam e repudiavam o imigrante chinês (no Parlamento e na imprensa) estão postas na crônica. O "chimpanzé" teria a vantagem de ser "muito mais sóbrio que o chim comum", o que lembra a alegação de Sinimbu para defender a mão-de-obra chinesa: "dócil, paciente, submisso, por demais sóbrio, o chim contenta-se com pequeno salário, que não pode satisfazer às necessidades mais imediatas do europeu [...]"25. Também o medo da "mongolização" da população brasileira é explorado por Machado, que explica na voz de Lélio essa outra vantagem do "chim-panzé": "não se cruzará com as raças do país". Ainda são aludidas as afirmações de que o chinês era muito aplicado em qualquer trabalho e de que não adotaria o país como sua nação, levando embora o que ganhasse e podendo trazer problemas diplomáticos. O "chim-panzé" seria superior em todos os aspectos: trabalhador muito mais aplicado, sem noção de nacionalidade, sem governo que respondesse por ele e

24

Heloisa H. P. De Luca destaca, na edição das Balas de Estalo de Machado de Assis por ela organizada, que a grafia "chim-panzé" é utilizada na crônica original, o que ressalta o trocadilho para o leitor. 25 No Relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1879, p. 24.

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ainda com outra vantagem: "a imprensa não poderá tomar as dores por ele, para não confessar uma solidariedade da espécie, que ainda repugna alguns", numa provável referência ao fato de parte da imprensa "incomodar" os escravistas com sua postura abolicionista ou mesmo criticar a vinda dos chineses. Assim, a solidariedade de espécie dos abolicionistas, que partia do pressuposto de que todos os seres humanos pertenciam a uma mesma espécie, não viria atrapalhar os planos dos fazendeiros no caso dos "chim-panzés". Mas qual seria o limite entre a anedota e as possíveis opiniões do autor na crônica machadiana? Podem-se colher algumas pistas que venham a mostrar que, às vezes, opiniões do autor podem estar escondidas em algumas crônicas. Na crônica da mesma coluna da Gazeta de Notícias, do dia 26 de janeiro de 1885, o narrador adverte, em resposta a uma afirmação de um amigo, de que ele "ria de tudo", que "há pessoas que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o que há dentro". Embora Nelson Werneck Sodré afirme que "os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro – notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível"26 –, e seja razoável que Machado quisesse ambas as coisas, com leves "variantes", continuar em evidência na imprensa e conseguir alguns "mil-réis" que complementassem sua renda, acredito que é pouco provável que Machado escrevesse crônicas, a essa altura de sua vida, apenas para obter notoriedade ou ganhar dinheiro. Creio que esse gênero era um laboratório de escrita para o autor, um exercício constante de criação, mas também um veículo por meio do qual o autor podia expressar opiniões, participar de alguma forma das discussões em torno de vários temas; enfim, tratar de assuntos sérios fazendo uso de pseudônimos, personagens e narradores, de modo que o resultado podia ser mais jocoso, anedótico ou mais "profundo". Em comentários relativos aos leitores contemporâneos, e que talvez sirva para os leitores da crônica, Brás Cubas já acreditava que, habitualmente, o leitor "prefere a anedota à reflexão"27. E por trás das anedotas da crônica, acredito, não só havia muita reflexão, como opiniões de Machado de Assis. Tem-se a impressão de que, no caso do chins e, mais especificamente, da crônica que está sendo abordada, Machado quis atentar, por "debaixo da casca", contra a desumanidade que havia na sociedade escravista, a qual ansiava por uma 26 27

História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 292. Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 1, p. 629.

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solução fácil para o problema da mão-de-obra e a crise econômica dela decorrente. A substituição do escravo pelo semi-escravo seria extremamente conveniente para muitos fazendeiros. O procedimento utilizado por Machado na crônica de 23 de outubro de 1883 remete à análise que Roberto Schwarz faz em seu texto intitulado "O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis". Nele, o autor analisa a preeminência do ponto de vista de Brás Cubas, narrador e "membro conspícuo da classe dominante", no episódio que trata de sua relação com a personagem Eugênia: Em lugar da injustiça sofrida por Eugênia, que estaria no foco de um narrador eqüitativo, assistimos a seu reflexo na consciência do responsável ele mesmo, um membro conspícuo da classe dominante, cujo ponto de vista a narrativa adota de maneira maliciosamente incondicional. De entrada, a parcialidade narrativa põe fora de combate o sentimento moral, que diante da injustiça assumida não desaparece, pode até tornar-se mais estridente, mas perde a presunção de eficácia, e aparece como um prisma acanhado. Mais uma vez estamos em campo explorado por Baudelaire, amigo de fintas e mistificações literárias, concebidas como elemento de estratégia guerreira. O poeta gostava de tomar o partido do opressor, mas para desmascará-lo através do zelo excessivo [...]. Atrás do narrador faccioso, que à primeira vista é revoltante [...], abre-se a cena moderna da luta social generalizada, a que não escapam os procedimentos narrativos.28

O que ocorre na crônica de 1883 é, guardando as proporções, algo parecido. Um narrador supostamente isento apenas transcreve a carta da autoridade colonial inglesa – da maior autoridade de uma das colônias da maior potência capitalista da época –, tecendo um breve comentário de aprovação logo em seguida. A falta de escrúpulos de boa parte dos políticos brasileiros fica evidenciada através do prisma do narrador machadiano, que usa um suposto documento, de autoria supostamente confiável. Nos discursos dos parlamentares vemos um tipo de recurso parecido para tentar dar solidez aos argumentos apresentados. Vejamos dois exemplos, de deputados aos quais Machado de Assis faz menção em crônica de 4 de agosto de 1884. Num discurso de 9 de maio deste ano, que consta dos Anais da Câmara dos Deputados, Rodrigues Peixoto, liberal fluminense, tenta explicar o problema da ociosidade de grande parte da população brasileira por meio do darwinismo – aliás, de uma leitura sua do darwinismo: "o que falta é o estímulo para o trabalho, porque entre nós não tem aplicação a lei de Darwin – o struggle for life –, graças à facilidade

28

SCHWARZ, Roberto. "O sentido histórico da crueldade em Machado de Assis". In: Cultura e Política, p. 107 (grifos meus). O artigo foi publicado originalmente como parte do sexto capítulo ("A sorte dos pobres") de Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.

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da subsistência, origem de nosso atraso e miséria." Um exemplo oposto, que põe em dúvida a validade de algumas teorias científicas, está presente num trecho do discurso do doutor Felício dos Santos, médico e deputado liberal por Minas Gerais, que cinco anos antes, em 27 de março de 1879, afirmara: O Dr. Knox, Reclus e Simonot dizem que se a América não recebesse continuados adventícios da Europa em pouco tempo voltaria às raças indígenas! Mas ainda há opinião mais extravagante: o Dr. Nott, Etwick e Ling afirmam que os mulatos são pouco fecundos e vivem menos do que os homens de raça pura, atribuindo aos mestiços uma neutralidade etnológica. A nós, que vivemos em um país de mestiçagem, não é necessário gastar argumentos para refutar semelhantes opiniões.29

Esse discurso é prova de que havia quem expressasse opiniões diversas daquelas que se baseavam em argumentos da ciência racial. As críticas às teorias poligenistas, segundo as quais os mestiços seriam inferiores, "bastardos tão repulsivos quanto cães amastinados, que causam horror aos animais de sua própria espécie"30, aproximam-se, guardadas as proporções, às notas irônicas de Machado com relação a essas teorias. Como na afirmação, em crônica de 6 de outubro de 1888, de que "nada degenera e tudo se transforma"31, na qual Machado põe em dúvida, de modo muito evidente, a validade do termo "degenerescência", muito usado pelos poligenistas, como Agassiz e Gobineau. Embora o poligenismo tenha se tornado obsoleto a partir das teorias de Darwin, alguns autores continuavam acreditando que os seres humanos não tinham uma origem comum, sendo os diversos grupos da humanidade descendentes de espécies distintas. O conde de Gobineau, diplomata e escritor francês, e Jean Louis R. Agassiz, naturalista suíço, ambos depreciaram a população brasileira pela presença marcante de "raças inferiores" e, principalmente, pelo alto grau de mestiçagem que podia ser observado no Brasil. Para esses autores, os mestiços seriam piores que as raças ou "espécies" originais, inferiores em vários sentidos, menos férteis e mais "feios". Machado de Assis nunca faz referência direta a Gobineau ou Agassiz, mas é muito provável que

29

Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 27 de março de 1879 (grifo meu). AGASSIZ, L. e AGASSIZ, E. C. Viagem ao Brasil (1865-1866). Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. 31 Bons dias! (edição organizada por John Gledson), p. 121. Em nota de rodapé desta edição, Gledson lembra que "essas palavras parecem referir-se a teorias de evolução, como as de Darwin [...]. A palavra "degenerescência" era também muito usada em certas teorias raciais e de psicologia, notadamente para referir-se aos supostos resultados da hereditariedade. Aqui, com uma dose de ironia, Machado salienta a duvidosa validez do termo. 30

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o autor conhecesse as teorias poligenistas e usasse sua obra, especialmente as crônicas, para questionar a validade dessas idéias. Na crônica de 23 de outubro de 1883, cujo fragmento citei como epígrafe, a invenção de um documento, uma carta, recurso recorrente na crônica machadiana, serve como "balizamento" para a exposição das opiniões do narrador. O exagero, amoral e até mesmo cruel (apesar da presença do humor), o qual está em algumas passagens da carta inventada por Machado, como naquela na qual se afirma a vantagem que representaria o fato de os "chim-panzés" mortos serem comidos pelos sobreviventes, liga-se ao que Schwarz observa na obra de Baudelaire, descrito como poeta que "gostava de tomar partido do opressor, mas para desmascará-lo através do zelo excessivo [...]". O que vemos na crônica é exatamente isto: o autor exagera excessivamente na ausência de escrúpulos e no anseio por atingir o máximo de produtividade com o mínimo de gasto para mostrar que esse comportamento era o padrão entre os fazendeiros escravistas, para os quais pouco ou nada importavam as conseqüências da introdução de uma mão-de-obra semiescrava para o Brasil. Uma semana antes de escrever a crônica sobre a "pseudocarta" do vice-rei da Índia, Machado já havia se utilizado do recurso, muito freqüente na ficção, de forjar um documento. Na crônica do dia 16 de outubro de 1883 (n.º 9, no corpus), o narrador apresentara a carta que Tong Kong Sing, representante do governo chinês mandado ao Brasil para negociar sobre a imigração chinesa, havia lhe enviado. Miriam Bevilacqua Aguiar, em As últimas crônicas de Machado de Assis, trabalho no qual analisa um conjunto de crônicas de "A semana", afirma ser esta crônica uma evidência de que "Machado vai aos poucos mostrando um novo conceito de crônica"32, mais literário que jornalístico, de fato uma característica observável, em especial ao comparar-se com outras crônicas, de outros autores, produzidas na mesma época. Mas isso não diminui o diálogo com o que estava ocorrendo no Brasil à época; pelo contrário, é justamente o recurso a procedimentos literários que permite dizer certas coisas de modo criptografado, "oblíquo e dissimulado", de um modo diferente, algo mais difícil de ser realizado por um texto jornalístico. Tong Kong Sing – cujo nome às vezes aparece grafado como Tong King Sing e Ti-Kung-Sing – era diretor gerente da China Merchant's Steam Navigation 32

AGUIAR, Miriam Bevilacqua. As últimas crônicas de Machado de Assis, p. 47.

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Company. Sua visita foi muito festejada, mas ele veio acompanhado de um secretário norte-americano, negro. Maria José Elias, na dissertação Os debates sobre o trabalho dos chins e o problema da mão-de-obra no Brasil durante o século XIX (1972), em que trata da questão da imigração chinesa, nota que o fato de o chinês vir acompanhado de um secretário negro causou certo mal-estar: "aquela brilhante sociedade dos grandes fazendeiros de café foi obrigada a receber em seus salões também um representante daquela raça a qual olhavam com desprezo. Tudo isso porque o secretário negro poderia ter influência no novo gênero de escravos que se pretendia introduzir no país"33. Na carta que teria escrito a um dos cronistas das "Balas de estalo", o representante da China cita, entre as palavras chinesas inventadas por Machado de Assis, vários nomes próprios que ajudam a elucidar algumas referências da crônica. Embora a crônica esteja transcrita na íntegra no corpus (crônica n.º 9), vale a pena transcrever a "carta" que Tong Kong Sing teria escrito a Lélio: "Vu pan Lelio, "Lamakatu apá ling-ling Balas de Estalo, mapapi tung? Keré siri mamma, ulamalí tiká. "Ton-ton pacamaré rua do Ouvidor nappi Botafogo, nappi Laranjeiras mappi Petrópolis gogô. China cava miraka rua do Ouvidor! Naka ling! tica milung! Ita marica armarinho, gavamacú moça bonita, vala ravala balcão; caixeiro sika maripú derretido. Moçanigu vaia peça fita, agulha, veludo, colchete, iva cuca trapalhada. Moço lingu istú passa na rua, che-berú pitigaia entra, namora, rini mamma: "Viliki xaxi xali xaliman. Acalag ting-ting valixú. Upa Costa Braga relá minag katu Integridade abaxung kapi a ver navios. Lamarika ana bapa bung? Gogô xupitô? Nepa in pavé. Brasil desfalques latecatú. Inglese poeta, Shakespeare, kará: make money; upa lamaré in língua Brasil: — mete dinheiro no bolso. Vaia, Vaia, gapaling capita passa a unha simá teka laparika. Eting põe-se a panos, etang merú xilindró. "ltá poxta, China kiva Li-vai-pé, abá naná Otaviano Hudson, naka panaka, neka paneca, mingu. Musa vira kassete. — Mira lung Minas Gerais longú senado. Vetá miná Lima Duarte passi Cesário Alvim; mará kari Evaristo da Veiga seba Inácio Martins. Rebagú sara Coromandel? Teca laia Coromandel? "Aba lili tramway Copacabana. Vasi lang? Tacatú, pacatú, pacatú. Hú-huchi edital Wagner, limaraia Duvivier. Toca xuxú Figueiredo de Magalhães, upa, upa, upa. Baba China páriú. Hêhê... "Siba-ú lami assembléia provincial nanakaté. Mirô bobó xalu Gavião Peixoto: ridin teca maneca cabelinho na venta. Pantutu? Hermann limpatúba Arang chikang Companhia Telfônica rurú mamma, ipi, xuchi paripangatú, Caminha, Magalhães Castro, xela kapa, xela kipa, xela kopa. Neka sirí lipa câmara dos deputados abaling. China seca pareka amolador empala. Laka pitaka? Nana pariú.

33

ELIAS, Maria José. Os debates sobre o trabalho dos chins e o problema da mão-de-obra no Brasil durante o século XIX, p. 55.

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"Faro e Lino papyros, biblos, makó gogó. Lino abatukamú, Faro abatiki. Eba ú laté! Castelões zurú! Clube Beethoven paka xali! Tarinanga axá acaritunga. Harritoff dansa mari xalí! "Xulica Brasil pará; aba lingú retórica, palração, tempo perdido, pari mamma; xulica Kurimantú. Iva nenê, iva tatá. Brasil gamela tika moka, inglês ver. Veriman? Calunga, mussanga, monau denguê. Valavala. Dara dara bastonara. Malan drice pakú. Ocuôco; momeréo-diarê. Ite, issa est. Mandarim de 1ª classe". Tong Kong Sing.

Otaviano Hudson (1837-1886), poeta que mantinha, em 1883, a coluna "Musa do povo" no Jornal do Comércio, na qual exaltava a Monarquia e escrevia versos a D. Pedro II, era satirizado por todos os cronistas de "Balas de estalo". O fragmento da carta que diz "Musa vira kassete" provavelmente se refere ao caráter maçante da coluna bajuladora de Hudson, publicada na parte reservada aos "A pedido" do jornal. Os citados José Rodrigues Lima Duarte (1826-1896) e Cesário Alvim (1839-1903) eram políticos liberais mineiros. Coromandel era o nome de uma cidade mineira, mas a crônica provavelmente se refere a José Francisco Netto, barão de Coromandel (1868-1883), também político mineiro. O que leva a crer que o mandarim se refere à disputa pelo senado: "Mira lung Minas Gerais longú senado". Gavião Peixoto também era político, mas paulista. Faro e Lino eram editores, como já fica claro pela associação com as palavras "papyros" e "biblos". Enfim, é possível notar que a carta trata de assuntos locais e atuais daquela época. Cabe lembrar que a sonoridade de algumas das palavras "chinesas" usadas pelo cronista lembra muito mais a de línguas africanas e/ou indígenas. O que pode ser explicado pelo contexto em que o autor se encontrava, com palavras de origem africana sendo faladas por escravos e ex-escravos desde sua infância e a existência dos

muitos

topônimos

indígenas.

Algumas

palavras,

como

"calunga"

e,

provavelmente, "denguê", têm origem africana, respectivamente do quimbundo ka'lunga ('mar') e ndenge ('criança', 'recém-nascido', 'choradeira', 'manha'). O uso destas palavras sugere uma associação entre o chinês e o africano, tanto na língua como na função que teriam como mão-de-obra. Os chineses que viriam trabalhar no Brasil não trariam perspectivas melhores do que aquelas que o país tinha com o trabalho dos escravos africanos e afro-brasileiros. O representante do governo chinês também utiliza, na carta que teria enviado ao cronista da Gazeta de Notícias, várias "expressões nossas; ou por não achar equivalente na língua dele ou [...] para mostrar que já está um pouco familiar com o

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idioma do país"34. Relacionando essas expressões do português brasileiro da época entre si, é possível notar alguns significados. Excluindo-se as palavras "chinesas" teríamos, por exemplo, um fragmento que ficaria assim: "Costa Braga [...] Integridade [...] a ver navios. [...] Brasil desfalques [...]. Inglese poeta, Shakespeare [...]: make money [...], in língua Brasil: mete dinheiro no bolso [...] passa a unha [...]. Põe-se a panos [...], xilindró." Aqui vemos que dentro da "brincadeira" de Machado são apresentados problemas brasileiros, notadamente aqueles ligados a ganhos ilícitos. É fácil identificar que o pouco que o mandarim teria aprendido do Brasil estava ligado a problemas locais, especialmente aqueles referentes a algum tipo de falcatrua ou favorecimento econômico. Mais adiante, há nítida referência à Duvivier & C., concessionária da linha de carris de ferro de Copacabana, que teve esse contrato rescindido por suspeitas de favorecimento. Entre outras coisas, um dos seus sócios, chamado Wagner, teria vendido terrenos na praia de Copacabana ao conde d'Eu. Ferreira de Araújo, dono e editor-chefe da Gazeta de Notícias, trata do assunto na sua coluna "Coisas políticas" em 19 de março, 14 de maio e 1º de outubro do mesmo ano (1883) – quinze dias antes da crônica de Machado, o que indica diálogo estreito do cronista Machado com os assuntos que comparecem em outras páginas e seções do jornal. Sempre que tem oportunidade, Machado faz uso de referências literárias. Essa transição da crônica para a ficção aparece de diferentes formas. Na crônica que está sendo abordada, a alusão à terceira cena do primeiro ato da tragédia Otelo, quando Iago diz a Roderigo que não se suicide, mas que coloque dinheiro em sua bolsa – "put money in thy purse" –, deixa claro que o cronista se refere a algum tipo de fraude. Essa referência aparecerá novamente em crônica de "A semana", em 15 de janeiro de 1893 (dez anos depois): Nada é novo debaixo do sol. Onde há muitos bens, há muitos que os comam. Quer dizer que já por essas centenas de séculos atrás os homens corriam ao dinheiro alheio; em primeiro lugar, para ajuntar o que estava disperso pelas algibeiras dos outros; em segundo lugar, quando um metia o dinheiro no bolso, corriam a dispersar o ajuntado. Apesar deste risco, o conselho de Iago é que se meta o dinheiro no bolso. Put money in thy purse.35

34 35

Balas de Estalo de Machado de Assis, p. 68. A semana (edição organizada por John Gledson), p. 180.

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Nessa ocasião Machado trata de problemas em pauta na semana, assim como parece ocorrer na crônica em que é publicada a carta em "chinês". A diferença está no procedimento: na crônica de 1883, Machado coloca as impressões que um estrangeiro teria ao saber dos "desfalques" da época no Brasil, dez anos depois seria o próprio cronista quem observa e de certa forma "naturaliza" a apropriação dos bens alheios, com a ironia que lhe é de costume. Sem dúvida o procedimento literário da primeira crônica salta mais aos olhos que na segunda que, apesar de também apresentar um tom anedótico bem ao gosto crônica, é mais "direta". Mas o uso evidente da literatura, a partir do uso da mesma peça de Shakespeare, aparece de novo em crônica de 2 de agosto de 1896: Pelo lado psicológico e poético, perderemos muito com a abolição do dinheiro. Ninguém entenderá, daqui a meio século, o conselho de Iago a Roderigo, quando lhe diz e torna a dizer, três e quatro vezes, que meta o dinheiro na bolsa. Desde então, já antes, e até agora é com ele que se alcançam grandes e pequenas coisas, públicas e secretas. Mete dinheiro na bolsa, – ou no bolso, diremos hoje, e anda, vai para diante, firme, confiança na alma, ainda que tenhas feito algum negócio escuro. Não há escuridão quando há fósforos. Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não compres mal os outros, corrompe e sê corrompido, mas não te esqueças do dinheiro, que é com que se compram os melões. Mete dinheiro no bolso.36

É muito interessante a maneira como Machado usa o mesmo procedimento de Shakespeare, na fala de Iago a que crônica se refere. O personagem da peça vai dizendo várias coisas a respeito do que está acontecendo e de seus planos e, no meio de sua fala, a frase "put money in thy purse" vai sendo repetida. Machado usa exatamente o mesmo recurso para falar dos assuntos do dia, para aconselhar ironicamente as pessoas a "meter o dinheiro no bolso", numa tradução muito machadiana, atualizada ao contexto brasileiro da época e que, aliás, o autor fizera na crônica de 16 de outubro de 1883.37 Nota-se ainda que a familiaridade de Machado com a peça de Shakespeare é bem anterior a Dom Casmurro, romance no qual Otelo serve como inspiração, como demonstrou Helen Caldwell. Em crônica de 28 de julho de 1895, Machado faz uma 36

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1304. Nesse meio-tempo, em crônica da série "A + B" de 13 de setembro de 1886, o autor volta a citar a mesma cena, da mesma peça: "B — Pois seja hábil. Make money; é o conselho de Cássio. Mete dinheiro no bolso"37. Creio que aqui o autor se equivocou com o nome do personagem, escrevendo "Cássio" em vez de "Iago"; para Chalhoub, é uma referência a outra peça shakespeareana, Júlio César, mas, nesse caso, o sentido não se encaixaria com as três outras citações (e traduções) feitas por Machado, mesmo porque a expressão "make money" não aparece nesta tragédia. De qualquer modo, parece claro que Machado usa Shakespeare para tratar de questões do momento em que escreve, principalmente aquelas ligadas ao contexto brasileiro. 37

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espécie de "confissão" a respeito do uso que fez (e fará) da peça: "Sei que a história não se repete. A Revolução Francesa e Otelo estão feitos; nada impede que esta ou aquela cena seja tirada para outras peças, e assim se cometem, literariamente falando, os plágios"38. Voltando à crônica de 16 de outubro de 1883, algumas dessas palavras e nomes, aleatórios à primeira vista, se referem a temas recorrentes na crônica machadiana e, acredito, o cronista queria que ao menos uma parte dos leitores apreendesse que os "desfalques" eram coisa comum e constante no Brasil, a tal ponto que foi notado por um estrangeiro de passagem. Ao final da carta, vemos nova seqüência de palavras (sem contar as da língua hipotética inventada pelo autor) que mostram as "impressões" do chinês sobre o Brasil: "Brasil; [...] lingu retórica, palração, tempo perdido, Brasil gamela [...], inglês ver". Após a transcrição da carta, vem um comentário do narrador, que dá uma dica para que o leitor reconheça a definição de progresso do visitante: as palavras inventadas "pacatú, pacatú, pacatú" lembram mais a cavalgada de cavalos ou burros, o que dificilmente lembraria progresso, na época associado às ferrovias e outras opções à tração animal, ou ainda poderia querer dizer que o progresso no Brasil era "pacato, pacato, pacato", no sentido de "passivo, inerte, apático". As idéias de progresso e evolução, aliás, nunca foram caras a Machado, ao menos no que se refere ao uso ideológico que se tentou impor aos termos no século XIX. Nota-se ainda, na descrição do Brasil feita pelo mandarim, algumas das posições de Machado, confirmadas por outras crônicas, como por exemplo o excesso de palavras ("retórica", "palração", "tempo perdido") da classe política brasileira, com poucas ações, as quais, em geral, são para "inglês ver" – expressão também recorrente na crônica machadiana. Ao ler a obra de Machado de Assis "de cima", ou seja, de modo mais abrangente, "panorâmico", notamos que a presença da China não começou nem terminou nesse contexto de acalorados debates sobre o tema "imigração chinesa". Em crônica de Histórias de quinze dias, de 15 de abril de 1877, o autor já lembrava que naquele país "havia imprensa antes de Gutenberg"39; o conto "As academias de Sião", publicado em 1884, também faz alusão à China, sendo que o nome U-Tong parece inspirado no do representante da China Merchant's que visitou o Brasil no 38 39

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1193. Idem, p. 358.

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ano anterior. Em crônica de "A semana" de 19 de agosto de 1894, Machado se refere à China como lugar "em que há de tudo desde muitos milhares de anos"40. O fato é que nada leva a crer que Machado via na China, necessariamente, um país de costumes bárbaros e atrasados. É possível que o autor percebesse que era uma região tão periférica quanto o Brasil, com agravante da influência direta inglesa e da pressão que sofria de outras potências imperialistas. Mas o maior problema de uma imigração chinesa seria a continuidade no Brasil de um certo tipo de escravidão "disfarçada", algo que não ajudaria a superar essa herança do período colonial que até então persistia. Em crônica da série Bons dias! de 10 de novembro de 1888, portanto num momento pós-abolição, Machado escreve: A questão chinesa está absolutamente esgotada; tão esgotada que tendo eu anunciado por circular manuscrita, que daria um prêmio de conto de réis a quem me apresentasse um argumento novo, quer a favor, quer contra os chins, recebi carta de um só concorrente, dizendo-me que ainda havia um argumento científico, e era este: "A criação animal decresce por este modo: — o homem, o chim, o chimpanzé..." Como vêem, é apenas um calembour [...].41

Vemos que após cinco anos da primeira crônica de Machado de Assis sobre o tema, a questão ainda continua de pé. O cronista volta ao tema, inclusive com a retomada do trocadilho da palavra "chim" com "chimpanzé" – dessa vez sem o hífen separando as duas primeiras sílabas. Talvez isso fosse suficiente para algumas pessoas suspeitarem que as crônicas que terminavam sempre com a despedida/ assinatura Boas noites! eram do mesmo autor que assinava "Lélio" nas "Balas de estalo", mas a um leitor comum de jornal não interessaria investigar a autoria de um conjunto de crônicas, ainda mais havendo a necessidade de consulta a jornais de cinco anos antes. O fato é que Machado permaneceu camuflado enquanto escreveu essa série, e Gledson observa que poderia haver nisso algo de intencional e muito conveniente para Machado. Na crônica de "Bons dias!" citada, o novo "argumento científico" trazido pelo suposto leitor, inventado pelo narrador machadiano e censurado por ele, por causa do mero trocadilho apresentado, aparece como uma espécie de êmulo das justificativas, igualmente científicas, dos parlamentares. Provavelmente, Machado 40 41

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1094. Bons dias! (edição organizada por John Gledson), p. 133.

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não via nos argumentos científicos apresentados por parlamentares informações muito mais confiáveis que o trocadilho que seu leitor forjado apresenta. O desfecho da crônica de Bons dias! de 10 de novembro 1888 volta à questão dos argumentos científicos como base para justificativa e defesa dos argumentos de quem não tinha nada a ver com ciência. Muitos políticos brasileiros, a maioria deles bacharéis, se sentiam muito à vontade para utilizar argumentos científicos com o intuito de defender seus interesses, mas não eram os únicos que deles faziam uso. A título de comparação, vejamos mais algumas opiniões de políticos sobre a mãode-obra chinesa. O visconde de Taunay, ferrenho defensor da imigração européia em caráter intensivo, afirmou: "O chim é fraco, e sua força de trabalho insignificante. Seis deles darão o serviço de um bom trabalhador europeu. Mas um só chim tem mais vícios, mais corrupção moral, do que seis trabalhadores brancos."42 Até mesmo para defender o chinês, a tendência era inferiorizá-lo, mas sempre com algum argumento "científico", ainda que não no campo das ciências ditas "naturais". É o caso do discurso de Inglês de Souza, em São Paulo: Um país que, muito antes que se desenvolvesse a civilização do Ocidente, havia criado uma civilização sua, embora hoje inferior à nossa, mas em todo caso prodigiosa para aqueles tempos, um país que inventou a imprensa antes da Alemanha, e que inventou a pólvora, um país que criou indústrias que até hoje são inimitáveis, que até hoje não tiveram rivais, não pode de forma alguma ser comparado ao hotentote bruto, ao zulu ou a outro qualquer povo africano.43

Observa-se que há um empenho do deputado na apresentação de uma "hierarquia" das civilizações, de cima para baixo, a "nossa" – provavelmente no sentido de "européia" ou "ocidental" –, a chinesa e os povos africanos. O político e escritor paraense, autor de O missionário, ao enfatizar a questão civilizatória, evita os argumentos raciais para defender a mão-de-obra chinesa, mas continua no campo dos argumentos científicos, com o uso do evolucionismo sociológico que estabelecia graus de civilização entre diferentes sociedades humanas. Mas havia que relativizasse por completo a questão racial, ainda que como artifício demagógico para defender a mão-de-obra chinesa. Um exemplo é o discurso, transcrito abaixo, de José Luís de Almeida Nogueira, jurista e político 42 43

Anais da Câmara dos Deputados, sessão 1º de agosto de 1883. Anais da Assembléia Provincial de São Paulo, sessão 18 de março de 1880.

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paulista, então membro da Assembléia Provincial de São Paulo, mas que chegaria a deputado geral e senador em várias legislaturas. A inferioridade da raça? Essa questão de inferioridade não é senão um preconceito; nós consideramos os chins inferiores a nós como eles por sua vez nos consideram inferiores. É um ponto de vista diferente. E o que é verdade é que se a raça a qual pertencemos é superior em muitos pontos, a raça semítica, terá também muitos pontos de superioridade à nossa. Onde está o critério para uma apreciação imparcial?44

Embora Machado de Assis tenha dado por esgotado o assunto dos chins na crônica de novembro de 1888, em crônica de "A semana", 14 de agosto de 1892 (n.º 17, no corpus), o autor volta ao tema: "O Senado discutiu o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças [...]"45. Neste fragmento, que parece conter mais mistérios do que a maioria dos leitores pudesse julgar, a "não-opinião" do narrador da crônica, de que não ousava falar de raças, soa como opinião do autor. Sem esquecer o perigo de cair num certo biografismo, é difícil deixar de atribuir essa opinião ao próprio escritor que, sendo também descendente de negros, devia sentir algum mal-estar quando lia ou ouvia algumas opiniões correntes a respeito da "raça preta" ou dos mestiços. Machado de Assis não ficava alheio a essas teorias e encontrou maneiras de colocá-las em dúvida por meio de sua literatura e de suas crônicas. Ao contrário de um Cruz e Sousa, que se sentia "emparedado" em um mundo onde imperava "a fraude ideológica da 'evolução'"46, o cronista de "A semana", ao que tudo indica, tinha idéia das falácias a que levavam as teorias raciais, com base na ciência em voga no seu tempo. Sua própria inteligência servia, de certa forma, para desmentir essas teorias. Só não sabemos à custa de quantos conflitos internos, de quantas dúvidas, esse crítico sagaz da ciência de uma época foi capaz de definir suas idéias. Com relação ao fragmento citado, ao afirmar que "não tinha opinião" e que "nunca ousava falar de raças", o escritor diz muito: numa época em que quase todos eram da mesma opinião, fazendo uso da "ciência" da época, não ter opinião já era afirmar uma postura diferente com relação aos argumentos postos. 44

Anais da Assembléia Provincial de São Paulo, seção de 17 de janeiro de 1888. A semana (Gledson), p. 105 (grifo meu). 46 SEVCENKO, Nicolau. "O núcleo notável e a 'linha evolutiva' da sociedade e cultura brasileiras". In: Literatura como missão: tensões sociais... São Paulo: Cia. das Letras, 2003, p. 312. 45

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A crônica em questão apresenta pausas que me parecem capciosas: "Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças, que me não lembre do Honório Bicalho". Machado faz referência à surpresa do engenheiro Honório Bicalho (18391886), quando viu que em uma "cidade alemã" do Rio Grande do Sul só se falava alemão. O engenheiro teria dito, após o episódio: "Achei-me estrangeiro em meu próprio país!"47. Não só as pausas, mas a escolha das palavras parecem querer deixar algo implícito, uma vez que a forma "nunca ouso", definitiva e incisiva, poderia ser substituída, no sentido global do parágrafo, por "não posso" ou "não consigo", o que tornaria a frase mais leve. O próprio uso da adversativa ("mas") ao invés da conclusiva ("portanto"), que daria sentido mais óbvio ao fragmento, parece ter a intenção de provocar uma "torção" lógica. Mas ainda que não haja intencionalidade na escolha das palavras e no modo de construção da oração, vemos que o termo "raça" pode ser lido como "nacionalidade", pela referência imediata aos alemães no sul do Brasil. Porém, a coisa se complica quando, na mesma crônica, pouco mais adiante, Machado trata do impedimento da canonização de Colombo "por motivo de amores que ele trouxera com uma judia". Assim, os três temas, discussões em torno da imigração chinesa (que, como vimos, sempre se associava a argumentos científico-raciais), a presença de alemães "não-assimilados" no sul do país e ainda "essa judia que tamanha influência devia ter na posteridade", se ligam pelo leitmotiv que é o problema da raça e da nacionalidade. No caso da referência a Colombo, podemos até usar o termo "americanidade". Muitos não queriam que os chineses viessem por causa da "raça", tida como inferior; Colombo deixou de ser canonizado por um suposto envolvimento amoroso com uma mulher de outra "raça", uma vez que nem a conversão ao cristianismo livrava os judeus desse estigma; enquanto a "raça" tão elogiada dos povos particularistas germânicos fazia do sul do Brasil uma sucursal de sua pátria. Ao mesmo tempo em que relativiza o problema racial, deixando claro que é antes cultural, econômico e religioso, a crônica serve para criticar figuras que, como Taunay, defendiam a "germanização"48 do Brasil, inclusive como meio para acelerar o "branqueamento" do país, na crença de que esse era um 47

A semana (Gledson), p. 105. O periódico catarinense Blumenauer Zeitung publicou, em 3 de maio de 1884, trechos de uma carta do visconde de Taunay em que o político e escritor defendia a "germanização" do Brasil: “A colonização alemã, para mim, é a melhor, debaixo de muitíssimos pontos de vista. Com ela é que desejo formar o fundo da nacionalidade brasileira.” Citado por SEYFERTH, Giralda. "A idéia de cultura teuto-brasileira: literatura, identidade e os significados da etnicidade". Horizontes antropológicos. Porto Alegre, ano 10, n.º 22, jul./dez. 2004, p. 167. 48

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télos e a única maneira pela qual se atingiria o progresso social e civilizatório por aqui. Em contraste com a "opinião" do cronista, de que não ousava falar de raças, vemos opiniões de políticos brasileiros, representantes do povo, semelhantes a esta, do deputado paulista Martim Francisco Filho: Os chins são evidentemente mais inteligentes do que a raça preta, porque os chins constituem uma raça civilizada. É uma civilização que parou em um ponto, que se imobilizou; mas inquestionavelmente a China representa no progresso humano uma civilização adiantada. Grita-se contra a imoralidade que nos pode vir da imigração chinesa; mas não a temos nós com a existência da escravatura, e em muito maior grau? Nós não aturamos o negro nas fazendas, levando a imoralidade ao excesso? E julgam os nobres deputados que hão de moralizar-se os negros, só pelo simples fato da emancipação ?49

Ao ler as crônicas de Machado de Assis, percebemos que muitas delas se utilizam da ironia, da paródia e de outros procedimentos para criticar esses discursos, muito comuns no meio político e na imprensa, os principais meios de expressão para quem quisesse expor as suas idéias para um público mais abrangente. A idéia de um télos civilizatório, o evolucionismo e o culto do progresso eram sempre atacados por Machado, por meio de diversas situações que apareciam nessas suas obras mais "ligeiras". O escritor nunca ficava alheio às discussões em pauta e aos temas, gerais ou pontuais, que apareciam em sua época, mas freqüentemente a referência a certos discursos parlamentares parece direta, ou seja, Machado sabia o que estava sendo dito no parlamento e às vezes fazia referência às bobagens que diziam alguns dos "representantes dos 30%"50, como escrevera na crônica de 15 de agosto de 1876, na qual, diante da constatação de que pelo menos 70% da população brasileira era analfabeta, o cronista diz que o sistema político existe apenas para 30% da população. Outra crônica, a de 11 de setembro de 1892, volta à questão dos "chins". O penúltimo parágrafo mostra que não havia decisão final a respeito do assunto, com a Câmara, segundo o Diário de Notícias, dividida sobre a abertura do país aos imigrantes chineses. Nesse ponto, o cronista parece ter a intenção de apenas descrever a dificuldade da decisão no Parlamento, deixando claro que um único voto – a "espada de Breno" – poderia pesar nessa balança e decidir o "futuro do Brasil", 49 50

Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 04 de setembro de 1879. Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 315.

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que poderia "ser próspero [...] ou desgraçado" com a vinda dos chineses, de acordo com as opiniões de quem defendesse ou combatesse essa imigração. Parece ser justamente esse o ponto que leva o cronista a se abster de qualquer comentário que pudesse influenciar a opinião pública a respeito da questão. Apenas um ponto, sutil, no início do parágrafo, poderia indicar uma discreta tomada de posição: "[...] não digo adeus aos chins, porque é possível que eles venham, como que não venham". Esse "não digo adeus" poderia dar ao leitor a impressão de que o cronista queria "dar adeus" aos possíveis imigrantes, mas era impedido pela indecisão da Câmara. É interessante notar que Machado estabelecia um texto que servia praticamente como resposta aos discursos de determinados parlamentares. Em crônica de "A semana", de 26 de maio de 1895, Machado afirmará: "Sou eleitor, voto, desejo saber o que fazem e dizem os meus representantes. Não podendo ir às câmaras, aprovo este meio de fazer da própria casa do eleitor uma galeria, taquigrafando e publicando os discursos."51 Embora seja impossível estabelecer exatamente onde termina o texto de Machado de Assis e onde começa o texto de um possível narrador forjado pelo escritor, muitas evidências levam a crer que Machado tinha acesso aos discursos dos parlamentares, mais ou menos do jeito como eram pronunciados na Câmara ou no Senado, e fazia uso metódico desse material em suas crônicas. Destas, várias são as que citam diretamente ou fazem referência a trechos de discursos parlamentares. Como exemplo, além do fragmento citado logo acima, pode ser mencionada a crônica n.º 3 do corpus, na qual o cronista lembra que na Inglaterra e na França os discursos parlamentares são publicados no dia seguinte e defende que no Brasil seja feito o mesmo; ou ainda a crônica n.º 40, em que se critica a omissão das partes lidas na impressão dos discursos – nessas partes apareceria apenas a palavra "lê" entre parênteses, sem que se reproduzisse a parte lida –, o cronista conclui: "[...] eu, contribuinte e eleitor, não gosto de economias na publicação dos debates". Portanto, tudo indica que o autor que utilizava e transformava quase tudo o que lia em algo novo, quer no campo da crônica, quer no do conto e do romance, se aproveitava também dos discursos políticos, estabelecendo uma espécie de diálogo com eles, colocando em dúvida a validade dos argumentos utilizados e, freqüentemente, expressando opiniões suas.

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Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1176.

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Algo parecido ocorre na crônica de 4 de agosto de 1884, na qual Lélio menciona os "folhetos" escritos por um deputado, Sr. Peixoto, "um sobre a baixa do açúcar, outro sobre colonização", que merece ser analisada em seu todo. Essa crônica trata essencialmente de política e espelha bem os princípios da Gazeta de Notícias, de não-envolvimento político, deixando uma sensação de que liberais e conservadores eram quase "farinha do mesmo saco". No início, o cronista afirma que "lembraram-se alguns amigos" que ele "bem podia ser deputado". Brincando com essa possibilidade, Lélio apresenta várias anedotas sobre políticos, as quais evidenciam a falta de escrúpulos de muitos deles. Uma delas trata dos "folhetos" do deputado Peixoto que, não querendo (ou não podendo) participar das discussões em torno do problema da escravidão, que envolvia o projeto de lei da liberdade aos sessenta anos, afirma: "Quanto à questão servil, já expedi o meu modo de pensar em dois folhetos que publiquei [...]". O modo cômodo de se abster das discussões parlamentares é criticado e ironizado pelo cronista, que assevera: [...] é impossível que eu não tenha publicado algum dia, em alguma parte, um outro folheto sobre matéria mais ou menos correlata com os atuais projetos. Na pior das hipóteses, isto é, se não tiver publicado nada, então é que estou com a votação unânime. A razão é que devemos contar em tudo com a presunção dos homens. Cada leitor quererá fazer crer ao vizinho que conhece todos os meus folhetos, e daí um piscar de olhos inteligente e os votos.

A percepção do quanto havia de maquiavelismo na política brasileira – ou de quanto o autor d'O Príncipe conhecia a respeito da "alma" da política – fica muito evidenciada na crônica e talvez ajude a explicar a gênese de contos como "Teoria do medalhão" e "Evolução". A questão da imigração (ou da "colonização") se mostra muito relevante, pois se liga ao já inevitável fim da escravidão. Entretanto, políticos como o deputado Peixoto se recusam a participar das discussões com a desculpa de que já deram suas opiniões em "folhetos". Para usar uma tática parecida com a do deputado – e assim deixar a possível "estratégia" deste mais evidente –, o cronista ironiza: Vou dizer a toda a gente que li e reli os dois folhetos [...]. Interrogado sobre o valor comparativo de ambos, responderei que prefiro o do açúcar, por um motivo patriótico, visto que o açúcar é um produto do país e a colonização vem de fora; mas direi também que o da colonização tem idéias muito práticas e aceitáveis.

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Embora a questão da imigração não seja o ponto central da crônica, fica claro que o tema estava continuamente em discussão e que o cronista não estava alheio a ele. A postura do deputado, que soava como algo do tipo "leiam o que eu escrevi e não me aborreçam", serve de mote para o cronista que, com humor e ironia, produz um texto que pode ser lido como crítica. Ao mesmo tempo, a estratégia de criar uma situação narrativa, no caso a possibilidade de o pseudo-autor, Lélio, ser candidato a deputado, assim como a apresentação dos possíveis artifícios a serem usados para lograr esse objetivo, revela-se um entrelaçamento magistral do ficcional e da realidade, no caso a realidade política brasileira. Como vimos, a crônica de Machado de Assis faz uso constante de paródias daquilo que os políticos diziam. No caso dos debates em torno da imigração chinesa as referências irônicas do cronista são não só evidentes como recorrentes – começam nos anos 1870 e vão até o início do período republicano. O interesse de Machado pelo tema mostra a importância dos debates sobre o assunto e demonstra que eles serviam de ensejo para o escritor pôr em dúvida alguns argumentos baseados na ciência racial. A incoerência da maior parte dos discursos políticos, movidos por interesses de classe, somada à inconsistência dos argumentos raciais são alvo recorrente do cronista.

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CAPÍTULO 3 A crônica machadiana e as "Coisas políticas" de Ferreira de Araújo

Mas e quanto à imprensa? Como a imprensa em geral, reagia aos mesmos temas? O principal exemplo colhido foi o de Ferreira de Araújo, em "Coisas políticas", coluna que o jornalista manteve em sua Gazeta de Notícias. Sabe-se que o jornalista, por sua visão de mundo mais abrangente e nada "provinciana", e também por sua cultura geral, talvez não represente exatamente um "padrão" na imprensa brasileira do século XIX, mas o interesse da comparação de seus textos, jornalísticos e diretos, com os textos de Machado, literários (ou híbridos) e, por isso, lúdicos e com limites pouco definidos entre objetividade e subjetividade, está no fato de serem conhecidos e escreverem para o mesmo jornal. Pode-se afirmar com absoluta segurança que José Ferreira de Sousa Araújo está entre os maiores jornalistas da história da imprensa brasileira. Nascido no Rio de Janeiro, em 1848 e falecido na mesma cidade em 1900, o médico, jornalista e comediógrafo fundou, em 1874, um jornal que marcaria profundamente a história do jornalismo no país, a Gazeta de Notícias. Segundo descrição do escritor e jornalista Lúcio de Mendonça, um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, Ferreira de Araújo era "homem de iniciativas saneadoras, tendo reformado a imprensa de seu tempo, para dar espaço à literatura e às grandes preocupações, com desprezo pelas misérias e mesquinharias da política"52. Sobre a Gazeta de Notícias, Nelson Werneck Sodré comenta que "era, realmente, um jornal barato, popular, liberal vendido a 40 réis o exemplar"53 e que "com Ferreira de Araújo, Manuel Carneiro, Elísio Mendes e Henrique Chaves, jornalistas e não homens de letras, mostrava como a imprensa brasileira conquistava características definitivas"54. De fato, nas décadas seguintes à sua fundação, o jornal vai se firmando como um dos principais diários do Rio de Janeiro, com grande circulação, muitos leitores e um estilo bem diferente daquele que se podia observar

52

Apud SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil, p. 224. História da imprensa no Brasil, p. 225. 54 História da imprensa no Brasil, p. 236. 53

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no Jornal do Comércio, por exemplo. Sobre a modernização que o jornal de Ferreira de Araújo significou para o jornalismo brasileiro, John Gledson lembra que a Gazeta Foi uma novidade entre os jornais brasileiros, pois era vendida nas ruas, e não apenas para assinantes. Era um jornal liberal no melhor sentido da palavra, politicamente independente, vivo e empenhado em apoiar boas produções literárias55.

Sobre a crescente importância do periódico e sua posição entre os jornais cariocas contemporâneos a ele, o crítico inglês nota que por volta de 1888, era um dos três jornais mais importantes do Rio, juntamente com o Jornal do Comércio, por exemplo, um órgão de informação mais caro, mais detalhado e mais conservador, o decano da imprensa do Rio, e com O País que, com tiragem de 26.000 exemplares, proclamava ser o jornal de maior tiragem da América do Sul. O País era republicano; a Gazeta, com uma tiragem não muito menor (de 24.000 exemplares, como anunciava no cabeçalho), era menos engajado politicamente.56

Todos esses jornais do Rio e outros, das províncias brasileiras – periódicos de São Paulo, Bahia e Maranhão são mencionados em "Balas de estalo" – e estrangeiros – The Times e Daily News, este último citado em inglês – davam assunto para muitas das crônicas de Machado de Assis. Verificar cada referência, explícita ou nem tanto, em todas as possíveis "fontes" jornalísticas do Machado cronista renderia um trabalho à parte, e este não é o principal objetivo desta dissertação. Decidi, portanto, que um "estudo de caso" seria o suficiente para ilustrar como as crônicas de Machado se relacionavam vivamente com o jornalismo de sua época e abordavam, com estilo e pontos de vista peculiares, questões referentes ao país. A colaboração regular de Machado de Assis na Gazeta de Notícias começou em 18 de dezembro de 1881, com a publicação do conto "Teoria do medalhão", mas Galante de Sousa aponta que pelo menos desde 1876 o jornal já tinha as portas abertas para o escritor. A partir daí começa uma relação que vai perdurar até 1897, sem contar duas crônicas avulsas de 1900. A estréia de Machado como cronista da Gazeta se dá em 2 de julho de 1883, como o Lélio da série "Balas de estalo", de autoria variada, mas com cada cronista utilizando um pseudônimo diferente. Entre os cronistas desta seção estavam, além de Machado, o próprio Ferreira de Araújo, 55 56

Por um novo Machado de Assis, p. 38. "Introdução" a Bons dias!, p. 21.

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Valentim Magalhães, Capistrano de Abreu, Henrique Chaves e Demerval da Fonseca. Sobre Ferreira de Araújo, John Gledson lembra que "era um jornalista admirável e muito amigo de Machado"57, e ambos estes "atributos" parecem ter sido preponderantes para o ingresso do escritor no quadro de colaboradores regulares da Gazeta e para a sua prolongada permanência no jornal. É certo que em nenhum outro periódico brasileiro da época Machado gozaria de tanta liberdade e teria tanto apoio dos editores. As referências brincalhonas e afetuosas do Machado de Assis cronista da Gazeta a Ferreira de Araújo, o anonimato absoluto do escritor na série "Bons dias!" e até mesmo a pronta substituição do cronista pelo próprio editor do jornal em "A semana" por duas ocasiões – quando Machado não estava bem de saúde – são algumas provas dos "privilégios" dos quais o escritor desfrutava na naquele periódico. Parece que havia forte empatia não só entre Machado de Assis e Ferreira de Araújo, mas entre o escritor e o jornal para o qual escrevia. Tem-se a impressão de que Machado, como se diz, "se encontrou" na Gazeta de Notícias e, além disso, a grande quantidade de leitores aos quais seus escritos chegariam (tanto os contos como as crônicas), ou pelo menos o aumento da possibilidade de ser lido, pode ter sido outro fator preponderante para a enorme colaboração do escritor naquele jornal. Havia, portanto, uma conjugação de fatores, desde a afinidade ideológica até a visibilidade, que ajudam a explicar o porquê desse "casamento" de quase vinte anos entre Machado de Assis e a Gazeta de Notícias. Durante todo o período em que Machado escreveu crônicas para a Gazeta, inclusive nos interregnos entre uma série e outra, Ferreira de Araújo manteve em seu jornal uma coluna intitulada "Coisas políticas", geralmente semanal, mas que ficava algumas semanas sem aparecer – sem contar o período em que seu autor viajava à Europa, quando os artigos deixaram temporariamente de ser publicados. Esses comentários, cujo conteúdo geral é revelado já pelo título, eram muito lúcidos e às vezes bem duros com relação a questões que pudessem, de alguma forma, ter algum vínculo com a política. É curioso notar que a palavra "coisas", no título, talvez guardasse a intenção capciosa de estar expressa no sentido de "algo que não se quer ou não se pode dizer", ou seja, queria deixar implícito que muitas manobras e

57

Por um novo Machado de Assis, p. 38.

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problemas políticos brasileiros eram "coisas", na falta de outro nome que as definisse ou para não usar um termo que melhor as qualificasse. Uma prova da importância que Ferreira de Araújo dava à sua coluna – e do desejo de que aqueles textos resistissem ao tempo – está no fato de o jornalista ter publicado, em livro, no ano de 1884, pela própria tipografia da Gazeta de Notícias, todas as "Coisas políticas" do ano anterior (de 19 de março a 31 de dezembro de 1883), algo que também fez com as "Balas de estalo" que escrevera sob o pseudônimo Lulu Sênior. Tudo leva a crer que o redator-chefe da Gazeta acreditava muito no potencial do diário como disseminador de idéias e, nesse sentido, como conscientizador dos leitores, ou pelo menos de uma parte deles, o que explica a seriedade com que administrava esse veículo, participando ativamente de sua produção diária, e o desejo de perpetuar (ou de minimizar o esquecimento de) seus esforços com a publicação em livro de colunas de sua autoria. Algo muito interessante é que não há poucos indícios de que Machado de Assis tivesse um ponto de vista muito próximo ao do seu amigo e "chefe", como ele mesmo chama em algumas crônicas. John Gledson observa que a coluna "Coisas políticas" "era um comentário sensato, pragmático (e às vezes profundo) sobre os acontecimentos do dia, colocando-os numa perspectiva mais ampla" e que "os pontos de vista de Machado parecem ter sido bastante semelhantes aos expressos nessa coluna"58, confirmando a opinião de que a os artigos políticos de Ferreira de Araújo eram "muitas vezes como que a expressão das opiniões de Machado, só que sem ironia"59, com algumas exceções, a exemplo da menor oposição do jornalista ao federalismo, sistema que Machado parecia execrar. Um "cruzamento" entre as "Coisas políticas" e a crônicas de Machado pode confirmar que muitas vezes a aproximação entre ambas é forte, mas em alguns temas a diferença de opiniões é bastante evidente. Com relação à maioria dos temas, a observação de Gledson é quase sempre confirmada, embora as diferença entre os textos seja tamanha, a começar pelo tom literário, cheio de humor e leveza da crônica, que se opõe à objetividade séria e quase sempre "pesada" da coluna política de Ferreira de Araújo. O primeiro ano de Machado de Assis como cronista da Gazeta coincide com o aparecimento das "Coisas políticas" e também foi o único desta série que Ferreira de 58 59

Por um novo Machado de Assis, p. 135-136. "Introdução" a Bons dias!, p. 14.

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Araújo decidiu publicar em livro. O primeiro artigo desta coluna data de 19 de março de 1883 e a primeira crônica das "Balas de estalo" escrita por Machado é de 2 de julho do mesmo ano. Tanto as crônicas do escritor – embora em colunas diferentes e com alguns interregnos – quanto esses artigos do jornalista sobre política – com o mesmo título, mas com alguns períodos sem publicação – vão subsistir até a década de 1890. A primeira das "Coisas políticas" já coloca como epígrafe uma citação literária, que aparece novamente no fim do artigo. O trecho do capítulo XLIX da Segunda Parte do Dom Quixote, quando Sancho Pança sentencia a um mancebo que interrogara na ronda que fazia na "ilha" que então governava: "[...] aconsejoos que de aqui adelante no os burleis com la justicia, porque topareis con alguna que os dé con la burla em los cascos"60. A citação se refere às suspeitas de que a Companhia de Botafogo estava sendo beneficiada na concorrência para escolha da concessionária que tocaria a futura linha de Copacabana. Nas palavras de Ferreira de Araújo: "Enquanto esteve aberta a concorrência para propostas, dizia-se, à boca pequena, que a concorrência era para inglês ver, porque a fatia estava destinada à Companhia de Botafogo, querida e poderosa." O ministro da agricultura, senador Ávila, supostamente teria alguma participação no "esquema", ou pelo menos fazia vistas grossas. Vários dos artigos políticos de Ferreira de Araújo, subseqüentes a este, vão retornar ao caso, aludindo a outras suspeitas sobre o suposto favorecimento. Machado de Assis se refere a este caso em crônica na qual Lélio forja uma carta do representante do governo chinês que viera ao Brasil para tratar de questões referentes imigração de seus patrícios para o Brasil. Nesta "carta", aparecem nomes e palavras referentes ao caso, que, no entanto, não chega a ser abordado de forma mais direta pelo cronista. É bem provável que a principal fonte de informação de Machado, neste caso, tenha sido as "Coisas políticas", já que várias das referências da suposta carta estão diretamente relacionadas com temas abordados por Ferreira de Araújo nas semanas e meses anteriores. Com relação aos comentários do jornalista, a expressão "para inglês ver" também é retomada pela crônica de Machado, citada acima. Um tanto recorrente 60

Na tradução de Eugênio Amado (Belo Horizonte: Itatiaia, 1997, p. 351): "aconselho-vos que doravante não zombeis da justiça, pois podereis topar com alguma que vos dê com a zombaria nos cascos".

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nas crônicas de Machado, como já vimos, a expressão quase sempre se refere ou tem alguma relação com a política, mostrando que a acidez do cronista, embora disfarçada por uma mão "mais leve", não ficava muito atrás daquela da qual o articulista político lançava mão. Nas crônicas que se seguiram, Ferreira de Araújo continuou no encalço do senador Ávila: "Não deu escândalo durante a semana passada o Sr. Ministro da agricultura; por isso tanto choveu". Machado, no entanto, jamais faz menção ao nome do ministro, ou ao seu ministério, algo perfeitamente compreensível se lembrarmos que Machado era funcionário daquele órgão executivo e, além do mais, sua identidade não era completamente oculta em "Balas de estalo". Ler Machado de Assis leva a um "efeito colateral" interessante: começa-se a ver ironia também em outros autores, mesmo onde seja mais provável que este procedimento não tenha sido utilizado. Num trecho das "Coisas políticas" de 7 de maio, do mesmo ano de 1883, Ferreira de Araújo escreve: Aqui no Brasil, a sorte do direito divino ainda é mais precária. Por mais que se faça, o Brasil é americano, e o Novo Mundo não seria o Novo Mundo se se limitasse a ser um prolongamento do Velho, e lhe adotasse as antigas usanças, sem obedecer à lei que lhe impõe a pujança virginal da sua natureza.

Se fosse escrito por Machado, quase que certamente seria mais uma nota irônica do cronista. Mas sendo o jornalista o autor do trecho, e levando em consideração o que John Gledson escreveu sobre as "Coisas políticas" – "como que a expressão das opiniões de Machado, só que sem ironia" –, vemos que há alguma diferença da opinião do jornalista com relação ao cronista. Este, sempre que pode, ou pela ironia ou em possíveis opiniões mais diretas do escritor, critica a idéia de uma natureza que se impõe e condiciona o homem. Embora a idéia de que por aqui havia muitas peculiaridades inegáveis fosse um ponto de aproximação entre o jornalista e o Machado de Assis cronista, a importância da "pujança virginal" da natureza é bastante relativizada em muitas das crônicas do escritor. Sendo a Gazeta de Notícias um jornal liberal em sentido abrangente, as "Coisas políticas" mostram com freqüência o caráter apartidário do periódico. Em 30 de julho de 1883 Ferreira de Araújo afirma que a luta do Partido Liberal contra a vitaliciedade dos cargos do Senado, apesar de ter algo de boa intenção, deveria ser direcionada a assuntos mais cruciais, a males maiores do que este. Por esta e

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outras passagens da Gazeta, fica claro que era um jornal liberal enquanto defensor de um ideário a favor das liberdades individuais e de imprensa, de forma alguma era um periódico pró-Partido Liberal, como tantos outros contemporâneos seus. Mas, por outro lado, é claro que algumas das mudanças defendidas pelos liberais se aproximavam das que a Gazeta defendia, ao menos em maior grau se comparadas às posições dos conservadores. As crônicas de Machado também deixam transparecer a defesa do ideário liberal, além do que o autor raramente cita os partidos, mostrando preferência por enfatizar os políticos, fato que mostra que o cronista escrevia de acordo com as posições apartidárias do jornal, do qual as "Coisas políticas" era quase que um editorial – tanto é que não eram assinadas por Ferreira de Araújo. Um ponto em comum que pode ser verificado nos artigos das "Coisas políticas" e nas crônicas de Machado de Assis é a crítica irônica a certo padrão europeu de civilização: "O Rio de Janeiro ainda não é uma cidade bastante civilizada, como Londres, onde se morre a fome; ainda não atingiu a perfeição de miséria que atira à prostituição centenas de crianças [...]." Neste fragmento da coluna de Ferreira de Araújo publicada em 17 de dezembro de 1883 se percebe facilmente a presença da ironia, de uma ironia que, embora um tanto "pesada", não se distancia tanto das que se podem ler nas crônicas de Machado. A título de comparação, em crônica de "Bons dias!" de 28 de outubro de 1888 o cronista machadiano afirma que a polícia do Rio não é inferior à de Londres, já que os ingleses não conseguem "descobrir um estripador de mulheres, folgazão e científico", e também critica o fato de deputados irlandeses terem sido presos, na Inglaterra, "só por serem irlandeses". Embora o procedimento usado pelo cronista não seja exatamente a ironia, fica clara a crítica aos que acham que basta imitar o padrão de civilização das potências imperialistas, neste caso da maior delas, para o Brasil chegar rapidamente ao mesmo nível, como se isso fosse realmente bom. Em crônica das "Balas de estalo" de 13 de março de 1884, o cronista machadiano pergunta a Lulu Sênior, outro cronista que colaborava com a série (na verdade o próprio Ferreira de Araújo) se era verdade que o diretor da Gazeta de Notícias era o autor dos artigos intitulados "Coisas políticas", que acabavam de ser publicados em livro. Lembrando que o Ferreira de Araújo que ele conhecia era "homem de letras, amigo das artes e um pouco médico", Lélio finge não acreditar

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que o autor dos artigos de conteúdo político era o próprio jornalista, lembrando que "a especialização dos ofícios é um fato sociológico" e que "isto de ser político e homem de letras é uma coisa que só se vê naqueles países da velha civilização". O cronista reflete aqui a tendência da Gazeta de manter certo desprezo pelas mazelas políticas, como se não soubesse que os artigos da coluna semanal de Ferreira de Araújo eram acima de tudo críticas a questões políticas do Brasil. Na verdade, a crônica

de Lélio acaba servindo como uma espécie de propaganda do livro,

especialmente quando se conclui que, se o jornalista é, de fato, o autor das "Coisas políticas", pede a Lulu Sênior que cumprimente por ele Ferreira de Araújo: "dizendolhe ao mesmo tempo que continue, e cá me tem a lê-lo e relê-lo, e adeus". Outras questões como a defesa da liberdade religiosa e de imprensa, recorrentes nas "Coisas políticas", ou ainda as críticas às falhas do processo eleitoral e ao cinismo dos políticos escravistas, são pontos em comum entre a coluna política de Ferreira de Araújo e as crônicas de Machado de Assis. É evidente que naquelas se utiliza, em geral, um tom mais grave e direto, enquanto a crônica sempre "puxa" para humor e para a ironia. Mas isso não impede que, até com certa facilidade, sejam notadas aproximações entre ambas. Inclusive pode-se dizer que muitas opiniões subentendidas em crônicas de Machado anteriores às que escreveu para a Gazeta de Notícias já se aproximavam muito das que Ferreira de Araújo defendia em sua coluna, o que mostra que o escritor não teve a obrigação de simplesmente se moldar à linha editorial do jornal. Longe disso, a defesa da liberdade de expressão defendida pela Gazeta começava dentro dela mesma. Mas há um ponto em especial, ou melhor, um aspecto na abordagem de determinados assuntos, em que as crônicas de Machado de Assis parecem se distanciar das opiniões de Ferreira de Araújo, embora em termos de objetivos finais a aproximação nunca deixe de ser verificável. Nas "Coisas políticas", ao tocar em determinados assuntos, Ferreira de Araújo não consegue deixar de lado algum determinismo. Tendo se formado em medicina em 1867, e apesar de não exercer essa profissão devido à escolha pelo jornalismo, em alguns pontos o autor das "Coisas políticas" não consegue deixar de lado justificativas e explicações levemente balizadas por certo "racialismo", típicas de "homens de ciência", que tiveram acesso à educação formal até a obtenção do grau de "bacharel".

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No entanto as opiniões de Ferreira de Araújo não eram "extremadas". O jornalista buscava sempre certa ponderação, mas percebe-se que as influências recebidas da sua formação "científica" e possivelmente do "bando de idéias novas" ao qual se referira Sílvio Romero não foram deixadas de lado por completo em sua visão de mundo. Assim, com relação ao negro, as opiniões de Ferreira de Araújo se aproximam muito das de Joaquim Nabuco, na medida em que ambos o defendem, são antiescravistas, mas sem abandonar certo sentimento de superioridade do branco. Com relação à imigração, nota-se nas linhas das "Coisas políticas" uma fé na "europeização" ou, antes, uma diminuição do elemento negro e "caboclo" na cultura brasileira. Ferreira de Araújo, sobre a discussão em torno da imigração chinesa, faz críticas incisivas, defendendo o trabalhador europeu: "Nós precisamos da população laboriosa da Europa, que não encontra no velho mundo emprego bastante remunerador para a sua atividade", escreve o jornalista em 15 de outubro de 1883, um dia antes da carta fictícia que o representante dos interesses da China escreveu para Lélio. Para o jornalista "o chim arreda o europeu, que povoa, que contribui para constituir a nação". Essa defesa direta do europeu jamais foi feita por Machado de Assis, que percebe o inconveniente da substituição do escravo pelo servo, sugerindo que o interesse das elites agrárias não vai além do estritamente econômico. O chinês seria para o Brasil praticamente como o "chim-panzé" da pretensa carta do vice-rei da Índia. Mais adiante, Ferreira de Araújo não deixa de expor idéias semelhantes às de muitos parlamentares, e também não consegue deixar a "ciência" de lado em seus comentários: Não é o chim que nos convém, porque o chim não nos traz uma civilização, nem um sangue mais forte que o nosso, nem melhores costumes, e principalmente porque o chim não fica, porque o Brasil será para o chim como uma mesa redonda, a que se come uma vez à pressa, em viagem, e onde de ordinário se é roubado.

A idéia de "sangue mais forte que o nosso" inegavelmente se liga às leis da genética. Os europeus, pela lógica do jornalista, esses sim teriam um sangue superior. O fato de os chineses não trazerem melhores costumes, apenas os europeus, também mostra uma hierarquização civilizatória, semelhante àquela que Inglês de Souza defendera em 1880 na Assembléia Provincial paulista. Logo em seguida, em 15 de novembro de 1883, o jornalista completa:

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Pesados na balança do bom senso, de um lado os males que os chins nos podiam fazer, pelo depauperamento de sua raça, pela depravação de seus costumes, pela exigüidade inverossímil de suas necessidades vitais, e do outro os males que os contratadores de cá, habituados ao escravo, lhes poderiam fazer a eles, chegou-se à conclusão de que a peste que convém evitar é o Brasil!

O jornalista, homem culto que, ao contrário de Machado, teve contato direto com outros lugares do mundo, não resistiu às interpretações que amiúde eram feitas a partir da ciência da época, se referindo a um "depauperamento da raça" que decorreria do contato com o chinês. O comentário do jornalista não deixa de ser "sensato, pragmático"61, como Gledson descreve de modo genérico as ponderações realizadas em "Coisas políticas", pois chega à conclusão de que o "Imperador vê bem que libertar o africano e importar o chim, é tomar para si o inglório papel de Sísifo" (15/10/1883), consideração que se assemelha àquelas sugeridas nas crônicas de Machado de Assis. A maior diferença está no fato de que o escritor, ao contrário do jornalista, ao fazer isso por meio da literatura e dentro de seu campo de batalha, não precisa fazer uso dos argumentos correntes; aliás, somente os utiliza parodiando-os, exagerando-os de tal forma que, acredito, sua crítica fica ainda mais explícita. Nas crônicas de Machado de Assis há muitas referências irônicas à China e aos chineses. Essas referências se baseavam nos argumentos dos quais faziam uso os defensores da vinda dessa mão-de-obra. Um exemplo é tratado nos comentários da coluna "Coisas políticas", na Gazeta de Notícias de 08 de outubro de 1888: A China e os Chins é o título de um livro que o Sr. Henrique Lisboa, exsecretário da missão especial do Brasil na China, publicou ultimamente em Montevidéu. O autor consubstanciou neste trabalho tudo quanto vários viajantes favoravelmente impressionados pelos costumes chineses têm escrito. [...] Por vezes de um otimismo que quase nos deixam na alma um profundo sentimento – o de sermos ocidentais em vez de sermos chins.

Eram obras como essa, a que Ferreira de Araújo se refere em sua coluna semanal, assim como as notas que saíam na imprensa e os discursos políticos em favor da vinda dos chineses, que inspiravam Machado a escrever. O argumento de que a China era uma nação pioneira em vários aspectos era recorrente entre os que defendiam essa mão-de-obra, e o cronista faz uso da ironia e do humor para mostrar 61

GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006, p. 135.

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que na verdade esse era justamente um dos problemas. Além da impermeabilidade com relação a técnicas, costumes e culturas diferentes, o fato de não desenvolverem as invenções que haviam criado os tornava diferentes dos japoneses, por exemplo, que em contato com outros povos aprendiam e se desenvolviam. As opiniões de Ferreira da Araújo, deve-se esclarecer, eram das mais lúcidas na imprensa brasileira da época. Suas idéias, no caso específico da substituição da mão-de-obra, se aproximavam muito das de Nabuco e Taunay. Sua aproximação com este último se dá pelo fato de defender a naturalização em massa de imigrantes europeus. Algumas opiniões expressas na coluna "Coisas políticas" se aproximam muito das divulgadas por Nabuco em O abolicionismo, publicado em 1883, como se vê, por exemplo, neste outro comentário das "Coisas políticas" de 15 de outubro de 1883, sobre a vinda do emissário chinês: A nós, que desejamos de coração não sofrer dos chins o que sofremos dos africanos, em paga do que lhes temos feito sofrer, parece de bom agouro a vinda ao Brasil do ilustre mandarim, e do digno cidadão dos Estados Unidos que o acompanha.

A idéia de que a "vingança" dos negros era a africanização do Brasil, algo visto como degeneração cultural e racial, aparece no livro de Nabuco e era bastante aceita

pela

intelligentsia

brasileira,

predominantemente

branca,

ou

assim

considerada. Ferreira de Araújo se refere ao "que sofremos dos africanos", o que pode indicar uma aproximação com as idéias de Nabuco, embora de modo mais discreto. O ponto de vista presente na obra de Nabuco, de quem vê o negro como um "inferior natural", é uma tendência que não consegui enxergar nem nas crônicas, nem na obra ficcional de Machado, a não ser pela estratégia que Roberto Schwarz percebe em Memórias Póstumas de Brás Cubas: a da criação de um narrador que se identifica com o ponto de vista da classe dominante de maneira tão exagerada, que a crítica se evidencia de modo mais incisivo. Enquanto o "problema" da mestiçagem brasileira era difusamente questionado em O abolicionismo, as crônicas de Machado apresentam uma negação de que isso representaria uma "degenerescência". Joaquim Nabuco apresentava, na obra, idéias como a de que "o principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa

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de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo"62. E, mais adiante, coloca um "porém" na questão: Admitindo-se, sem a escravidão, que o número dos africanos fosse o mesmo, e maior se se quiser, os cruzamentos teriam sempre ocorrido; mas a família teria aparecido desde o começo. [...] Não é do cruzamento que se trata; mas sim da reprodução do cativeiro, em que o interesse verdadeiro da mãe é que o filho não vingasse.63

Mas, afinal, se o problema era na verdade o cativeiro, por que o autor se referia antes à saturação "de sangue preto" ou "de sangue amarelo"? Uma possível "resposta" de Machado veio numa crônica de 23 de fevereiro de 1896, quando comenta sobre as várias guerras que estão acontecendo pelo mundo, o "concerto universal de atrocidades" do fim-de-século: "[...] mas, como o sangue derramado é todo vermelho, ponhamos que tem cor mas que lhe falta opinião [...]"64. Algumas páginas depois, Nabuco mostra que, para ele, a questão racial é inevitável, dependendo o "abastardamento" ou a "elevação" da raça do meio social em que a mestiçagem ocorre. Lembremos que "abastardar" seria se aproximar, racialmente, dos negros: Muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça negra, ao seu desenvolvimento mental atrasado, aos seus instintos bárbaros ainda, às suas superstições grosseiras. A fusão do catolicismo, tal como o apresentava ao nosso povo o fanatismo dos missionários, com a feitiçaria africana, influência ativa e extensa nas camadas inferiores, intelectualmente falando, da nossa população, e que pela ama-de-leite, pelos contatos da escravidão doméstica, chegou até aos mais notáveis dos nossos homens; a ação de doenças africanas sobre a constituição física de parte do nosso povo; a corrupção da língua, das maneiras sociais, da educação e outros tantos efeitos resultantes do cruzamento com uma raça num período mais atrasado de desenvolvimento; podem ser consideradas isoladamente do cativeiro. Mas, ainda mesmo no que seja mais característico dos africanos importados, pode afirmar-se que, introduzidos no Brasil, em um período no qual não se desse o fanatismo religioso, a cobiça, independente das leis, a escassez da população aclimada, e sobretudo a escravidão, doméstica e pessoal, o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado do abastardamento da raça mais adiantada pela mais atrasada, mas de gradual elevação da última.65

Daí a defesa, empreendida por Nabuco, de que deveria haver uma imigração ostensiva de europeus, fato que ele lamenta estar ocorrendo em maior grau na Argentina que no Brasil: 62

O abolicionismo. Brasília: Edições do Senado Federal, v. 7, 2003, p. 128. Ibidem, pp. 131-132. 64 Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1256. 65 Op. cit., pp. 132-133. 63

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Guardando nós a escravidão, e tendo a República Argentina paz, esta será dentro de vinte anos uma nação mais forte, mais adiantada e mais próspera que o Brasil, e o seu crescimento e a natureza do seu progresso e das suas instituições exercerá sobre as nossas províncias do Sul o efeito de uma atração desagregante que talvez seja irresistível.66

Percebe-se que, para Nabuco, um dos grandes problemas da escravidão está no fato de impedir a entrada voluntária de mais imigrantes europeus. Mas o anseio por esses imigrantes está pautado pelo desejo de que ocorra uma elevação racial, não só na crença de que trarão progresso. A discussão política e "científica" em torno de quais seriam os imigrantes mais convenientes para o país, e todas as questões que se prendem ao tema, servem de incentivo para o escritor mostrar, ainda que de modo oblíquo, algumas opiniões suas a respeito dos problemas que são postos em discussão. O principal veículo de expressão seriam as crônicas, obras "ligeiras" e supostamente despretensiosas nas quais o escritor deixará vários indícios de que "participava" criticamente das principais discussões que diziam respeito ao seu país e ao mundo. Assim, em comparação, não deixa de impressionar a capacidade de ponderação de Machado de Assis, mas é evidente que o campo literário dava a Machado, ao mesmo tempo, liberdade para tratar desses assuntos e a possibilidade de uma dissimulação de suas opiniões reais. É difícil imaginar o escritor entrando em polêmicas sobre a validade ou os problemas da ciência e outras questões de seu tempo – se até mesmo as polêmicas literárias ele evitou a partir de certa altura –, mesmo porque alguém com um diploma de bacharel, como vários parlamentares brasileiros, certamente se acharia com absoluta autoridade para refutá-lo. Lembremos do argumento de Sílvio Romero, de que Machado não teve na juventude "uma educação científica indispensável"67. Num país em que o bacharelismo, o "doutorismo" já imperava, implicando menos numa distinção de nível cultural que numa distinção de classe, de "procedência", alguém com a inteligência de Machado de Assis mas sem a "educação científica" a que Romero se referira, tinha de arranjar "outras maneiras" de participar das polêmicas sobre determinados assuntos.

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NABUCO. J. Op. cit., nota 5, p. 197. Citado por GUIMARÃES, Hélio de Seixas. "Romero, Araripe, Veríssimo e a recepção crítica do romance machadiano". Revista do IEA, São Paulo, 18 (51), 2004, p. 285. 67

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CAPÍTULO 4 Uma opção aos chins: a possibilidade da imigração japonesa

Uma prova de que, para Machado, a predisposição a ser assimilado era o maior (e talvez o único) requisito que os imigrantes deveriam cumprir, está na crônica de 10 de novembro de 1895. Ao tratar da possibilidade da imigração japonesa, o autor escreve: Que as moças daquelas terras [do Japão], como os homens, assimilam facilmente os costumes peregrinos, é fato velho e revelho. Não há muitos dias, estávamos à porta do Laemmert dois dos três da loja Crashley [...], quando vimos sair duas parisienses; minto: duas japonesas. Realmente, salvo o tipo, eram duas parisienses puras. Se vísseis a graça com que deram o braço aos cavalheiros que iam com elas, as botinas que calçavam, os tacões das botinas, o pisar leve e rápido... Os tacões diziam claramente que não carregavam o peso da Ásia, que as duas moças eram como aquelas borboletas de papel que os seus avós faziam avoaçar no teatro, com o simples movimento do leque. E foram-se, perderam-se na rua acima. […] Vamos tê-las agora às dúzias, se o tratado que o senhor Piza negociou, admitir que venham mulheres e uma pequena porcentagem de moças da cidade. Mas ainda que venham só as rústicas, é gente que, com pouco, fica cidadã. Vamos tê-las modistas, estudantes, professoras. Venham os professores, e digam-nos a história e os costumes do parlamento de Tóquio, a fim de que possamos explicar como é que um sistema que entrou tão bem no Japão está prestes a dar com o presidente do Chile em terra. [...]68

As passagens grifadas mostram bem qual deveria ser, para o cronista, a principal característica dos imigrantes: facilidade de assimilação e capacidade para tornar-se cidadão. Sendo preenchidos esses requisitos, pouco ou nada importaria a procedência, a "raça" dos imigrantes. Os outros cuidados, atrelados justamente à preocupação da assimilação, seriam expressos na crônica anteriormente citada de 68

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, pp. 1225-1226 (grifos meus). O trecho da crônica de 1895 citado acima foi brevemente comentado por Isaac Nicolau Salum em edição do jornal cearense O Estado de 24 de janeiro de 1959, quando havia acabado de transcorrer o cinqüentenário da morte de Machado de Assis e da entrada da primeira leva de imigrantes japoneses. No texto, intitulado "Machado de Assis e a imigração", Salum comenta, sobre as observações do cronista, que na época eram consideradas inequivocamente as opiniões de Machado: "Não é apenas profecia: é uma antevisão simpática, alvissareira, da contribuição dos filhos do Japão, dos filhos de japoneses para esta terra, 'dadivosa e boa', como já dizia o bom Caminha". O professor aproveita a coincidência de datas – cinqüenta anos da morte de Machado e da chegada do Kassato Maru – para juntar as coisas. Há um eivo de nacionalismo na escrita, muito pessoal, o que ele mesmo justifica ("advirto desde já que não sou crítico"), mas a observação vale para chamar a atenção sobre a crônica machadiana, e sobre as possibilidades de utilizá-la em estudos lingüísticos, literários e históricos.

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setembro de 1896, na qual o autor, sempre de modo oblíquo, opina que se deveriam intercalar imigrantes de nacionalidades diferentes e fornecer subsídios para que aprendessem a língua portuguesa. Enquanto são descritas as vantagens dos japoneses, a postura com relação à imigração chinesa é bem diferente, como vimos. Isso se deve não só ao fato de os chineses não serem vistos como facilmente assimiláveis, como os japoneses e italianos, por exemplo; mas também ao problema, já abordado, da mera substituição dos escravos pelos semi-escravos. Em várias das crônicas que fazem referência aos chineses, percebe-se essa preocupação. Almeida Magalhães já havia perguntado, em 1954: "Quem não descobre aí, nisto que parece à primeira vista tecido conjuntivo para enchimento de crônica de alguém falto de assunto, uma alfinetada aos que encaram a política imigratória apenas pelo aspecto econômico?"69. As várias crônicas em que Machado se refere à China como lugar onde as coisas não mudam, de modo que parecem elogios à tradição chinesa, são na verdade críticas à falta de adaptabilidade dos chineses a outros costumes e, no nível da nação, às boas idéias que eventualmente outros povos tenham criado, em suma, à modernização. Por outro lado, os elogios ao parlamentarismo japonês e à grande capacidade de adaptação dos nipônicos são constantes, como na crônica de 21 de abril de 1895: Meti-me [...] a estudar o Japão, de longe e nos livros. O país tinha adotado recentemente o governo parlamentar [...]. Parte da Europa achava bom, parte ria [...]. O Japão deixava rir e ia andando, ia estudando, ia pensando. Tinha uma idéia. Os povos são como os homens; quando têm uma idéia, deixam rir e vão andando. Parece que a idéia do Japão era não continuar a ser unicamente um país de curiosos ou de estudiosos [...]. Queria ser alguma coisa mais alta, que até certo ponto mudasse a face da terra.70

Com relação ao fim da guerra do Japão com a China71, o cronista completa: "[...] as pazes com a China estão feitas, e, por mais que as condições irritem a Europa, como há agora mais uma potência no mundo, é preciso contar com a vontade desta [...]"72. Pela crônica percebe-se que, em boa parte, a admiração que Machado começa a ter pelo Japão decorre do projeto de nação que este país

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MAGALHÃES, Almeida. "Machado de Assis e a política imigratória", A Gazeta, São Paulo, 4 dez. 1954. 70 Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1166. 71 Após uma disputa sobra a Coréia, as forças japonesas desembarcaram na China em 1894 e invadiram Formosa em 1895. O Tratado de Shimonoseki (1895) consagrou a vitória do Japão e a independência da Coréia. 72 Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, pp. 1166-1167.

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empreendeu. Buscando fora de suas tradições os elementos necessários para o desenvolvimento do país, sem perder "a cor particular ao clima", o Japão se tornou uma potência mundial justamente pela sua capacidade de assimilar "facilmente os costumes peregrinos". Outra crônica, de 28 de outubro de 1894, faz referência positiva ao Japão: O momento é japonês. Vede o contraste daquele povo que, enquanto acorda o mundo com o anúncio de uma nova potência militar e política, manda um comissionário ver as terras de São Paulo, para cá estabelecer alguns de seus braços de paz. [...] [...] Também eu creio nas excelências japonesas, e daria todos os tratados de Tien-Tsin por um só de Iocohama. Não sou nenhuma alma ingrata que negue ao chim os seus poucos méritos. O maior deles é o chá [...] e ainda me lembra a primeira entrada de chins, vestidos de azul, que deram para vender pescado, com uma vara ao ombro e dois cestos pendentes, – o mesmo aparelho dos atuais peixeiros italianos. [...] O momento é japonês. Que esses braços venham lavrar a terra [...]. Se forem muitos e trouxerem os seus jornais, livros e revistas de clubes, e até as suas moças, alguma necessidade haverá de aprender a língua deles. [...]73

A mão-de-obra chinesa, por sua vez, é descrita como de "poucos méritos", sendo que o maior deles, o chá, só depende da mão humana para ser cultivado, não é uma criação. Embora avessa a mudanças, a China é descrita em crônica anterior, de 15 de abril de 1894 (n.º 28), com forte dose de ironia, como lugar onde todas as coisas foram inventadas antes: Tudo está na China. De quando em quando aparece notícia nas folhas públicas de que um invento, de que a gente supõe da véspera, existe na China desde muitos séculos. [...] Por fim, quem tem razão ainda é o Eclesiastes: Nihil sub sole novum. Creio que já li (ou estarei enganado) que o telefone também existia na China, antes de descoberto pelos americanos. [...] O que a China não faz, é deixar os seus trajes velhos, nem o arroz, nem o pagode, nem nada. Quando vejo aí nas ruas algum filho do Celeste Império mascarado com as nossas roupas cristãs, cai-me o coração aos pés. Imagino o que terá padecido esta triste alma desterrada, sem as vestes com que veio da terra natal. Jovem leitor, eu os vi a todos os que aqui amanheceram um dia e se fizeram logo quitandeiros de marisco. Vi-os correr por essas ruas fora, vestidos à sua maneira, longa vara ao ombro e um cesto pendente em cada ponta da vara. Ao italiano, que o substituiu, falta a novidade, a cara feia, a perna fina, rija e rápida...74

A diferença principal entre o imigrante japonês e o chinês seria exatamente a mesma que havia entre as nações. De um lado o japonês adaptável, aprendendo o 73 74

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, pp. 1114-1116 (grifos meus). Ibidem, pp. 1063-1064 (grifos meus).

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que de melhor os outros povos produziram e de outro o chinês, alheio a mudanças, com uma visão de mundo pouco diferente daquela que possuíam seus ancestrais quando dos primeiros contatos com os europeus. Em outra crônica, do dia 20 de maio de 1894, Machado repete o argumento, desta vez ironizando ao mesmo tempo os discursos em favor da mão-de-obra chinesa, além de outro alvo que estava entre os preferidos de autor, o espiritismo: [...] me acudiu que provavelmente Cícero fora dentista em alguma vida anterior. Não me digam que não havia então arte dentária; havia a China, e na China, – como observei aqui há tempos, – existe tudo, e o que não existe é porque já existiu. Ou dentista ou um daqueles mandarins que sabiam proteger as artes úteis, e deu nobre impulso à cirurgia da boca. Tudo se perde na noite dos tempos, meus amigos; mas a vantagem da ciência, – e particularmente da ciência espírita, – é clarear as trevas e achar as coisas perdidas.75

A ironia é mais que evidente. Os elogios à China, insistentemente utilizados pelos defensores da mão-de-obra chinesa, são novamente apresentados com comicidade e as pretensões "científicas" do espiritismo kardecista são igualmente ironizadas. No dia 26 de junho 1892, a Gazeta havia publicado crônica de Machado de Assis que abordara a China, mas com o intuito provável de lembrar a polêmica em torno da presumível entrada de imigrantes daquele país. A crônica começa com uma referência ao ministério grego que havia pedido demissão. A breve menção ao fato desencadeia uma série de reminiscências clássicas, alusivas à antiga Hélade, algo muito recorrente na crônica de Machado, assim como o tratamento irônico, decorrente da primeira referência, dado a uma Turquia romântica que, assim como a Rússia, estaria "livre da lepra ocidental". Ao tratar das moções do período monárquico brasileiro, o cronista lembra que "há moções japonesas", lembrando a existência do parlamentarismo no Japão, mas que "quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo". Novamente percebe-se uma visão da China como país fechado a mudanças, assim como seriam os países que iam perdendo espaço na corrida imperialista (Rússia e Turquia), os quais, coincidentemente, seriam mais fechados a certos ideais e padrões típicos do Ocidente. O Japão, por outro lado, país que vinha, desde 1868, se modernizando e ocidentalizando nas áreas político-administrativa, 75

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1073.

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econômica e cultural, por meio da extinção do xogunato e da "restauração" Meiji, seria um caso diferente, o que talvez explique a simpatia do cronista, que não parece irônica, pela possibilidade da vinda de imigrantes deste país. Por outro lado, a postura antichinesa do cronista, que nisto está de acordo com boa parte do políticos e da imprensa, parece estar associada à idéia de que um povo fechado às influências de outras culturas não contribuiria para a modernização do Brasil e tampouco se tornaria brasileiro. A possível justificativa contra a vinda de chineses, entretanto, é cultural e, em certo sentido, "sociológica". O cronista machadiano não usa argumentos raciais, ao menos não como a maioria dos demais críticos, contra a vinda dos "chins". A visível preferência do cronista pelos japoneses em vez dos chineses pode revelar algo interessante: Machado chega a ver os nipônicos de modo até mais positivo que alguns europeus – pelo menos os germânicos, os quais seriam tão difíceis de serem assimilados quanto os chineses –, o que pode ser entendido como uma demonstração de que o problema não era, definitivamente, racial. Ora, os japoneses, de acordo com a idéia de "raça" predominante, também seriam da "raça amarela" ou "mongólica", etnicamente muito mais próximos dos chineses que dos europeus. Quando o cronista faz elogios aos japoneses – elogios nos quais, em geral, é difícil enxergar ironia –, o autor sugere que o problema não era racial, mas sim cultural. Da mesma forma, os alemães, que estariam no topo da hierarquia das "raças" ou das "civilizações" humanas – segundo a ciência racial –, não seriam uma boa opção para colonizar o Brasil, pela pouca penetrabilidade cultural que vinham apresentando nas colônias do sul do país. Ao descrever, em duas crônicas (n.os 28 e 34), os chineses que teria visto, não sabemos se Machado está inventando ou relatando o que viu, embora seja fato que uma pequena quantidade desses imigrantes (cerca de 800) chegaram a entrar no país. De qualquer forma, a descrição desses chineses faz lembrar da situação dos escravos, na medida em que tanto um como outro não tinham a menor vontade de adotar a cultura daqueles para quem trabalhariam, mas eram obrigados a, de alguma forma, "se adaptar". No caso do chinês, devido à ligação forte com sua cultura e tradição e ao fato de ser pouco adaptável – o que não deixa de ser um pressuposto determinista, embora não racial –, o sofrimento seria maior que de outros imigrantes, mais fáceis de assimilar, como os japoneses ou italianos. Estes

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últimos, aliás, o cronista coloca por duas vezes como substitutos dos chineses na venda de peixes e mariscos – intencional ou não, a observação mostra que em termos de mão-de-obra não havia grande diferença, o problema era mesmo de assimilação. Novamente percebe-se que a preocupação principal de Machado é a "formação" do Brasil pós-escravidão. O escritor não é alheio ao país que ficará para as gerações futuras de brasileiros, como sua máscara possa, às vezes, fazer pensar. Nesse sentido, a formação de mais um grupo marginalizado que, assim como os ex-escravos, não teria possibilidade de acesso à cidadania, seria um despropósito. O ideal seria receber gente "fácil de ser assimilada", que "trabalha e prospera", e que "com pouco, fica cidadã", como o cronista se refere a italianos e japoneses. Embora possa haver alguns preconceitos e generalizações nesse ideal de imigrante de Machado de Assis, ao leitor de hoje seus argumentos fazem mais sentido que os de muitos políticos e homens de imprensa de sua época, preocupados em defender os lucros de alguns poucos ou em propagar uma ciência racial hipotética e excludente, a serviço de ideologias de dominação de fora e de dentro do país. As opiniões que, tenho a impressão, Machado deixa transparecer em suas crônicas parecem ser, acima de tudo, as de um brasileiro que quer o melhor para o seu país, ainda que o saldo viesse apenas para as gerações futuras. Na crônica de 2 de setembro de 1894 há outra comparação, breve, entre a China e o Japão que parece espelhar alguma preferência pelos imigrantes deste último país em relação à mão-de-obra semi-servil chinesa. De um assunto que nada tem a ver com imigração, no caso o desvio do dinheiro das passagens pelos condutores de bondes, o cronista chega à conclusão de que os homens, "juntos em nação, formam um vasto bonde, ora atolado e parado, como a China, ora tirado por eletricidade, como o Japão". Nota-se que ainda há a possibilidade da entrada de chineses, o que é confirmado na crônica de 28 de outubro seguinte, a qual nota que "agora mesmo há fazendas que adotaram o chim". Portanto, é possível perceber que os leitores que não haviam compreendido a ironia da crônica de 18 de setembro de 1892, na qual fingia defender os chineses como mão-de-obra, obrigaram o cronista a usar maneiras mais diretas de criticar a China, já que a crítica ou o elogio ao país de origem dos imigrantes era o argumento mais corrente nos meios políticos e na imprensa.

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Passadas duas semanas, o cronista volta, em 23 de setembro de 1894, a enaltecer o Japão em detrimento da China: Quando o Japão começou a ter espírito, não adotou só o regime parlamentar, nacionalizou também os condes, e lá têm, entre outros, o seu Conde Ito, que dizem ser estadista eminente. A China, invejosa e preguiçosa, ergueu a custo as pálpebras [...] E criou um marquês, o Marquês Tcheng, mas não foi adiante.

A capacidade japonesa de conciliar as vantagens da cultura e ocidental com suas tradições locais não seria compartilhada com a China, país mais fechado ao mundo e pouco disposto a mudanças e adaptações. Talvez o Japão lembrasse ao cronista o que o império brasileiro poderia ter sido, se tivesse maior habilidade política e a capacidade japonesa para conciliar o local e o universal. O fato é que parece haver a intenção de que as "vantagens" do Japão sobre a China sejam entendidas como vantagens do imigrante japonês sobre o chinês. A crônica de 9 de junho de 1895 volta à questão do Japão como potência mundial. O cronista ressalta que talvez o otimismo japonês pareça perfeito porque "nós não lemos os jornais da oposição de Tóquio", mas de um modo geral parece ver positivamente (e de modo não-irônico) o crescimento do país, que não só vinha contrabalançar as relações mundiais de poder e capital, como podia servir de exemplo a outros países que quisessem deixar de ser "periferia" do sistema mundial. A proclamação do imperador japonês que, mesmo após a vitória sobre a China, buscava um tom conciliador e sem arrogância, inclusive com o adversário recémderrotado, é notada pelo cronista: "Que diferença entre esta e as proclamações de outros grandes Estados!". Este, porém, lembra da necessidade de se manter cautela com relação ao otimismo japonês. Creio que é interessante abrir um parêntese. Outro cronista da Gazeta de Notícias, Olavo Bilac, abordou a questão dos imigrantes chineses e expôs algumas observações sobre a China e o Japão. Apresentá-las talvez ajude a mostrar as peculiaridades do modo como o cronista machadiano aborda esses temas, ou mesmo ajude a apontar semelhanças entre os textos dos dois grandes cronistas. Na "Crônica livre" de 28 de julho de 1894, Bilac aborda a guerra entre a China e o Japão. Assim como o cronista machadiano, Bilac sabe que o Japão se distanciou muito da China: "[...] pobre Japão! tão civilizado, tão artístico, tão belo, tão inglês, e condenado à triste e dolorosa contingência de se transformar em varredor de lixo

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humano!". A referência à superioridade japonesa é evidente e, apesar do toque de ironia presente neste final, é bem mais direta que a que se nota no cronista machadiano. Uma diferença que acredito ser importante está na ênfase ao tom da pele dos asiáticos (principalmente os chineses); na crônica curta, de dez parágrafos, a referência à pele "amarela" aparece três vezes. Em nenhuma das crônicas em que Machado trata dos chineses ou japoneses há referência ao tom de pele "amarelo" dos asiáticos. A "Crônica espantada" de Bilac, publicada em 19 de outubro do mesmo ano, apresenta forte ironia na afirmação do cronista de que é certo que a China vencerá a guerra contra o Japão. Novamente ele faz referência ao tom da pele dos asiáticos, ao tratar da possibilidade da imigração japonesa. Na verdade, os dois cronistas, o machadiano e o bilaquiano, não se distanciam tanto nas observações, mas é possível notar em Machado um cuidado para não entrar em pontos que pudessem ter conotação racial. Ambos "participam" das críticas à imigração chinesa por meio de referências ao atraso da China e nenhum deles usa argumentos nitidamente raciais para defender esta ou aquela imigração, muito embora nas crônicas de Machado se possa notar uma preocupação maior em mostrar que o ponto crucial contra a vinda dos "chins" é cultural e social – e as negociações para a vinda de japoneses mostraram-se uma chance para o cronista apontar que o problema não era a "raça amarela". Anos depois, no "Diário do Rio" do Correio Paulistano de 4 de junho de 1908, Bilac deixa claro que a questão não era (mais) racial: "[...] entre os válidos, os capazes e os bons, não podemos estar fazendo seleção de raças ou nacionalidades".

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CAPÍTULO 5 Imigração e manutenção da "identidade" brasileira

Sobre a discussão em torno da imigração, Machado escreveu várias outras crônicas em que parece deixar transparecer muitas de suas opiniões. Como na época essas discussões não se dissociavam da questão racial, e esta se prendia necessariamente ao discurso científico em voga, Machado usa sua pena para trazer um ponto de vista diferente, lúcido e pertinente sobre assuntos que ligavam a ela. Ainda sobre as discussões a respeito da imigração chinesa – que continuam após a proclamação da República –, mas em comparação com a entrada de europeus e as propostas de imigração japonesa para o Brasil, Machado escreve algumas crônicas que parecem mostrar como o autor usa seu espaço na Gazeta de Notícias para expressar algumas de suas opiniões, mostrar "pontos cegos" da questão, enfim, participar, a seu modo, dos debates. A primeira das crônicas, da qual transcrevo alguns fragmentos a seguir, é de 18 de setembro de 1892 (crônica n.º 19, no corpus): Quando a China souber que a vinda dos seus naturais (votada esta semana em segunda discussão) tem dado lugar a tanto barulho, tanta animosidade, tanto epíteto feio, é provável que mande fechar os seus portos e não deixe sair ninguém. Eu conheço a China. A China tem brios. A China não é só a terra das porcelanas, leques, chá, sedas, mandarins e guarda-sóis de papel. Não, a China manda-nos plantar café e deixa-se ficar em casa. E o Japão? O Japão, que sabe estarem os japoneses no projeto e não vê descompor japoneses nem malsiná-lo a ele, o Japão cuida que entra no projeto só para dar fundo ao quadro, e fecha igualmente os seus portos. Eu conheço também o Japão. O Japão é muito desconfiado, mais desconfiado ainda que parlamentar. Porque o Japão é parlamentar, como sabem: copiou do ocidente as câmaras e os condes. [...] Quanto à planta parlamentar, não creio que seja viçosa como na Inglaterra. Não, mas é original, e basta. Tem uma cor particular ao clima.76

Logo no início da crônica, Machado levanta, nunca sem um toque de ironia, a hipótese de que a China é que pode não querer o Brasil, suposição que Ferreira de Araújo já havia levantado em 1883. Novamente o cronista deixa claro que não vê a China como uma nação culturalmente inferior a outras. Com relação ao Japão, 76

A semana (Gledson), p. 120.

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começa aqui a se desenhar uma especial simpatia do escritor por essa nação e pela idéia de que dela possam vir imigrantes. Essa "simpatia" vai deixar transparecer um pouco da opinião de Machado a respeito da imigração. A observação de que o Japão é parlamentar, mas com um parlamentarismo de "cor particular ao clima", implica a idéia de que é impossível transpor exatamente um modo de organização estrangeiro a um contexto muito diferente, sem adaptações às peculiaridades locais. Mais adiante Machado descreve o que leu a respeito do parlamentarismo japonês, fazendo uma espécie de crítica por meio da ironia ao mostrar que lá a oposição não exerce plenamente seu papel. E conclui: "este sistema, se vier nas malas japonesas, pode ser experimentável". Continuando a crônica, o autor (ou seu narrador) faz algumas reflexões a respeito da imigração: [...] a dúvida é se virão malas japonesas, ou sequer chinesas, pela razão acima citada. Força é confessar que os filhos daquelas bandas têm grandes vantagens. Italianos entram aqui com o seu irridentismo, franceses com os princípios de 89, ingleses com o Foreign Office e a Câmara dos Comuns, espanhóis com todas las Españas, caramba! alemães com uma casa sua, uma cidade sua, uma escola sua, uma igreja sua, uma vida sua. Chim não traz nada disso, traz braço, força e paciência. Não chega a trazer nome, porque é impossível que a gente o chame por aqueles espirros que lá lhe põem. O primeiro artigo de um bom contrato deve ser impor-lhe um nome da terra, à escolha, Manuel, Bento, pai João, pai José, pai Francisco, pai Antônio... Depois, o trabalho. Que outro bicho humano iguala o chim? [...] Aproveita-se ali [na China] até o último caco de homem. [Sobre as descrições da China apresentadas pelo Padre João de Lucena em obra de 1600] Não alegueis serem estas notícias de um velho escritor, porque uma das vantagens da China é ser a mesma. Os séculos passam, mudam-se os costumes, as instituições, as leis, as idéias [...]; mas a China não passa.77

O cronista apresenta (ou finge apresentar) uma opinião parecida com o de vários parlamentares que defendiam a imigração chinesa. Os traços culturais trazidos pelos imigrantes europeus são colocados, de modo irônico, como possíveis problemas para o Brasil, preocupações que os chineses não trariam. Mas estes imigrantes teriam, para o cronista, que receber nomes brasileiros, e aí aparece a sutileza da ironia machadiana: vários dos exemplos de nomes apresentados – "pai João", "pai Francisco", "pai Antônio" – referiam-se ao tratamento típico dado a escravos de mais idade. Não à toa, o "uncle Tom" do romance de Beecher Stowe, Uncle Tom's Cabin (1852), foi traduzido para o português como "pai Tomás". Na "Gazeta de Holanda" de 27 de setembro de 1887, há referência a "Um preto que ia 77

A semana (Gledson), p. 121.

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passando,/ Carregando tabuleiro" chamado "Pai Silvério"78. Na verdade Machado tinha clara a idéia de que a mão-de-obra chinesa seria uma substituta do trabalho escravo, que não se distanciaria muito dele, além de não permitir a inserção de novos cidadãos na sociedade brasileira. Ao chamar o chinês de "bicho humano", o cronista mais uma vez dá indícios de um ponto de vista particular: a percepção de que aquilo que queria boa parte dos fazendeiros, ex-senhores de escravos, era justamente seres humanos que pudessem tratar como "bichos", como animais de trabalho aos quais se dá o mínimo para a sobrevivência e dos quais se cobra o máximo de trabalho, assim como faziam com os escravos. Uma "vantagem" que Machado via na China era o fato de não mudar. Aqui vemos novamente a ironia machadiana em ação: ora, se a China não muda, também não se adapta a novas idéias, ao novo mundo que surgiu no século XIX. Seria, assim, uma nação "fechada" a qualquer coisa que pudesse melhorar sua sociedade e a vida de seus cidadãos, caso bem diferente do Japão. Sendo essa característica impressa nos chineses, estes também não se adaptariam ao Brasil, servindo meramente como trabalhadores, à margem da sociedade brasileira, o que os aproximaria novamente da situação dos escravos. Para o cronista, como para muitos políticos e boa parte da opinião pública, a questão era trazer mais do que braços. A diferença está justamente no que se queria além de braços: para muitos o objetivo era racial, a saber, o "branqueamento" ou até mesmo (Taunay é um exemplo dessa opinião) a "germanização" do Brasil. O caso dos alemães no sul do Brasil não seria uma contribuição real à construção do país: quando o cronista de "A semana" faz referência ao tipo de comunidade em que os alemães "com uma casa sua, uma cidade sua, uma escola sua, uma igreja sua, uma vida sua"79 não se tornam brasileiros, nota-se que está criticando este tipo de imigração. Ao que parece, para Machado de Assis, a imigração deveria contribuir para a formação do país, com indivíduos que se tornassem cidadãos brasileiros, que se adaptassem ao país, adotando-o voluntariamente como pátria. Na crônica que escreve na semana seguinte, em 25 de setembro de 1892 (crônica n.º 20), Machado é compelido, pela falta de compreensão de muitos leitores, a expor de maneira mais direta as suas opiniões: 78 79

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 746. A semana (Gledson), p. 121.

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Esta semana começou mal. Nos três primeiros dias recebi vinte e seis cartas agradecendo a maneira engenhosa por que defendi, na outra crônica, a introdução do chim. [...] eu não defendi nada, nem ninguém. Não fiz mais que apontar as qualidades do chim e as de outros imigrantes, para significar que, entrando o chim, os outros somem-se. Não defendi, nem acusei. [...] Francisco Belisário, por exemplo, era da mesma opinião, e não consta que o elogiassem por ela. Ia mais longe, porque dizia coisas duras, e eu não estou aqui para dizer coisas duras. Além disso, e do mais, há entre nós um abismo; é que sou um simples eleitor, e ele era um homem d'Estado. Não lhe pese a terra por isso. E não falo daquela observação fina e profunda que ainda aplicada a assuntos práticos, era um dos encantos do seu espírito. Confesso tudo isso, mas não o imitarei jamais nos duros conceitos que exprimiu, posto que revestidos daquele estilo afável que era um relevo do patriota e do político. [...] Uma de suas idéias é que mais vale o todo que a parte [...], mais cinqüenta milhões de homens que meia dúzia deles.80

Mas o autor, como se vê, arruma um jeito de colocar a máscara novamente, logo em seguida, desviando as atenções do leitor para as opiniões de um parlamentar, já falecido. Não sabemos se as cartas que o cronista diz que recebeu foram, de fato, escritas a Machado via Gazeta de Notícias, ou se alguém comentou verbalmente com o autor as impressões que teve da crônica, ou ainda se foi o próprio escritor que percebeu a possibilidade de uma leitura errônea do que havia escrito na semana anterior. O fato é que, sendo recurso literário ou não, as supostas cartas obrigam o cronista a explicar que na verdade não defendeu a vinda dos chineses, mas procurou mostrar que, caso estes viessem, os imigrantes de outras nacionalidades deixariam de vir. É bem provável que entre as "coisas duras" que dizia o deputado Francisco Belisário Soares de Sousa (1839-1889), conservador e escravista, estivessem posições como a seguinte, colocadas durante as discussões que precederam a lei de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre): Não posso deixar de admirar-me, Sr. Presidente, deste santo horror de que se acham possuídos o governo e a maioria em relação à escravidão. Nós vivemos sempre no Brasil com esta instituição; estamos aqui numa Assembléia composta de senhores de escravos, e infelizmente é um fato tão geral no Brasil a escravidão, que raro é o indivíduo que não sendo proletário não possua escravos. Se alguém de nós não possui, pelo menos nasceu em casa onde os havia. Como, portanto, vemos de repente, dentro de dois meses apenas, aparecer esse santo horror contra uma instituição deplorável, é verdade, mas sempre presenciada?81

80 81

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, pp. 920-921. Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 11 de agosto de 1871.

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Essa visão da escravidão como "mal necessário", com o qual os brasileiros estariam cultural e socialmente acostumados, mostra as posições políticas do parlamentar e comprova também que as referências de Machado ao deputado eram críticas disfarçadas. Provavelmente o escritor, ao ler discursos em que apareciam opiniões como as de Francisco Belisário, achava-as absurdas, não só pela sua posição pessoal – Machado fora um liberal "panfletário" no começo de sua carreira de cronista e sempre esteve mais próximo de políticos liberais que de conservadores –, mas também pelo conformismo desumano que nelas transparecia. Em outro discurso, do mesmo deputado, desta vez de 1882, vemos outra comprovação de que o cronista fazia, evidentemente, o uso da ironia em sua crônica de 1892. Francisco Belisário faz uma "observação fina e profunda" ao dizer que "nos climas tropicais o africano liberto é fisicamente incapaz como trabalhador útil" e que "[...] os negros [...], sejam escravos ou livres, não são trabalhadores, mas, pelo contrário, indolentes e preguiçosos. A sua emancipação, portanto, não poderá dar outro elemento que não seja a diminuição do trabalho"82. Ou seja, o deputado, proprietário de escravos, fazia uso dessa mão-de-obra, lucrava com ela, e ainda apresentava o argumento de que os cativos eram "indolentes e preguiçosos", o que por si já representava uma contradição: se os escravos não eram trabalhadores, por que não emancipá-los e contratar outro tipo de mão-de-obra? Machado percebeu a incoerência (e o absurdo) dessas opiniões e entendia perfeitamente a razão pela qual o político era favorável à vinda dos chineses, imigrantes que, segundo o próprio parlamentar, eram robustos, ainda que alimentando-se apenas de arroz83. Entendese perfeitamente a empolgação dos políticos conservadores e escravistas com a possibilidade do uso da mão de obra dos "coolies" chineses: muitos tinham esperança de obter lucros ainda maiores do que os que obtinham com os escravos, já que os chineses poderiam trabalhar mais e dar menos despesa, até mesmo porque dispensariam o pagamento de feitores e capitães-do-mato. Aí estaria o motivo pelo qual os chineses espantariam outros imigrantes: os poucos recursos com os quais conseguiriam sobreviver não seriam suficientes para os europeus. Os próprios trabalhadores brasileiros não conseguiriam concorrer com a mão-de-obra chinesa, o que levaria à substituição da ideologia do "quem trabalha é escravo" pela do "quem trabalha é chinês" – com a diferença física evidente, essa 82 83

Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 23 de agosto de 1882. Ibidem, loc. cit.

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associação seria ampliada, como acontecera com os escravos. No oeste dos Estados Unidos, onde havia cerca de 500 mil chineses por volta de 1875, ocorreram perseguições aos imigrantes devido ao fato de serem mão-de-obra mais barata, o que levou também à expulsão de boa parte desses trabalhadores. Esses fatos serviram para aumentar as reservas de muitos brasileiros com relação à vinda desses trabalhadores. Mário B. Sproviero, em artigo que aborda a presença da mão-de-obra chinesa no continente americano, lembra que "Eça de Queiróz foi o primeiro, no Ocidente todo, a lutar contra a exploração dos trabalhadores chineses"84. No caso de Machado de Assis a maior preocupação era a "formação" do Brasil – se os chineses que viessem seriam explorados como meros substitutos dos escravos, levando inclusive à "fuga" de imigrantes de outros países, então seria melhor que aquela mão-de-obra não viesse. E, de fato, não veio: enquanto Cuba e Peru receberam cerca de 130 mil chineses, o Brasil não recebeu mais que 800 no mesmo período. Machado de Assis termina sua crônica de 25 de setembro de 1892 com algo que soa conformismo, despreocupação com o futuro da parte de quem não estará mais vivo para ver os problemas acarretados pela importação da mão-de-obra semiservil chinesa: Quando vierem as maldições ou as bênçãos, – cerca de 1914 – os que estivermos enterrados, não nos importaremos com elas. [...] Também não se nos dará de agitações sociais ou outros desconsolos; menos ainda se o Império do Meio fizer de nossa terra uma República do Meio. Teremos vivido.85

O uso de uma máscara de abstencionista é evidente no trecho, pois faz pensar o problema para as gerações futuras. Machado sabe que entre os seus leitores há pessoas mais jovens, que seguramente estarão vivas em 1914, 22 anos depois do momento em que a crônica é escrita, sem contar os recém-nascidos e os que ainda hão de nascer. Se um brasileiro recém-formado (em Direito, por exemplo), estaria ainda na casa dos 40 e tantos anos na data prevista na crônica – portanto, na "idade do medalhão" –, então por que não se haveria de preocupar com a possibilidade de o Brasil se tornar outro, sob a pressão da influência de uma única corrente imigratória? Nota-se aqui uma preocupação crucial, a qual Machado deixará 84

SPROVIERO, Mário B. "A participação dos chineses nas Américas: Brasil e Estados Unidos em comparação". China em estudo, São Paulo, DLO/FFLCH/USP, n. 6, 2004, p. 119. 85 A semana (Gledson), p. 125.

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transparecer, em crônica de 1896, que era justamente o medo de que a vinda de quantidade desmesurada de imigrantes de uma única nacionalidade viesse absorver a população brasileira, fazendo-a perder o que tinha de específico. Ao que parece, o escritor defendia que os imigrantes se tornassem brasileiros, ao mesmo tempo em que temia que seu país (ou parte dele), se tornasse alemão, italiano, chinês ou qualquer coisa que não fosse brasileiro, como é possível notar pelas aparentes opiniões expressas em outras crônicas, como se verá a seguir. Portanto, para Machado de Assis a questão não era meramente racial, não se tratava da necessidade do "branqueamento", tampouco do medo da "mongolização" do país. Tratava-se da constituição ou manutenção de um "caráter" nacional brasileiro ou, antes, da formação do país de tal maneira que se mantivesse uma "base" ou um "fio condutor" brasileiro. A crônica citada, em que, acredito, o autor deixa entrever o fundo dos olhos atrás da máscara do narrador-cronista, é de 27 de setembro de 1896. Nela, o cronista inicia comentando sobre a visita de um membro da comissão americana, Sr. Studebaker, que acabara de deixar o país: Também recomenda braços o nosso hóspede, braços e temor a Deus. O segundo é preocupação anglo-saxônia, que não entra fundo em almas latinas ou alatinadas. Quanto aos braços, era eu pequeno, e, apesar da vasta escravatura que havia, já se chorava por eles. Muitos tinham sido já chamados e fixados. Vieram depois mais e mais, até que vieram muitos e muitos. Os alemães enchiam o sul; os italianos estão chegando aos magotes, e se a última questão afrouxou um pouco a importação, não tarda que esta continue e a questão acabe. [...] Que há já muito italiano é verdade; mas esta raça é fácil de ser assimilada, e trabalha e prospera.86

Aqui o cronista usa o termo "raça" com o significado de "etnia" ou "nacionalidade". Um outro sentido em que Machado usa a palavra é o de "espécie", como quando emprega, em mais de uma crônica, a expressão "raça cavalar". O uso para designar cor de pele, que é muitíssimo freqüente na época em expressões como "raça branca", "raça ariana", "raça preta" ou "raça mongólica" (esta última utilizada, por exemplo, por Joaquim Nabuco), nunca é usado pelo autor, quer seja nas crônicas, quer seja nas obras propriamente ficcionais. Quanto aos italianos, o cronista vê como principal vantagem a facilidade da assimilação dessa "raça", o que já implica na opinião de que é o imigrante (minoria) que tem que ser assimilado pelo Brasil (maioria). Entre as acepções de "assimilado" temos "absorvido, incorporado

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Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1321.

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(por exemplo, culturalmente)"87, que é como Machado parece empregar a palavra. Portanto, não era o brasileiro que tinha que ser assimilado pelo estrangeiro mas, pelo contrário, era o estrangeiro que deveria contribuir para a "formação" do país, a partir de uma "base" brasileira. De certa forma, a lógica era semelhante àquela apregoada pela "antropofagia" modernista de algumas décadas depois. O "branqueamento" ou a "europeização", defendidos por intelectuais e políticos como Taunay, ou ainda nas possíveis intenções de limitar a população brasileira pobre – na qual estavam quase todos os negros e mestiços – por meio do método de esterilização proposto pelo médico italiano Abel Parente eram como contrapontos desse ideal machadiano de imigrantes que viessem acrescentar à população brasileira, não anulá-la. Com relação à crônica, o autor ainda nota que "há já muito italiano", o que poderia ser um problema, se os imigrantes dessa nacionalidade não fossem facilmente assimiláveis. Percebe-se que o mesmo não se aplica aos alemães, que foram principalmente para o sul do país e, como havia descrito na crônica de 18 de setembro de 1892, formavam comunidades isoladas, com pouca ou nenhuma relação com a sociedade e cultura brasileiras. Mais adiante, na crônica citada de setembro de 1896, o escritor expressa de modo muito claro aquilo que parecem ser opiniões pessoais suas: Estávamos... Creio que estávamos nos braços italianos, não os que amam e fazem amar, mas os que lavram a terra [...]. Tem-se dito que há muita aglomeração italiana em S. Paulo, o mesmo se havia dito em relação aos alemães nas colônias do Sul. Há destas onde a língua do país não é falada nem ensinada, nem sabida, ou mal sabida por alguns rudimentos escassos que os próprios mestres alemães dão aos seus meninos, a fim de que de todo em todo não ignorem o meio de pedir fogo a alguém ou bradar por socorro. A culpa não é deles, mas nossa; e, se tal sucede em S. Paulo, a culpa é de S. Paulo. Há tempos falou-se no mal das grandes aglomerações de uma só raça. [Rodrigo Silva, ministro da agricultura] tinha por muito recomendado aos encarregados da colonização que intervalassem as raças, não só umas com as outras, mas todas com a do país, a fim de impedir o predomínio de nenhuma. Circulares que o vento leva; [...] são como as ilusões: verdejam algum tempo, amarelecem e caem logo; depois vêm outras...88

A referência de Machado – talvez aqui se possa dizer que é o autor quem opina – ao fato de que, em algumas regiões, havia comunidades de imigrantes que falavam apenas sua língua materna, mostra forte preocupação de sua parte. A idéia 87 88

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, pp. 1321-1322.

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de que há "culpa" no fato de os imigrantes não terem acesso ao aprendizado do português, e mais, de que essa culpa "é nossa", dá a entender que o fato é reprovável e de que algo diferente deveria estar ocorrendo. Como os imigrantes poderiam ser "assimilados", se não havia a preocupação do Estado em ensinar-lhes algo tão básico como a língua da terra onde tentavam uma vida melhor? No entanto a idéia não era proibir que os imigrantes falassem suas línguas e as ensinassem aos filhos, como queria Sílvio Romero89, mas sim que utilizassem o português como veículo de interação, de modo que esse fosse um primeiro passo rumo à naturalização voluntária, à formação de cidadãos por vontade, não por decreto. Em 13 de dezembro de 1896 o cronista de "A semana" faz referência a um tipo específico de imigrante, o "teuto-brasileiro" do sul do Brasil. O fragmento é curto e se insere num contexto mais abrangente da crônica, que começa tratando das propostas de incentivo à arte nacional, algumas das quais pretendiam taxar fortemente as companhias de teatro estrangeiras, passa por uma crítica ao corte das partes lidas que se propunha fazer na publicação dos discursos políticos, e volta à primeira questão, com a defesa de um "meio termo" que seria "lançar uma taxa moderada às companhias estrangeiras e libertar de todo imposto as nacionais"90. É quando começa a introduzir a defesa desse meio termo que o cronista se lembra do teatro franco-brasileiro, o que remete ao "teuto-brasileiro", o qual deveria ser um tanto alemão e um tanto brasileiro, algo que, no entanto, não vai acontecer se "as escolas das antigas colônias continuam a só ensinar alemão". Assim como em outras crônicas, a ausência de iniciativas do Estado para tornar os imigrantes aptos a se tornarem brasileiros parece ser criticada pelo cronista. Voltando à crônica de 27 de setembro de 1896, com relação à referência a Rodrigo Augusto da Silva, paulista, ministro da agricultura em duas ocasiões (de maio de 1887 a junho de 1888 e de janeiro a junho de 1889), Machado parece utilizá-la para mostrar que concorda com suas opiniões. O escritor havia, como funcionário do Ministério da Agricultura, trabalhado sob a chefia do ministro e é bem provável que o tenha conhecido pessoalmente. A recomendação de intervalar os imigrantes por nacionalidade, sem esquecer-se de aproveitar os braços aqui

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"O alemanismo no sul do Brasil". In: Provocações e debates. Porto: Chardron de Lello & Irmão, 1910, pp. 115-169. Nesse texto, Romero defende a vinda em massa das "raças particularistas do norte" para o Brasil, desde que fossem obrigadas a falar o português. 90 Obra completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1349.

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disponíveis (a "raça do país"), foi acompanhada de perto por Machado, que utiliza a crônica para divulgá-la – ou lembrá-la, caso a imprensa tivesse noticiado a sugestão do ministro à época. Cabe lembrar que Rodrigo Silva também fora deputado e senador e que foi ele quem apresentou a proposta que se transformou na lei de 13 de maio de 1888. Recomendações como a de Rodrigo Silva, na visão resignada do cronista, "são como ilusões", que talvez possam ser lidas na crônica como "utopias", já que no exemplo apresentado as boas intenções se juntam à impossibilidade de execução. Mas por que uma sugestão inexeqüível deveria então ser lembrada? Ora, se as recomendações do ministro tivessem sido e estivessem sendo cumpridas, o problema apresentado na crônica, da falta de integração de vários grupos de imigrantes, que sequer sabiam o português, seria minimizado ou não existiria. O fundo da máscara da resignação (uma das preferidas de Machado) deixa entrever olhos bastante críticos sobre os rumos tomados pela política imigratória do país, com problemas em boa parte advindos de uma postura comodista dos "encarregados da colonização". O uso do termo "raça" como nacionalidade leva, na crônica, a um efeito muito curioso: alegando a existência de uma raça "do país", Machado estaria partindo do pressuposto de que todos os brasileiros fariam parte de uma unidade racial. Sendo a palavra "raça" usada como sinônimo de nacionalidade, a lógica do uso é óbvia: se havia uma raça italiana, uma raça alemã, por que não haveria uma raça brasileira? Se lembrarmos a utilização mais corrente do termo "raça" à época e a conhecida (e por muitos criticada) heterogeneidade étnica da população brasileira, vemos que o escritor coloca a idéia de nação acima dessas diferenças, naturalizando-as. Assim como, historicamente, as raças dos países europeus se formaram a partir de contribuições étnicas variadas, assim como "todas las Españas" (crônica de 18 de setembro de 1892) formavam um único país, com espanhóis de várias procedências étnicas e, inclusive, com línguas diferentes, a população brasileira também deveria ser considerada enquanto unidade. Dessa forma, o uso que Machado faz da palavra "raça" parece ser uma provocação sutil a muitas das opiniões acerca do caráter mestiço da população brasileira. Machado de Assis também faz várias referências, em suas crônicas, aos imigrantes que já estavam em território brasileiro e a problemas envolvendo esses

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estrangeiros e os "nacionais". Em duas crônicas de "A semana", de 3 e 10 de julho de 1892 (n.os 15 e 16 do corpus), o cronista machadiano faz referências a conflitos entre brasileiros e imigrantes italianos. A crescente presença de assuntos referentes à imigração nas crônicas de Machado dá uma mostra de que a entrada de estrangeiros em larga escala estava acontecendo no país e, nesse contexto, era impossível que não houvesse conflitos. A crônica de 3 de julho se refere brevemente às "lutas ítalo-santistas" e a da semana seguinte "aprofunda" o assunto. Para John Gledson, as referências a Roma e a Jerusalém dizem respeito à representação diplomática italiana e ao governo brasileiro (Roma e Rio de Janeiro), que "estudavam a verdade das coisas" sobre os conflitos envolvendo italianos e brasileiros que estavam ocorrendo em São Paulo. Os imigrantes seriam referidos como as "igrejas de Sicília, de Gênova e de Nápoles", a quem São Paulo havia "ensinado a palavra divina". O "apóstolo da circuncisão" seria, evidentemente, o Estado de São Paulo, que não estava conseguindo "doutrinar" os italianos que chegavam. A referência a São Pedro na crônica diz respeito ao Rio Grande do Sul (o santo é o padroeiro do Estado), provavelmente devido às disputas entre o Partido Federalista e o "Partido Castilhista", que prenunciavam a "Revolução Federalista" que seria iniciada no ano seguinte. É importante notar o modo "criptografado" de que o cronista machadiano lança mão para abordar alguns assuntos que ele mesmo qualifica de "negócios graves". Não é improvável que mesmo um leitor contemporâneo da crônica, se não estivesse bem informado, demoraria um tanto para entender a quais assuntos o cronista se referia. Talvez isso fosse uma estratégia para abordar tais assuntos "delicados" de forma menos direta, mas também podia ser reflexo de uma estratégia machadiana para não deixar os acontecimentos mais relevantes eclipsarem os menores, objeto primordial da crônica. Ainda em 1892, a crônica de 20 de novembro faz nova referência a problemas envolvendo imigrantes italianos no país. O cronista trata da notícia, recebida por carta, de que um engenheiro e um empreiteiro foram privados de liberdade em Aiuruoca (Minas Gerais) por um grupo de calabreses que trabalhavam na linha férrea e estavam com seus pagamentos atrasados, tendo arranjado este modo "extremo" de receber o dinheiro. Os comentários do cronista são, como quase

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sempre, irônicos, começando pela afirmação de que o fato deve causar orgulho nos brasileiros. "Nós chamamos a Calábria, e a Calábria acudiu logo", escreve, numa referência à necessidade de "braços" que o Brasil tinha. Aludindo à subvenção da imigração pelo Estado, completa: "É certo que pagamos-lhe a passagem; mas era o menos que pedia a justiça". Percebe-se que, discretamente, o cronista "dá razão" aos calabreses, quando afirma que a Calábria "trabalhou e não lhe pagaram", embora o ato seja visto como "assaz duro". No final, não vemos qualquer motivo de orgulho para os brasileiros no acontecido, e o cronista ainda põe em dúvida meios como "a citação pessoal e a sentença impressa" para cobrar uma dívida, uma vez que a eficácia dependeria do caráter, do "pejo" do devedor. A citação do Memorial de Santa Helena, de Napoleão, que pode ser traduzida livremente como algo do tipo "em Paris, as pessoas são consideradas pela sua carruagem, e não pela sua virtude" serve para completar o motivo de "orgulho" para o Brasil: se na Calábria se dá o mesmo que em Paris (e talvez essa regra fosse universal), então os calabreses não podiam esperar algo melhor dos brasileiros. A crônica de 8 de janeiro 1893 apresenta algumas observações a respeito da presença de imigrantes no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que traça um perfil interessante da cidade. Referindo-se à "postura" (regulamento ou lei municipal) que proibia a presença de vendedores ambulantes, engraxates e congêneres na cidade, o cronista faz alusão aos "turcos" do Rio, na verdade sírios e/ou libaneses (de acordo com o mapa político atual) de religião cristã maronita ou ortodoxa, que fugiam do domínio otomano, e também se lembra dos engraxates italianos e seus filhos. Por fim, chega à conclusão de que, cedo ou tarde, todos os vendedores e engraxates estariam de volta às ruas "quando se for embora o prefeito", assim como o carnaval voltara à sua data habitual – depois de se especular que essa festa seria incompatível com os dias quentes de verão. O cronista aparenta ser contra determinações desse tipo, que deixariam a cidade "desolada", além de tirar o sustento a muitas pessoas, que haviam sido postas "fora do olho da rua", na expressão de Machado. Por meio da crônica de 12 de fevereiro de 1893, o cronista de "A semana" lembra de um médico italiano, chamado Abel Parente, que havia apresentado, no Brasil, um método de esterilização das mulheres, que causou grande escândalo no Rio naquele momento. Confessando que havia morrido e conversado com São

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Pedro, o cronista apresenta esse diálogo, no qual o santo pergunta por que havia "um grande número de almas" que saíram do outro mundo para o Brasil e "tornaram sem se poder incorporar", ao que recebe a notícia do método de esterilização. Perguntando qual a finalidade do método, São Pedro recebe a explicação de que o objetivo era diminuir a população brasileira à mesma proporção que os imigrantes italianos iam chegando. O fragmento pode ser lido como uma observação crítica com relação aos ideais de "branqueamento" da população brasileira e faz muito sentido se posto ao lado das crônicas em que parece haver a defesa da opinião de que eram os imigrantes que tinham de se tornar brasileiros, e não o Brasil se tornar estrangeiro. Outra crônica de 1893, desta vez de 5 de março (n.º 24 do corpus), também parece apresentar algo de opinativo a respeito da questão da imigração. Em discurso feito no conselho municipal do Rio de Janeiro, alguém teria sugerido que a língua italiana fosse ensinada nas escolas, já que o número de imigrantes italianos aumentava a cada dia, em todo o país. O cronista é bastante incisivo sobre a questão: "Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, antes ensinar a nossa língua aos italianos". Para finalizar a crônica com o tom "leve" que o gênero deve ter, o cronista lembra, ironicamente, que e o ensino do italiano "é um progresso" se "faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão". Duas semanas depois, a 19 de março de 1893, o cronista volta a relacionar um assunto inusitado com a questão da imigração. Ao tratar de um suposto invento que "um distinto ginecologista" havia recomendado, a "mãe artificial", que o autor de "A semana" chama de "chocadeira", cuja função seria "completar cá fora a vida do ente que não a pode acabar alhures" – ou seja, terminar a gestação, como uma espécie de incubadora –, lembra-se que seria uma opção à esterilização, especialmente para um país que precisa de mão-de-obra, já que permitiria que mais indivíduos nascessem e, melhor, estes seriam brasileiros e aprenderiam, desde pequenos, a língua do país, impedindo que algo temido pelos "nativistas" acontecesse: que aqui se tornasse "uma Babel de línguas". Algumas outras crônicas de Machado de Assis deixam transparecer essa preocupação "nativista" de que o Estado deveria se preocupar com o ensino do português aos imigrantes, o que mostra que a suposta "chocadeira" é apenas um mote para assuntos mais

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abrangentes, como a diferença de opiniões a respeito da entrada dos estrangeiros e da "europeização" do país. Na crônica da semana seguinte, 26 de março, há nova referência ao médico italiano Abel Parente que, segundo o cronista, "mostra ser patrício de Machiavelli" ao entregar sua causa aos seus críticos, que cuidariam, assim, da devida "propaganda" de seu método, "ignoto e célebre" de esterilização das mulheres. Ao lembrar, logo em seguida, os esforços inúteis de Castro Lopes – autor sempre "cutucado" na crônica de Machado – por um aportuguesamento de palavras de origem estrangeira, assim como as propostas de criação de uma moeda universal, a frase com que se conclui a crônica parece servir a todos os assuntos abordados: "É que o artificial morre sempre, mais cedo ou mais tarde". Talvez a idéia dessa frase fosse uma opção à "sobrevivência do mais forte" proposta por algumas leituras equivocadas de Darwin. Tanto a esterilização das brasileiras, que poderia estar ligada ao projeto de "branqueamento" do país, como qualquer outra proposta de "aperfeiçoamento da raça" estariam fadadas ao fracasso por serem antinaturais, ao contrário de fenômenos como a mestiçagem, completamente naturais. É só no ano seguinte que outra crônica de "A semana" vai abordar a questão dos imigrantes. Em 15 de julho de 1894 o cronista se refere ao grande número de abstenções nas eleições e propõe uma solução: que sejam feitas apostas nos candidatos, como numa espécie de loteria. A medida deveria aumentar o número de naturalizações voluntárias dos imigrantes que, querendo participar da jogatina, desejariam votar para influenciar nos resultados. Talvez como referência aos empecilhos burocráticos que havia para que o imigrante se naturalizasse, propõe ainda que "o simples talão de aposta sirva de título de nacionalidade". Na crônica do dia 14 do mês seguinte há uma referência, muito breve, a um rapaz grego, vendedor de balas, que havia sido atropelado e morto por um bonde elétrico, serviço inaugurado havia menos de uma semana. É claro que o cronista não perde a chance para trazer suas "reminiscências clássicas", lembrando que o grego atropelado, se estivesse nos tempos helênicos antigos, "teria cantores célebres, em vez de expirar obscuramente no hospital". Os "olhos de míope" do cronista não deixam escapar os imigrantes minoritários e pobres que chegavam, muitos dos quais iam para os centros urbanos e se dedicavam a atividades informais para sobreviver. Ao que parece, sempre que Machado tem alguma notícia sobre algum imigrante

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grego, arranja alguma maneira de encaixá-la na sua crônica, sempre fazendo uma relação com o contexto clássico. No dia 18 de outubro do ano seguinte, a referência a imigrantes de várias nacionalidades está ligada à epidemia de febre amarela, que tendia a afastá-los. A entrada de determinado número de imigrantes de cada nacionalidade estaria ligada ao maior ou menor medo que estes teriam da epidemia. No caso das estatísticas consultadas pelo cronista, os italianos não acreditariam no mal, pois foram os que entraram em maior número no país, seguidos do portugueses e alemães (em número bem menor) e, bem mais abaixo, franceses, russos, belgas e outros. Mas o raciocínio chega ao máximo da ironia quando atribui ao medo da febre amarela a ausência de imigrantes chineses no ano anterior. Uma observação interessante é feita logo em seguida, quando o cronista questiona o fato de os chineses estarem na estatística se não havia entrado nenhum: "mas porque notam elas a ausência do chim, e não citam a do abexim?" pergunta ele, explorando a sonoridade dos adjetivos pátrios, como se perguntasse: o que o chinês tem de diferente do africano (abissínio) para que aquele entre nas estatísticas e este não? O dado mostra que a questão da imigração chinesa ainda estava acesa e que o cronista mantém seu ponto de vista crítico sobre o tema. Dando continuidade a seus comentários, o cronista faz alusão a um artigo de um periódico de Gênova, o qual teria afirmado que "a colônia italiana acabará por absorver a brasileira". Criticando a observação, que possivelmente fazia uso de argumentos raciais e deixava implícita (ou explícita) a idéia de superioridade da cultura italiana, o autor de "A semana" conclui: "eu não dou fé a tais prognósticos; mas quando italianos nos absorvessem, seriam outros, não seriam já os mesmos". Referindo-se a um jornal italiano, o cronista refutava também as idéias (e desejos) de muitos brasileiros, que queriam um Brasil "branco", tão europeizado quanto a Argentina estava em vias de ser. Para provar a validade da sua idéia, é lembrado o caso de um napolitano que enriquecera no Rio de Janeiro e que havia começado tocando realejo nas ruas da cidade; e a conclusão do cronista é direta: "Vão perguntar-lhe agora se quer ser outra coisa mais que brasileiro, se não da gema, ao menos da clara". A lógica do ubi bene, ibi patria se aplicaria à maioria dos imigrantes que conseguissem se estabelecer aqui.

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CAPÍTULO 6 Por dentro da controvérsia: o projeto de lei do senador Taunay

A crônica de 28 de outubro de 1888 (n.º 12), da série Bons dias!, que apresentava a vantagem do pleno anonimato. Nesta crônica, o escritor apresenta opiniões demasiado claras e coerentes para que fossem meros disfarces. Primeiro porque a autoria oculta já era um disfarce – que, aliás, não impedia o uso de outros – , segundo porque não se nota ironia e o que há de humor é muito direto nas partes mais "opinativas" da crônica. Sem o humor e a ironia, efeitos freqüentes do uso da "máscara", podemos notar que ou ela não está sendo usada, ou está deixando ver mais que o de costume. A crônica começa com a frase "viva a galinha com sua pevide", "traduzida" por John Gledson como "sejamos como somos, ainda que com defeitos", em referência a problemas ingleses: apesar da mania inglesa no Parlamento brasileiro, os ingleses não conseguiam prender Jack, o estripador, e ainda cometiam arbitrariedades contra deputados irlandeses. Machado aproveita para tratar da questão da imigração, dizendo não ser "exclusivista", mas talvez o que o leitor chama de "nativista", já que vê com reservas o projeto do senador Taunay sobre imigração: Não se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedicase de coração, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas. Entretanto, a gente pode admirá-lo e estimá-lo, sem achar que este último projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que lá está é a grande naturalização. Não sei se ando certo, atribuindo àquela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos públicos. Pois, senhor, acho acertado. Com efeito, se o homem é brasileiro e apto, por que não será para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos? Mas o projeto traz outras cousas que bolem comigo, e até uma que bole com o próprio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, não havendo meio legal de impedir que eles entrem no império aqui temos nós os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constituídos em milhares de cidadãos brasileiros, no fim de dois anos, ou até de um. Excluí-los da lei é impossível. Aí fica uma conseqüência desagradável para o meu ilustre amigo.91

91

Bons dias! (organização de John Gledson), pp. 127-128.

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O visconde de Taunay, fundador da uma Sociedade de Imigração, havia apresentado

um

projeto

de

lei

que

pretendia

naturalizar

os

imigrantes

automaticamente, com aquisição de todos os direitos de um cidadão brasileiro (inclusive o acesso a cargos públicos). O fato é que Taunay era contra a importação de trabalhadores chineses, e Machado, observando a incoerência do senador, alertou que não haveria maneiras de se excluir desta lei imigrantes de uma nacionalidade específica. Para Gledson, "Machado vê a desagradável contradição em que é forçado a incorrer, por causa de uma evidente discriminação racial: observa que muitos defensores da imigração não querem que os chineses se tornem cidadãos de um novo Brasil, que desejam mais branco"92. Mas, como vimos, Machado não faz críticas à importação da mão-de-obra chinesa fazendo uso de argumentos raciais, como Taunay, e nesta crônica apenas mostra as incoerências do projeto de lei. Qualquer que fosse o motivo pelo qual os chineses eram criticados, a lei poderia trazer o problema da naturalização de chineses em massa. E Machado continua seu parecer sobre o projeto de lei: Outra conseqüência. O digno Senador Taunay deseja a imigração em larga escala. Perfeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dois anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro à força, há de refletir um pouco e pode não vir. No momento de deixar a pátria, ninguém pensa em trocá-la por outra; todos saem para arranjar a vida. Em suma, – e é o principal defeito que lhe acho, – este projeto afirma de um modo estupendo a onipotência do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre, é bom e necessário; mas mandá-lo pegar por dois sujeitos, metê-lo a força dentro de casa para almoçar, não podendo ele recusar a fineza senão jurando que tem outro almoço à sua espera, não é coisa que se pareça com liberdade individual. Bem sei que ele tem aqui um modo de continuar estrangeiro: é correr, no fim do prazo, ao seu consulado ou à Câmara Municipal, declarar que não quer ser brasileiro, e receber um atestado disso. Mas, para que complicar a vida de milhares de pessoas que trabalham, com semelhante formalidade? Além do aborrecimento, há vexame: – vexame para eles e para nós, se o número dos recusantes for excessivo. Haverá também um certo número de brasileiros por descuido, por se terem esquecido de ir a tempo cumprir a obrigação legal. Esses não terão grande amor à terra que os não viu nascer. [...]93

Aqui, acredito, já se percebe um pouco das opiniões do escritor sobre o tema. Naturalizar o imigrante à força, a não ser que este se manifestasse em contrário, causaria problemas como o "vexame" para o Brasil, se muitos recusassem a nacionalidade brasileira. Aqui há um toque de humor, mas um humor completamente 92 93

GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis, p. 171-172. Bons dias! (Gledson), pp. 128-129.

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factual, sem ironia. Mais do que o branqueamento da população brasileira, imigrantistas como Taunay queriam a "germanização" do povo brasileiro, e o projeto de lei queria acelerar esse processo. Machado percebeu que os efeitos de lei tão exagerada poderiam ser opostos, isto é, a implicação poderia ser a recusa da vinda ao Brasil pelos imigrantes, sabendo que seriam obrigados a se tornar brasileiros. Os mesmos imigrantes, sem a lei, poderiam vir ao país e se naturalizar por opção, caso "criassem raízes" no Brasil. A defesa das liberdades individuais é colocada em primeiro plano pelo escritor, cujos princípios liberais continuam fortes, embora menos "panfletários" que nas crônicas dos anos 1860. Nota-se que as idéias de Machado sobre o papel da imigração na formação do Brasil já estão constituídas por completo no ano da abolição, como se confirma pela conclusão da crônica: [...] O Estado não nasceu no Brasil; nem é aqui que ele adquiriu o gosto de regular a vida toda. [...] dizem que em Rodes era vedado por lei trazer a barba feita. Se vamos agora dizer a italianos e alemães, que, no fim de um ou dois anos, não são mais alemães nem italianos, ou só poderão sê-lo com declaração escrita e passaporte no bolso, parece-me isto muito pior que a legislação de Rodes. Desagravar a naturalização, facilitá-la e honrá-la, e, mais que tudo tornar atraente o país por meio de boa legislação, reformas largas, liberdades efetivas, eis aí como eu começaria o meu discurso no Senado, se os eleitores do Império acabassem de crer que os meus quarenta anos já lá vão, e me incluíssem em todas as listas tríplices. Como acabaria, não sei [...]94

O último parágrafo mostra, ao mesmo tempo, as opiniões de Machado sobre a naturalização dos imigrantes – que deveria ser facilitada, mas acima de tudo voluntária – e sobre um ideal de país que o tornaria melhor para os brasileiros e mais atraente para os estrangeiros. Gledson vê nesta conclusão da crônica, "curiosa exceção à regra da ironia", uma complexidade maior que a aparente: Machado parece perceber o perigoso caminho pelo qual o assunto o conduziu, porque a única solução para o problema está num mundo ideal cuja existência ele habitualmente se recusa a considerar – um país com "boa legislação, reformas largas, liberdades efetivas", que os hábitos do regime escravista destruíram. Ele sabe iniciar seu discurso, mas não sabe como terminá-lo. [...] Por um momento, ele considera o ideal, e no contexto de seu próprio país: por um breve momento, o idealismo e o otimismo, que abandonara muitos anos atrás, mostram de novo sua face, para apenas confessar sua duvidosa pretensão a uma sólida existência.95

94 95

Bons dias! (Gledson), pp. 129-130. GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis, pp. 172-173.

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De fato, talvez essa seja a exceção mais evidente na obra de Machado, mas não acredito que seja a única. Em especial quando trata do tema imigração, o autor deixa transparecer o anseio por um país melhor, ou por meio da denúncia de que o chinês semi-escravo não ajudaria o Brasil a superar a herança escravista, ou mostrando que o alemão não assimilado também estaria longe de um ideal de imigrante verdadeiramente útil ao país, ou ainda pela esperança de que imigrantes de várias nacionalidades, sempre intercalados entre si e com o aproveitamento da mão-de-obra nacional, freqüentemente criticada por parlamentares pela suposta "vadiagem" a que se dedicava, pudessem trazer mais do que seu trabalho. Creio que imaginar um país melhor implica ao mesmo tempo denunciar os problemas – o Brasil não teria qualquer dos três itens citados pelo cronista – e apresentar a idéia da possibilidade de mudança; assim como mostrar os defeitos também sugere uma coisa e outra. Para Massaud Moisés, no texto em que tenta provar que há utopia na obra machadiana, é possível propor mudanças ao mundo "por meio da tomada de consciência da sua radical imperfeição".96 Às vezes essa parece ser a estratégia do cronista: denunciar o erro para deixar implícita a possibilidade do acerto. Sobre a visão de Gledson sobre o modo como Machado aborda a questão dos "chins", acredito que a presente pesquisa tem mostrado que o problema não era racial para o escritor. A "contradição" ao qual o crítico faz referência era apenas do senador Taunay e outros, que "como ele queriam imigrantes europeus" (GLEDSON, op. cit., p. 171); na crônica, essa incoerência é apenas apontada pelo escritor. Quando o cronista trata dos chineses, a questão não é, em absoluto, "depauperamento da raça", ou a hipótese, apresentada pelo próprio Taunay em 1883, de que o chinês trabalhava menos e tinha mais vícios que o europeu. Para Machado, ao que parece, o problema estava em como os chineses poderiam contribuir com o desenvolvimento social do país. Como o valor da mão-de-obra chinesa era muito baixo e os indivíduos dessa "raça" eram pouco assimiláveis, a contribuição seria apenas econômica. Como já foi notado, alguém poderá observar certo determinismo em Machado no que se refere ao assunto, mas, se há determinismo, este não se refere a características "raciais" no sentido que hoje chamamos "genético"; os chineses não são "inferiores" biologicamente, ou sequer socialmente, apenas não eram a melhor opção para um país em formação. Aliás, a 96

MOISÉS, Massaud. Machado de Assis: ficção e utopia. São Paulo: Cultrix, 2007.

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própria disposição dos chineses em trabalhar por muito pouco em terra estranha já explica o fato de não quererem ser assimilados ou "fincar raízes". A consciência da imperfeição de um país que não tem boa legislação, não se preocupa em reformar-se e no qual as liberdades individuais são relativas, traz implícita a possibilidade de ser o contrário. Enquanto as mudanças não vêm e mesmo depois que vierem "sejamos como somos, ainda que com defeitos", ou seja, sejamos brasileiros, não um arremedo de frases, idéias e costumes imitados. Curioso o uso dessa frase popular justamente numa crônica que trata da relação do Brasil com estrangeiros, abordando, de início, o problema da imitação da Inglaterra e, depois, a vinda e naturalização de imigrantes. O projeto de branqueamento ou germanização do país, defendido por Taunay e outros tantos, se implantado, faria com que o país passasse a ser outro. Essa parece ser uma preocupação de Machado de Assis e dos que recebiam a alcunha de "nativistas". O escritor, a partir da escrita literária ou de "literatura de fronteira" da crônica, com o uso constante do humor e da ironia, conseguiu fugir desse tipo de rótulo. Chegando ele mesmo a apresentar a possibilidade de ser "nativista" na crônica de 28 de outubro de 1888, o escritor nunca foi chamado assim por ninguém; aliás, chegou a ser acusado do contrário. Para Roger Bastide: Machado de Assis, vivendo numa época em que apenas começava a colonização estrangeira, sob a forma de colônias agrícolas relativamente afastadas do conjunto da vida brasileira, não precisou imprimir ao seu nativismo o feitio duro e patético de batalha interior. Podia dar-lhe um aspecto mais natural, mais espontâneo. Quando, por conseguinte, se lhe censura a banalidade das descrições rápidas que insinuava por vezes, em traços ligeiros, entre as linhas da narrativa, esquece-se a reivindicação nativista que elas porventura encerram: o desejo de não cair no exotismo, porque o exotismo é ver o próprio país com olhos de estrangeiro – a vontade de exprimir o que vê o olho habituado à paisagem, o olho de escritor que nunca saiu de sua terra, que não tem que fazer comparações, que grava o conjunto e não o pitoresco de certos pormenores tropicais.97

Portanto, havia um tipo de nativismo em Machado, começando pela opinião (crucial em sua obra) de que o Brasil devia valer mais pelo "homem e suas obras" que pela natureza. Em crônica de 20 de agosto de 1893, o autor confessa: "O meu sentimento nativista, ou como quer que lhe chamem, — patriotismo é mais vasto, — 97

BASTIDE, Roger. "Machado de Assis, paisagista". In: Teresa: revista de Literatura Brasileira, n.º 6/7, 2006, p. 421.

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sempre se doeu desta adoração da natureza"98, que era uma constante na visão dos estrangeiros "de passagem". Talvez haja, nesse sentimento, uma crítica à teoria de Thomas Buckle de que os "ventos alísios" seriam causadores da suposta apatia social e cultural das regiões tropicais, pois levariam o homem à constante contemplação da natureza exuberante produzida por eles. Os imigrantes que viessem teriam que naturalmente "ser assimilados" para que deixassem de ver a terra com olhos de estrangeiro.

98

A semana (Gledson), p. 285.

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CAPÍTULO 7 A crônica machadiana como participante do processo histórico

Se até este momento se procurou ler a crônica de Machado de Assis de modo sincrônico, relacionando-a com outras opiniões, contemporâneas, a respeito da questão da substituição de mão-de-obra, a partir deste ponto tentarei mostrar que havia nessas obras uma preocupação diacrônica, ou seja, o Machado cronista tinha consciência de sua participação no processo histórico, do lugar de suas obras como parte da "fisionomia de um tempo" e imaginava a possibilidade de ser lido décadas depois, por alguém que desejasse compreender melhor a época em que ele produzia seus escritos para os jornais. Tenho a impressão de que todo autor tem alguma preocupação a respeito de como aquilo que ele escreve "sobreviverá ao tempo" e como será lido, tempos depois, pelas gerações futuras. Com Machado de Assis não parece ter ocorrido de forma diferente. No que se refere à crônica, no entanto, as características atribuídas a esse gênero deixariam pouco espaço para tal preocupação. Por tratar, em geral, de coisas mais "leves", de acontecimentos de repercussão mais local e "imediata", poder-se-ia supor que um cronista teria pouca ou nenhuma preocupação com a possibilidade de ser – e de como seria – lido no futuro. Nas crônicas de Machado, embora não como regra geral, aparece de quando em quando aquilo que o autor chama "sentimento da posteridade". É evidente que essa visão "prospectiva" se configura em mais uma estratégia, entre muitas, para dar à crônica um ar mais leve, criativo e variado; mas parece haver uma preocupação real por trás deste "artifício". Na crônica de Machado, pôde-se perceber que a preocupação – talvez disfarçada de mera curiosidade – com o futuro era tão recorrente quanto o tratamento dado ao passado. Da mesma forma, nota-se nas crônicas de Machado uma perspectiva da longa e média duração, ou seja, um ponto de vista de quem observa os séculos "de cima", perceptível em usos como "o século XVIII, data de tantas liberdades" (crônica de 25 de abril de 1865) e "o século [XIX] é prático, esperto e censurável" (15 de janeiro de 1877). Esse tipo de visão parece não combinar com o gênero, mas como aparece em meio a outras tantas perspectivas,

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acaba por ser um reflexo da liberdade autorizada (e até cobrada) pela crônica. Entretanto, no desenvolvimento da crônica machadiana, esse ponto de vista vai se mostrando aparentado com a idéia do Eclesiastes, muitas vezes citada, de que "nada há de novo debaixo do sol", o que justifica o trânsito fácil entre o passado, o presente e o futuro. Entre as primeiras crônicas de Machado, a de 25 de novembro de 1861 (Diário do Rio de Janeiro), bastante interessante, serve como primeiro exemplo, ainda que discreto, de uma visão prospectiva no autor/cronista. Contra o senador José Martins da Cruz Jobim (1802-1878), médico, fundador da Sociedade Imperial de Medicina, mais tarde chamada Academia Nacional de Medicina, da qual foi diretor, o cronista lança duros ataques: "[...] pudesse eu opor à negação da ciência em favor do empirismo, que no meio de uma corporação fez o diretor da academia de medicina. Ouvi bem, ó vindouros, o diretor de uma academia de medicina!"99. Pode parecer estranha essa espécie de defesa da ciência por Machado de Assis, mas duas coisas têm de ser colocadas em questão. Em primeiro lugar, a crítica machadiana às "feições" que a ciência toma em sua época – principalmente certa "mania" de ciência e progresso – se torna presente em especial a partir da segunda metade da década de 1870; outro ponto que deve ser colocado é que a crítica feita ao senador Jobim é antes política que "científica", já que a posição liberal de Machado de Assis (bem marcada nessa época) o leva a criticar propostas do político conservador. De qualquer forma, o pequeno fragmento no qual o cronista chama a atenção dos possíveis leitores futuros mostra uma preocupação com as impressões que as gerações posteriores terão da política (e dos indivíduos) de sua época; é como se ele dissesse "não se esqueçam disso" na hora de fazer um julgamento histórico, e o fato de um médico ter colocado o empirismo à frente da ciência é apenas um agravante: "Negar a ciência é negar a esposa [...]. Mas negar a publicidade, negar a discussão [...] equivale a negar a liberdade, a negar a própria mãe". Vê-se que a preocupação com o futuro, presente na crônica machadiana, está intimamente ligada com uma preocupação histórica. Há em Machado, desde muito cedo, a consciência de que as palavras e ações do presente serão história no futuro,

99

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 31 (grifo meu).

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algo que se liga a uma espécie de medo de que as coisas sejam distorcidas, de que o traidor seja visto como herói e vice-versa. Na crônica, sobre a inauguração da estátua eqüestre de D. Pedro I, na praça onde Tiradentes fora enforcado (1º de abril de 1862), o autor se referia ao "historiador futuro" que quisesse analisar a criação aquele monumento a partir dos debates da imprensa. Veria que a construção não foi fruto de um consenso, o que revelaria algo sobre a política e a sociedade brasileira naquela época. Talvez a crônica de 25 de abril de 1865, também do Diário do Rio de Janeiro, em que Tiradentes é defendido como herói, sirva para explicar o porquê de o cronista ter, três anos antes, se preocupado em mostrar que a estátua do filho da rainha que mandara executar o alferes não havia sido fruto de um consenso. Possivelmente, Machado só não foi mais claro porque, como lembra Lúcia Granja: [...] a crônica se inseria em uma rede de relações que teciam o comprometimento. Dentro de um periódico específico, não deveria destoar de suas opiniões. Como reflexo da opinião pública, que ali se queria reconhecer, dela também não deveria destoar. Dessa forma, talvez os comportamentos ardilosos do narrador tivessem a função de justificar a possibilidade de contrariar essas relações.100

Assim, deixar o julgamento para aqueles que viessem depois, apenas com a demonstração de que havia desacordos com relação a temas cujo produto final poderia levar a crer que tudo transcorreu sem a mínima desavença era, ao mesmo tempo, uma estratégia para os contemporâneos que fossem capazes de entender soubessem do que ele tratava. Se ninguém entendesse, o fato não escaparia ao julgamento das gerações futuras. A crônica de 15 de julho de 1876 ("História de quinze dias" da Ilustração Brasileira) apresenta uma crítica ao uso, típico, para o cronista, da língua portuguesa e principalmente do Brasil dos nomes longos (formados por vários nomes e sobrenomes). O cronista conclui com uma dica para um possível leitor futuro: "No futuro, se alguém ler as linhas que aí deixo e tiver força por emendar o uso, emendeo, certo que não exijo monumento por isso"101. Esse tipo de postura do cronista não deixa de ser curiosa, já que a crônica dificilmente seria lida tempos depois (seu objetivo não era "permanecer"). Daí pode-se inferir que utilizava essa visão prospectiva como recurso para mostrar que o problema abordado era impossível de 100 101

Machado de Assis, escritor em formação, p. 34. Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 309.

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ser resolvido àquela época, cabendo apenas depositar as esperanças nas próximas gerações. A mesma crônica de 1876 apresenta uma especulação interessante acerca da comemoração do centenário da independência brasileira, em 1922. Partindo de um evento, o banquete com que, no Brasil, os estadunidenses aqui residentes festejaram os cem anos da independência dos Estados Unidos, o cronista confessa: "tive inveja aos brasileiros que em 1922 devem fazer igual festa em Nova York ou Washington. Se pudesse assistir a ela!"102. Ao ler esse trecho da crônica me perguntei por que o cronista não simplificou as coisas, escrevendo que tinha inveja aos que pudessem comemorar o centenário da independência brasileira. Então lembrei que, apesar de a longevidade média no Brasil não ser tão alta, alguém viver 83 anos – idade que Machado de Assis teria em 1922 – não era algo impossível. Talvez daí aquela inveja específica, dos brasileiros que pudessem, em 1922, fazer as comemorações nos Estados Unidos. Mas não pude deixar de lado a idéia de que não era exatamente a comemoração que causava o sentimento de inveja, mas o privilégio, sem dúvida para poucos, da extraterritorialidade. Um brasileiro que estivesse nos Estados Unidos, dali a quase cinqüenta anos, para lá comemorar tal evento (o centenário da independência do Brasil), sem dúvida seria um brasileiro privilegiado (como eram os americanos que viviam na corte em 1876), não simplesmente por comemorar a efeméride, mas por ser de uma classe extremamente privilegiada. Assim, pode ser que o trecho esconda uma ponta de ironia. Qualquer evento seria bom de comemorar, para os que têm o que comemorar. Mas isso também pode ser mera especulação. Outro ponto interessante da mesma parte da crônica acima, desta vez bastante evidente para que seja apenas especulação, é a crítica à escravidão e uma (outra) referência à história escrita. O cronista coloca como "o maior dos milagres" dos Estados Unidos o fato ter sufocado a guerra civil e "com ela extirpado uma detestável instituição social". A posição antiescravista é evidente, mais ainda quando a idéia é completada com a seguinte interrogação: "Que há em Tito Lívio maior do que isso?". Com a pergunta retórica fica claro o quanto o fim do regime escravista significava para o cronista. Esse fato deveria ser considerado maior que qualquer façanha do Império Romano. 102

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 309.

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Um uso divertido das prospecções pelo narrador machadiano ocorre na crônica de 15 de fevereiro de 1877. Nela, o cronista especula como os lingüistas brasileiros do futuro iriam analisar e buscar a origem da palavra bisnaga ou, mais que a origem da palavra, a origem do uso que se fazia daquele termo – "tubo delgado com que se lançava água-de-cheiro sobre os foliões, nas festas de carnaval", conforme o Dicionário Houaiss. Mesmo com todas as discussões, cientificamente balizadas, ninguém chegaria ao fato de que fora um tal Gomes de Freitas, que aconselhava o uso da planta de mesmo nome como medicinal, o autor involuntário do sentido, pela coincidência de que fizera a recomendação à mesma época em que esguicho apareceu. O cronista conclui: "Teve a bisnaga uma origem alegre, medicinal e filosófica. Isto é o que não hão de saber nem dizer os grandes sábios do futuro. Salvo, se certo número da Ilustração chegar até eles, em cujo caso lhes peço o favor de me mandarem à preta dos pastéis"103. De novo o cronista alude a uma possível leitura póstera, que serviria para esclarecer algo, no caso conhecer melhor um significado, fruto de um contexto espaço-temporal restrito. A frase final, no entanto, serve para desautorizar o argumento construído pelo próprio cronista, nem tanto porque seja baseado em dados falsos, mas pelo fato de que é uma informação absolutamente irrelevante. É interessante como o narrador faz uso de uma visão abrangente para abordar um tema absolutamente restrito no tempo, no caso, o carnaval daquele ano. Um procedimento semelhante ocorre na crônica de 1º de abril do mesmo ano, quando o cronista afirma: "Um dos problemas que o futuro há de estudar é esta persistência de glosa no último quartel do século"104. Uma questão absolutamente restrita, local é o que desperta a especulação do narrador nada mais que a publicação de motes e glosas em jornal nos últimos quinze dias. Há a invenção de uma importância para o fato, que seria digno de estudo no futuro, evidente ironia referente à irrelevância e "vulgaridade" do tema, que serve também como uma pequena crítica ao fato. Na mesma crônica, o narrador brinca com o fato de haver duas Câmaras municipais em Santos, sugerindo, evidentemente de forma irônica, que o mesmo sistema seja aplicado no país. A conclusão é prospectiva: "Idéia para os Benjamins Constants do outro século". Dessa forma, a ironia serve também para mostrar que 103 104

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 348. Ibidem, v. 4, p. 355.

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pouco ou nada muda na política, sendo que cada século tem suas figuras "equivalentes", seus "Benjamins Constants", por exemplo. Não obstante o freqüente uso irônico da visão prospectiva do cronista machadiano, não são raros os momentos em que esse ponto de vista acompanha um comentário ligado à história e decorre dele. A idéia de história presente nas crônicas de Machado de Assis, vem muitas vezes acompanhada de uma "teoria do futuro", se assim podemos chamar. Junto com a especulação sobre a produção de um determinado conhecimento histórico, vem outra, conseqüência da primeira, que trata da sobrevivência ou da substituição desse conhecimento pela ação e pela reflexão das gerações futuras. Se a história não é definitiva, se "emendam-se as futuras edições" dos livros de história, então também se pode especular a respeito do futuro de uma determinada visão ou conceito histórico. É o que se observa na crônica d' O Cruzeiro de 16 de junho de 1878, recolhida no corpus para a análise do problema da crise da mão-de-obra e discussões sobre imigração na crônica machadiana. Logo no início da crônica, há uma referência ao início das "festas juninas", as (até hoje) "explosivas" e persistentes comemorações em homenagem a Santo Antônio, São João e São Pedro. Indague quem quiser o motivo histórico deste foguetear os três santos, uso que herdamos dos nossos maiores; a realidade é que, não obstante o ceticismo do tempo, muita e muita dezena de anos há de correr, primeiro que o povo perca os seus antigos amores.105

A opinião do cronista é a de que, indiferente às motivações históricas – e talvez justamente por essa indiferença –, os costumes populares permanecerão ainda por "muita dezena de anos", mesmo com o ceticismo que se alastrava, especialmente entre as classes cultas. Essa idéia de que a "ciência" teria pouca ou nenhuma influência sobre os costumes populares, que permaneceriam, a despeito da história, a qual teria que sempre revisar suas versões, reflete um pouco das dúvidas do narrador a respeito da "novidade" científica, ou daquele "bando de idéias novas" ao qual Sílvio Romero se referira. A idéia provavelmente era mais atingir as pretensões científicas que propriamente fazer uma defesa da cultura popular.

105

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 416 (grifos meus).

100

A crônica das "Balas de estalo" que tratava das Leis e Resoluções da Província da Bahia votadas no ano de 1885, também apresenta uma curiosa relação passado-futuro. O cronista imagina, com evidente ironia, um leitor que, quase cem anos depois, elaboraria uma análise para aquele tempo: "O investigador sagaz de 1980 achará que por este nosso tempo se operou uma grande fusão religiosa, que fizemos do paganismo e do cristianismo um só credo, convertendo a Fortuna antiga no Providência moderna [...], teste David cum Sibylla..."106. A estratégia consiste em jogar para uma análise "inocente" do investigador do futuro os fatos evidentes do tempo em que o cronista escreve; tal estratégia tem pelo menos dois efeitos: primeiro, que a ciência, mesmo com o seu desenvolvimento aos píncaros em fins do século XX, poderia ser "enganada" por interpretações erradas; segundo, que a visão prospectiva do narrador tem a intenção de mostrar também aos seus contemporâneos que as 911 loterias aprovadas pela Assembléia provincial da Bahia poderiam ter lá suas justificativas, crer nelas é que seria uma questão de boa informação e de consciência, mais que de ciência. A idéia de que se deve desconfiar de dados, estatísticas e informações, jogada para o futuro ao invés de se referir a fatos passados – talvez por estes serem mais difíceis de se apreender, pois não sendo acontecimentos contemporâneos ao cronista, este não teria acesso às mesmas informações "privilegiadas" –, volta a aparecer em crônica de "Bons dias!". Em 26 de agosto de 1888, o narrador reflete sobre os números absurdos utilizados pelos astrônomos, fazendo em seguida uma ligação com a política: Nem por isso os nossos políticos escreverão suas memórias, como desejara o Sr. Senador Belisário. Há muitas causas para isso. Uma delas é justamente a falta do sentimento da posteridade. Ninguém trabalha, em tais casos, para efeitos póstumos. Polêmica, vá; folhetos para distribuir, citar, criticar, é mais comum. Memórias pessoais para um futuro remoto, é muito comprido. E quais sinceras? quais completas? quais trariam os retratos dos homens, as conversações, os acordos, as opiniões, os costumes íntimos, e o resto? Que era bom, era; mas, isto acaba antes de um milhão de séculos?107

O trecho parece traçar um perfil genérico do político brasileiro da época. O imediatismo e a despreocupação com as gerações futuras são colocados como características comuns entre os representantes eleitos pelo povo (ou por uma 106 107

Balas de estalo de Machado de Assis (organização de Heloisa Helena Paiva de Luca), p. 337. Bons dias! (edição organizada por John Gledson), p. 111 (grifo meu).

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parcela dele) e talvez não exclusiva deles. E mesmo que os políticos quisessem escrever suas memórias, estas seriam tão parciais e tendenciosas que de pouco ou nada serviriam para que alguém no futuro pudesse entender melhor aquela época. O narrador apresenta que poderia, de fato, ser bom que cada político escrevesse suas memórias, desde que fossem sinceras e retratassem com o mínimo de fidelidade a política da época em que viveu, algo, no entanto, impossível. Desta forma, memórias pessoais, na maior parte dos casos, não poderiam servir de "documento" (ao menos no caso brasileiro), pois não trariam a "sinceridade" que alguns debates e leis poderiam deixar transparecer. Ao mesmo tempo em que o cronista se refere a essa falta de sentimento de posteridade, que funciona como espécie de quadro descritivo da política brasileira de sua época, ele alerta aos possíveis leitores futuros desse tipo de memória, ou mesmo de obras históricas, que estas poderiam não ser sinceras e não retratar satisfatoriamente a época que pretendem elucidar. Assim como o político, o pretenso historiador poderia ter suas posições políticas (ou mesmo religiosas e científicas) arraigadas de modo que essas posições poderiam afetar aquilo que se escreve. Tudo é escrito por homens, e o que os homens escrevem, via de regra, não é isento de manipulação. Um dos textos mais "patrióticos" de Machado de Assis, crônica de 20 de agosto de 1893 ("A semana", da Gazeta de Notícias), apresenta, no final, alguma esperança de melhoria do povo brasileiro. Há aqui obras de outra casta, seja de arte, seja de política, seja de ciência, obras que podem recomendar-nos, embora não espantem a estranhos. [...] Contestou-se que a poesia nacional estivesse no caboclo [...]. O caboclo e o capoeira podem fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosos.108

Depois de mostrar que temos, sim, obras humanas de valor, e que vários modismos da época (como o espiritismo e a pelota basca) eram na verdade de origem estrangeira, o narrador chega à conclusão, citando Basílio da Gama, de que o arco e flecha seria um esporte bem brasileiro. Por trás dessa "brincadeira", a crônica é encerrada com uma frase que parece expressar a expectativa de que figuras populares tão criticadas, inclusive pelos homens de ciência que atribuíam à raça ou à mistura de raças a vadiagem e a periculosidade de parte da população 108

A semana (edição organizada por John Gledson), p. 287.

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pobre brasileira, algum dia pudessem "fazer-se úteis, em vez de inúteis e perigosas". Colocando o problema nesses termos, percebe-se que o cronista despreza o "racialismo" da época e toma uma posição humanista. Se o caboclo e o capoeira são "inúteis e perigosos" é porque a preocupação com o homem é negligenciada. O ponto de vista estrangeiro, de que "a natureza anula o homem", é prontamente adotado por muitas pessoas de alguma cultura no Brasil, as quais se esquecem de que é o homem que se faz – daí o caboclo e o capoeira poderem fazer-se úteis. Mais um exemplo de especulação a respeito da possibilidade de ser lido por leitores pósteros está na crônica de 19 de agosto de 1894: Compilador do século XX, quando folheares a coleção da Gazeta de Notícias, do ano da graça de 1894, e deres com estas linhas, não vás adiante sem saber qual foi a minha observação. Não é que lhe atribua nenhuma mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser agradável aos meus manes saber que um homem de 1944 dá alguma atenção a uma velha crônica de meio século. E se levares a piedade ao ponto de escrever em algum livro ou revista: "Um escritor do século XIX achou um caso de cor local que não nos parece destituído de interesse..."109

O "caso de cor local" a que o cronista se refere vem de uma notícia da época, de que na Espanha vários fidalgos que estavam em uma casa de jogo ilegal reagiram a tiros contra a intervenção da polícia. Mas a percepção dessa "cor local" espanhola, que serve como referência irônica ao "meio" da teoria taineana, dá ensejo a um "recado" para um possível leitor futuro, que dali a cinqüenta anos poderia notar a astúcia do narrador. O recado para o "compilador do século XX" tem o objetivo principal de ressaltar o caso e, principalmente, a observação do cronista, que de tão perspicaz mereceria atenção até mesmo várias décadas depois. Assim, nota-se uma estratégia narrativa da prospecção, usada para ressaltar o fato e, ao mesmo tempo, ironizar o seu caráter efêmero. Uma notícia tão inútil em termos históricos permitiria uma análise da sociedade brasileira em oposição à espanhola, pois se nesta os fidalgos infringem e enfrentam a lei, por aqui a postura dos jogadores seria outra: "Ao primeiro apito, pernas. Ao primeiro vulto, muros". Assim, imaginar um leitor futuro, neste caso, seria um artifício a serviço do humor presente na crônica.

109

Obra Completa, em quatro volumes (Aguilar, 2008), v. 4, p. 1094.

103

Antes disso, num fragmento da crônica de 25 de setembro de 1892, sob a perspectiva da imigração chinesa, o narrador havia colocado o problema da "falta do sentimento da posteridade": Quando vierem as maldições ou as bênçãos, – cerca de 1914 – os que estivermos enterrados, não nos importaremos com elas. [...] Também não se nos dará de agitações sociais ou outros desconsolos; menos ainda se o Império do Meio fizer de nossa terra uma República do Meio. Teremos vivido.110

Tratando da controvertida questão da imigração chinesa, o cronista se finge de despreocupado com o que vai acontecer no futuro. Se o Brasil será uma segunda China por volta de 1914 – pouco mais de duas décadas da época em que ele escreve – pouco ou nada interessaria para a geração de seu tempo. Essa máscara abstencionista joga com a perspectiva do futuro, mas de tal modo que a crítica fica mais evidenciada do que se fosse direta. É como se o cronista perguntasse: "de que importa o que será do Brasil em vinte e poucos anos, se eu não estarei vivo?". Essa parecia ser a perspectiva de muitos políticos brasileiros, ironizada pela crônica. Era a mesma "falta do sentimento da posteridade" à qual o cronista de "Bons dias!" já havia se referido em 1888. Há fortes indícios de que a questão da imigração aparece na crônica de Machado de Assis não apenas como reflexo do que se discutia na sociedade brasileira, mas como uma forma de expressão das opiniões do escritor. A preocupação com a assimilabilidade dos imigrantes, o desejo de que estrangeiros de várias procedências se "intercalassem" aos brasileiros de modo a se evitar o isolamento e a impermeabilidade cultural daqueles, a defesa do ensino da língua portuguesa aos (possíveis) novos cidadãos brasileiros, a crítica à naturalização compulsória proposta por Taunay, todas essas posições são exemplos de uma preocupação com a formação de uma nova sociedade brasileira. O que o Brasil seria no século seguinte dependia, e muito, das políticas imigrantistas adotadas na época que Machado escreve suas crônicas. Quando aborda a questão da imigração, a crônica machadiana deixa entrever o "nativismo" e o "sentimento de posteridade" do escritor. A idéia de história que se revela na crônica machadiana se aproxima da crítica da ciência que se encontra por toda a obra de Machado de Assis. Na medida 110

A semana (edição organizada por John Gledson), p.125.

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em que a história vai deixando para trás seus traços literários e ganhando status de ciência, o que se dá principalmente a partir da segunda metade do século XIX, suas pretensões de objetividade, além da crescente influência do positivismo e do evolucionismo, se tornam "suspeitas" para o escritor, o qual percebe que essa objetividade não é possível em termos absolutos. Daí as idéias de que a lenda é melhor que a história, de que as palavras são o que há de mais interessante na história, de que documentos "heterodoxos" (como as leis que instituíam loterias) poderiam ser usados para se entender melhor uma época, de que "migalhas da história" também deveriam ser recolhidas, de que pouco ou nada valem as datas, de que a história talvez seja cíclica – ao invés de linear ou "evolutiva" –, entre outras encontradas nas crônicas de Machado de Assis. Todas essas questões são colocadas para pôr em dúvida um modelo, servem para colocar ao leitor – se este fosse capaz de entender – que as coisas não são diretas e objetivas como a ciência queria, mas que tudo o que se referia ao ser humano só poderia ser contingente, como ele. Tudo leva a crer que, ao abordar a questão da imigração, Machado tinha consciência do caráter decisivo, "histórico", daquelas discussões. Sua crônica também era escrita como algo que poderia ser lido como documento pelos "vindouros" que quisessem entender melhor aquelas polêmicas. Fugir dos determinismos raciais – que freqüentemente balizavam as opiniões a respeito de quais imigrantes os Brasil devia receber – era uma maneira de mostrar que, naquela época, nem todos compartilhavam das mesmas opiniões, que havia quem desacreditasse daquelas teorias que atribuíam à raça esse ou aquele temperamento ou índole de um povo ou indivíduo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A época em que as crônicas de Machado de Assis começam a abordar a carência de "braços" na lavoura brasileira e as possíveis soluções para esse problema, quase sempre ligadas à entrada de trabalhadores estrangeiros no país, coincide com a época em que esse problema começa a estar na ordem do dia, tanto para os parlamentares e fazendeiros como para a imprensa jornalística do Brasil. Esse fato se explica pelos efeitos da aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, e mostra que o Machado cronista estava muito a par dos temas "graves" que estavam em discussão na sociedade brasileira, os quais decidiriam o destino do país nas décadas seguintes. Do ano de 1876, cinco anos após a aprovação da Lei de 28 de Setembro, até 1900, quando é publicada, na Gazeta de Notícias, a última das crônicas de Machado de Assis, a questão da imigração aparece em várias dessas obras. A freqüência com que o assunto é abordado vai aumentando conforme este ganha importância na sociedade brasileira, com a iminência e após a abolição definitiva da escravidão. Nesse sentido, as crônicas machadianas servem para medir o grau em que a imprensa e os políticos estavam empenhados em debater e resolver o problema da substituição de mão-de-obra no Brasil. A questão da imigração passa a ocupar lugar central entre as preocupações econômicas, políticas e sociais brasileiras justamente na época em a "ciência racial" está em voga. Esta coincidência faz com que muitos coloquem o critério racial como o primeiro a ser levado em conta na importação de mão-de-obra, sendo que a imigração aparece como uma oportunidade para o "branqueamento" da população brasileira, na qual a presença do elemento negro e indígena, além da mestiçagem, seria um fator de degeneração. Machado de Assis se recusa a aderir a esse discurso e passa a criticá-lo, com humor e ironia, por meio de suas crônicas. Para entender essa tomada de posição do escritor não podemos deixar de levar em conta alguns elementos biográficos, como a condição de mestiço e de "nevropata" – expressão utilizada por Lúcia Miguel Pereira –, para quem aderir à ciência racial seria colocar-se como inferior.

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Assim, lemos nas crônicas machadianas frases do tipo "nada degenera e tudo se transforma" ou "estamos longe da anemia e da debilidade que nos atribui o pessimismo de alguns misantropos", ou ainda a afirmação de que nossa "tal ou qual inércia de espírito [...] é menos um fenômeno da raça, que da idade social". Para Lúcia Granja e John Gledson, o último exemplo citado, das "Notas semanais" de O Cruzeiro, é prova da "rejeição explícita" do autor "a interpretações raciais para a inabilidade brasileira de progredir de fato"111. A ancestralidade de Machado de Assis, afro-descendente mas com mãe portuguesa, com avós que haviam sido escravos, mas alforriados provavelmente ainda no período colonial, talvez ajude a explicar algumas de suas aparentes posições. É bem o provável que o escritor não se visse como negro, nem como branco, mas como brasileiro, e parece que é com a idéia de "raça do país" que ele se identifica. Isso ajudaria a explicar por que na obra machadiana o termo "raça" aparece associado à nacionalidade muito mais que à etnia ou tom de pele e porque ele nunca se refere à cor "amarela" de chineses e japoneses, algo recorrente em todas as outras "fontes" que abordaram assuntos concernentes a esses povos, além do que buscou sempre diferenciar esses dois povos, como países, culturas e sociedades distintos, mostrando que nações e, subentende-se, pessoas de origem étnica parecida podem ser muito diferentes. Alguns leitores de Machado de Assis talvez se recusem a ver certo determinismo sociocultural no modo como o escritor aborda os chineses ou, mesmo, não queiram notar que o escritor, embora com reservas em relação aos conflitos imperialistas que causavam grandes matanças mundo afora, tinha alguma simpatia pelas "novas potências" Estados Unidos e Japão. Da mesma forma, alguns tenderão a ver como ironia a discreta simpatia do cronista machadiano pelo marechal Floriano Peixoto, que no "tecido da história" apresentado na crônica de 7 de julho de 1895 é descrito como "dos fortes", sem lembrar-se que ao escritor nunca foi cara a idéia de um federalismo exacerbado, que podia dar ensejo à formação e fortalecimento de "oligarquias absolutas" e que Floriano reprimira a Revolução Federalista iniciada anos antes no Rio Grande do Sul. O desejo de que a educação de imigrantes para que a assimilação deles fosse facilitada, o entendimento de que uma mão-de-obra quase escrava, que era o 111

"Introdução" a Notas semanais. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008, p. 47.

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caso da chinesa, não deveria entrar no país pois "espantaria" imigrantes que vinham, de fato, colonizar o Brasil, mesclando-se com a "raça do país" pareciam opiniões particulares do escritor. Mais ou menos na linha editorial da Gazeta de Notícias, mas sem o desejo indisfarçável de que o máximo de europeus deveria entrar no país (presente em outros colaboradores, como o próprio Ferreira de Araújo), a questão racial tão em voga parece ser o ponto que mais incomoda o cronista no que se refere às polêmicas em torno da imigração. O próprio Estado dava mostras da preocupação com a "raça" dos imigrantes, prova disso está no fato de foi o "Marechal de Ferro" quem dissociou a imigração para o Brasil da questão racial com a Lei nº 97, de 5 de maio de 1892, a qual revogou o Decreto 528, de 20 de junho de 1890 ("Das imigrações européias"), sancionado pelo marechal Deodoro da Fonseca e que determinava que asiáticos e africanos que quisessem entrar em território brasileiro, só o fariam com uma autorização especial do Congresso, ao contrário dos europeus, os quais podiam entrar no país livremente. Talvez isso tivesse contribuído para o discreto elogio que o cronista fez do ex-presidente recémfalecido em 1895. Outro ponto importante para entender a crônica machadiana é a "consciência histórica" do escritor. A compreensão que Machado de Assis possuía da História do Brasil, inclusive dos processos históricos que estavam se desenrolando no momento em que ele escrevia, serve para entender muitas das possíveis "opiniões" presentes em suas crônicas. Tudo o que estava acontecendo no momento em que a crônica é escrita fazia parte de um processo que, no futuro, seria história. Tudo o que estava sendo escrito naquele momento poderia ser lido como "documento histórico" pelas gerações seguintes. Essa concepção de história ajuda a explicar muitas das posições que Machado de Assis parece sustentar em suas crônicas. Os "olhos de míope" do cronista buscam, como vimos, assuntos de natureza supostamente banal, mas que muitas vezes podem ser associados com assuntos maiores, como a contínua entrada de imigrantes no Brasil e a situação de algum deles. É óbvio que o Machado cronista faz uso de vários procedimentos para entreter a imaginação do leitor, mas a "história mínima" da crônica convém, sem dúvida, para entender melhor o perfil daquela época, não como se dá geralmente nos livros de história, mas de uma maneira muito mais viva, pois permite ver

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detalhes que também fizeram parte de uma época mas que normalmente se perdem no "tecido da história".

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ANEXOS Corpus para estudo do tema

[1] Crônica de 1º de setembro de 1876 Coluna: "História de quinze dias" Periódico: Ilustração Brasileira

I Não será por falta de sucessos que um cronista deixe de dar conta da mão. Eles aí andam a pular de manhã até à noite, a surgir debaixo dos pés, como os trabalhos, e a cair do céu, como chuva. Anda-se por cima deles, por baixo deles, entre eles, neles e com eles; há mais sucessos que penas para os referir. Estes quinze dias valem por um trimestre da história romana. E note-se que a história romana não conhecia muitas coisas que nós tivemos o prazer de inventar, entre outras, a vermelhinha. A vermelhinha, o espiritismo, as mutações turcas e as barracas do campo são usos que nem o Império de Augusto nem a República de Catão tiveram o gosto de conhecer. Não é à toa que os séculos andam.

II Que os fatos nos perseguiram esta semana é uma dessas verdades que se metem pelos olhos dentro. Assim que, a Turquia está em risco de perder o seu atual sultão, ou o sultão de perder a Turquia. Há pouco mais de um mês governava o tio deste; este cede o passo a um irmão. É uma peça mágica com música de pancadaria. A Turquia está a macaquear a Bolívia de um modo escandaloso: muda de sultões como a Bolívia de presidentes e o leitor de camisas. Um sultão ali equivale a um colarinho de papel: dura um passeio. Durou este, ainda assim, mais do que o projeto de constituição, de que já não há notícia, por fortuna do Alcorão. Digam-me se não vale mais a pena ser barraca do campo, que dura muito mais tempo, com muito menos risco. Há, é certo, durante um ou dois meses no ano, um pequeno eclipse; põe-se abaixo a lona e arrancam-se os paus; mas volta tudo daí a pouco, e nada se altera no essencial. Antigamente ainda havia tal ou qual semelhança entre a barraca e o comendador dos crentes. Era pelo Espírito Santo que elas se armavam; seu ocupante exclusivo era o Teles, cujas representações davam um ar de arraial ao sítio, e eram destinadas ao divertimento do povo, que já não paga (felizmente) os ordenados do Tati e da Stoltz. Acabada a festa, acabou a barraca.

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Com o tempo, as coisas tomaram outro aspecto. O Teles morreu; seus sucessores fizeram-se negociantes de comidas e donos de casas de bilhar. É preciso estar na altura do tempo: as barracas seguem o impulso geral. De maneira que, se Mourad V, expulso de Constantinopla, vier dar no campo de Sant'Ana lições constitucionais de cimitarra, acho que terá feito muito melhor negócio do que lá ficar exposto ao mais involuntário dos suicídios.

III Não virá ele, mas os cantores esses estão a chegar; refiro-me aos cantores do Rio da Prata, ansiosamente esperados por esta população. Sobre cinco pessoas com quem a gente fala, três pedem notícias da companhia lírica. Todos os ouvidos amolam os dentes para petiscar os manjares da mais fina cozinha musical. Alguma coisa nos faltava há muito tempo; uns diziam que eram capitais, outros que braços à lavoura. Era engano: faltava-nos música. Pela minha parte, que sou apreciador velho, estou ansioso por ver a companhia e aplaudi-la. Que ela deve ser boa, é coisa indubitável, desde que, em Buenos Aires, — segundo um periódico dali, representando-se os Huguenotes, o entusiasmo público tocou as raias da loucura. Caramba! Uma companhia que põe uma platéia às portas da alienação mental, deve ser coisa muito superior, muito superior à Transfiguração, que ainda não levou ninguém a semelhante abismo. Pois se os nossos vizinhos deliram, deveremos nós mostrar que temos mais juízo que eles? Não o consente o nosso amor-próprio, e digo mais, — as próprias regras da polidez. Verdade é que eles têm um motivo especial para delirar com esta companhia. Afirma lá a imprensa que a Sra. Rubini tem uma voz argentina. Esta é a chave da loucura. A Sra. Rubini muniu-se de voz argentina desde que ia contratada para Buenos Aires: maneira de adular o sentimento nacional. Os argentinos desde que souberam que a senhora trazia uma patrícia deles na garganta desataram a rasgar luvas, e tocaram as raias do delírio. Estou convencido que a Sra. Rubini, se cantou alguma vez em Montevidéu, levou ali um perfil oriental. Que nos trará não sei, mas não lhe ficariam mal uns olhos verdes e um riso amarelo; toque-nos essa corda e verá as palmas que tem.

IV Nada direi do parricídio do largo do Depósito; — a justiça apura a verdade e as circunstâncias dela; cabe-nos aguardar e lastimar. Lastimar não só o autor do desastre, mas ainda o cérebro dos que mais ou menos querem que a causa dele fosse um livro de Dumas. Santo Deus! se basta um livro para armar o braço de um homem, façamos deste mundo uma biblioteca de Alexandria; é mais sumário do que separar os livros maus dos bons. Pelos anos de 1869 apareceu em Paris um dos maiores criminosos do século; seu processo foi transcrito nas colunas de nosso Diário Oficial desse tempo.

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Ora bem, aquele homem, que mal contava 19 anos, disse que fazia leitura favorita de processos célebres. Que é que o armou para matar três pessoas, — foi a leitura ou outra coisa? Ninguém se lembrou de afirmar a primeira. Decerto, eu creio que houve combinação entre o escrivão de polícia e os livreiros. Os livreiros leram a notícia de manhã, — às seis horas, por exemplo — às nove estavam à mostra exemplares do Affaire Clémenceau, no que fizeram muito bem, porque a notícia dava ao romance certa virgindade nova. Muita gente, que o não tinha lido, que o tenha esquecido, terá vontade de o ler ou reler para saber como é que um livro aponta com o dedo para um revólver. E vejamos: se o autor verdadeiro é o livro, — acho que a reta justiça pedia se mandasse convidar Dumas a vir responder ao processo e a receber o justo prêmio do seu trabalho, que era um quinto de século em Fernando de Noronha. Dumas vinha; entre ele e a autoridade travava-se o diálogo seguinte: — Monsieur, vous avez écrit un méchant livre... — Ma modestie ne dit pas le contraire. — Vous vous trompez, monsieur; je ne dis pas sous le rapport littéraire; je parle de Ia portée morale de ce livre, un livre dangereux, corrupteur... — Pourtant, monsieur, le juge, l'Académie... — L'Académie n'est pas ténue d'avoir des mœurs irréprochables. Ce livre, monsieur, vient de commettre un crime... — Bah! — Oui, ce livre est jugé et condemné. — Qu'on le mène aux galères! — Pas lui, mais vous. Lui, il será brulé par Ia main du bourreau; vous ires composer d'autres ouvrages dans un endroit très poétique, quoique peu littéraire. — J'en appelle... — Vous êtes un monstre! Não! O livro não teve culpa na lastimosa tragédia. A primeira vítima dela é o próprio autor, esse jovem de vinte e dois anos, cujo coração sangra, e sangrará até o último dia, porque tais dores, tais catástrofes enchem a vida de eterno luto. Uma fatalidade lhe armou o braço; outra guiou o tiro; lastimemos todos essas vítimas, o filho e os pais.

V A ser exata a suposição de que o livro de Dumas fizesse isso, eu mandava desde já prender o Sr. Antônio Moutinho de Sousa, que aí chegou com uma edição de Dom Quixote. Tinha que ver se a leitura do livro de Cervantes produzia na cidade uma leva de broquéis e lanças; se os cavaleiros andantes nos surgiam a cada esquina, a tirar bulha com os moinhos de vento, e de casaca. As Dulcinéias haviam de estimar o caso, porque em suma é seu papel gostar de que as adorem e sirvam. Mas, por essa única vantagem, quanta cabeça partida! quanto braço deslocado!

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A edição de Dom Quixote, com gravuras de Gustavo Doré, é simplesmente um primor. Sabe-se que ela é feita pela Companhia Literária, — uma companhia que se organizou somente para editar obras. Companhia Literária! Veja o leitor que ligação de vocábulos. Companhia de seguros, de transportes, de estrada de ferro, de muitas coisas comerciais, industriais, e econômicas, essas são as que povoam o nosso globo; uma companhia Literária, é a primeira vez que os dois termos aparecem assim casadinhos de fresco, como a opereta do Artur. Pois é a tal companhia que vai editar o Dom Quixote, aquele famoso cavaleiro da Mancha, que tem o condão de entusiasmar a doutos e indoutos. Aí o vamos ver com a sua lança em riste, a fazer rir os almocreves, e a perturbar as comitivas que passam, a pretexto de que levam castelãs roubadas. Vamos rir de ti, outra vez, generoso cavaleiro; vamos rir de tua sublime dedicação. Tu tens o pior que pode ter um homem em todos, sobretudo neste século, — tu és quimérico, tu não vives da nossa vida, não és metódico, regular, pacato, previdente; tu és Quixote, Dom Quixote. Bem hajam Cervantes e a Companhia Literária! Bem haja o Moutinho, que após treze anos de ausência, tendo-nos levado o Manuel Escota, traz-nos muitos tipos não menos admiráveis, sem contar os da imprensa da companhia, que são nítidos, como os mais nítidos.

VI Tivemos também esta quinzena o enviado de Sua Santidade. Antes de chegar o digno monsenhor, toda a gente imaginava alguma coisa semelhante a um urso, um tigre pelo menos, sedento de nosso sangue. Sai-nos um homem polido, belo, amável; um homem com quem se pode tratar. Dizem que teve recepção fria; teve-a como haviam de ter Palmerston ou o conde de Cavour. Talvez que dos homens de hoje só Bismarck conseguiria reunir no arsenal de marinha umas trinta e cinco pessoas; e pela simples razão de que ele exprime a força e o sucesso. No mais, há pouca curiosidade nesta cidade; ninguém deixa de vender uma ação do Banco Industrial para ir ver um homem encarregado de missão importante. Não há recepções frias nem quentes; há a dita curiosidade, mas curiosidade preguiçosa, gasta, sonolenta. Houve mais gente no concerto da Filarmônica; uns dizem que duas mil pessoas, outros três, alguns chegam a dez mil. Não sei o número exato; mas houve muita gente. Já houve menos gente no concerto sinfônico, que um e outro mereceram a concorrência pública. Verdade é que o local admitia menor número de espectadores. Gosto de ver esta animação às artes; é um bom sinal. Ao fogo, ou antes aos fogos do largo do Machado acudiu também grande número de pessoas, que tiveram ocasião de ver, mais uma vez, essa engenhosa combinação de culto e rodinhas de sécia, que é a maneira obrigada de adorar o Criador. Pondo de lado esta consideração, não há negar que a festa esteve brilhante, e que a mesa da irmandade houve-se com desvelo.

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Manassés In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 316-319. Observação: há uma breve referência, na parte III desta crônica, segundo parágrafo, à questão da carência de mão-de-obra: "Alguma coisa nos faltava há muito tempo; uns diziam que eram capitais, outros que braços à lavoura." Depois da lei de 1871 a preocupação com a carência de braços ganha maior relevo, embora já existisse antes disso.

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[2] Crônica de 1º de março de 1877 Coluna: "História de quinze dias" Periódico: Ilustração Brasileira

I Esta quinzena pertenceu quase toda aos trabalhos parlamentares. O parlamento tem isto de bom (a celà de bon), que satisfaz a atenção pública. Quando fechado, a gente recorre às gazetilhas extraordinárias, aos sucessos de um dia, às anedotas, à prisão do Limpeza das praias, por exemplo, um larápio que a polícia capturou há dias, para recapturálo daqui a meses. Nos países representativos a vida pública está principalmente nas câmaras. Bem sei que acabo de escrever uma frase à La Palisse, com tempero de Prudhomme; mas se a coisa não pode ser de outro modo? Agora, sobretudo, a vida parlamentar tomou algum calor mais do que é costume. Quem se não lembra das sessões de 1871? Vida é luta; onde houver oposição, há contraste, há vida... Isto posto, a mesa da câmara dos deputados, antes da apresentação do voto de graças, não recorreu aos trabalhos de comissões c'est-à dire, à Ia flâne. Foi ao arquivo, tirou alguns projetos antigos e trouxe-os à luz da tribuna. Tiro e queda. Um dos projetos deu muito que falar, pois tratava nada menos que da imprensa, assunto em que os partidos estão de acordo comigo: plena liberdade. Somente... Somente, no meio do discurso, o testa-de-ferro pôs a orelha de fora. O testa-de-ferro, filho legítimo da descompostura e de cinco mil-réis, não é tão mau como dizem. Eu gosto dele, não porque me pareça que haja entre o testa-de-ferro e a liberdade da imprensa o menor contato, mas porque ele dá lugar a situações engenhosas, cômicas, e de um desenlace único e sempiterno. Assim que, ao testa-de-ferro devemos nós este velho clichê: — "... e quando supunha que me aparecesse o Sr. João da Mata Cardoso, meu desfragado adversário, surge-me como responsável por seus artigos um infeliz, um desgraçado, um Alexandre Pita. Perdoei-lhe, porque esse infeliz não soube o que assinou; mas veja o público, se um adversário que recorre a meios tão ignóbeis, etc." O testa-de-ferro, que embolsou os cinco mil-réis e o perdão, lê no clichê um anúncio de sua pessoa e obras: resultado certo e econômico.

II Dois cidadãos importantes apresentaram agora um projeto gigantesco: amortizar a dívida pública e converter o papel em ouro. Tive vertigem quando li as bases do projeto. Agora mesmo não estou em mim: sinto deslumbramentos metálicos, fascinações aritméticas. Parece-me que estou a ver expirar a derradeira apólice; não sei se tenho comigo a última nota de dez tostões.

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E não digo isto, assim familiarmente, porque duvide da proposta. Eu creio nela, creio que há meio possível de levar a cabo tão gigantesco plano. Mas, leitor, a fé não exclui o assombro que causa a leitura de tantos algarismos! Santo nome de Jesus! Só a idéia faz andar a cabeça à roda. Depois vem a reflexão e sucede o abatimento. Eu vou dizer uma heresia econômica, mas uma verdade prática. Leitor, antes o papel. O regime do ouro é muito mais sólido do que o do papel; mas incômodo, pesado, isso é incontestavelmente. Prefiro cem vezes estas folhas flexíveis, finas, que se dobram até o infinito, que se acomodam na carteira, que se gastam sem pesar. Licurgo queria que a moeda fosse como a roda de um carro, para ninguém poder andar com ela. Pois isso: ou moeda tamanha ou nenhuma. A não ser a roda de carro, antes as notas...

III Das notas às falsas notas a distância é de um xadrez de polícia. Nesta quinzena continuaram a chegar as notícias da campanha rio-grandense, onde a seca produziu incêndios e bilhetes falsos. E tão difícil é atalhar uns como outros. O moedeiro falso é um industrioso que só tem um de dois fins; galé ou palácio. Se escapa ao xilindró, vai direitinho a alta propriedade. E não sendo fácil apanhá-lo, a empresa tem muitos atrativos e fascinações. Se a polícia do Rio Grande não apanhar o autor da indústria monetária, é muito provável que dentro de cinco ou seis anos o referido autor, ardendo em patriotismo, dê alguma quantia grossa para edificar... uma cadeia.

IV Publicou-se nesta quinzena o relatório da Repartição de Estatística. Já o folheei em grande parte. Achei algumas notícias curiosas para mais de um leitor. Assim, por exemplo, quantos persas supõem que há no Império? 45. Destes, 8 estão nesta Corte. Os turcos são apenas 4, dos quais, nesta Corte, 3. São 11 os japoneses; 60 os gregos. Uma arca de Noé em miniatura.

V Não sei a que nação dessas pertencerá a Sra. Locatel, recém-chegada a esta Corte, segundo anuncia nos jornais. A Sra. Locatel não é uma senhora sábia, é toda a sapiência. Imaginem que esta milagrosa dama propõe-se a curar todas as moléstias internas ou externas... com a condição de que sejam curáveis. Mr. de La Palisse est mort, — en perdant Ia vie. E como cura ela radicalmente as moléstias curáveis, internas ou externas? Com preparação de puras ervas e bálsamos medicinais, conhecidos e preparados somente por ela, — ela, a Sra. Locatel, professora em ciências botânicas. Ora, aí está!

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Manassés In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 350-351.

Observação: embora a referência às sessões parlamentares de 1871, quando da discussão em torno da Lei de 28 de setembro, também seja interessante e sirva para ilustrar como a política – ou os políticos, como quer Bosi – é uma constante "inspiradora" da crônica de Machado de Assis, incluí essa crônica mais por causa de um breve comentário do cronista sobre o relatório da Repartição de Estatística, que abrangia dados sobre a presença de estrangeiros nos país – parte IV da crônica. O autor parece citar como curiosidade, mas de qualquer forma o trecho ilustra a diferença entre essa época e o auge da imigração. O caso dos "turcos", como costumavam ser chamados todos os súditos do Império Otomano, mesmo sírios e libaneses, dos japoneses e dos gregos parecem de especial interesse para comparações com crônicas posteriores. Em O abolicionismo – 1883 –, Joaquim Nabuco critica o relatório ao qual Machado faz referência.

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[3] Crônica de 15 de abril de 1877 Coluna: "História de quinze dias" Periódico: Ilustração Brasileira

I Chumbo e letras: tal é, em resumo, a história destes quinze dias. O caso das letras ainda hoje excita a curiosidade do leitor desocupado ou filósofo. Não é para menos: cinqüenta contos, que qualquer de nós diria serem cinqüenta realidades! É de fazer tremer a passarinha. Negociante conheço eu (e não só um) que, logo depois da primeira notícia dos jornais, correu a examinar todas as letras que possuía, a saber se alguma tinha por onde lhe pegasse a... Ia dizer — a polícia, mas agora me lembro que a polícia nem lhes pegou, nem sequer as viu. Este caso de letras falsificadas, que não existem, que o fogo lambeu, creio que tira ao processo todo o seu natural efeito. Há uma confissão, alguns depoimentos, mas o documento do crime? Esse documento, já agora introuvable, tornou-se uma simples concepção metafísica. Outro reparo. Afirma-se que a pessoa acusada gozava de todo o crédito, e podia com seu próprio nome obter o valor das letras. Sendo assim, e não há razão para contestálo, o ato praticado é um desses fenômenos morais inexplicáveis que um filósofo moderno explica pela inconsciência, e que a Igreja explica pela tentação do mal. Quê! ter todas as vantagens da honestidade, da santa honestidade, e atirar-se cegamente do parapeito abaixo! Há nisto um transtorno moral um caso psicológico. Ou há outra coisa, um efeito do que o Globo, com razão, chama — necessidades supérfluas da sociedade.

II Não há a mesma coisa nos canos de chumbo. Nesses abençoados ou malditos canos há, em primeiro lugar, água; depois da água há veneno ou saúde. Questão de ponto de vista. Uns querem que o chumbo seja uma Locusta metálica. Outros crêem que ele é simplesmente Eva antes da cobra. Eu suponho que a questão não está decidida de todo; mas acrescento que, se em vez de Eva, fosse Locusta, há muito que este Rio de Janeiro estaria, não digo às portas da morte, mas às do cemitério. Pois o tal saturnino (é o nome do veneno) é assim tão feroz, e possuindo nossos honrados estômagos, ainda os não transportou para o Caju? Realmente, é um saturnino pacato. Individualizemos: é um Plácido Saturnino. Neste ponto, dá-me o leitor um piparote, com a ponta do seu fura-bolos, e eu não posso decentemente restituir-lho, porque não sei química, e estou a falar de substâncias venenosas, de sais, de saturnos... Que quer? Vou com as turbas. Se os profissionais soubessem como esta questão de chumbo transformou a cidade em uma academia de ciências físicas, inventariam questões destas todas as semanas.

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Ainda não entrei num bonde em que não ouvisse resolver a questão agora cometida a uma comissão de competentes. Resolvida; resolvidíssima. Entra-se no Catete, começa a controvérsia, na altura da Glória, ainda subsistem algumas dúvidas; na Lapa, falta só resolver um ou dois sais. Na Rua Gonçalves Dias, o problema não existe; é morto. Ora, eu, vendo isso, não quero ficar atrás; também posso dar uma colherada da substância saturnina...

III Depois do chumbo e das letras, o sucesso maior da quinzena foi a descoberta que um sujeito fez de que o método Hudson é um método conhecido nos Açores. Será? Conhecendo apenas um deles, não posso decidir. Mas o autor brasileiro, intimado a largar o método, veio à imprensa declarar que lhe não pegou, que nem mesmo o conhece de vista. Foi ao Gabinete Português de Leitura, a ver se alguém lhe dava novas do método, e nada. De maneira que o Sr. Hudson teve esse filho, criou-o, e pô-lo no colégio, e um filho contra o qual reclama agora outro pai. E por desgraça não pode ele provar que não há pai anterior e que só ele o é. E se forem ambos? Se o engenho de um e outro se houverem encontrado? Talvez seja essa a explicação. Em todo o caso, se eu alguma vez inventar qualquer método, não o publico, sem viajar o globo terráqueo, de escola em escola, de livreiro em livreiro, a ver se descubro algum método igual ao meu. Não excetuarei a China, onde havia imprensa antes de Gutenberg: irei de pólo a pólo.

IV Prende-se ao caso do chumbo, o caso da água de vintém. Esta água de vintém é a que eu bebo, não por medo do chumbo, mas porque me dizem ser uma água muito pura e leve. Aparece, porém, no Jornal do Comércio um homem curioso e céptico. Esse homem observa que se está bebendo muita água de vintém... Eu já tenho feito a mesma reflexão; mas sacudi-a do espírito para não perder a fé, aquela fé, que salva muito melhor do que o pau da barca. Esta água de vintém é hoje a água do conto ou do milhão. É um inverso do tonel das Danaides. E o chafariz das Danaides. Muitos bebem dela; pouca gente haverá que não tenha ao menos um barril por dia. Mas será toda de vintém? Eu creio que é; e não me tirem esta crença. É a fé que salva.

V

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Tratando-se agora da publicação dos debates lembrarei ao parlamento, que o uso, não só na Inglaterra ou França, mas em todos os países parlamentares, é que se publiquem os discursos todos no dia seguinte. Com isso ganha o público, que acompanha de perto os debates, e os próprios oradores, que têm mais certeza de serem lidos. Em França alguns oradores revêem as provas dos discursos, outros não. Thiers, no tempo em que era presidente, ia em pessoa rever as provas na imprensa nacional; Gambetta manda revê-las por um colega, o Sr. Spuller; sejam ou não revistas, saem os discursos no dia seguinte. Este sistema parece bom; demais, é universal. Manassés In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 356-358.

Observação: a crônica acima é a primeira, ao que parece, em que Machado faz referência à China – último parágrafo da parte III. Como já havia discussão em torno da possível vinda de trabalhadores desse país, é possível que a referência de Machado seja irônica. Embora não seja uma afirmação falsa, o fato de enaltecer a China pelo fato de ter sido pioneira em alguns campos era dos principais argumentos utilizados pelos defensores dos chins como mão-de-obra. A crônica trata ainda da publicação dos debates parlamentares no dia seguinte, comum a vários países – parte V –, referência interessante na medida em que esse tipo de material é constantemente utilizado nas crônicas de Machado.

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[4] Crônica de 15 de novembro de 1877 Coluna: "História de quinze dias" Periódico: Ilustração Brasileira

I E foi-se. Há nos ares, nas fisionomias, nos pardessus alvadios ou escuros, nas velhas luvas de sete botões, no nariz melancólico dos dilettanti, alguma coisa que nos diz que ele se foi. Napoleão, vencido e destronado, deixou nos corações de seus velhos marechais e cabos de esquadra a profunda saudade e o irremediável desespero. Saudade ficou em todos os dilettanti; desespero não, porque o ilustre Ferrari, mais astuto que o ogre de Corse, preparou desde já a volta da ilha de Elba. Estou pronto a confessar quanto quiserem acerca do ilustre Ferrari. Dou que não seja um grande matemático, um grande navegante, um grande naturalista. Em compensação, hão de confessar que é um empresário fino. Os dilettanti disseram-lhe: — Traga-nos companhia lírica em 1878, uma boa companhia, a Patti, o Capoul, o Gayarre, se puder ser, ou então a Nelson, sim? Traga uma boa companhia! boa música! boas óperas! Ao que respondeu o ilustre Ferrari: — Trago tudo e mais alguma coisa; mas, se no intervalo, outro Ferrari não menos ilustre que eu, organizar uma companhia, uma boa companhia, e vier solicitar vossas assinaturas? Não as negareis decerto. Nisto, chego eu, e dou com o nariz na porta; ou antes, vós é que me dareis com a porta no nariz. — Giammai! — disseram em coro os dilettanti. O ilustre Ferrari sorriu como quem já sabe que o dilettante põe e o acaso dispõe. Imaginou então um meio de conciliar tudo; pediu um sinal. Alguns piscaram o olho, supondo que era o melhor sinal de acordo; mas o ilustre Ferrari explicou que era melhor piscar a carteira; isto é, entreabri-la. Dito e feito. E eis aí como ficaram as portas dos nossos ouvidos trancadas a todas as gargantas que porventura apareçam daqui até o inverno de 1878. Venha cá a Nelson ou a Patti; viessem a Jenny Lind, a Malibran, a Grisi, todos os prodígios vivos ou mortos, e não alcançariam um níquel. Estamos hipotecados ao ilustre Ferrari. Ferrari for ever!

II Ora, convém observar que o último ato da empresa Ferrari, — o ato do sinal, — é muito mais importante do que à primeira vista parece. Até certo tempo, o público fluminense em matéria lírica viveu embalado na doutrina e no regime da subvenção. Imaginava-se que as notas musicais deviam sair da algibeira do Estado, — ou diretamente, ou por meio do imposto-lotérico. Para mostrar a ortodoxia da doutrina, citava-se o exemplo de todas as nações civilizadas de ambos os hemisférios, sem atender ao conselho da femme savante:

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Quand sur une personne on prétent se régler, C'est par les beaux côtes qu'il faut lui ressembler. Naquele tempo, era possível a aplicação da doutrina, mas os tempos mudam e as doutrinas com ele. A subvenção lírica decaiu até morrer de todo. O Estado atou os cordões da bolsa, e demoliu o Provisório. Alvoreceu então a doutrina de soberania do dilettante, doutrina liberal e econômica. O dilettante discute os seus interesses, resolve sobre eles, conta, soma, diminui, multiplica, divide, paga. Não quer saber do Estado, não o convida, despreza-o, e em compensação o Estado manda-lhe um cartão de visita, à guisa de agradecimento. Não somos nós que ouvimos a música? Paguemo-la; é a boa teoria; é a única.

III Notou-se muito que na semana passada foram representadas três peças nacionais. Três peças! Já uma era de fazer pasmar. Em matéria teatral, orçamos pela alfaiataria: é de Paris que nos chegam as modas. Paris teatral é como os seus grandes depósitos ou armazéns de roupas; tem de tudo, para todos os paladares, desde o mimoso até o sanguento, passando pela tramóia. Um homem que nasce, vive e morre no Rio de Janeiro, pode ter certeza de achar em cinco ou seis salas de teatro da cidade natal amostra do movimento teatral parisiense. O traidor que expirou debaixo do punhal de Laferrière vem aqui morrer às mãos do Sr. Dias Braga, com a mesma galhardia e a mesma satisfação da moral pública. O Sr. Martins desce aos infernos como Orfeu, e o Sr. Furtado Coelho dá-nos o Pai Pródigo. Vivemos de, por e para Paris. De repente, sem combinação, anunciam-se três peças nacionais, e a gente esfrega os olhos, e não sabe se tem Ia berlue. Verdade é que das três peças, uma era já conhecida do nosso público, outra é a nova forma de um romance popular; só a terceira, conhecida na província de S. Paulo, não o era nesta Corte. Mas, em suma eram três; e aos nomes de J. de Alencar e de Macedo vinha juntar-se o de um jovem cultor das letras, o Sr. Dr. Carlos Ferreira. Como poeta e jornalista era já conhecido do nosso público o nome do jovem riograndense. O Marido da doida fê-lo conhecido como dramaturgo. Imprensa e público fizeram-lhe justiça. Houve algumas reservas, e pela minha parte concordo que a tese do drama é um pouco escabrosa; mas é inegável que a desenvolveu com talento. Há lances dramáticos e interesse constante; o diálogo é fácil e bem travado, cheio de muito sentimento, quando preciso. Se esta minha crônica fosse revista dramática, eu exporia mais detidamente o inventário dos méritos da composição que o Sr. Vale pôs em cena. Terá senões? Os senões emendam-se e evitam-se com o trabalho e a perseverança. O autor do Marido da doida é ainda moço; tem talento: suponho-lhe legítimas ambições literárias. O melhor meio de progredir é andar para a frente. Venha surpreender-nos no ano próximo, com um novo drama; e o público fluminense lhe dará as palmas merecidas, como as dá sempre ao talento laborioso.

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IV Já de outro laborioso talento tivemos esta semana um opúsculo, alguns discursos apenas proferidos na Câmara dos Deputados. Refiro-me ao Sr. Dr. Franklin Dória, que falou na Câmara acerca da instrução pública com muito estudo e acerto. Quem diz instrução pública diz futuro deste país. Todos pedem braços, também o Sr. Dr. Dória e eu os pedimos; mas devemos pedir com a mesma força o desenvolvimento da instrução. O Sr. Dr. Dória é professor distinto, além de advogado, e parlamentar. Tem amor à arte de ensinar, e conhece a necessidade do ensino. Seus discursos robustos de idéias, sóbrios e moderados na forma, revelam o pensador e o observador paciente e sagaz. Tinhaos lido no Jornal; reli-os no opúsculo, e aplaudi a cópia de notícias, a escolha dos conceitos, com que o digno orador tratou de um assunto em que neste país só deve haver, e só há efetivamente, um único e universal partido. Nossa constituição exige um povo que saiba ler. Tem-se feito bastante; mas resta fazer muito, e é por isso que a palavra do homem competente como o Sr. Dr. Dória, deve ser ouvida com atenção e respeito. Só me resta espaço para um aperto de mão ao Sr. Artur Napoleão e ao Sr. Ciríaco de Cardoso. Este retira-se do nosso país, e deu um concerto na Filarmônica, uma última e brilhante festa; aquele executou nessa ocasião uma composição sua, de magnífico efeito, e, ao que dizem entendidos, de muita arte e largo fôlego. O Sr. Artur Napoleão não esquece, não desampara a musa que o recebeu no berço; mostra-se digno dela e credor da admiração do público. Quanto ao Sr. Ciríaco, quem não sabe o valor dos seus méritos? Retirando-se de nossa terra, pode crer que deixa merecidas saudades. Manassés In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 388-390.

Observação: nessa crônica, o autor faz referência à carência de braços, colocando que a instrução pública é tão importante quanto a questão da mão-de-obra – em referência ao deputado Franklin Dória: "Quem diz instrução pública diz futuro deste país. Todos pedem braços, também o Sr. Dr. Dória e eu os pedimos; mas devemos pedir com a mesma força o desenvolvimento da instrução" – parte IV. A referência é breve, mas ilustra que a questão da carência de braços está cada vez mais forte. Com relação à questão de educação, talvez se ligue às opiniões do cronista sobre a necessidade de se ensinar o português aos imigrantes, expressa em crônicas posteriores.

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[5] Crônica de 16 de junho de 1878 Coluna: "Folhetim do Cruzeiro – Notas semanais" Periódico: O Cruzeiro

I Estrugiram os últimos foguetes de Santo Antônio; não tarda chegar a vez de S. João e de S. Pedro. O último destes santos, com ser festivo, não o é tanto como os dois primeiros, nem, sobretudo, como o segundo. Deve-o talvez à sua qualidade especial de discípulo, e primaz dos discípulos. Não o era o Batista, aliás precursor e admoestador, e menos ainda o bem-aventurado de Pádua. Indague quem quiser o motivo histórico deste foguetear os três santos, uso que herdamos dos nossos maiores; a realidade é que, não obstante o ceticismo do tempo, muita e muita dezena de anos há de correr, primeiro que o povo perca os seus antigos amores. Nestas noites abençoadas é que as crendices sãs abrem todas as velas. As consultas, as sortes, os ovos guardados em água, e outras sublimes ridicularias, ria-se delas quem quiser; eu vejo-as com respeito, com simpatia e se alguma coisa me molestam é por eu não as saber já praticar. Os anos que passam tiram à fé o que há nela pueril, para só lhe deixar o que há sério; e triste daquele a quem nem isso fica: esse perde o melhor das recordações.

II Venhamos à boa prosa, que é o meu domínio. Vimos o lado poético dos foguetes; vejamos o lado legal. Os dias passam, e os meses, e os anos, e as situações políticas, e as gerações e os sentimentos, e as idéias. Cada olimpíada traz nas mãos uma nova andaina do tempo. O tempo, que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é pelo contrário um eterno rapagão, rosado, gamenho, pueril; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude. Duas coisas, entretanto, perduram no meio da instabilidade universal: — 1.º a constância da polícia que todos os anos declara editalmente ser proibido queimar fogos, por ocasião das festas de S. João e seus comensais; 2.º a disposição do povo em desobedecer às ordens da polícia. A proibição não é simples vontade do chefe; é uma postura municipal de 1856. Anualmente aparece o mesmo edital, escrito com os mesmos termos; o chefe rubrica essa chapa inofensiva, que é impressa, lida e desrespeitada. Da tenacidade com que a polícia proíbe, e da teimosia com que o povo infringe a proibição, fica um resíduo comum: o trecho impresso e os fogos queimados. Se eu tivesse a honra de falar do alto de uma tribuna, não perdia esta ocasião de expor longa e prudhommescamente o princípio da soberania da nação, cujos delegados são os poderes públicos, diria que, se a nação transmitiu o direito de legislar, de judiciar, de administrar, não é muito que reservasse para si o de atacar uma carta de bichas; diria que, sendo a nação a fonte constitucional da vida política, excede o limite máximo do atrevimento empecer-lhe o uso mais inofensivo do mundo, o uso do busca-pé. Levantando a discussão à

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altura da grande retórica, diria que o pior busca-pé não é o que verdadeiramente busca o pé, mas o que busca a liberdade, a propriedade, o sossego, todos esses pés morais (se assim me pudesse exprimir), que nem sempre sóem caminhar tranqüilos na estrada social; diria, enfim, que as girândolas criminosas não são as que ardem em honra de um santo, mas as que se queimam para glorificação dos grandes crimes. Que tal? Infelizmente não disponho de tribuna, sou apenas um pobre-diabo, condenado ao lado prático das coisas; de mais a mais míope, cabeçudo e prosaico. Daí vem que, enquanto um homem de outro porte vê no busca-pé uma simples beleza constitucional, eu vejo nele um argumento mais em favor da minha tese, a saber, que o leitor nasceu com a bossa da ilegalidade. Note que não me refiro aos sobrinhos do leitor, nem a seus compadres, nem a seus amigos; mas tão-somente ao próprio leitor. Todos os demais cidadãos ficam isentos da mácula se a há. Que um urbano, excedendo o limite legal das suas atribuições, se lembre de pôr em contacto a sua espada com as costas do leitor, é fora de dúvida que o dito leitor bradará contra esse abuso do poder; fará gemer os prelos; mostrará a lei maltratada na sua pessoa. Não menos certo é que, assinado o protesto, irá com a mesma mão acender uma pistola de lágrimas; e se outro urbano vier mostrar-lhe polidamente o edital do chefe, o referido leitor aconselhar-lhe-á que o vá ler à família, que o empregue em cartuchos, que lhe não estafe a paciência. Tal é a nossa concepção da legalidade; um guarda-chuva escasso, que não dando para cobrir a todas as pessoas, apenas pode cobrir as nossas; noutros termos, um pau de dois bicos. Agora, o que o leitor não compreende é que esse urbano excessivo no uso das suas atribuições, esse subalterno que transgride as barreiras da lei, é simplesmente um produto do próprio leitor; não compreende que o agregado nada mais representa do que as somas das unidades, com suas tendências, virtudes e lacunas. O leitor (perdoe a sua ausência), é um estimável cavalheiro, patriota, resoluto, manso, mas persuadido de que as coisas públicas andam mal, ao passo que as coisas particulares andam bem; sem advertir que, a ser exata a primeira parte, a segunda forçosamente não o é; e, a sê-lo a segunda, não o é a primeira. Um pouco mais de atenção daria ao leitor um pouco mais de eqüidade. Mas é tempo de deixar as cartas de bichas.

III Uns devotos riem, enquanto outros devotos choram. A providência, em seus inescrutáveis desígnios, tinha assentado dar a esta cidade um benefício grande; e nenhum lhe pareceu maior nem melhor do que certo gozo superfino, espiritual e grave, que patenteasse a brandura dos nossos costumes e a graça das nossas maneiras: deu-nos os touros. Talvez poucas pessoas se lembrem que há bons vinte e cinco anos ou mais, creio que mais, houve uma tentativa de tauromaquia nesta cidade. A tentativa durou pouco. Uma civilização imberbe não tolera melhoramentos de certo porte. Cada fruto tem a sua sazão. O circo desapareceu, mas a semente ficou, e germinou, e brotou e cresceu, e fez-se a magnífica árvore, a cuja sombra se pode hoje estirar a nossa filosofia.

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Na verdade, os prazeres intelectuais hão de sempre dominar nesta geração. Atualmente, é sabido que o teatro, copioso, elevado, profundo, puro Sófocles, tem enriquecido quarenta e tantas empresas, ao passo que só quebram as que recorrem às mágicas. Ninguém ainda esqueceu os ferimentos, as rusgas, os apertões que houve por ocasião da primeira récita do Jesuíta, cuja concorrência de espectadores foi tamanha, que o empresário do teatro comprou, um ano depois, o palácio Friburgo. Faltavam-nos os touros. Os touros vieram, e com eles toda a fraseologia, a nova, a elegante, a longa fraseologia tauromáquica; enfim, veio o bandarilheiro Pontes. Não tive a honra de ver este cavalheiro, que os doutores da instituição proclamam artista de alta escala; mas ele pertence ao número das coisas, em que eu creio sem ver, digo mais, das coisas, em que eu tanto mais creio, quando menos avisto. Porque é de saber que, em relação a essa nobre diversão do espírito, eu sou nada menos que um patarata; nunca vi corridas de touros provavelmente, não as verei jamais. Não é que me falte incentivo. Em primeiro lugar, possuo um amigo, espírito delicado, que as adora e freqüenta; depois, sempre me há de lembrar Santo Agostinho. Conta o grande bispo que o seu amigo Alípio, seduzido a voltar ao anfiteatro, ali foi de olhos fechados, resoluto a não os abrir; mas o clamor das turbas e a curiosidade os abriram de novo e de uma vez, tão certo é que esses espetáculos de sangue alguma coisa têm que fascinam e arrastam o homem. Pode ser que algum dia também eu vá atirar lenços e charutos aos pés de algum bandarilheiro célebre; pode ser... Por hora, não estou entre os inconsoláveis admiradores do Pontes que lá se vai, mar em fora. Perdão, do artista Pontes. Sejamos do nosso século e da nossa língua. No tempo em que uma vã teoria regulava as coisas do espírito, estes nomes de artista e de arte tinham restrito emprego: exprimiam certa aplicação de certas faculdades. Mas as línguas e os costumes modificam-se com as instituições. Num regime menos exclusivo, essencialmente democrático, a arte teve de vulgarizar-se: é a subdivisão da moeda de Licurgo. Cada um possui com que beber um trago. Daí vem que farpear um touro ou esculpir o Moisés é o mesmo fato intelectual: só difere a matéria e o instrumento. Intrinsecamente, é a mesma coisa. Tempo virá em que um artista nos sirva a sopa de legumes, e outro artista nos leve, em tílburi, à fábrica do gás.

IV Nesse tempo não viverá, decerto, um pobre velho que veio ontem lançar-se a meus pés. Mandei-o levantar, consolei-o, dei-lhes alguma coisa ― um níquel ― e ofereci-lhe o meu valimento, se dele necessitasse. — Agradeço os bons desejos, disse ele; mas todos os esforços serão inúteis. Minha desgraça não tem remédio. Um bárbaro ministro reduziu-me a este estado, sem atenção aos meus serviços, sem reparar que sou pai de família e votante circunspecto; e se o fez sem escrúpulo, é porque o fez sem nenhuma veleidade de emendar a mão. Arrancou-me o pão, o arrimo, o pecúlio de meus netos, enfim, matou-me. Saiba que sou o arsenal de marinha. O ministro tirou-me as bandeiras, sob pretexto de que eu exigia um preço excessivamente elevado, como se a bandeira da nação, esse estandarte glorioso que os

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nossos bravos fincaram em Humaitá, pudesse decentemente custar 7$804, ainda sendo de dois panos! Era caro o meu preço, é possível; mas o pundonor nacional, não vale alguma coisa o pundonor nacional? O ministro não atendeu a essa grave razão, não atendeu ao decoro público. Tirou-me as bandeiras. Não tente nada, em meu favor, que perde o tempo; deixe-me entregue à minha desgraça. Esta nação não tem ideal, meu senhor; não tem coisa nenhuma. O pendão auriverde, o nobre pendão, custa menos do que um chapéu-de-sol, menos do que uma dúzia de lenços de tabaco; sete mil e tanto: é o opróbrio dos opróbrios. Não menor opróbrio para a ciência foi a prisão de Miroli e Locatelli. Descanse a leitora; não se trata de nenhum tenor nem soprano, subtraído às futuras delícias da fashion. Não se trata de dois canários; trata-se de dois melros. Não é melro quem quer. O primeiro daqueles merece dois dedos de admiração. Sucessivamente médico, domador de feras, volantim, mestre de dança, e ultimamente adivinho, não se pode dizer que seja homem vulgar; é um fura-vidas, que se atira à struggle for life com unhas e dentes, sobretudo com unhas. De unhas dadas com a dama Locatelli, fundou uma Delfos na Rua do Espírito Santo, e entrou a predizer as coisas futuras, a descobrir as coisas perdidas, e a farejar as coisas vedadas. O processo era o sonambulismo ou o espiritismo. Os crédulos, que já no tempo da Escritura eram a maioria do gênero humano, acudiram às lições de tão ilustre par, até que a polícia o convidou a ir meditar nos destinos de Galileu e outras vítimas da autoridade pública. Pior que tudo é que, se a polícia os castiga neste mundo, o demo os castigará no outro; e aqui chamo eu a atenção do leitor para a estrita realidade da poesia. O famoso casal ficou neste mundo de cara à banda, como há de ficar no outro, segundo a versão dantesca; lá aos adivinhos como Miroli, torcem o nariz para trás, e os olhos choram-lhes pelas costas: ........... che'l pianto degli occhi Le natiche bagnava per lo ferro.

VI Anuncia-se um congresso agrícola, um congresso oficial, presidido pelo Ministro da Agricultura, reunião que não tratará de coronéis, nem de eleições, mas de lavoura, de máquinas e de braços. A crônica menciona o fato com prazer; e atreve-se a manifestar o desejo de que seja imitado em análogas circunstâncias. A administração não perde nunca, antes ganha, quando entra em contacto com as forças vivas da nação, ouvir diretamente uma classe é o melhor caminho para conhecer as necessidades dela e provê-la de modo útil. Só poderia haver um receio é que os interessados não acudissem todos ao convite. Mas além de ser gratuito supor que o doente se esquive a narrar o mal, podemos contar com o elemento paulista, que há de ser talvez o mais numeroso. Não é menos importante a lavoura fluminense, nem a das outras províncias convocadas; mas os homens que as dirigem são mais sedentários; falta-lhes um pouco de atividade bandeirante. Agora, porém, corre-lhes o dever de se desmentirem a si próprios.

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Venhamos à política prática, útil, progressiva; metamos na alcofa os trechos de retórica, as frases-feitas, todos os fardões da grande gala eleitoral. Não digo que os queimemos, demo-lhes somente algum descanso. Encaremos os problemas que nos cercam e pedem solução. Liberais e conservadores de Campinas, de Araruama, de Juiz de Fora, batei-vos nas eleições de agosto com ardor, com tenacidade; mas por alguns dias, ao menos, lembrai-vos que sois lavradores, isto é, colaboradores de uma natureza forte, imparcial e cética. Eleazar In: ASSIS, Machado de. Notas semanais. Organização, introdução e notas: John Gledson e Lúcia Granja. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp 109-115.

Observação: a principal referência da crônica para o tema é sobre o Congresso Agrícola. A parte VI da crônica – última –, toda ela, é um comentário sobre a importância do evento para o país. O cronista pede que sejam esquecidas, por hora, as rusgas políticas. Aqui transparece o que Gledson chamará de "patriotismo" em Machado de Assis, que, acredito, ficará mais evidente ainda quando o autor tratar diretamente da vinda de imigrantes.

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[6] Crônica de 7 de julho de 1878 Coluna: "Folhetim do Cruzeiro – Notas semanais" Periódico: O Cruzeiro

I Hoje é dia de festa cá em casa; recebo Luculo à minha mesa. Como o jantar do costume é rústico e parco, sem os requintes do gosto nem a abundância da gula, entendi que, por melhor agasalhar o hóspede, devia imitar o avaro de uma velha farsa portuguesa: mandar deitar ao caldeirão "mais uns cinco réis de espinafres". Noutros termos, enfunar um pouco o estilo. Não foi preciso; Luculo traz consigo os faisões, os tordos, os figos, os licores, e as finas toalhas, e os vasos murrinos, o luxo todo, em suma, de um homem de gosto e de dinheiro. É o caso que tenho diante de mim o relatório do diretor das escolas normais de uma das nossas províncias, cujo nome, aliás, não digo, por não ofender a modéstia daquele cavalheiro. Não havia nada que saborear num relatório, se o de que trato fosse parecido com os outros, seus anteriores e contemporâneos. Mas não; o distinto funcionário entendeu, e entendeu muito bem, que lhe cumpria temperar o estilo oficial com algumas especiarias literárias. Na verdade, o estilo oficial ou administrativo é pesado e seco, e o tipo geral dos relatórios poderíamos figurá-lo bem em um sujeito pautado, gravata de sete voltas, casacão até os pés, bota inglesa, sobraçando um guarda-chuva de família. Não foi esse o modelo do diretor das escolas normais. Escritor ameno, imaginoso, erudito, deu um pouco mais de vida ao tipo clássico, atou-lhe ao pescoço um lenço azul, trocou-lhe o casacão em fraque, substituiu-lhe o guarda-chuva por uma bengala de Petrópolis. Ao peito pôs-lhe uma rosa fresca. Talvez não agrade tanto aos pés-de-boi da administração: não faltará quem lhe ache um ar pelintra, nos ademanes de petit crevé. É natural, e até necessário. Nenhuma reforma se fez útil e definitiva sem padecer primeiro as resistências da tradição, a coligação da rotina, da preguiça e da incapacidade. É o batismo das boas idéias; é ao mesmo tempo o seu purgatório. Isto dito, intercalarei nesta crônica de hoje algumas boas amostras do documento de que trato, impresso com outros submetidos ao presidente, e para em tudo conservar o estilo figurado das primeiras linhas, e porque o folhetim requer um ar brincão e galhofeiro, ainda tratando de coisas sérias, darei a cada uma de tais amostras o nome de um prato fino e especial, ― um extra, como dizem as listas dos restaurants. Sirvamos o primeiro prato. LÍNGUAS DE ROUXINOL Vassalo das normas legais e regulamentares, tenho a honra de vir, tirando forças da minha fraqueza, cumprir esse meu embargoso dever, depondo nas amestradas mãos de V. Ex.ª, pelo ilustre veículo, que me é prescrito (a laureada diretoria de instrução pública), o fruto desenvolvido das emendas do meu secretário, esse tributo obediencial, que compete a V. Ex.ª. ...assim, pois, com a paciência com que a misericórdia sói acompanhar a justiça, em sua marcha salutar, espero V. Ex.ª, para compreender-me, me siga pelos andurriais por onde, perdido de monte em monte, serei forçado a peregrinar.

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II Não há patinação, não há corridas de cavalos, não há nada que nestes dias possa dominar o sucesso máximo, o sujeito que em Caravelas, na Bahia, deu à luz uma criança. Quando eu era pequeno, ouvia dizer que o galo, chegando à velhice, punha ovos, como as galinhas; não o averigüei mais tarde, mas já agora devo crer que o conto não era da carocha, senão pura e real verdade. O sujeito de Caravelas é um quadragenário, que tinha cor de icterícia, e padecia há muito uma forte opressão no peito. Ultimamente, di-lo o médico, sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da infeliz criatura, que não chegou a viver. A mitologia deu-nos um Baco meio gerado na coxa de Júpiter; e da cabeça deste fez nascer Minerva armada. Eram fábulas naquele tempo; hoje devemos tê-las por simples realidade, e, quando menos, um prenúncio do nosso patrício. Assim o creio e proclamo. E porque não suponho que o caso de Caravelas deve ser o único, acontece-me que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que me vai cair nos braços, a bradar com um grito angustioso: "Eleazar, sou mãe!". Esta palavra retine-me aos ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz os nossos livros e os nossos pequenos; gerar herdeiros e conspirações; conceber um plano de campanha e Bonaparte. Imaginem... COXINHAS DE ROLA Digitus Dei. As feridas abertas em minha alma precisavam do doce lenitivo desse bálsamo metafísico, superior em propriedades aglutinadoras aos mais afamados de Fioravanti.

III Dize-me se patinas, dir-te-ei quem és. Tal será dentro de pouco tempo o mote da suprema elegância. As corridas de cavalos correriam o risco de ficar por baixo, e até perecer de todo, se não fora a poule, tempero acomodado ao homem em geral, e ao fluminense em particular. Digo fluminense, porque essa variedade do gênero humano é educada especialmente entre a loteria e as sortes de S. João: e a poule dá as comoções de ambas as coisas, com o acréscimo de fazer com que um homem ponha toda a alma nas unhas do cavalo. Não é nas unhas do cavalo que havemos de pô-la quando formos ao Skating-rink, mas nas próprias unhas, ou melhor dito, nos patins que as substituem. No Prado Fluminense a gente faz correr o seu dinheiro nas ancas do quadrúpede, e por mais que se identifique com este, o amor-próprio só pode receber alguns arranhões, mais ou menos leves. Na patinação, a queda orça pelo ridículo, e cada sorriso equivale a uma surriada.

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Sem contar que não se arrisca somente o amor-próprio, mas também o pêlo, que não é menos próprio, nem menos digno do nosso amor. E daí, não sei por que não se há de introduzir a poule na patinação. É um travozinho de pimenta. Aposta-se no vestido azul e no chapéu de escumilha, e perde o último que chegar ou o primeiro que cair. Será mais um campo de rivalidade entre os vestidos e os chapéus... os chapéus de escumilha, entenda-se. Quanto à Emília Rosa... Interrompamo-nos; chega outro pratinho. PEITO DE PERDIZ À MILANESA Não passarei adiante, sem lembrar a V. Ex.ª que a nova organização dada ao curso pelo último dos regulamentos, tendo feito passar disciplinas do 2.º para o 1.º ano, e vice-versa, obrigou os normalistas que iam concluir seu tirocínio a freqüentarem em comum com os que o começavam, as aulas dessas disciplinas transplantadas, fazendo destarte o que em linguagem coreográfica se chama laisser croiser.

IV Emília Rosa é uma senhora, vinda da Europa, com a nota secreta de que trazia um contrabando de notas falsas. Rien n'est sacré pour un sapeur; nem as malas do belo sexo, nem as algibeiras, nem as ligas. A polícia, com a denúncia em mão, tratou de examinar o caso. Desconfiar com mulheres! O Tolentino contou o caso de uma que dissimulou um colchão no toucador. Onde entra um colchão, podem entrar vinte, trinta, cinqüenta contos. A polícia esmiuçou o negócio como pôde e lhe cumpria, esteve a ponto de fazer cantar a passageira, a ver se lhe encontrava as notas falsas na garganta. Afinal, a denúncia das notas era tão verdadeira como a notícia das cabeças a prêmio, em Macaúbas, onde parece que apenas há um mote a prêmio, e nada mais: o mote eleitoral. Trata-se, não de notas falsas, mas de salames verdadeiros, ou quaisquer outros comestíveis, que a passageira trazia efetivamente por contrabando. A diferença entre um paio e um bilhete do banco é enorme, posto que às vezes os bilhetes do banco andem nas algibeiras dos "paios", donde passam para o toucador das senhoritas. Valha-nos isso; podemos dormir confiados na honestidade das nossas carteiras. Isto de notas falsas, libras falsas, e letras falsas, creio que tudo vai entroncar-se numa palavra de Guizot: Enriquecei! palavra sinistra, se não é acompanhada de alguma coisa que a tempere. Enriquecer é bom; mas há de ser a passo de boi, quando muito a passo de carroça d'água. Não é esse o desejo das impaciências, que nos dão libras de metal amarelo; o passo que as seduz é o dos cavalos do Prado, ― o da Mobilisée, que se esfalfa para chegar a raia. Vejam o Secret, seu astuto competidor. Esse deixa-se ficar; não se fatiga, à toa, imagem do ambicioso de boa têmpera, que sabe esperar. Talvez por isso o desligaram da Mobilisée, nas corridas de hoje. Esta radical não quer emparelhar com aquele oportunista. Sinto um cheiro delicioso... FAISÃO ASSADO Declaro a V. Ex.ª algum tanto aflato de amor-próprio, que nenhum fato agraz perturbou durante o ano letivo a disciplina e boa ordem dos dois estabelecimentos a meu cargo. Diretor, professores, alunos e porteiros, todos souberam respeitar-se mutuamente. V. Ex.ª não ignora que o respeito é a base da amizade.

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Como Cícero, sou um dos mais ardentes apologistas da lei natural, da eqüidade; como ele, entendo que a lei é a equidade; ― a razão suprema gravada em nossa natureza, inscrita em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz nos traça nossos deveres, de que o Senado não nos pode desligar, e cujo império se estende a todos os povos; lei que só Deus concebera, discutira e publicara. Partindo deste cantinho das minhas crenças, proponho a V. Ex.ª que faça submeter o Sr. professor do 1.º ano a exame de uma junta médica...

V Se achares três mil-réis, leva-os à polícia; se achares três contos, leva-os a um banco. Esta máxima, que eu dou de graça ao leitor, não é a do cavalheiro, que nesta semana restituiu fielmente dois contos e setecentos mil-réis à Caixa da Amortização; fato comezinho e sem valor, se vivêssemos antes do dilúvio, mas digno de nota desde que o dilúvio já lá vai. Não menos digno de nota é o caso do homem que, depois de subtrair uma salva de prata , foi restituí-lo ao ourives , seu dono. Direi até que este fica mais perto do céu do que o primeiro, se é certo que há lá mais alegria por um arrependimento do que por um imaculado. Façam de conta que este último rasgo de virtude são uns óculos de cor azul para melhor encararmos a tragédia dos Viriatos. Hão de ter lido que esses malfeitores entrincheiraram-se em uma vila cearense, aonde o governo foi obrigado a mandar uma força de 240 praças de linha, que a investiram à escala vista; muito fogo, mortos, feridos; prisão de alguns, fuga dos restantes. Há revoluções na Bolívia que não apresentam maior número de gente em campo; digo de gente, sem me referir aos generais. Pobre Ceará! Além da seca os ladrões de estrada. Está-me a cair da pena um rosário de reflexões acerca da generalidade e da coronelite, dois fenômenos de uma terrível castelhana; mas iria longe... Prefiro servir-lhes uns pastelinhos. PASTELINHOS A hipocrisia não tem um leito de flores no regaço da minha alma. Sempre as finanças da província!... eterno clarão das almas timoratas! As finanças e sempre as finanças, esse hipogrifo que... ... preferirá ver lacradas as portas das escolas primárias a ver sentados nas espinhosas cadeiras do magistério indivíduos cujos corações não foram cuidadosamente arroteados, antes de lhes acenderem almenaras em suas cabeças ...o mestre, esse grande Davi da lira psíquica da infância...

VI Parece que o Primo Basílio, transportado ao teatro, não correspondeu ao que legitimamente se esperava do sucesso do livro e do talento do Sr. Dr. Cardoso de Meneses. Era visto: em primeiro lugar, porque em geral as obras, geradas originalmente sob uma forma, dificilmente toleram outra; depois, porque as qualidades do livro do Sr. Eça de Queirós e do talento deste, aliás fortes, são as mais avessas ao teatro. O robusto Balzac, com quem se há comparado o Sr. Eça de Queirós, fez má figura no teatro, onde apenas se salvará o Mercadet; ninguém que conheça mediocremente a história literária do nosso tempo, ignora o monumental desastre de Quinola.

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Se o mau êxito cênico do Primo Basílio nada prova contra o livro e o autor do drama, é positivo também que nada prova contra a escola realista e seus sectários. Não há motivo para tristezas nem desapontamentos; a obra original fica isenta do efeito teatral; e os realistas podem continuar na doce convicção de que a última palavra da estética é suprimila. Outra convicção, igualmente doce, é que todo o movimento literário do mundo está contido nos nossos livros; daí resulta a forte persuasão em que se acham de que o realismo triunfa no universo inteiro; e que toda a gente jura por Zola e Baudelaire. Este último nome é um dos feitiços da nova e nossa igreja; e, entretanto, sem desconhecer o belo talento do poeta, ninguém em França o colocou ao pé dos grandes poetas; e toda a gente continua a deliciar-se nas estrofes de Musset, e a preferir L'Espoir en Dieu a Charogne. Caprichos de gente velha. COMPOTA DE MARMELOS Era assim preciso; os recursos do regulamento isolavam, não atraíam. Mais tarde, entendo-me particularmente com os deputados, deram-me eles duas pequenas maçanetas para embutir nas portas das escolas; o § 8.º do art. 1.º da resolução n.º 1.079, e o § 8.º do referido artigo. ... a instituição que, devidamente reparada da terrível exaustão da vida que tem sofrido desde o seu primeiro instante, pode se dizer sem medo de errar, é o palácio da grandeza moral e da opulência material da pequena província que, em face do velho Atlântico, embriagada de perfumes, circundada de luzes, ergue para Deus, donde há de vir sua prosperidade, os olhos prenhes de esperança.

VII Reúne-se amanhã o congresso agrícola; e folgo de crer que dará resultados úteis e práticos. Conhecida a nossa índole caseira, a tal ou qual inércia de espírito, que é menos um fenômeno da raça, que da idade social, a afluência dos lavradores parece exceder à expectação. A obra será completa, se todos puserem ombros à empresa comum. BRINDE FINAL Aqui tenho a honra de concluir, fazendo votos para que, afeiçoando as idéias que, não edulcoradas para perderem o ressábio da origem, aí ficam mal expostas, digne-se tirar-lhes os ácidos...

VIII Mas eu seria injusto, se não fechasse estas linhas notando um ato benemérito do digno diretor, que o confessa no relatório, tem auxiliado com dinheiro seu a matrícula de estudantes. Vê-se que é um entusiasta da pedagogia; e, se lhe recusarem o estilo, não lhe dão de recusar a dedicação. Há muitos estilos para relatar; há só um para merecer. Eleazar In: ASSIS, Machado de. Notas semanais. Organização, introdução e notas: John Gledson e Lúcia Granja. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp 143-151. Observação: aqui aparece nova referência ao Congresso Agrícola – parte VII da crônica –, no qual o problema da mão-de-obra e a possíveis soluções – principalmente a vinda de imigrantes – foram

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discutidos. Há um trecho bastante curioso: "Conhecida a nossa índole caseira, a tal ou qual inércia de espírito, que é menos um fenômeno da raça, que da idade social, a afluência dos lavradores parece exceder à expectação". O comentário permite algumas análises sobre a relação entre o que foi discutido no Congresso – em que a questão racial foi uma constante nas questões de imigração – e as observações do cronista.

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[7] Crônica de 14 de julho de 1878 Coluna: "Folhetim do Cruzeiro – Notas semanais" Periódico: O Cruzeiro

I O tópico essencial da semana foi o congresso agrícola. Não trataram de outra coisa os jornais, nem de outra coisa se falou nos bondes, nas ruas, nas lojas, onde quer que três homens se reuniam para matar o bicho da curiosidade. Era natural o alvoroço; vinha da novidade do caso e da importância do objeto, que congregou no salão da Tipografia Nacional os lavradores de quatro províncias, sem contar os representantes domiciliados nesta corte, e por último, os espectadores que, no primeiro dia, eram em largo número. Antes e depois das sessões, viam-se na rua os fazendeiros, atirando lentamente os pés, a comparar as vidraças das lojas com as várzeas das suas terras, e talvez a pedir um Capanema, que dê mate à saúva do luxo. Um Capanema ou um cônego Brito: porque o agricultor deste nome declarou, em pleno congresso, que há já muitos anos sabe fabricar um formicida, e que o privilégio dado ao formicida Capanema é nada menos que uma iniqüidade. Nada menos. Não sendo a saúva a principal causa da decadência da lavoura, o congresso tratou de outros formicidas menos contestados; e, no meio de algumas divagações, apareceram idéias úteis e práticas, umas de aplicação mais pronta, outras de mais tardio efeito, podendo-se desde os primeiros dias conhecer a opinião geral da assembléia acerca de vários pontos. Uma voz apenas se manifestou em favor da introdução de novos africanos; mas, a unanimidade e o ardor do protesto abafou para sempre essa opinião singular. Discursos houve de bom cunho, e trabalhos dignos de nota. Uma circunstância, sobre todas, não escapou à minha intenção: reunidos os paulistas na noite de segunda-feira, até tarde, em comício particular, apresentaram na sessão de terça-feira um longo trabalho refletido e metódico. Ingleses não andariam mais depressa. E a assembléia correspondeu ao exemplo. Em só cinco dias de sessão, trabalhou muito, expendeu muito, discutiu muito, — com serenidade, segundo a exata observação do Sr. presidente do conselho. Nem tudo seria pertinente; não o podia ser, não o é geralmente, quando uma reunião de homens trata de examinar questões complexas e difíceis; mas alcançou-se o principal. Não pude assistir a nenhuma das sessões; não posso dar, portanto, uma idéia da fisionomia da sala, o que incumbe especialmente à crônica, — aonde ninguém desce a buscar idéias graves nem observações de peso. A crônica é como a poesia: çà ne tire pas à conséquence. Quem passa por uma igreja, descobre-se; quem passa por um botequim, não se dá a esse trabalho; entra a beber uma xícara de café ou um grogue; pede duas lerias aos amigos, quer ouvir morder na pele do próximo; exige cócegas, pelo menos. É assim a crônica. Que sabes tu, frívola dama, dos problemas sociais, das teses políticas, do regime das coisas deste mundo? Nada; e tanto pior se soubesses alguma coisa, porque tu não és, não foste, nunca serás o jantar suculento e farto; tu és a castanha gelada, a laranja, o cálix de Chartreuse, uma coisa leve, para adoçar a boca e rebater o jantar.

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II Nem sempre. Os acontecimentos entrelaçam-se, uns fúnebres, outros alegres, outros nem alegres, nem fúnebres, mas sensivelmente graves. Tratemos de rir, dizia um moralista, para que a morte nos não apanhe sem havermos rido alguma vez. De acordo; mas não há meio de rir diante da morte, e a crônica também tem o seu obituário. Há alguns anos ninguém poderia crer que tão cedo fosse roubado ao mundo o bispo de Olinda, cuja robustez física ia de par com a energia moral. Está ainda na memória de todos a figura do jovem prelado; lembramo-nos ainda dessa bela cabeça, que a gravura fazia austera, mas na realidade parecia mais do século que do claustro. Grave era a compostura de D. Fr. Vital, de uma gravidade serena, algo desdenhosa, certa de si. A vestidura episcopal assentava-lhe bem; era antes um complemento do que um ornato. Ao vê-lo assim, no verdor dos anos, repleto de vida, de ardor e de futuro, mal se poderia supor tão próximo desfecho. Curto foi o episcopado do moço capuchinho; teve apenas o tempo necessário ao início, desenvolvimento e conclusão de uma luta com o poder civil. Terminada a luta, pareceu terminada a missão do prelado; a doença entrou a miná-lo, até que o arrebatou às esperanças de uns e à estima de todos. Digo à estima de todos, porque ninguém houve, nos arraiais contrários ao do finado bispo de Olinda, que deixasse de reconhecer nele certo cunho de personalidade. Esse Benjamim do episcopado brasileiro trazia em si o ímpeto dos anos, o zelo nutrido no claustro, a fidelidade a uma causa, tanto mais forte, quanto mais combatida. Faltava-lhe, porém, o temperamento político, o tato dos homens, a habilidade tolerante e expectante; era voluntarioso; levava a coerência até à obstinação, e a fidelidade até o fanatismo; tinha orgulho do seu credo e do seu báculo; via atrás de si, na galeria da história, uma longa série de bispos, que foram a honra da igreja; e porventura cobiçava cingir, como eles, a palma da adversidade e do triunfo. D. Fr. Vital vinha de um mundo, onde se afirma e se combate a fé, com tal ou qual ardor e resolução, e achou-se diante de uma sociedade, onde a crença é mais tíbia e o ceticismo mais pacato. Nenhuma afirmação violenta, nenhuma hostilidade aberta. Não era ele feito para o governo próspero e repousado; opunha-se-lhe o temperamento, não menos que a convicção. Veio então o conflito. Os acontecimentos desmentiram a D. Fr. Vital. Terminado o conflito, tornamos ao ponto em que nos achávamos anteriormente, sem quebra da Igreja nem do Matado, ambos os poderes concordes em cumprir mutuamente os deveres que se impuseram, mediante garantias recíprocas. Que faria o bispo se vivesse? Talvez a morte colaborou nos seus planos; mais de uma vez correu o boato de que ele resignava a mitra, e a verossimilhança da notícia dava-lhe crédito. Dotado de inteligência viva, e, — tanto quanto pode julgar um profano, — nutrida de boas letras canônicas, — dispondo de um estilo veemente, por vezes místico, menos largo, menos elegante, menos correto que o do seu competidor de luta, o finado bispo de Olinda punha em suas pastorais a imagem de seu espírito — tumultuoso, mas sincero.

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III O que é a reforma judiciária? Um escritor de Porto Novo do Cunha, em artigo publicado esta semana, diz que é a — "Popéia incasta que oscula o sicário e o estimula ao delito". Há já alguns meses que eu suspeitava isto mesmo. Vindo uma noite do teatro, descobri junto às grades do Largo de S. Francisco, um vulto feminino trajado à romana, osculando um gatuno e dando-lhe uma chave falsa. Não pude distinguir as feições; vejo agora que era a reforma judiciária, a quem daqui aconselho que se não entregue a tão deploráveis exercícios.

IV Distribuamos a censura e o louvor; façamos a alta justiça da cidade. Sim, digno empresário da patinação, tu andaste bem, dando agora um regulamento ao teu negócio. O uso de se apresentarem os fregueses com as camisas por fora das calças, e as calças arregaçadas, era pelo menos uma capadoçagem. Que um homem viva à fresca, no seio da família, onde há sempre algum calor; que se não penteie nem lave as mãos, vá lá; é uma das liberdades constitucionais, a primeira delas, como a família é a primeira das instituições. Mas ir assim ao rendez-vous da high-life, economizar os fraques, as meias e os óleos de Lubin, excede os limites de uma razoável independência civil e política. Mas não fizeste tudo, empresário. Dizendo no teu art. 3.º "Observar-se-á a maior decência possível no vestuário dos concorrentes", deixaste larga margem à interpretação. Para uns, a decência possível é a carência da gravata; para outros, é o uso das chinelas de tapete. No teu caso eu distribuía um figurino, termo mínimo da decência legal, o estritamente necessário para um homem ver cair os outros e cair com eles, de maneira que ficassem excluídas a arazóia dos Cambioás e as tíbias do rei Príamo. Contra os gatunos há o art. 10: "É proibido levar os patins ou escondê-los". Tem só um defeito; é já estar no código criminal. Verdade é que não se perde por mais uma edição, visto que a do código não traz seguras as nossas carteiras. Com que então, os fregueses costumam levar para casa os patins? escondem-nos nas abas da casaca, os que têm casaca? Galante exemplo de costumes! Amanhã são capazes de levar os pratos dos hotéis, as árvores do Passeio Público e as damas do Alcazar. É um vício detestável, cujo exercício vedaste com muito tato. Quem quiser exercê-lo tem cá fora um campo largo, desde as calçadas da rua do Hospício, até as jóias da rua do Ouvidor, cujas casas não têm regulamento, o que quer dizer que permitem tal ou qual elasticidade aos costumes, aos antojos da alma... Não menos razoável é o art. 5.º, que proíbe aos patinadores empurrarem-se uns aos outros e portarem-se de modo reprovado na sociedade. Efetivamente, é oportuno fechar a porta ao uso do pontapé e da rasteira, ao assobio e à vaia; são excessos reprováveis. A rasteira traz até o inconveniente de dispensar os patins, o que de algum modo faz concorrência ao estabelecimento. É exercício nacional, bem sei; mas o amor da pátria tem limites; não é essencial demonstrá-lo com o nariz no chão.

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Gosto imenso do art. 6.º, que é político; é um aviso aos candidatos eleitorais: "Nenhum patinador poderá interromper de modo algum as corridas dos outros patinadores". Há nestas palavras do simpático estrangeiro um simbolismo profundo. Interromper a corrida quer dizer cortar os votos, peitar os eleitores dos outros, pôr as convicções do adversário pela rua da Amargura, pintá-lo como escravo do poder ou iconoclasta das instituições, segundo o ponto de vista do interruptor. Trata-se pois de uma exortação e não de uma imposição do regulamento; é um pouco de cor local, uma atenção de cavalheiro para com o país que lhe abre, amplamente, os braços e as algibeiras.

V O pior é que a administração não quer estilo. Soube ontem que o diretor das escolas normais, o autor daquelas iguarias com que presenteei os meus leitores na semana última, — Luculo, enfim, — está demitido desde o uno passado. Demitiram o adjetivo, demitiram o tropo; ficaram com o gerúndio seco e peco. Voltam a dizer simplesmente a "alma" em vez de "lira psíquica", que é mais bonito e parece verso; — "matricularam-se na escola", — em vez de "sentaram-se legalmente nos bancos", que é mais nobre. Ó força do costume! ó poder da rotina!

VI O costume é tudo. Toda a população está já tão afeita ao vinho que absorve, qualquer que seja a bebida assim nomeada, que não pôde ler sem mágoa o ato da comissão a que preside o Dr. Carlos Costa. Esta comissão coligiu algumas amostras do vinho para examinar se efetivamente é vinho ou outra coisa. Não chego a entender o fim desta resolução. Custa-me a crer que o Dr. Costa seja assim tão inimigo dos seus conterrâneos, porque não há maior inimizade do que tirar-nos uma ilusão deliciosa, e geralmente barata. Que lucraremos nós se amanhã o Dr. Costa vier demonstrar-nos, quimicamente, que bebemos pau campeche? Há cerca de um ano disse-se que os canos de chumbo envenenavam a água, e uma comissão foi incumbida de examinar essa denúncia química. Era justo; e enquanto a comissão não dava o seu parecer definitivo, entendi que me não devia envenenar provisoriamente; mudei de água. A comissão, composta de pessoas competentes, terminou os seus trabalhos esta semana; e ficou decidido que os canos não envenenam a água; mas que os reservatórios de chumbo envenenam e não envenenam; isto é, houve dois ou três votos restritivos. O caso não constrange menos que o primeiro, apesar da dubiedade da solução. Envenenar-se um homem, com restrições, equivale a quebrar uma perna, podendo ter quebrado as duas, o que é um grande consolo para a outra perna, maior para os braços e infinito para os espectadores.

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VII No meio disto, sabe-se aqui que uns oitenta russos, comprometidos com a província do Rio Grande, por motivo de algumas quantias que lhe devem, trataram de fazer uma retirada honrosa, e sobretudo noturna, para o Estado Oriental. Já pisavam terra nova, quando a autoridade de cá obteve que a autoridade de lá os repassasse — o que prontamente se fez. Segundo estou informado, o que aconteceu foi justamente o contrário daquilo. Estes russos pertencem a uma seita, a qual tem um decálogo, no qual há um mandamento, que diz que as dívidas se devem pagar, ainda à custa de sangue. Cansados de perseguir o presidente da província, para lhes receber o dinheiro, resolveram compeli-lo a isso, armaram-se de rebenques e foram à noite cercar o palácio. O presidente, acordado pelo ajudante-de-ordens, viu que o mais decoroso era fuga, e saiu da capital para Jaguarão, com os russos atrás de si, porque estes o pressentiram e não o deixaram mais. Dali passou à vila de Artigas; mas os russos, a quem o desespero da honra deu forças novas, foram arrancá-lo de lá, e apresentaram-Ihe aos peitos um bom par de contos de réis. O presidente rendeu-se e passou recibo; os russos queimaram, em efígie, o pecado do calote. Era tempo.

VIII Agora uma notícia que os há de espantar, como me espantou. No meio de tantas ruas Vieira Bastos, Matos Cardoso e outros nomes, mais sonoros do que ilustres, e todos perfeitamente nacionais, descobri que há na Gamboa uma rua Orestes. Não a vi, bem entendido; mas li-lhe o nome nos jornais. Rua Orestes! Quem seria o helenista que presenteou a sua cidade com essa recordação de escola? Outra coisa não menos espantosa é o jornal cearense que tenho diante de mim: O RETIRANTE: órgão das vítimas da seca. A primeira necessidade de uma vítima da seca parece que é pão e água; seu principal órgão é naturalmente o estômago. Quando eu lhes disse que há na quarta página da folha um anúncio de "dois delirantes bailes, para distrair da seca", com a cláusula de que "as gentis teodósias terão entrada grátis e os cavalheiros lascarão dois bodes", — terei dado idéia da urbanidade e do zelo do nosso colega. Cordiais felicitações. Eleazar In: ASSIS, Machado de. Notas semanais. Organização, introdução e notas: John Gledson e Lúcia Granja. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp 155-163.

Observação: novamente trata do Congresso Agrícola. Dada a extensão do comentário e as questões colocadas, pelo menos a parte I da crônica deve ser de especial interesse, mas outras questões podem ser relacionadas, como a presença de trabalhadores russos no sul do Brasil – parte VII.

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[8] Crônica de 25 de agosto de 1878 Coluna: "Folhetim do Cruzeiro – Notas semanais" Periódico: O Cruzeiro

I Esta foi a semana militante; outra será a triunfante; e essas duas fases da Igreja ficam assim reproduzidas na vida civil. Já o domingo último amanheceu nebuloso com a notícia do conflito entre dois poderes constitucionais, assunto que me escapa, por não ter nenhum lado recreativo por onde lhe pegue. É dos que ficam muito acima do alcance da nossa mão. Nisto se parece a crônica com a Turquia de hoje: tem limites apertados. Há outro ponto em que o cronista se parece com os turcos; é em fumar quietamente o cachimbo do seu fatalismo. O cronista não tem cargo d'almas, não evangeliza, não adverte, não endireita os tortos do mundo; é um mero espectador, as mais das vezes pacato, cuja bonomia tem o passo tardo dos senhores do harém. Debruça-se, cada domingo, à janela deste palacete, e contempla as águas do Bósforo, a ver os caíques que se cruzam, a acompanhar de longe a labutação dos outros. Isto quer dizer, em bom português, que o cronista não pleiteou candidatura, não se mediu com o Battaglia nem pretende figurar na regata de Botafogo; fica alheio a todas as lutas, ou sejam de força, ou de destreza, ou de ambas as coisas juntas. Simples e honesto mironi. A semana foi militante; mas o cronista foi expectante; seja dito por amor da rima. Claro é que não lutou nem luta na questão dos chalés da Praça do Mercado, essa fênix renascida de um incêndio, mandado talvez pela Providência para exterminá-la de todo, o que não conseguiu; não restando agora mais do que a esperança de um terremoto.

II Deixemos a ordem cronológica, e venhamos à primeira das lutas da semana, — a luta do escrutínio prévio, — sobre a qual se falou muito, em todos os sentidos, antes, durante e depois, e creio que ainda se falará até o dia 5 de setembro. A luta era complexa e formidável; lutavam os candidatos entre si, e os eleitores com a sua consciência, com os seus amigos, com as suas simpatias, com a sua razão, com os seus empenhos. Nada disso era imprevisto ou novo; o escrutínio prévio tinha justamente a vantagem de apurar alguma coisa fixa do combate de tantas competências. A manhã de quinta-feira foi assinalada por uma copiosa geada de mofinas, bilhetes amorosos, outros arrufados, alguns totalmente brancos. Começaram as constipações prévias, — acompanhadas de tosse, tremuras de frio, dores pela espinha; eram as bronquites eleitorais. Os eleitores, — digo os que eram simples mercês, — sentiram-se excelentíssimos a cada esquina, a cada cartão, à porta do Castelões, do Bernardo e à do Conservatório; e não se sentiram mal, tão certo é que as fórmulas valem muito. Quanto a almoçar ou jantar, foi operação que se não fez com sossego; debicou-se, quando muito, uma fruta, uma ou duas gramas de filé, umas migalhinhas de pão. Nos hotéis, quem tinha o seu zurrapa disponível, vendeu-o por superior falerno, e ninguém deu pela troca. Soou,

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enfim, a hora fatídica; os eleitores correram ao lugar do escrutínio, e começaram os trabalhos. Que o exemplo era bonito, disse-o com muita razão o ilustre chefe liberal que inaugurou os trabalhos da assembléia; era bonito e útil, porque as competências reproduziam-se, e aos eleitores cabia escolher e combinar. Não sendo eleitor, não pude assistir à operação; mas a aurora seguinte trouxe-me nas asas úmidas os nomes mais votados pela assembléia. Trouxe-me os nomes acompanhados de uma charada — a charada de Campo Grande. Esta paróquia, na qualidade de roceira, não quis vir à corte; tem medo à vermelhinha, ao calor e à patinação; votou lá mesmo a sua lista e mandou-a por cópia à assembléia; uma lista composta de liberais, sendo os eleitores... conservadores. Esqueceu-se dizer quantas sílabas tinha a charada, razão pela qual ainda não pude dar com a decifração. Parece que a assembléia também se achou nos mesmos apuros, porque resolveu não inserir o produto de Campo Grande na apuração geral do município. De maneira que os campo-grandenses perderam o seu latim e os seus algarismos. Talvez que o vigário de Itambé os entenda com mais prontidão, — visto que também praticou a sua charadinha eleitoral, em sentido inverso. A guerra, que durou muitos dias, teve a sua última batalha de cinco horas. Quero crer que seria muito mais interessante, mais viva, e, direi até, mais sumária, se em vez de ficar no domínio das cartas e das visitas, se travasse diante dos próprios eleitores reunidos, por meio de discursos e dos indispensáveis copos d'água. Uma coisa é a carta, outra coisa o discurso. Para uma assembléia, a língua há de ser sempre mais persuasiva do que o papel; e desde que cada candidato expusesse as suas idéias, perante os eleitores, estes podiam escolher os que melhor correspondessem ao sentimento da maioria. Uso excelente, que ainda não possuímos, et pour cause, mas chegaremos a aprender, com o andar do tempo. Roma não se fez num dia; adágio que se deve entender, não só no sentido arquitetônico, mas também no sentido político. Hão de dar-me alguma coisa pela reflexão que aí fica, porque eu não acompanho um distinto candidato, que declarou em circular, publicada esta semana, não ter ainda fixado o seu programa de idéias, mas poder afiançar desde já que dispensa o subsídio. A intenção do candidato é, decerto, reta e pura; revela um sentimento econômico; mostra que ele desdenha o vil metal; mas em suma, trabalhar de graça não é uma idéia, ou é uma triste idéia. Um deputado pode ser excelente, sem ser gratuito. Creio até que as leis saiam mais perfeitas quando o legislador não tenha de pensar no jantar do dia seguinte. Vou mais longe; uma boa audição musical, um bom almoço no hotel da Europa, fortalecendo o organismo, dão melhor direção ao voto parlamentar; o que aliás não aconteceria, se o deputado tivesse de recorrer, nos intervalos, a alguma escrituração mercantil para ir almoçar ao hotel de Santo Antônio. Imaginemos o suplício de uma câmara, que, votando a isenção de direitos sobre a graxa, olhasse para os seus sapatos desengraxados. Seria uma câmara de Tântalos. E daí, pode ser que a idéia do candidato seja alcançar indiretamente a conciliação dos partidos. Na câmara dos comuns, quando os deputados saem para a sala de jantar, formam uma coisa a que chamam casais, isto é, ajustam-se um whig e um tory, obrigando-

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se um e outro a não voltar sozinho à sala das sessões. Talvez a idéia do candidato seja obter a formação dos mesmos casais, e até de quatro e cinco juntos, para o fim de comer baratinho, — fim este que levaria a outro, ao da aliança dos pareceres, pela simples razão de que o piquenique é a tríplice fusão das algibeiras, dos estômagos e dos corações. Dizeme com quem comes, dir-te-ei com quem votas.

III Antes de quinta-feira tivemos o caso do atleta Battaglia, que é digno de ser posto em letra de impressão, para eterna memória dos homens. Efetivamente, esse nosso hóspede não é um alfenim; é um descendente de Hércules, um seu rival pelo menos. Tinha confiança nas suas forças. Com o fim de no-las mostrar meteu-se num paquete, atravessou o oceano, desembarcou, apresentou-se ao empresário de patinação. Dali deitou um cartel ao mundo fluminense; ofereceu uma quantia grossa a quem fosse tão rijo que o derrubasse. Surgemlhe sete competidores. Battaglia ri-se, contempla-os com uma polidez sarcástica, aperta-lhes as mãos, dispõe-se a cobri-los de vergonha. Poucos minutos depois, jazia estatelado no chão. Explicou-se o atleta com um adágio; disse que escorregar não é cair; adágio falso, como muitos outros, e em todo o caso sem aplicação. É falso o adágio, porque escorregão é eufemismo de queda. Não foi outra coisa o escorregão de Helena, nem outra coisa o de Eva. Escorrega o cavalheiro, quando corrige o seu orçamento pessoal com um descrédito extraordinário ou somente suplementar; escorrega a dama quando recruta um soldado mais do que lhe permite a sua lei de forças. Esses escorregões são quedas, umas vezes mortais, outras vezes vitais; mas são quedas. Em todo caso, errou o atleta em aplicar o rifão ao seu desastre; e a menos que não prove a presença de uma casca de banana, no terreno do combate, a verdade é que legitimamente caiu. Dois fatos singulares observo eu neste desastre do atleta estrangeiro. É o primeiro que ele parece desconhecer as tramóias deste mundo e nada sabe dos inestimáveis serviços que pode prestar um compadre. Battaglia devia começar por alguns combates aparentes, nos quais derrubasse os mais musculosos indivíduos necessitados de uma nota de vinte mil-réis. Feito isso, era duvidoso que se lhe atrevesse ninguém. Poeira nos olhos é a regra máxima de um tempo que vive menos da realidade que da opinião. Não nego que a candura é o corolário da força; mas o triste exemplo de Sansão é bastante para mostrar que um pouco de velhacaria não fica mal aos valentes. O segundo fato que me assombra é a existência, nesta cidade, de sete Hércules dispostos a lutar com o adventício, e tão Hércules que logo o primeiro o derrubou; sem que aliás nenhum deles haja nunca anunciado as suas valentias. Há portanto músculos nesta sociedade; estamos longe da anemia e da debilidade que nos atribui o pessimismo de alguns misantropos. Possuímos, nós somente, todos ou quase todos os Hércules das mitologias; de maneira que, se apenas um deles, o grego, fez os doze trabalhos de que nos falam os poetas, nós com os sete podemos terminar, quando menos, o pleito da Copacabana. O que já não é pouco.

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IV Luta de atletas, luta de pés, luta de cavalos. Agora, vamos ter uma luta de escaleres, uma regata em Botafogo, à maneira inglesa. Acrescente-se a isto uma nova companhia eqüestre, Combination Equestrian Company, composta de 100 artistas, 60 cavalos, 1 mula e 2 veados, e mais a Princesa Azulina, mágica, os Sinos de Corneville, 85.ª representação, e o teatro lírico, e digam-me se esta população não está ameaçada de morrer de uma indigestão de prazeres. Não há tempo sequer de ficar doente. Come-se na copa do chapéu. Dá-se de quando em quando uma chegadinha à casa; vive-se na rua, nos teatros, nos circos; um turbilhão. E notem que não mencionei, entre as lutas, a do teatro lírico, — mais pacífica, mas não menos interessante do que as outras. Trata-se ainda da questão das séries, a questão do terceiro estado musical. Que é o terceiro estado? Nada. Que deve ele ser? Tudo. Esta velha fórmula de 89 ressurgiu agora, como pizzicato, e a série par tomou a Bastilha da pública consideração, porque se tem portado com certo tino político. Soube, por exemplo, que o tenor De Sanctis desagradara à série ímpar; coroou-o de palmas na seguinte noite. Sem pau, nem pedras, com luvas. Se há razão para desdenhar De Sanctis, é o que ignoro. Há quem o prefira ao Tamagno; outros continuam a dar a este a primazia; o que me faz crer que não está longe mais uma batalha, — a dos sanctistas e tamagnistas. Provavelmente, quando o campo ficar alastrado de mortos, o Ferrari mete na mala a ilha de Chipre, sob a forma portátil de uma letra de câmbio, e, orgulhoso de imitar o autor de Tancredo, vai descansar no remanso de suas rendas. Felix possidentis! como dizia há pouco o chanceler dos teutões. Mas, se as duas séries lutam no teatro lírico, unem-se no Skating-Rink, onde houve anteontem outra corrida de gâmbias, perante um auditório distinto, numeroso e curioso. Isto na rua do Costa; imaginemos o que seria no Largo de S. Francisco. Os alípedes eram em larga cópia resolutos, picados de brio e metralhados por oito milhares de olhos. Renascem a Grécia e uma parte dos jogos olímpicos. Alvoroça-me a idéia de que vou encontrar Hesíodo ou Péricles, aí na primeira esquina; que a mulher que passa, às tardes, pela minha rua, guiando um carro descoberto, é uma hetaira de Mileto, trazida por um mercador de Naxos; que o que chamamos Alcazar é simplesmente o jardim dos peripatéticos. Verdade seja que as nossas ridículas calças...

V A concórdia, entretanto, continua a morar em Paquetá. Exilada do resto do globo, elegeu ali um abrigo seguro, à maneira de Robinson, menos a solidão. Ultimamente, terminado o pleito eleitoral, manifestou-se de outro modo. A população da ilha reuniu-se, pôs uma banda de música à frente, caminhou para a porta de uma casa, em que reside temporariamente um cidadão. Nenhuma divisão de partidos; o pistão liberal acompanhava o fagote conservador; os pés monarquistas iam a compasso dos pés republicanos. Chegaram à porta, detiveram-se; veio o cidadão; ofertaram-lhe flores e cumprimentos; depois retiraramse em plena harmonia, moral e instrumental.

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Não se tratava de um general vitorioso, nem de um político eminente; era um velho, um simples velho, um homem que aplicou as eminentes faculdades que Deus lhe deu em estudar e conhecer o corpo humano; era o velho Valadão. Paquetá sentiu a honra que lhe deu o ilustre hóspede, e manifestou-Iha de um modo popular, singelo e tocante, sem copo d'água, sem discursos, sem perus trufados, sem menu, sem nenhum outro acepipe mais do que a admiração, o respeito e a alegria, — uma alegria sã e cordial. Chamem-me piegas; mas eu acho esta manifestação muito preferível à que se encomendasse ao hotel da Europa, lardeada de adjetivos e imagens literárias. É menos ruidosa, mas não é menos tocante. Não serei eu quem venha dizer agora o que é o barão de Petrópolis; o seu elogio maior está na admiração constante dos seus colegas e discípulos. Ainda ontem a ciência e a política perderam um homem notável, que aliás o foi mais na primeira que na segunda, e a Gazeta de Notícias recordou o concurso em que esse médico, o senador Jobim, foi vencido por Valadão, jovens ambos, mas o primeiro oriundo da Faculdade de Paris, regressando daquela grande oficina de ciência, enquanto o segundo era filho da nossa própria Faculdade. A nossa não lhe podia fazer maior honra.

VI Já falei na morte do senador Jobim. O obituário da semana conta mais dois nomes distintos: outro senador, o conselheiro Figueira de Melo, e um pintor, o lente da academia Agostinho da Mota. A vida do primeiro foi acidentada, a espaços tumultuosa, vida de lutas políticas, sobretudo as de 1848. A do outro passou no remanso da paz, do trabalho obscuro e lento. Não é este o lugar de aferir o merecimento de um e de outro; nem a pena que traça estas linhas possui a autoridade necessária para escrever essas duas vidas, a segunda das quais não pode, aliás, competir com a primeira, por isso mesmo que esta se desenvolveu em mais aparente plana. Cumpro somente a obrigação de registrar os dois óbitos, nesta última lauda, imitando a vida, que acaba pela morte. Eleazar In: ASSIS, Machado de. Notas semanais. Organização, introdução e notas: John Gledson e Lúcia Granja. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008, pp 223-231.

Observação: É de especial interesse a observação de Machado – ou de seu narrador, que seja – sobre o atleta italiano que teria feito uma espécie de desafio aos brasileiros. Da questão, que parece – e até certo ponto é – anedótica, o cronista faz um comentário muito perspicaz: "estamos longe da anemia e da debilidade que nos atribui o pessimismo de alguns misantropos" – parte III. Embora o atleta não seja exatamente um imigrante, a crônica põe questões importantes, como – de novo – certo patriotismo machadiano e, mais interessante, uma resposta ou provocação às teorias racistas da época, que procuravam inferiorizar o povo brasileiro, principalmente por causa da mestiçagem.

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[9] Crônica de 16 de outubro de 1883 Coluna: "Balas de estalo" Periódico: Gazeta de Notícias

No momento em que me sentava a escrever, recebi uma carta de um nosso hóspede ilustre. As-tu vu le mandarin? Pois foi ele mesmo, o mandarim, que me escreveu, pedindo a fineza de inserir nas Balas de Estalo uma exposição modesta das impressões que até agora tem recebido do nosso país. Não traduzi a carta, para lhe não tirar o valor. Além disso, há dela alguns juízos demasiado crus, que melhor é fiquem conhecidos tão-somente dos que sabem a língua chinesa. Em alguns lugares, o meu ilustre correspondente inseriu expressões nossas; ou por não achar equivalente na língua dele ou (como me parece) para mostrar que já está um pouco familiar com o idioma do país. Eis a carta: "Vu pan Lelio, "Lamakatu apá ling-ling Balas de Estalo, mapapi tung? Keré siri mamma, ulamalí tiká. "Ton-ton pacamaré rua do Ouvidor nappi Botafogo, nappi Laranjeiras mappi Petrópolis gogô. China cava miraka rua do Ouvidor! Naka ling! tica milung! Ita marica armarinho, gavamacú moça bonita, vala ravala balcão; caixeiro sika maripú derretido. Moçanigu vaia peça fita, agulha, veludo, colchete, iva cuca trapalhada. Moço lingu istú passa na rua, che-berú pitigaia entra, namora, rini mamma: "Viliki xaxi xali xaliman. Acalag ting-ting valixú. Upa Costa Braga relá minag katu Integridade abaxung kapi a ver navios. Lamarika ana bapa bung? Gogô xupitô? Nepa in pavé. Brasil desfalques latecatú. Inglese poeta, Shakespeare, kará: make money; upa lamaré in língua Brasil: — mete dinheiro no bolso. Vaia, Vaia, gapaling capita passa a unha simá teka laparika. Eting põe-se a panos, etang merú xilindró. "ltá poxta, China kiva Li-vai-pé, abá naná Otaviano Hudson, naka panaka, neka paneca, mingu. Musa vira kassete. — Mira lung Minas Gerais longú senado. Vetá miná Lima Duarte passi Cesário Alvim; mará kari Evaristo da Veiga seba Inácio Martins. Rebagú sara Coromandel? Teca laia Coromandel? "Aba lili tramway Copacabana. Vasi lang? Tacatú, pacatú, pacatú. Hú-huchi edital Wagner, limaraia Duvivier. Toca xuxú Figueiredo de Magalhães, upa, upa, upa. Baba China páriú. Hêhê... "Siba-ú lami assembléia provincial nanakaté. Mirô bobó xalu Gavião Peixoto: ridin teca maneca cabelinho na venta. Pantutu? Hermann limpatúba Arang chikang Companhia Telfônica rurú mamma, ipi, xuchi paripangatú, Caminha, Magalhães Castro, xela kapa, xela kipa, xela kopa. Neka sirí lipa câmara dos deputados abaling. China seca pareka amolador empala. Laka pitaka? Nana pariú. "Faro e Lino papyros, biblos, makó gogó. Lino abatukamú, Faro abatiki. Eba ú laté! Castelões zurú! Clube Beethoven paka xali! Tarinanga axá acaritunga. Harritoff dansa mari xalí!

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"Xulica Brasil pará; aba lingú retórica, palração, tempo perdido, pari mamma; xulica Kurimantú. Iva nenê, iva tatá. Brasil gamela tika moka, inglês ver. Veriman? Calunga, mussanga, monau denguê. Valavala. Dara dara bastonara. Malan drice pakú. Ocuôco; momeréo-diarê. Ite, issa est. Mandarim de 1ª classe". Tong Kong Sing. Como se terá visto, no meio de alguns reparos crus, há muita simpatia e viva observação. Quanto ao estilo, é do mais puro, é da escola de Macau, fiel às doutrinas do século XII antes da Criação. A nossa crítica terá notado a linda imagem com que o ilustre escritor define o progresso, chegando à praia da Copacabana: pacatú, pacatú, pacatú. Em suma, é um documento honroso para o autor e para nós.

LELIO In: Balas de estalo de Machado de Assis. Organização de Heloisa Helena Paiva De Luca. São Paulo: Annablume, 1998, pp. 68-69.

Observação: esta é a crônica da carta em "chinês", que o mandarim que visitou o Brasil para tratar de questões referentes à imigração de seus compatrícios teria mandado ao narrador Lélio – pseudônimo usado por Machado nesta série.

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[10] Crônica de 23 de outubro de 1883 Coluna: "Balas de estalo" Periódico: Gazeta de Notícias

A Gazeta de Londres publicou, em seu número de 8 do mês passado, um ofício do vice-rei da Índia ao conde Granville, contendo informações interessantíssimas para a questão dos trabalhadores asiáticos. Visto que há tanto horror aos chins, pareceu-me interessante transcrever esse documento: "A S. Excia. o Sr. conde Granville, secretário de Estado dos negócios estrangeiros. Calcutá, 13 de agosto de 1883. Senhor Conde Noutro ofício que ora dirijo ao Honrado secretário de Estado das Colônias dou conta de alguns fatos relativos ao trabalho agrícola na Índia. Peço licença a V. Excia. para resumilos aqui, no caso de que o governo de Sua Majestade tenha de intervir naqueles países da América, onde o trabalho chim é usado, ou vai sê-lo. Em primeiro lugar, devo lembrar a V. Excia. que é preciso distinguir o chim do chim. O chim comum está de há muito abandonado em toda a Ásia, onde foi suplantado por uma variedade de chim muito superior à outra. Essa variedade, como já tive ocasião de dizer ao governo de Sua Majestade, é o chim-panzé. O deplorável equívoco que, durante dilatados anos, classificou o chim-panzé entre os macacos, estava há muito abandonado. Mas persistia a convicção de que, embora pertencente à família humana, o chim-panzé fosse refratário ao trabalho. Esta mesma convicção vai desaparecer, depois das brilhantes experiências feitas nos domínios de Sua Majestade, e até na China e no Japão. O primeiro súbdito de Sua Majestade que empregou o chim-panzé, foi Sir John Sterling, que reside na Índia há trinta anos. Desde 1864 o seu trabalhador era o chim comum. Ultimamente, porém, deu-se uma desordem, verdadeira rebelião, e a maior parte dos trabalhadores retiraram-se. Sir John Sterling resolveu liquidar e voltar para a Europa; mas tendo notícia de que o chim-panzé era moralmente superior ao chim comum, mandou contratar uns trinta para ensaio, e deu-se muito bem com eles. Daí a seis meses a plantação tinha cerca de cem indivíduos: hoje conta setecentos e trinta. Dois parentes seus lançaram mão do mesmo instrumento de trabalho; hoje há muitíssimas plantações que não têm outro. Foram os parentes de Sir John Sterling, que me deram as notícias que nesta data transmito a S. Excia. o Sr. secretário das Colônias, e que vou resumir pare uso de V. Excia. A primeira vantagem do chim-panzé é que é muito mais sóbrio que o chim comum. As aves domésticas, geralmente apreciadas por este (galinhas, patos, gansos, etc.), não o são pelo outro, que se sustenta de cocos e nozes. O chim-panzé não usa roupa, calçado ou chapéu. Não vive com os olhos na pátria; ao contrário, Sir John Sterling e seus parentes afirmaram que têm conseguido fazer com que os chim-panzés mortos sejam comidos pelos sobreviventes, e a economia resultante deste meio de sepultura pode subir, numa plantação de dois mil trabalhadores, a duzentas libras por ano.

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Não tendo os chim-panzés nenhuma espécie de sociedade, nem instituições, não há em parte alguma embaixadas nem consulados; o que quer dizer que não há nenhuma espécie de reclamação diplomática, e pode V. Excia. calcular o sossego que este fato traz ao trabalho e aos trabalhadores. Está provado que toda a rebelião do chim comum provém da imagem, que eles têm presente, de um governo nacional, um imperador e inúmeros mandarins. Por outro lado, a imprensa não poderá tomar as dores por ele, para não confessar uma solidariedade da espécie, que ainda repugna a alguns. Quanto aos lucros, dizem-me que são de vinte e cinco a vinte e oito por cento, Sir John Sterling fez no ano de 1881, com o chim comum, vinte mil libras; em 1882, tendo introduzido em março os primeiros chim-panzés, apurou quinze mil libras; e nos primeiros seis meses deste ano vai em onze mil e quinhentas. A perfeição do trabalho é, ou a mesma, ou maior. A celeridade é dobrada, e a limpeza é tão superior, que Sir John não viu nada melhor na Inglaterra. No ofício ao secretário das Colônias, mando alguns dados estatísticos, desenvolvidos, que não reproduzo para não alongar este. A princípio houve relutância em admitir o chim-panzé pelo fato de andar muita vez a quatro pés; mas Sir John Sterling, que é naturalista e antropologista emérito, fez observar aos parentes e amigos, que a atitude do chim-panzé é uma questão de costumes. Na Europa e outras partes, há muitos bípedes por simples hábito, educação, uso de família, imitação e outras causas, que não implicam com as faculdades intelectuais. Mas tal é a força do preconceito que, assim como no caso daqueles bípedes se conclui da posição das pernas para a qualidade da pessoa, assim também se faz com o chim-panzé; sendo ambos o mesmíssimo caso — uma questão de aparência e preconceito. Felizmente, a propaganda vai fazendo desaparecer esse erro funesto, e o chim-panzé começa a ser julgado de um modo eqüitativo, científico e prático. Rogo a V. Excia. se digne submeter estes fatos ao conhecimento do Sr. Gladstone. Sou, etc. Webster." Esta carta é realmente importante, e espero sejam devidamente apreciadas e não fiquem perdidas as lições que contém. O nosso defeito é não dar atenção a coisas sérias! Esta é das mais sérias. As pessoas que preferem os chins, não podem deixar de aceitar este substituto. Segundo a carta transcrita, o chim-panzé tendo as mesmas aptidões do outro chim, é muito mais econômico. Por outro lado, os adversários, os que receiam o abastardamento da raça, não terão esse argumento, porque o chim-panzé não se cruzará com as raças do país.

LELIO In: Balas de estalo de Machado de Assis. Organização de Heloisa Helena Paiva De Luca. São Paulo: Annablume, 1998, pp. 70-72.

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Observação: esta é a crônica em que se transcreve a carta na qual os "chim-panzés" são recomendados como mão-de-obra.

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[11] Crônica de 4 de agosto de 1884 Coluna: "Balas de estalo" Periódico: Gazeta de Notícias

Agora que vamos ter eleição nova, lembraram-se alguns amigos que eu bem podia ser deputado. Tanto me quebraram a cabeça, que afinal consenti em correr às urnas. Resta só a profissão de fé, que é o ponto melindroso. Eu podia, à semelhança de um candidato inglês, em 1869, fazer este pequenino speech: "Quero a liberdade política, e por isso sou liberal; mas para ter a liberdade política é preciso conservar a constituição, e por isso sou conservador". Mas, além de copiá-lo se apresentasse um tal programa (o que não fica bem), não sei se essas poucas linhas, que parecem um paradoxo, não são antes (comparadas com as nossas coisas) um truísmo. Portanto: Há muitos anos, em 1868, quando Lulu Sênior andava ainda no colégio, e, se fazia gazetas, não as vendia e menos ainda as publicava, nesse ano, e no mês de dezembro, fui uma vez à assembléia provincial do Rio de Janeiro, vulgarmente salinha. Orava então o deputado Magalhães Castro. Nesse discurso, essencialmente político e teórico, o digno representante ia dizendo o que era e o que não era, o que queria e o que não queria. Ao pé dele, ou defronte, não me lembro bem, ficava o deputado Monteiro da Luz, conservador, e o deputado Herédia, liberal, que ouviam e comentavam as palavras do orador. Eles o aprovavam em tudo, e, no fim, quando o Sr. Magalhães Castro, recapitulando o que dissera, perguntou com o ar próprio de um homem que sabe e define o que quer, eis o diálogo final (consta dos jornais do tempo): O Sr. Magalhães Castro: — Agora pergunto: quem tem estes desejos o que é? o que pode ser? O Sr. Monteiro Da Luz: — É conservador. O Sr. Herédia: — É liberal. O Sr. Monteiro Da Luz: — Estou satisfeito. O Sr. Herédia: — Estou também satisfeito. Portanto, basta que eu exponha as teorias para que ambos os partidos votem em mim, uma vez que evite dizer se sou conservador ou liberal. O nome é que divide. Resta, porém, a questão do momento, o projeto do governo, a liberdade dos 60 anos, com ou sem indenização, ou o projeto do Sr. Felício dos Santos, que também é um sistema, ou o do Sr. Figueira, que não é um nem outro. Sobre este ponto confesso que estive sem saber como explicar-me, até que li a circular de um distinto deputado, candidato a um lugar de senador. Nesse documento que corre impresso, exprimia-se assim o autor: "Quanto à questão servil, já expendi o meu modo de pensar em dois folhetos que publiquei, um sobre a baixa do açúcar, outro sobre colonização". Desde que li isto vi que tinha achado a solução necessária ao esclarecimento dos leitores. Com efeito, é impossível que eu não tenha publicado algum dia, em alguma parte, um outro folheto sobre qualquer matéria mais ou menos correlata com os atuais projetos. Na pior das hipóteses, isto é, se não tiver publicado nada, então é que estou com a votação

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unânime. A razão é que devemos contar em tudo com a presunção dos homens. Cada leitor quererá fazer crer ao vizinho que conhece todos os meus folhetos, e daí um piscar de olhos inteligente e os votos. Eu, pelo menos, é o que vou fazer. De tanta gente que andou pelas ruas, no centenário de Camões, podemos crer que uns dois quintos não leram os Lusíadas, e não eram dos menos fervorosos. O mesmo me vai acontecer com o Sr. Peixoto. Vou dizer a toda a gente que li e reli os dois folhetos do Sr. Peixoto, tanto o do açúcar como o da colonização, acreditarei que são in 8.º, com 80 ou 100 páginas, talvez 120, bom papel, estatísticas e notas. Interrogado sobre o valor comparativo de ambos, responderei que prefiro o do açúcar por um motivo patriótico, visto que o açúcar é um produto do país e a colonização vem de fora; mas direi também que o da colonização tem idéias muito práticas e aceitáveis. Podia também citar a Câmara anterior, que com infinita serenidade votou pela reforma eleitoral constitucional, e depois pela mesma reforma eleitoral constitucional; mas não adoto esse alvitre, um dos mais singulares que conheço, para não ser acusado injustamente de mudar a opinião ao sabor dos ministros. Prefiro entrar sem programa, e eis aqui o meu piano consubstanciado nesta anedota de 1840: Era uma vez um sujeito que aparecia em todos os casamentos. Em sabendo de algum vestia-se de pronto em branco e ia para a igreja. Depois acompanhava os noivos à casa, assistia ao jantar ou ao baile. Os parentes e amigos da noiva cuidavam que ele era um convidado da noiva, e, vice-versa, cuidavam que era pessoa do noivo. À sombra do equívoco ia ele a todas as festas matrimoniais. Um dia, ao jantar, disse-lhe um vizinho: — V. S. é parente do lado do noivo ou do lado da noiva? — Sou do lado da porta, respondeu ele, indo buscar o chapéu. Levava o jantar no bucho.

LELIO In: Balas de estalo de Machado de Assis. Organização de Heloisa Helena Paiva De Luca. São Paulo: Annablume, 1998, pp. 110-112.

Observação: há uma referência breve, nesta crônica, à "colonização". São mencionados os folhetos escritos por um deputado, um sobre a baixa do açúcar, outro sobre a imigração. O cronista afirma ter lido ambos, e completa: "Interrogado sobre o valor comparativo de ambos, responderei que prefiro o do açúcar por um motivo patriótico, visto que o açúcar é um produto do país e a colonização vem de fora; mas direi também que o da colonização tem idéias muito práticas e aceitáveis."

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[12] Crônica de 28 de outubro de 1888 Coluna: "Bons dias!" Periódico: Gazeta de Notícias

BONS DIAS! Viva a galinha com a sua pevide. Vamos nós vivendo com a nossa policia. Não será superior, mas também não é inferior à polícia de Londres, que ainda não pôde descobrir o assassino e estripador de mulheres. E dizem que é a primeira do universo. O assassino, para maior ludíbrio da autoridade, mandou-lhe cartões pelo correio. Eu, desde algum tempo, ando com vontade de propor que aposentemos a Inglaterra... Digo, aposentá-la nos nossos discursos e citações. Neste particular, tivemos a princípio a mania francesa e revolucionária; folheiem os Anais da Constituinte, e verão. Mais tarde ficou a França constitucional e a Inglaterra: os nomes de Pitt, Russel, Canning, Bolingbrook, mais ou menos intactos, caíram da tribuna parlamentar. E frases! e máximas! Até 1879, ouvi proclamar cento e dezenove vezes este aforismo inglês: "A Câmara dos Comuns pode tudo, menos fazer de um homem uma mulher, ou vice-versa". — Justamente o que a nossa Câmara faz, quando quer, dizia eu comigo. Pois bem, aposentemos agora a Inglaterra; adotemos a Irlanda. Basta advertir que, há pouco tempo, lá estiveram (ou ainda estão) vinte e tantos deputados metidos em enxovia, só por serem irlandeses. Nenhum dos nossos deputados é irlandês; mas se algum vier a sê-lo, juro que será mais bem tratado. E, comparando tanta polícia para pegar deputados com tão pouca para descobrir um estripador de mulheres, folgazão e científico, a conclusão não pode ser senão a do começo: — Viva a galinha com a sua pevide... Aqui interrompe-me o leitor: — Já vejo que é nativista! E eu respondo que não sei bem o que sou. O mesmo me disseram anteontem, falando-se do projeto do meu ilustre amigo Senador Taunay. Como eu dissesse que não aceitava o projeto integralmente, alguém tentou persuadir-me que eu era nativista. Ao que respondi: — Não sei bem o que sou. Se nativista é algum bicho feio, paciência; mas, se quer dizer exclusivista, não é comigo. Não se pode negar que o Sr. Senador Taunay tem o seu lugar marcado no movimento imigracionista, e lugar iminente; trabalha, fala, escreve, dedica-se de coração, fundou uma sociedade, e luta por algumas grandes reformas. Entretanto, a gente pode admirá-lo e estimá-lo, sem achar que este último projeto seja inteiramente bom. Uma coisa boa que lá está, é a grande naturalização. Não sei se ando certo, atribuindo àquela palavra o direito do naturalizado a todos os cargos públicos. Pois, senhor, acho acertado. Com efeito, se o homem é brasileiro e apto, por que não será para tudo aquilo que podem ser outros brasileiros aptos? Quem não concordará comigo (para só falar de mortos), que é muito melhor ter como regente, por ser ministro do Império, um Guizot ou um Palmerston, do que um ex-ministro (Deus lhe fale na alma!) que não tinha este olho?

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Mas o projeto traz outras coisas que bolem comigo, e até uma que bole com o próprio autor. Este faz propaganda contra os chins; mas, não havendo meio legal de impedir que eles entrem no império aqui temos nós os chins, em vez de instrumentos de trabalho, constituídos em milhares de cidadãos brasileiros, no fim de dois anos, ou até de um. Excluílos da lei é impossível. Aí fica uma conseqüência desagradável para o meu ilustre amigo. Outra conseqüência. O digno Senador Taunay deseja a imigração em larga escala. Perfeitamente. Mas, se o imigrante souber que, ao cabo de dois anos, e em certos casos ao fim de um, fica brasileiro à força, há de refletir um pouco e pode não vir. No momento de deixar a pátria, ninguém pensa em trocá-la por outra; todos saem para arranjar a vida. Em suma, — e é o principal defeito que lhe acho, — este projeto afirma de um modo estupendo a onipotência do Estado. Escancarar as portas, sorrindo, para que o estranho entre, é bom e necessário; mas mandá-lo pegar por dois sujeitos, metê-lo a força dentro de casa para almoçar, não podendo ele recusar a fineza senão jurando que tem outro almoço à sua espera, não é coisa que se pareça com liberdade individual. Bem sei que ele tem aqui um modo de continuar estrangeiro: é correr, no fim do prazo, ao seu consulado ou à câmara municipal, declarar que não quer ser brasileiro, e receber um atestado disso. Mas, para que complicar a vida de milhares de pessoas que trabalham, com semelhante formalidade? Além do aborrecimento, há vexame — vexame para eles e para nós, se o número dos recusantes for excessivo. Haverá também um certo número de brasileiros por descuido, por se terem esquecido de ir a tempo cumprir a obrigação legal. Esses não terão grande amor à terra que os não viu nascer. Lá diz São Paulo, que não é circuncisão a que se faz exteriormente na carne, mas a que se faz no coração. O Sr. Taunay já declarou em brilhante discurso, que o projeto é absolutamente original. Ainda que o não fosse, e que o princípio existisse em outra legislação, era a mesma coisa. O Estado não nasceu no Brasil; nem é aqui que ele adquiriu o gosto de regular a vida toda. A velha república de Esparta, como o ilustre senador sabe, legislou até sobre o penteado das mulheres; e dizem que em Rodes era vedado por lei trazer a barba feita. Se vamos agora dizer a italianos e alemães, que, no fim de um ou dois anos, não são mais alemães nem italianos, ou só poderão sê-lo com declaração escrita e passaporte no bolso, parece-me isto muito pior que a legislação de Rodes. Desagravar a naturalização, facilitá-la e honrá-la, e, mais que tudo, tornar atraente o país por meio de boa legislação, reformas largas, liberdades efetivas, eis aí como eu começaria o meu discurso no Senado, se os eleitores do Império acabassem de crer que os meus quarenta anos já lá vão, e me incluíssem em todas as listas tríplices. Era assim que eu começaria o discurso. Como acabaria, não sei; talvez nos braços do meu ilustre amigo. BOAS NOITES. In: Bons dias!. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1997, pp. 126-130.

Observação: esta é a crônica em que se examina o projeto de lei de Taunay, sobre a naturalização.

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[13] Crônica de 10 de novembro de 1888 Coluna: "Bons dias!" Periódico: Gazeta de Notícias

BONS DIAS! Há anos, por ocasião do movimento Ester de Carvalho, aquela boa atriz que aqui morreu, lembra-me haver lido nos jornais um pequenino artigo anônimo. Nem se lhe podia chamar artigo; era uma pergunta nua e seca. O numeroso partido da atriz estava em ação; havia palmas, flores, versos, longas e brilhantes manifestações públicas. E então dizia a pergunta anônima: "Por que não aproveitaremos este movimento Ester de Carvalho para ver se alcançamos o fechamento das portas?" A pergunta tinha um ar esquisito, à primeira vista: mas, era a mais natural do mundo. Entretanto não se fez nada por dois motivos, um fácil de entender, que era a absorção do pensamento em um só assunto. A alma não se divide. A questão do fechamento das portas era exclusiva, pedia as energias todas, inteiras, constantes, lutando dia por dia. A segunda razão é que há anos e há séculos de revoluções e transformações. Para o caso de que se trata não era preciso o século, mas o ano era indispensável. Entre a vinda de Jesus e a morte de César há pouco mais de quarenta anos: e a Revolução Francesa chegou à Bastilha depois de feita nos livros e iniciada nas províncias, desde os albores do século XVIII. Aqui o caso era de um ano mesmo que viu a extinção da escravidão. Todas as liberdades são irmãs; parece que, quando uma dá rebate, as outras acodem logo. Aí temos explicado o movimento atual, que, em boa hora, vai sendo praticado em paz e harmonia. Note-se bem que o movimento outrora tinha um caráter meio duvidoso, pedia-se o fechamento das portas aos domingos. O domingo, só por si, sem mais nada, é um dia protestante; e o movimento, limitando o descanso a esse dia, como que parecia inclinar à igreja inglesa. Daí esta frieza do clero católico. Agora, porém, a plataforma (se me é lícito dizer uma palavra que pouca gente entende) abrange os domingos e dias santos. Deste modo não se pede só o dia do Senhor, mas esse e os mais que o rito católico estabelece em honra dos grandes mártires ou heróis da fé, e dos fastos da Igreja desde os primitivos tempos. Seguramente, há maior número de dias vagos, mas o trabalho dos outros compensará os perdidos; por esse lado, não vejo perigo. Pode dar-se também que a definição das férias se estenda um pouco mais, pelo tempo adiante. Por exemplo, o dia 2 de novembro é feriado ou não? Vimos este ano duas opiniões opostas, a do Senado e a da Câmara. O Senado declarou que era, e não deu ordem do dia; a Câmara entendeu que não era, e deu ordem do dia. Foi o mesmo que se não desse, é verdade, porque lá não apareceu ninguém; mas a opinião ficou assentada. O Senado comemora os defuntos, a Câmara não. Talvez a Câmara não deseje lembrar o próximo fim dos seus dias. O Senado, embalsamado pela vitaliciedade, pode entrar sem susto nos cemitérios. Não é a lei que o há de matar.

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Pois bem, ainda nesses casos o acordo é possível entre caixeiros e patrões; fechemse as portas ao meio-dia. Os patrões e os rapazes irão de tarde aos cemitérios. Noto, e por honra de todos, que não tem havido distúrbios nem violências. Há dias, é certo, um grupo protestou contra uma casa do Largo de S. Francisco de Paula, que estava aberta: mas quem mandou fechar as portas da casa não foi o grupo, foi o subdelegado. Tem havido muita prudência e razão, O próprio ato do subdelegado, olhando-se bem para ele foi bem feito. Já lá dissera Musset estas palavras: "Il faut qu'une porte soit ouverte ou fermée". Não podendo estar abertas as da loja de grinaldas, foi muito melhor fechá-las. "É assim que eu gosto dos médicos especulativos" dizia um personagem de Antônio José. Não sei se tenho mais alguma coisa que dizer. Creio que não. A questão chinesa está absolutamente esgotada; tão esgotada que tendo eu anunciado por circular manuscrita, que daria um prêmio de conto de réis a quem me apresentasse um argumento novo, quer a favor, quer contra os chins, recebi carta de um só concorrente, dizendo-me que ainda havia um argumento científico, e era este: "A criação animal decresce por este modo: — o homem, o chim, o chimpanzé..." Como vêem, é apenas um calembour; e se não houvesse calembour no Evangelho e em Camões, era certo que eu quebrava a cara do autor; limiteime a guardar o dinheiro no bolso. BOAS NOITES. In: Bons dias!. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1997, pp. 131-133.

Observação: há referência breve, no final da crônica, à questão dos chins, de novo com o uso do trocadilho de "chim" com "chimpanzé", atribuído desta vez a um leitor.

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[14] Crônica de 26 de junho de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

"O ministério grego pediu demissão. O Sr. Tricoupis foi encarregado de organizar novo ministério, que ficou assim composto: Tricoupis, presidente do conselho e ministro da fazenda..." Basta! Não, não reproduzo este telegrama, que teve mais poder em mim que toda a mole de acontecimentos da semana. O ministério grego pediu demissão! Certo, os ministérios são organizados para se demitirem e os ministérios gregos não podem ser, neste ponto, menos ministérios que todos os outros ministérios. Mas, por Vênus! foi para isso que arrancaram a velha terra às mãos turcas? Foi para isso que os poetas a cantaram, em plena manhã do século, Byron, Hugo, o nosso José Bonifácio, autor da bela Ode aos Gregos? "Sois helenos! sois homens!" conclui uma de suas estrofes. Homens creio, porque é próprio de homens formar ministérios; mas helenos! Sombra de Aristóteles, espectro de Licurgo, de Draco, de Sólon, e tu, justo Aristides, apesar do ostracismo, e todos vós, legisladores, chefes de governo ou de exército, filósofos, políticos, acaso sonhastes jamais com esta imensa banalidade de um gabinete que pede demissão? Onde estão os homens de Plutarco? Onde vão os deuses de Homero? Que é dos tempos em que Aspásia ensinava retórica aos oradores? Tudo, tudo passou. Agora há um parlamento, um rei, um gabinete e um presidente de conselho, o Sr. Tricoupis, que ficou com a pasta da Fazenda. Ouves bem, sombra de Péricles? Pasta da Fazenda. E notai mais que todos esses movimentos políticos se fazem, metidos os homens em casacas pretas, com sapatos de verniz ou cordovão, ao cabo de moções de desconfiança... Oh! mil vezes a dominação turca! Horrível, decerto, mas pitoresca. Aqueles paxás, perseguidores do giaour, eram deliciosos de poesia e terror. Vede se a Turquia atual já aceitou ministérios. Um grão-vizir, nomeado pelo padixá, e alguns ajudantes, tudo sem câmara, nem votos. A Rússia também está livre da lepra ocidental. Tem o niilismo, é verdade; mas não tem o bimetalismo, que passou da América à Europa, onde começa a grassar com intensidade. O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois é misterioso, dramático, épico, lírico, todas as formas da poesia. Um homem está jantando tranqüilo, entre uma senhora e uma pilhéria, deita a pilhéria à senhora, e, quando vai a erguer um brinde... estala uma bomba de dinamite. Adeus, homem tranqüilo: adeus, pilhéria; adeus, senhora. É violento; mas o bimetalismo é pior. Do bimetalismo ao nosso velho amigo pluripapelismo não é curta a distância, mas daqui ao câmbio é um passo; pode parecer até que não falei do primeiro senão para dar a volta ao mundo. Engano manifesto. Hoje só trato de telegramas, que aí estão de sobra, norte e sul. Aqui vêm alguns de Pernambuco, dizendo que as intendências municipais também estão votando moções de confiança e desconfiança política. Haverá quem as censure; eu compreendo-as até certo ponto. A moção de confiança, ou desconfiança no passado regime, era uma ambrosia dos deuses centrais. Era aqui na Câmara dos Deputados, que um honrado membro, quando

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desconfiava do governo pedia a palavra ao presidente, e, obtida a palavra, erguia-se. Curto ou extenso, mas geralmente tétrico, proferia um discurso em que resumia todos os erros e crimes do ministério, e acabava sacando um papel do bolso. Esse papel era a moção. De confidências que recebi, sei que há poucas sensações na vida iguais à que tinha o orador, quando sacava o papel do bolso. A alguns tremiam os dedos. Os olhos percorriam a sala, depois baixavam ao papel e liam o conteúdo. Em seguida a moção era enviada ao presidente, e o orador descia da tribuna, isto é, das pernas que são a única tribuna que há no nosso parlamento, não contando uns dois púlpitos que lá puseram uma vez, e não serviram para nada. Aí têm o que era a moção. Nunca as assembléias provinciais tiveram esse regalo; menos ainda as tristes câmaras municipais. Mudado o regime, acabou a moção; mas, não se morre por decreto. A moção não só vive ainda, mas passou dos deuses centrais aos semideuses locais, e viverá algum tempo, até que acabe de todo, se acabar algum dia. O caso grego é sintomático; o caso japonês não menos. Há moções japonesas. Quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo; não haverá mais que fechar as malas e ir para o diabo. Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de Canavieiras (Bahia) foram a uma vila próxima e arrebataram duas moças. A gente da vila ia armar-se e assaltar Canavieiras. Parece nada, e é Homero; é ainda mais que Homero, que só contou o rapto de uma Helena: aqui são duas. Essa luta obscura, escondida no interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que se trava no Rio Grande do Sul, onde a causa não é uma, nem duas Helenas, mas um só governo político. Apuradas as contas, vem a dar nesta velha verdade que o amor e o poder são as duas forças principais da terra. Duas vilas disputam a posse de duas moças; Bagé luta com Porto Alegre pelo direito do mando. É a mesma Ilíada. Dizem telegramas de S. Paulo que foi ali achado, em certa casa que se demolia, um esqueleto algemado. Não tenho amor a esqueletos; mas este esqueleto algemado diz-me alguma coisa, e é difícil que eu o mandasse embora, sem três ou quatro perguntas. Talvez ele me contasse uma história grave, longa e naturalmente triste, porque as algemas não são alegres. Alegres eram umas máscaras de lata que vi em pequeno na cara de escravos dados à cachaça; alegres ou grotescas, não sei bem, porque lá vão muitos anos, e eu era tão criança, que não distinguia bem. A verdade é que as máscaras faziam rir, mais que as do recente carnaval. O ferro das algemas, sendo mais duro que a lata, a história devia ser mais sombria. Há um telegrama... Diabo! acabou-se o espaço, e ainda aqui tenho uma dúzia. Cesta com eles! Vão para onde foi a questão do benzimento da bandeira, os guarda-livros que fogem levando a caixa (outro telegrama), e o resto dos restos, que não dura mais de uma semana, nem tanto. Vão para onde já foi esta crônica. Fale o leitor a sua verdade, e diga-me se lhe ficou alguma coisa do que acabou de ler. Talvez uma só, a palavra clavinoteiros, que parece exprimir um costume ou um ofício. Cá vai para o vocabulário. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 78-81.

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Observação: nesta crônica há uma referência breve à China como país fechado ao parlamentarismo ocidental. O cronista afirma que quando houver moções chinesas, "chegou o fim do mundo". O fragmento é curto mas serve para reforçar a idéia de que, para Machado – ou seu narrador – os chineses não seriam assimilados pelos brasileiros.

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[15] Crônica de 3 de julho de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Na véspera de S. Pedro, ouvi tocar os sinos. Poucos minutos depois, passei pela igreja do Carmo, catedral provisória, ouvi o cantochão e orquestra; entrei. Quase ninguém. Ao fundo, os ilustríssimos prebendados, em suas cadeiras e bancos, vestidos daquele roxo dos cônegos e monsenhores, tão meu conhecido. Cantavam louvores a S. Pedro. Deixei-me estar ali alguns minutos escutando e dando graças ao príncipe dos apóstolos por não haver na igreja do Carmo um carrilhão. Explico-me. Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto as palavras daquele grande espírito, que me senti (desculpem a expressão) um Chateaubriand desencarnado e reencarnado. Assim se diz na igreja espírita. Ter desencarnado quer dizer tirado (o espírito) da carne, e reencarnado quer dizer metido outra vez na carne. A lei é esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer ainda, progredir sempre. Convém notar que a desencarnação não se opera como nas outras religiões, em que a alma sai toda de uma vez. No espiritismo, há ainda um esforço humano, uma cerimônia, para ajudar a sair o resto. Não se morre ali com esta facilidade ordinária, que nem merece o nome de morte. Ninguém ignora que há caso de inumações de pessoas meio vivas. A regra espírita, porém, de auxiliar por palavras, gestos e pensamentos a desencarnação impede que um sopro de alma fique metido no invólucro mortal. Posso afirmar o que aí fica, porque sei. Só o que eu não sei, é se os sacerdotes espíritas são como os brâmanes, seus avós. Os brâmanes... Não, o melhor é dizer isto por linguagem clássica. Aqui está como se exprime um velho autor: "Tanto que um dos pensamentos por que os brâmanes têm tamanho respeito às vacas, é por haverem que no corpo desta alimária fica uma alma melhor agasalhada que em nenhum outro, depois que sai do humano; e assim põem sua maior bem-aventurança em os tomar a morte com as mãos nas ancas de uma vaca, esperando se recolha logo a alma nela." Ah! se eu ainda vejo um amigo meu, sacerdote espírita, metido dentro de uma vaca, e um homem, não desencarnado, a vender-lhe o leite pelas ruas, seguidos de um bezerro magro... Não; lembra-me agora que não pode ser, porque o princípio espírita não é o mesmo da transmigração, em que as almas dos valentes vão para os corpos dos leões, a dos fracos para os das galinhas, a dos astutos para os das raposas, e assim por diante. O princípio espírita é fundado no progresso. Renascer, progredir sempre; tal é a lei. O renascimento é para melhor. Cada espírita, em se desencarnando, vai para os mundos superiores. Entretanto, pergunto eu: não se dará o progresso, algumas vezes, na própria terra? Citarei um fato. Conheci há anos um velho, bastante alquebrado e assaz culto, que me afirmava estar na segunda encarnação. Antes disso, tinha existido no corpo de um soldado romano, e, como tal, havia assistido à morte de Cristo. Referia-me tudo, e até circunstâncias que não constam das escrituras. Esse bom velho não falava da terceira e próxima

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encarnação sem grande alegria, pela certeza que tinha de que lhe caberia um grande cargo. Pensava na coroa da Alemanha... E quem nos pode afirmar que o Guilherme II, que aí está, não seja ele? Há, repetimos, coisas na vida que é mais acertado crer que desmentir; e quem não puder crer, que se cale. Voltemos ao carrilhão. Já referi que entrara na igreja, não contei; mas entende-se, que na igreja não entram revoluções, por isso não falo da do Rio Grande do Sul. Pode entrar a anarquia, é verdade, como a daquele singular pároco da Bahia, que, mandado calar e declarado suspenso de ordens, segundo dizem telegramas, não obedece, não se cala, e continua a paroquiar. Os clavinoteiros também não entram; por isso ameaçam Porto Seguro, conforme outros telegramas. Não entram discursos parlamentares, nem lutas ítalo-santistas, nem auxílios às indústrias, nem nada. Há ali um refúgio contra os tumultos exteriores e contra os boatos, que recomeçam. Voltemos ao carrilhão. Criado, como ia dizendo, com os pobres sinos das nossas igrejas, não provei até certa idade as aventuras de um carrilhão. Ouvia falar de carrilhão, como das ilhas Filipinas, uma coisa que eu nunca havia de ver nem ouvir. Um dia, anuncia-se a chegada de um carrilhão. Tínhamos carrilhão na terra. Outro dia, indo a passar por uma rua, ouço uns sons alegres e animados. Conhecia a toada, mas não lembrava a letra. Perguntei a um menino, que me indicou a igreja próxima e disse-me que era o carrilhão. E, não contente com a resposta, pôs a letra na música: era o Amor tem fogo. Geralmente, não dou fé a crianças. Fui a um homem que estava à porta de uma loja e o homem confirmou o caso, e cantou do mesmo modo; depois calou-se e disse convencidamente: parece incrível como se possa, sem o prestígio do teatro, as saias das mulheres, os requebrados, etc., dar uma impressão tão exata da opereta. Feche os olhos, ouça-me a mim e ao carrilhão, e diga-me se não ouve a opereta em carne e osso: Amor tem fogo, Tem fogo amor. — Carne sem osso, meu rico senhor, carne sem osso. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 82-84.

Observação: nesta crônica há uma referência, muito breve, às "lutas ítalo-santistas". Problemas entre italianos e brasileiros serão retomados na crônica seguinte.

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[16] Crônica de 10 de julho de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

S. Pedro, apóstolo da circuncisão, e S. Paulo, apóstolo de outra coisa, que a Igreja Católica traduziu por gentes, e que não é preciso dizer pelo seu nome, dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo um ou dois assuntos puxarem para si todo o cobertor da atenção pública, deixando os outros ao relento, dá-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo à cena tão-somente a arraia-miúda, as pobres ocorrências de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada anônima, a estatística mortuária, as tentativas de suicídio. O cocheiro que foge, o noticiário, em suma. É que eu sou justo, e não posso ver o fraco esmagado pelo forte. Além disso, nasci com certo orgulho, que já agora há de morrer comigo. Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dois ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões de estilo. Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários. Daí o meu amor às chamadas chapas. Orador que me quiser ver aplaudi-lo, há de empregar dessas belas frases feitas, que, já estando em mim, ecoam de tal maneira, que me parece que eu é que sou o orador. Então, sim, senhor, todo eu sou mãos, todo eu sou boca, para bradar e palmear. Bem sei que não é chapista quem quer. A educação faz bons chapistas, mas não os faz sublimes. Aprendem-se as chapas, é verdade, como Rafael aprendeu as tintas e os pincéis; mas só a vocação faz a Madona e um grande discurso. Todos podem dizer que "a liberdade é como a fênix, que renasce das próprias cinzas"; mas só o chapista sabe acomodar esta frase em fina moldura. Que dificuldade há em repetir que "a imprensa, como a lança de Télefo, cura as feridas que faz"? Nenhum; mas a questão não é de ter facilidade, é de ter graça. E depois, se há chapas anteriores, frases servidas, idéias enxovalhadas, há também (e nisto se conhece o gênio) muitas frases que nunca ninguém proferiu, e nascem já com cabelos brancos. Esta invenção de chapas originais distingue mais positivamente o chapista nato do chapista por educação. Voltemos aos apóstolos. Que direito tinha S. Pedro de dominar os acontecimentos da semana? Estava escrito que ele negaria três vezes o divino Mestre, antes de cantar o galo. Cantou o galo, quando acabava de o negar pela terceira vez, e reconheceu a verdade da profecia. Quanto a S. Paulo, tendo ensinado a palavra divina às igrejas de Sicília, de Gênova e de Nápoles, viu que alguns a sublevaram para torná-las ao pecado (ou para outra coisa), e lançou uma daquelas suas epístolas exortativas; concluindo tudo por ser levado o conflito a Roma e a Jerusalém, onde os magistrados e doutores da lei estudavam a verdade das coisas. São negócios graves, convenho; mas há outros que, por serem leves, não merecem menos. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, deu-se uma pequena divergência, de que apenas tive vaga notícia, por não poder ler, como não posso escrever; o que os senhores estão lendo, vai saindo a olhos fechados. Ah! meus caros amigos! Ando com uma vista (isto

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é grego; em português diz-se um olho) muito inflamada, a ponto de não poder ler nem escrever. Ouvi que na Câmara surdiu divergência entre a maioria e a minoria, por causa da anistia. A questão rimava nas palavras, mas não rimava nos espíritos. Daí confusão, difusão, abstenção. Dizem que um jornal chamou ao caso um beco sem saída; mas um amigo meu (pessoa dada a aventuras amorosas) diz-me que todo beco tem saída; em caso de fuga, salta-se por cima do muro, trepa-se ao morro próximo, ou cai-se do outro lado. Coragem e pernas. Não entendi nada. A falta de olhos é tudo. Quando a gente lê por olhos estranhos entende mal as coisas. Assim é que, por telegrama, sabe-se aqui haver o governador de um estado presidido à extração da loteria; depois, supus que o ato fora praticado para o fim de inspirar confiança aos compradores de bilhetes. — A segunda hipótese é a verdadeira, acudiu o amigo que me lia os jornais. Não vê como as agências sérias são obrigadas a mandar anunciar que, se as loterias não correrem no dia marcado, pagarão os bilhetes pelo dobro? — É verdade, tenho visto. — Pois é isto. Ninguém confia em ninguém, e é o nosso mal. Se há quem desconfie de mim! — Não me diga isso. — Não lhe digo outra coisa. Desconfiam que não ponho o seio integral aos meus papéis; é verdade (e não sou único); mas, além de que revalido sempre o selo quando é necessário levar os papéis a juízo, a quem prejudico eu, tirando ao Estado? A mim mesmo, porque o tesouro, nos governos modernos, é de todos nós. Verdadeiramente, tiro de um bolso para meter no outro. Luís XIV dizia: "O Estado sou eu!" Cada um de nós é um tronco miúdo de Luís XIV, com a diferença de que nós pagamos os impostos, e Luís XIV recebiaos... Pois desconfiam de mim! São capazes de desconfiar do diabo. Creio que começo a escrever no ar e... In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 85-87.

Observação: há uma referência um pouco mais extensa sobre conflitos entre imigrantes italianos e brasileiros. Gledson sustenta que a Roma e Jerusalém, na crônica, são Roma e Rio de Janeiro, como referência aos esforços jurídico para evitar problemas diplomáticos por causa desses enfrentamentos.

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[17] Crônica de 14 de agosto de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Semana e finanças são hoje a mesma coisa. E tão graves são os negócios financeiros, que escrever isto só, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever. Mas o leitor quer os seus poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos magnos; ele não dispensa aqui os assuntos mínimos, se os houve, e, se os não houve, a reflexões leves e curtas. Força é reproduzir o famoso Marche! Marche! de Bossuet... Perdão, leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave que nunca. E por que não sei eu finanças? Por que, ao lado dos dotes nativos com que aprouve ao céu distinguir-me entre os homens, não possuo a ciência financeira? Por que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do câmbio, e mal distingo dez mil-réis de dez tostões? Nos bondes é que me sinto vexado. Há sempre três e quatro pessoas (principalmente agora) que tratam das coisas financeiras e econômicas, e das causas das coisas, com tal ardor e autoridade, que me oprimem. É então que eu leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas, — vício dispensável; mas antes vicioso que ignorante. Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às tabuletas. Miro ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a indústria, a pintura e a ortografia. E não é novo este meu costume, em casos de aperto. Foi assim que um dia, há anos, não me lembra em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este título era uma nova edição da esfinge. Pensei nele, estudeio, e não podia dar com o sentido, até que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado, tinha mais senso; porque, em suma, pode admitir-se um destino ao planeta em que pisamos... Talvez a ciência econômica e financeira seja isto mesmo, o avesso do que dizem os discutidores de bondes. Quantas verdades escondidas em frases trocadas! Quanto fiz esta reflexão, exultei. Grande consolação é persuadir-se um homem de que os outros são asnos. E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei bem qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças, que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo; viram uma flor muito bonita no alto de uma árvore, Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um moleque, e o Bicalho foi ter com ele. — Vem cá, trepa àquela árvore, e tira a flor que está em cima... Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alemão, que não entendia português. Quando Bicalho entrou na cidade, e não ouviu nem leu outra língua senão a alemã, a rica e forte língua de Goethe e de Heine, teve uma impressão que ele resumia

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assim: "Achei-me estrangeiro no meu próprio país!" Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e espírito. Isto, porém, não tem nada com os chins, nem os judeus, nem particularmente com aquela moça que acaba de impedir a canonização de Colombo. Hão de ter lido o telegrama que dá notícia de haver sido posta de lado a idéia de canonização do grande homem, por motivo de uns amores que ele trouxera com uma judia. Todos os escrúpulos são respeitáveis, e seria impertinência querer dar lições ao Santo Padre em matéria de economia católica. Colombo perdeu a canonização sem perder a glória, e a própria Igreja o sublima por ela. Mas... Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao caso, o pensamento escapase, rompe os séculos e vai farejar essa judia que tamanha influência devia ter na posteridade. E compõe a figura pelas que conhece. Há-as de olhos negros e de olhos garços, umas que deslizam sem pisar no chão, outras que atam os braços ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas. Nem faltam as que embebedam e as que matam. O pensamento evoca a sombra da filha de Moisés, e pergunta como é que aquele grande e pio genovês, que abriu à fé cristã um novo mundo, e não se abalançou ao descobrimento sem encomendar-se a Deus, podia ter consigo esse pecado mofento, esse fedor judaico, — deleitoso, se querem, mas de entontecer a perder uma alma por todos os séculos dos séculos. Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que eram incompatíveis, fizeram um acordo para dissimular e pecar. Combinaram em ler o Cântico dos Cânticos; mas Colombo daria ao texto bíblico o sentido espiritual e teológico, e ela o sentido natural e molemente hebraico. — O meu amado é para mim como um cacho de Chipre, que se acha nas vinhas de Engadi. — Os teus olhos são como os das pombas, sem falar no que está escondido dentro. Os teus dois peitos são como dois filhinhos gêmeos da cabra montesa, que se apascentam entre as açucenas. — Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas mãos destilavam mirra. — Os teus lábios são como uma fita escarlate, e o teu falar é doce. — O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso. Quantas uniões danadas não se mantêm por acordos semelhantes, em consciência, às vezes! Há uma grande palavra que diz que todas as coisas são puras para quem é puro. Tornemos à gente cristã, às eleições municipais, à senatorial, aos italianos de S. Paulo que deixam a terra, a D. Carlos de Bourbon que aderiu à República Francesa, em obediência ao Papa, aos bondes elétricos, à subida ao poder do old great man, a mil outras coisas que apenas indico, tão aborrecido estou. Pena da minha alma, vai afrouxando os bicos; diminui esse ardor, não busques adjetivos, nem imagens, não busques nada, a não ser o repouso, o descanso físico e mental, o esquecimento, a contemplação que prende com o cochilo que expira no sono... In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 104-106.

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Observação: esta crônica é fundamental para o assunto. Trata novamente dos chineses e também dos alemães instalados no sul do Brasil.

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[18] Crônica de 11 de setembro de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Já uma vez dei aqui a minha teoria das idéias grávidas. Vou agora à das ações grávidas, não menos interessante, posto que mais difícil de entender. Em verdade, há de custar a crer que uma ação nasça pejada de outra, e, todavia, nada mais certo. Para não nos perdermos em exemplos estranhos, meditemos no caso do Chaucer. O Chaucer vinha entrando a nossa barra, quando da fortaleza de Santa Cruz lhe fizeram alguns sinais, a que ele não atendeu e veio entrando. A fortaleza disparou um tiro de pólvora seca, ele veio entrando; depois outro, e ele ainda veio entrando; terceiro tiro, e ele sempre entrando. Quando vinha já entrando de uma vez, a fortaleza soltou a bala do estilo, que lhe furou o costado. Correram a socorrê-lo, mas já a gente de bordo tinha por si mesma tapado o buraco, e a companhia escreveu aquela carta, declarando protestar e esperar que tudo acabasse bem e depressa, sem intervenção diplomática. Pólvora seca, à espera de bala. Nega o Chaucer que visse sinais, nem ouvisse tiros. Devo crer que fala verdade, pois que nada o obriga a mentir, tanto mais quanto, antes de ser navio, Chaucer era um velhíssimo poeta inglês, que já perdeu a vista e as orelhas, tendo perdido a saúde e a vida. Mas nem todos pensam assim; e, para muita gente, a ação do navio foi antes de pouco caso da terra e seus moradores. Ora, tal ação, ainda que sem esse sentido, desde que parecia tê-lo, podia nascer grávida de outra, e foi o que aconteceu; daí a dias, dava-se a ocorrência da bandeira da Rua da Assembléia. Desdém chama desdém. Um homem a quem se puxa o nariz, acaba recebendo um rabo de papel. Ação pejada de ação. Felizmente o movimento de indignação pública e as palavras patrióticas que produziu, e mais a pena do culpado, farão esperar que esta outra ação haja nascido virgem e estéril. Podia citar mais exemplos, e de primeira qualidade; mas se o leitor não entende a teoria com um não a entenderá com três. Direi só um caso, por estar, como lá se diz, no tapete da discussão. A emissão bancária nasceu tão grossa, que era de adivinhar a gravidez da encampação. Nem falta quem diga que estes gritos que estamos ouvindo, são as dores do parto. Uns crêem nele, mas afirmam que a criança nasce morta. Outros pensam que nasce viva, mas aleijada. Há até um novo encilhamento, onde as apostas crescem e se multiplicam, como nos belos dias de 1890. Eu, sobre esse negócio de encampação, sei pouco mais que o leitor, porque sei duas coisas, e o leitor saberá uma ou nenhuma. Sei, em primeiro lugar, que é uma medida urgente e necessária, para que se restaure o nosso crédito; e, em segundo lugar, sei também que é um erro e um crime. Aristote dit oui et Galien dit non. Quiseram explicar-me porque é que era crime; mas eu ando tão aflito com a simples notícia dos narcotizadores, que não quis ouvir a explicação do crime. Basta de crimes. Demais, são finanças. E as finanças vão chegando ao estado da jurisprudência. Muitas famílias, quando viram que os bacharéis em direito eram em demasia, começaram a mandar ensinar engenharia aos filhos. Hoje, família precavida não deve esperar que venha o

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excesso de financeiros. A concorrência é já extraordinária. Antes a medicina. Antes a própria jurisprudência. Demais, eu gosto de explicações palpáveis, concretas. Desde que um homem começa a raciocinar e quer que eu o acompanhe pelos corredores do espírito, digo-lhe adeus. Debêntures, por exemplo. Um deputado disse há dias na Câmara que certo banco do interior os emitira clandestinamente. Não lhe dei crédito. Mas uma senhora, que jantou comigo ontem, disse-me rindo e agitando uns papéis entre os dedos: Aqui estão debêntures. O crédito que neguei ao deputado, dei-o à minha boa amiga. A razão é que, sobre este gênero de papéis, tive duas idéias consecutivas antes da última. A primeira é que debênture era uma simples expressão, uma senha, uma palavra convencional, como a da conjuração mineira: Amanhã é o batizado. A segunda é que era efetivamente um bilhete, mas um bilhete que seria entregue pelo agente policial, por pessoa de família, ou pelo próprio alienista, um atestado, em suma, para legalizar a reclusão. Quando vi, porém, que aquela senhora tinha tais papéis consigo, e peguei neles, e os li, adquiri uma terceira idéia, exata e positiva, que a minha amiga completou dizendo com rara magnanimidade: — O que lá vai, lá vai. E agora, adeus, querida semana! Adeus, cálculos do Sr. Oiticica, que dizem estar errados! adeus, feriados! adeus, níqueis! Os níqueis voltam certamente; mas há de ser difícil. Ou estarão sendo desamoedados, como suspeita o Governo, ou andam nas mãos de alguma tribo, que pode ser a dos narcotizadores, e também pode ser a de Shylock. Creio antes em Shylock. Se assim for, níqueis, não há para vós habeas-corpus, nem tomadas da Bastilha. Não perdeis com a reclusão, meus velhos; ficais luzindo, fora das mãos untadas do trabalho, que vos enxovalham. Para sairdes à rua, é preciso alguma coisa mais que boas razões ou necessidades públicas; e não saireis em tumulto, nem todos, mas devagarinho e aos poucos, conforme a taxa. "Trezentos ducados, bem!" Também não digo adeus aos chins, porque é possível que eles venham, como que não venham. O Diário de Notícias, contando os votos da Câmara favoráveis e desfavoráveis, dá 64 para cada lado. Numa questão intrincada era o que melhor podia acontecer; as opiniões entestavam umas com outras, na ponte, como as cabras da fábula. Mas pode haver alterações, e há de havê-las. Para isso mesmo é que se discute. E a balança está posta em tal maneira, que a menor palha fará pender uma das conchas. Nunca um só homem teve em suas mãos tamanho poder, isto é, o futuro do Brasil, que ou há de ser próspero com os chins, conforme opinam uns, ou desgraçado, como querem outros. Espada de Breno, bengala de Breno, guarda-chuva de Breno, lápis, um simples lápis de Breno, agora ou nunca é a tua ocasião. A vós, sim, tumultos de circo, a vós digo eu adeus, porque se adotarem o que proponho aos homens, não há mais tumultos nesse gênero de espetáculos, ou seja nos próprios circos, ou seja nas casas cá de baixo, onde se aposta e se espera a vitória pelo telefone; modo que me faz lembrar umas senhoras do meu conhecimento, que têm ouvido todas as óperas desta estação lírica, indo para a praia de Botafogo ver passar as carruagens das senhoras assinantes. Não haverá tumultos, porque faço evitar a fraude ou suspeita dela aposentando os cavalos e fazendo correr os apostadores com os seus

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próprios pés. Cansa um pouco mais que estar sentado, mas cada um ganha o seu pão com o suor do seu rosto. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 116-119.

Observação: no penúltimo parágrafo da crônica há uma referência à vinda do chins.

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[19] Crônica de 18 de setembro de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Quando a China souber que a vinda dos seus naturais (votada esta semana em segunda discussão) tem dado lugar a tanto barulho, tanta animosidade, tanto epíteto feio, é provável que mande fechar os seus portos e não deixe sair ninguém. Eu conheço a China. A China tem brios. A China não é só a terra de porcelanas, leques, chá, sedas, mandarins e guarda-sóis de papel. Não, a China manda-nos plantar café e deixa-se ficar em casa. E o Japão? O Japão, que sabe estarem os japoneses no projeto e não vê descompor japoneses nem malsiná-lo a ele, o Japão cuida que entra no projeto só para dar fundo ao quadro, e fecha igualmente os seus portos. Eu conheço também o Japão. O Japão é muito desconfiado, mais desconfiado ainda que parlamentar. Porque o Japão é parlamentar, como sabem; copiou do ocidente as câmaras e os condes. O atual presidente do conselho de ministros é o Conde Ito, um homem que, tanto quanto se pode deduzir de uma gravura que vi há pouco, é das mais galhardas figuras deste fim de século. Mas como vai muito do vivo ao pintado, dou que seja menos belo; não quer dizer que não tenha talento e pulso. Quanto à planta parlamentar, não creio que seja tão viçosa como na Inglaterra. Não, mas é original, e basta. Tem uma cor particular ao clima. Se é verdade o que li, há lá um costume nas câmaras assaz interessante. Deputado que vota contra o governo, é restituído aos seus eleitores; deputado que vota a favor do governo, é desancado pela opinião. Quer dizer que, em cada votação política, os adversários do governo põem os ministerialistas em lençóis de vinho e vão ver depois se o Conde Ito está nos seus respectivos distritos eleitorais. Se os eleitores (isto agora é conjetura minha) os aprovam, revalidam os diplomas, e eles tornam ao parlamento. Este sistema, se vier nas malas japonesas, pode ser experimentável; mas a dúvida é se virão malas japonesas, ou sequer chinesas, pela razão acima citada. Força é confessar que os filhos daquelas bandas têm grandes vantagens. Italianos entram aqui com o seu irridentismo, franceses com os princípios de 89, ingleses com o Foreign Office e a Câmara dos Comuns, espanhóis com todas las Españas, caramba! alemães com uma casa sua, uma cidade sua, uma escola sua, uma igreja sua, uma vida sua. Chim não traz nada disso, traz braço, força e paciência. Não chega a trazer nome, porque é impossível que a gente o chame por aqueles espirros que lá lhe põem. O primeiro artigo de um bom contrato deve ser impor-lhe um nome da terra, à escolha, Manuel, Bento, pai João, pai José, pai Francisco, pai Antônio... Depois, o trabalho. Que outro bicho humano iguala o chim? Um cego, entre nós, pega da viola e vai pedir esmola cantando. Ora, o Padre João de Lucena refere que na China todos os cegos trabalham de um modo original. São distribuídos pelas casas particulares e postos a moer arroz ou trigo, mas de dois em dois, "porque fique assim a cada um menos pesado o trabalho com a companhia e conversação do outro". Os aleijados, se não têm pernas, trabalham de mãos; os que não têm braços, andam ao ganho com uma

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cesta pendurada ao pescoço, para levar compras às casas dos que os chamam, — ou servem de correio a pé. Aproveita-se ali até o último caco de homem. Não alegueis serem estas notícias de um velho escritor, porque uma das vantagens da China é ser a mesma. Os séculos passam, mudam-se os costumes, as instituições, as leis, as idéias, tudo padece desta instabilidade que o Sr. Senador Manuel Vitorino atribuiu anteontem às nossas coisas; mas a China não passa. Já que falei no Sr. Senador Manuel Vitorino, devo completar um ponto do seu discurso. É certo que o finado imperador recusou uma estátua que lhe quiseram erigir, quando acabou a Guerra do Paraguai, dizendo preferir que o dinheiro fosse aplicado a escolas; mas o Sr. Senador não disse o resto. Talvez não estivesse aqui. Eu estava aqui; vi as coisas de perto. A estátua não foi um simples e desornado oferecimento. Fez-se grande reunião, com pessoas notáveis à frente, comissão aclamada, que ia marchar para S. Cristóvão. O imperador, lendo a notícia nos jornais, escreveu uma carta ao ministro do Império, declarando o que o Sr. Senador Manuel Vitorino referiu agora. Mas o resto? Onde está o resto? Onde está o dinheirão que eu gastei depois em anúncios, pedindo notícias da comissão? Nem só dinheiro, gastei amigos, encomendei a uma dezena deles que fossem a todos os bairros, que interrogassem os lojistas, que levantassem as almofadas dos carros, que chegassem ao interior das casas, e espiassem por baixo das camas ou dentro dos armários. Pode ser que houvesse da minha parte algum excesso de zelo; mas nem por isso mereço ficar no escuro. Não achei a comissão, é certo, mas podia tê-la achado. Entretanto, não nego que há por aí edifícios bem arquitetados para escolas e por conta do Estado. Um chegou a destruir em mim certo erro político. Dizia ele, no alto, em letra grossa, como dedicatória: "O governo ao povo". A minha idéia é que éramos, politicamente, uma nação representativa, e que tanto fazia dizer povo como governo, não sendo o governo mais que o povo governando. Demais o dinheiro da construção era dos próprios contribuintes, e... Mas vamos adiante, que o tempo escasseia. Tempo, espaço e papel, tudo vai faltando debaixo das mãos. Paciência também falta. Concluamos com uma boa notícia. Cansado desta obrigação de dar uma semana por semana, entendi convidar um colaborador, e a quem pensais que convidei? Um senador, ex-ministro e pensador, tudo de França, o velho Júlio Simon, que me respondeu nestes termos: "Mon cher ami. — Je réponds à votre bonne lettre. Ne comptez pas sur moi, ni régulièrement, ni même directement. Vous êtes trop loin, et moi je suis trop vieux. Je vous autorise à couper dans les articles que je publie en France, les morceaux qui vous plairont, et à les donner dans cette aimable Gazeta de Notícias, avant que votre Congrès n'approuve le traité, dont M. Nilo Peçanha est le rapporteur, à ce que l'on rapporte. Pardonnez-moi ce méchant calembourg et croyez à ma vieille amitié. —Jules Simon". Não imaginam o prazer com que li esta cartinha. Quis logo dar algum trecho do grande homem; mas sobre quê? Era preciso um fato da semana, alguma coisa a que o trecho se adequasse. Que coisa? Justamente aqui está um telegrama de Ouro Preto, em que os empregados públicos pedem misericórdia contra os cortes de que estão ameaçados por um projeto pendente do Congresso Nacional. Sobre isto, escreve o meu velho amigo no Temps, de 20 de agosto:

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"Lembra-me ainda o tempo, o feliz tempo em que a guerra aos grandes ordenados era toda a política dos membros da oposição que não sabiam política... A guerra subsiste. O Sr. Chassaing vem renová-la, acompanhado de quarenta colegas. Eles devem saber que o ordenado dos funcionários não é renda; é produto do trabalho. Não é justo nem hábil diminuir a parte dos trabalhadores do Estado, quando tanta gente reclama a remuneração mais eqüitativa do trabalho." Suponho que o trecho transcrito acode bem às angústias dos funcionários de Ouro Preto e de outros lugares menos remotos. Daqui em diante, quando me faltarem idéias, corro ao meu velho amigo Simon, o velho amigo do meu velho amigo Thiers". Três velhos amigos! In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 120-123.

Observação:crônica importante sobre a imigração em geral, em especial a chinesa, e primeira referência às negociações para a imigração japonesa.

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[20] Crônica de 25 de setembro de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Esta semana começou mal. Nos primeiros três dias recebi vinte e seis cartas agradecendo a maneira engenhosa por que defendi, na outra crônica, a introdução do chim. Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões da minha vida são as dos jantares em que sou brindado. Mas confesso que desta vez nem tive tempo de saborear os louvores; fiquei espantado, porque eu não defendi nada, nem ninguém. Não fiz mais que apontar as qualidades do chim e as de outros imigrantes, para significar que, entrado o chim, os outros somem-se. Não defendi, nem acusei. Não me deitem louros nem grilhões. Francisco Belisário, por exemplo, era da mesma opinião, e não me consta que o elogiassem por ela. Ia mais longe, porque dizia coisas duras, e eu não estou aqui para dizer coisas duras. Além disso, e do mais, há entre nós um abismo; é que eu sou um simples eleitor, e ele era um homem d'Estado. Não lhe pese a terra por isso. E não falo daquela observação fina e profunda que, ainda aplicada a assuntos práticos, era um dos encantos do seu espírito. Confesso tudo isso, mas não o imitarei jamais nos duros conceitos que exprimiu, posto que revestidos daquele estilo afável que era um relevo do patriota e do político. Hão de lembrar-se que era de estatura baixa. Daí o costume que tinha de subir alto para ver longe. Uma de suas idéias é que mais vale o todo que a parte, mais um século que um ano, mais cinqüenta milhões de homens que meia dúzia deles. Se não são estas as textuais palavras, advirtam que foram transcritas por mim, cujo falar ou escrever tem o vício de ser torto, truncado ou brusco; mas o sentido aí está. Fique o sentido, e vamos ao arroz. Quando vierem as maldições ou as bênçãos, — cerca de 1914 — os que estivermos enterrados, não nos importaremos com elas. Morto, se não fala, também não ouve. Que nos chamem todos os nomes sublimes ou todos os nomes feios, valerá tanto como nada. Palavras, palavras, palavras. Também não se nos dará de agitações sociais ou outros desconsolos; menos ainda se o Império do Meio fizer da nossa terra uma República do Meio. Teremos vivido. Mas a semana continuou mal. Tratei na crônica da reunião que se fez para levantar uma estátua ao imperador, depois da Guerra do Paraguai. O Jornal do Comércio lembrou que a coleta foi promovida por uma comissão de respeitáveis membros da Associação Comercial e com ela se construiu o belo edifício do Campo de S. Cristóvão, doado ao Governo e ocupado por duas escolas. Dou uma das mãos à palmatória, e não há de ser a esquerda, chamada do coração, porque este coração, que não calunia ninguém, não o faria a pessoas honradas, que prestaram um bom serviço público. Não, senhor. A mão direita é que há de apanhar, por não haver sabido escrever claro. E posto seja verdade que eu não falei em subscrição, mas em comissão, dizendo que, escolhida esta em um dia, desapareceu no outro (o que exclui a idéia de dinheiros

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recebidos), concordo que o meu vezo de falar por meias palavras pode muito bem dar um sentido ao que o tem diverso. Tinha em lembrança que a comissão escolhida, — a primeira comissão, — perdera o entusiasmo, desde que o serviço ao imperador devia trocar o modo pessoal e direto pelo modo indireto e impessoal: estátua por escola. Este é que era o ponto da crítica. Não houve primeira comissão? Bem; limitemos a ação aos iniciadores, ou a alguns deles, ou a pessoas que estiveram na reunião, e a quem se deu lugar preeminente. O erro foi atribuir à comissão o que apenas coube a alguns, se é que coube a alguém, porque a minha triste memória avoluma os casos passados e pode fazer uma batalha de uma simples escaramuça. E aí tens o que fizeste, pena de trinta mil diabos, aí tens o que acabas de fazer; gastaste o tempo todo em explicações, graças ao sestro de não arranhar o papel, mas descer ao de leve por ele abaixo. Glissez, mortels, n'appuyez pas. É gracioso, mas para outros ofícios. Aqui, meu bem, hás de ter o desamor a murros, e o amor a beijos, mas a beijos grandes e sonoros. Todavia, como há um limite para tudo, não ames como outros amaram aquela Maria de Macedo, cujo cadáver apareceu no Largo do Depósito. Digam o que quiserem; o homem gosta dos grandes crimes. Esta sociedade estava expirando de tédio. Uma ou outra sentença sobre negócios anônimos e ações nominais mal satisfazia a curiosidade, e não de todos, porque há muita gente que não conta de cem contos para cima; eu nem creio em milhares de contos. Ratonices de queijos e outras miudezas são como os biscoitos velhos e poucos; enganam o estômago, não matam a fome. E a fome vivia e crescia, sem nada que lhe pusesse termo, até que um gato descobriu no Largo do Depósito aquele tronco de gente. Foi um banquete pantagruélico. Um simples pedaço de cadáver, ensopado em mistério, bastou a fartar toda a cidade. Os mais gulosos pediam ainda a cabeça, as pernas e os braços. O mar, imensa panela, despejou esse manjar último. Agora pedimos os cozinheiros; venham os cozinheiros. Não sabemos tudo; não basta haver comido e perguntado pelos cozinheiros. Há muito mais que saber, — o processo e as minúcias da cozinha. E quando houvermos notícia da culinária e dos seus oficiais, restará ainda entrar fundo no estudo dessa mescla de lubricidade e ferocidade, rins de macaco e goela de hiena; fitar bem a imbecilidade do criminoso que vai vender uma parte da caça. Chegaremos assim aos abismos da inconsciência. Não importa a camada dos personagens para achar interesse num drama lúbrico. Visgueiro era um magistrado. Há muitos anos, junto aos canos da Carioca, Sócrates matou Alcibíades. Agora, o mal que resulta deste grande crime, é não sabermos se ficará bastante curiosidade para acudir à eleição dos intendentes. Talvez não. Eleitor não é gato de sete fôlegos. Deixa-se ficar almoçando; os intendentes vão ser eleitos a cinqüenta votos. Poucas semanas depois, trinta mil eleitores sairão de casa murmurando que a intendência não presta para nada. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 124-128.

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Observação: o autor retoma o assunto da crônica anterior, sobre chineses. O cronista teria recebido cartas com elogios pela defesa dos chins, sendo obrigado a "explicar" a crônica da semana anterior.

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[21] Crônica de 20 de novembro de 1892 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Cariocas, meus patrícios, meus amigos, coroai-vos de flores, trazei palmas nas mãos e dançai em torno de mim, com pé alterno, à maneira antiga. Sus, triste gente malvista e malquista da outra gente brasileira, que não adora a vossa frouxidão, a vossa apatia, a vossa personalidade perdida no meio deste grande e infinito bazar! Sus! Aqui vos trago alguma coisa que repara as lacunas da história, o mau gosto dos homens e o equívoco dos séculos. Eia, amigos meus, patrícios meus, escutai! Depois de um exórdio destes, é impossível dizer nada que produza efeito; pelo que — e para imitar os pregadores, que depois do exórdio ajoelham-se no púlpito, com a cabeça baixa, como a receber a inspiração divina — inclino-me por alguns instantes, até que a impressão passe; direi depois a grande notícia. Ajoelhai-vos também, e pensai em outra coisa. Pensai nas festas de 15 de novembro e na espécie de julgamento egípcio, que toda a imprensa fez nesse dia acerca da República. Houve acordo em reconhecer a aceitação geral das instituições, e a necessidade de esforço para evitar erros cometidos. As festas estiveram brilhantes. Notou-se, é verdade, a ausência do corpo diplomático no palácio do Governo. Espíritos desconfiados chegaram a crer em algum acordo prévio; mas esta idéia foi posta de lado, por absurda. Não importa! Crédulo, quando teima, teima. Não faltou quem citasse o fato da nota coletiva acerca de uns tristes lazaretos, para concluir que não somos amados dos outros homens, e dar assim à ausência coletiva um ar de nota coletiva. Explicação que nada explica, porque se a gente fosse a amar a todas as pessoas a quem tem obrigação de tirar o chapéu, este mundo era vale de amores, em vez de ser um vale de lágrimas. Não penseis mais nisso. Pensai antes nas festas nacionais dos estados, posto seja difícil, a respeito de alguns, saber a verdade dos telegramas. Aqui estão dois da Fortaleza, Ceará, datados de 16. Um: "Foi imenso o regozijo pelo aniversário da proclamação da República." Outro: "O dia 15 de novembro correu frio, no meio da maior indiferença pública". Vá um homem crer em telegramas! A mim custa-me muito; Bismarck não cria absolutamente, tanto que confessa agora haver alterado a notícia de um, para obrigar à guerra de 1870. Assim o diz um telegrama publicado aqui, sexta-feira; mas é verdade que isto, dito por telegrama, não pode merecer mais fé que o dizer de outros telegramas. O melhor é esperar cartas. Aqui está uma delas, e com tal notícia que, antes de inspirar piedade, encher-nos-á de orgulho. Não há telegrafices, nem para bem, nem para mal. Refiro-me àquele engenheiro Bacelar e àquele empreiteiro Dionísio, que em Aiuruoca foram presos por um grupo de calabreses, trabalhadores da linha férrea. O pagamento andava atrasado; os calabreses, para haver dinheiro, pegaram dos dois pobres-diabos, que iam de viagem, e disseram a um terceiro que antes de pagos, não lhes dariam liberdade, e dar-lhe-iam a morte, se vissem

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aparecer força. O companheiro veio aqui ver se há meio de os resgatar. O caso é de meter piedade. Sobretudo, como disse, é de causar orgulho. Maomé chamou a montanha, e, não querendo ela vir, foi ele ter com ela. Nós chamamos a Calábria, e a Calábria acudiu logo. Vivam as regiões dóceis! É certo que pagamos-lhe a passagem; mas era o menos que pedia a justiça. O ato agora praticado difere sensivelmente dos velhos costumes, porque a Calábria, desta vez, era e é credora; trabalhou e não lhe pagaram. Mas, enfim, o uso de prender gente até que ela lhe pague, com ameaça de morte, é assaz duro. Antes a citação pessoal e a sentença impressa; porque, se o devedor tem certo pejo, faz o diabo para pagar a dívida, por um ou por outro modo: se não o tem, que vale a publicidade do caso e do nome? Talvez a publicidade traga vantagens especiais ao condenado: perde os dedos e ficam-lhe os anéis. Napoleão dizia: On est considéré à Paris, à cause de sa voiture, et non à cause de sa vertu. Por que não há de suceder a mesma coisa na Calábria? Outro assunto que merece particularmente a vossa atenção, é a reunião da intendência, a primeira eleita, a que vem inaugurar o regime constitucional da cidade. Corresponderá às esperanças públicas? Vamos crer que sim; crer faz bem, crer é honesto. Quando o mal vier, se vier, dir-se-á mal dele. Se vier o bem, como é de esperar, hosanas à intendência. Por ora, boa viagem! E agora, patrícios meus, cariocas da minha alma, vamos concluir o sermão, cujo exórdio lá ficou acima. Sabeis que o nosso distrito é a capital interina da União. Já se está trabalhando em medir e preparar a capital definitiva. Eis a disposição constitucional; é o art. 3.º, título F: "Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura capital federal. — Parágrafo único. Efetuada a mudança da capital, o atual distrito federal passará a constituir um Estado." Eis o ponto do sermão. Temos de constituir em breve um estado. O nome de capital federal, que aliás não é propriamente um nome, mas um qualificativo legal, ir-se-á com a mudança para a capital definitiva. Haveis de procurar um nome. Rio de Janeiro não pode ser, já porque há outro estado com esse nome, já porque não é verdade; basta de agüentar com um rio que não é rio. Que nome há de ser? A primeira idéia que pode surgir em alguns espíritos distintos, mas preguiçosos, é aplicar ao estado o uso de algumas ruas, — Estado do Dr. João Mariz, por exemplo, — uso que, na América do Norte, é limitado aos chamados homens-sanduíches, uns sujeitos metidos entre duas tábuas, levando escrita em ambas esta ou outra notícia: "Dr. Dix's celebrated female powders; guaranteed superior to all others." Não é bom sistema para intitular estados. Também não vades fabricar nomes grandiosos: Nova Londres ou Novíssima York. Prata de casa, prata de casa. Não me cabe a escolha; sou duas vezes incompetente, por lei e por natureza. E depois, dou para piegas: podia adotar Carioca mesmo, — ou Guanabara, usado pelos poetas da outra geração. Dir-me-eis que é preciso contar com o mundo, que só conhece o antigo Rio de Janeiro e não se acostumará à troca. Isso é convosco, patrícios meus. Nem eu vos anunciei a princípio uma grande descoberta senão para ter o gosto de trazer-vos até

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aqui, coluna abaixo, ansioso, à espera do segredo, e olhando apenas um fim de semana, um adeus e um ponto final. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 152-154.

Observação: o cronista faz referência a um grupo de calabreses, trabalhadores da linha férrea, que prenderam – como reféns – um engenheiro e um empreiteiro da obra por atrasos no pagamento.

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[22] Crônica de 8 de janeiro de 1893 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Quem houver acompanhado, durante a semana, as recapitulações da imprensa, terse-á admirado de ver o que foi aquele ano de 1892. A Igreja recomenda a confissão, ao menos, uma vez cada ano. Esta prática, além das suas virtudes espirituais, é útil ao homem, porque o obriga a um exame de consciência. Vivemos a retalho, dia por dia, esquecendo uma semana por outra, e os onze meses pelo último. Mas o exame de consciência evoca as lembranças idas, congrega os sucessos distanciados, recorda as nossas malevolências, uma ou outra dentada nos amigos e até nos simples indiferentes. Tudo isso junto, em poucas horas, traz à alma um espetáculo mais largo e mais intenso que a simples vida seguida de um ano. O mesmo sucede ao povo. O povo precisa fazer anualmente o seu exame de consciência: é o que os jornais nos dão a título de retrospecto. A imprensa diária dispersa a atenção. O seu ofício é contar, todas as manhãs, as notícias da véspera, fazendo suceder ao homicídio célebre o grande roubo, ao grande roubo a ópera nova, à ópera o discurso, ao discurso o estelionato, ao estelionato a absolvição, etc. Não é muito que um dia pare, e mostre ao povo, em breve quadro, a multidão de coisas que passaram, crises, atos, lutas, sangue, ascensões e quedas, problemas e discursos, um processo, um naufrágio. Tudo o que nos parecia longínquo aproxima-se; o apagado revive; questões que levavam dias e dias são narradas em dez minutos; polêmicas que se estenderam das câmaras à imprensa e da imprensa aos tribunais, cansando e atordoando, ficam agora claras e precisas. As comoções passadas tornam a abalar o peito. Mas vamos ao meu ofício, que é contar semanas. Contarei a que ora acaba e foi mui triste. A desolação da Rua Primeiro de Março é um dos espetáculos mais sugestivos deste mundo. Já ali não há turcas, ao pé das caixas de bugigangas; os engraxadores de sapatos com as suas cadeiras de braços e o demais aparelho desapareceram; não há sombra de tabuleiro de quitanda, não há samburá de fruta. Nem ali nem alhures. Todos os passeios das calçadas estão despejados dela. Foi o prefeito municipal que mandou pôr toda essa gente fora do olho da rua, a pretexto de uma postura, que se não cumpria. Eu de mim confesso que amo as posturas, mas de um amor desinteressado, por elas mesmas, não pela sua execução. O prefeito é da escola que dá à arte um fim útil, escola degradante, porque (como dizia um estético) de todas as coisas humanas a única que tem o seu fim em si mesma é a arte. Municipalmente falando, é a postura. Que se cumpram algumas, é já uma concessão à escola utilitária; mas deixai dormir as outras todas nas coleções edis. Elas têm o sono das coisas impressas e guardadas. Nem se pode dizer que são feitas para inglês ver. Em verdade, a posse das calçadas é antiga. Há vinte ou trinta anos, não havia a mesma gente nem o mesmo negócio. Na velha Rua Direita, centro do comércio, dominavam as quitandas de um lado e de outro, africanas e crioulas. Destas, as baianas eram conhecidas pela trunfa, — um lenço interminavelmente enrolado na cabeça, fazendo

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lembrar o famoso retrato de Mme. de Staël. Mais de um lorde Oswald do lugar, achou ali a sua Corina. Ao lado da igreja da Cruz vendiam-se folhetos de vária espécie, pendurados em barbantes, Os pretos-minas leriam e cosiam chapéus de palha. Havia ainda... Que é que não havia na Rua Direita? Não havia turcas. Naqueles anos devotos, ninguém podia imaginar que gente de Maomé viesse quitandar ao pé de gente de Jesus. Afinal um turco descobriu o Rio de Janeiro e tanto foi descobri-lo como dominá-lo. Vieram turcos e turcas. Verdade é que, estando aqui dois padres católicos, do rito maronita, disseram missa e pregaram domingo passado, com assistência de quase toda a colônia turca, se é certa a notícia que li anteontem. De maneira que os nossos próprios turcos são cristãos. Compensam-nos dos muitos cristãos nossos, que são meramente turcos, mas turcos de lei. Cristãos ou não, os turcos obedecem à postura, como os demais mercadores das calçadas. Os italianos, patrícios do grande Nicolau, têm o maquiavelismo de a cumprir sem perder. Foram-se, levando as cadeiras de braços, onde o freguês se sentava, enquanto lhe engraxavam os sapatos; levaram também as escovas da graxa, e mais a escova particular que transmitia a poeira das calças de um freguês às calças de outro — tudo por dois vinténs. O tostão era preço recente; não sei se anterior, se posterior à Geral. Creio que anterior. Em todo caso, posterior à Revolução Francesa. Mas aqui está no que eles são finos; os filhos, introdutores do uso de engraxar os sapatos ao ar livre, já saíram à rua com a caixeta às costas, a servir os necessitados. Irão pouco a pouco estacionando; depois, irão os pais, e, quando se for embora o prefeito, tornarão à rua as cadeiras de braços, as caixas das turcas e o resto. Assim renascem, assim morrem as posturas. Está prestes a nascer a que restitui o carnaval aos seus dias antigos. O ensaio de fazer dançar, mascarar e pular no inverno durou o que duram as rosas; l'espace d'un matin. Não me cortem esta frase batida e piegas; a falta de carne ao almoço e ao jantar desfibra um homem, preciso ser chato com esta folha de papel que recebe os meus suspiros. Felizmente uma notícia compensa a outra. A volta do carnaval é uma lição científica. O conselho municipal, em grande parte composto de médicos, desmente assim a ilusão de serem os folguedos daqueles dias incompatíveis com o verão. Aí está uma postura que vai ser cumprida com delírio. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 177-179.

Observação: aparecem comentários sobre a presença de "turcos" maronitas no Rio de Janeiro – na verdade deviam ser libaneses e/ou sírios –, e faz referência a italianos. A Turquia é referência antiga nas crônicas de Machado, muitas vezes com tom irônico, devido ao uso freqüente do orientalismo pelos românticos.

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[23] Crônica de 12 de fevereiro de 1893 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Faleci ontem, pelas sete horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do céu, que posso dizer haver tido um antegosto da bem-aventurança. Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a ânfora: — Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração. Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser a própria quadra antiga, a do costume, a do calendário, a da tradição, a de Roma, a de Veneza, a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, — algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe podendo chamar pior... Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro. Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam ter um bom carnaval, — velha festa, que está a fazer quarenta anos, se já os não fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os rapazes de vinte e dois anos que o entrudo era alguma coisa semelhante às tentativas de ressurreição, empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'água, postas na rua ou nos corredores, dentro das quais metiam à força um cidadão todo, — chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa, entre a rua e as janelas, não contando as bacias d'água despejadas a traição. Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço de três meses. Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, ronquidões e tosses, e era a vez dos boticários, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os farmacêuticos ainda eram boticários. Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho do céu, dos episódios de amor que vinham com o entrudo. O limão de cera, que de longe podia escalavrar um olho, tinha um ofício mais próximo e inteiramente secreto. Servia a molhar o peito das moças; era esmigalhado nele pela mão do próprio namorado, maciamente, amorosamente, interminavelmente... Um dia veio, não Malherbe, mas o carnaval, e deu à arte da loucura uma nova feição. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se sociedades, cujos nomes e gestos ainda esta semana foram lembrados por um colaborador da Gazeta. Toda a fina flor da capital entrou na dança. Os personagens históricos e os vestuários pitorescos, um doge, um mosqueteiro, Carlos V, tudo ressurgia às mãos dos alfaiates, diante de figurinos, à força de dinheiro. Pegou o custo das sociedades, as que morriam eram substituídas, com vária sorte, mas igual animação.

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Naturalmente, o sufrágio universal, que penetra em todas as instituições deste século, alargou as proporções do carnaval, e as sociedades multiplicaram-se, com os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos os espíritos, todos os bolsos, todas as ruas. Evohé! Bacchus est roi! dizia um coro de não sei que peça do Alcazar Lírico, — outra instituição velha, mas velha e morta. Ficou o coro, com esta simples emenda: Evohé! Momus est roi! Não obstante as festas da terra, ia eu subindo, subindo, até que cheguei à porta do céu, onde S. Pedro parecia aguardar-me, cheio de riso. — Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra? perguntou-me. Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do Castelo, como nos cento e cinqüenta contos fortes do homem que está preso em Valhadolide. São fortes; segundo o meu criado José Rodrigues, quer dizer que são trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro, mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem meios de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao subterrâneo, venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas, toca a esconder, a guardar, a fechar... — Pára, interrompeu-me S. Pedro; falas como se estivesses a representar alguma coisa. A imaginação dos homens é perversa. Os homens sonham facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem são os que se guardam no céu, onde a ferrugem os não come. — Não era o dinheiro que me fascinava em vida, era o mistério. Eram os trinta ou quarenta milhões de cruzados escondidos, há mais de século, no Castelo; são os trezentos contos do preso de Valhadolide. O mistério, sempre o mistério. — Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este de um grande número de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar? — Quando, divino apóstolo? — Ainda agora. — Há de ser obra de um médico italiano, um doutor... esperai... creio que Abel, um doutor Abel, sim Abel... É um facultativo ilustre. Descobriu um processo para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma pode já conceber; estão prontas. — As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; não sabiam a que atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel... — Crispi foi sempre tenebroso. — Não digo que não; mas, em suma, há um fim político, e os fins políticos são sempre elevados... Panamá, que não tinha fim político...

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— Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes silêncios contemplativos. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 195-198.

Observação: trata de um médico italiano – Abel Parente – que apresentou método de esterilização das mulheres no Brasil. Há passagem em que se pode notar uma nota crítica às expectativas de branqueamento do país ou mesmo uma espécie de "italianização": "Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita por Giolitti, confiada a Abel...". Há outras crônicas em que Machado trata do assunto.

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[24] Crônica de 5 de março de 1893 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Quando os jornais anunciaram para o dia 1.º deste mês uma parede de, açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo. Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro. Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explicase clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor. Vede o nobre cavalo! o paciente burro! o incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente, pobre, — não diz coisa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, comesse o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo. Enfim, chegou o dia 1.º de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo principio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dois banquetes. Nos outros dias a mesma coisa. Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.

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Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirouse ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem. Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos. Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 1.º de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa. Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao seu não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano." Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, antes ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 206-208.

Observação: No último parágrafo há, ao que parece, uma crítica ao discurso em que teria sido lembrada a necessidade de se ensinar italiano por causa dos imigrantes. O cronista mostra que a conclusão deveria ser oposta: ensinar português aos imigrantes.

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[25] Crônica de 19 de março de 1893 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Somos todos criados com três ou quatro idéias que, em geral, são o nosso farnel da jornada. Felizes os que podem colher, de caminho, alguma fruta, uma azeitona, um pouco de mel de abelhas, qualquer coisa que os tire do ramerrão de todos os dias. Para esses guardam os anjos um lugar delicioso, e um néctar, que não chamam especial para não confundi-lo com a goiabada ou o chá dos nossos armazéns humanos, mas que não é, com certeza, o néctar do vulgacho. Deixem ir néctar com anjos; todas as crenças se confundem neste fim de século sem elas. Uma daquelas idéias com que nos criam e nos põem a andar é a do papelório. Julgo não ser preciso dizer o que seja papelório. Papelório exprime o processo do Executivo, os seus trâmites e informações; ninguém confunde esta idéia com outra. Quando um homem não tem outra cólera, tem esta bela cólera contra o papelório. Terra do papelório! costuma dizer um ancião que por falta de meios, amor ao distrito, medo ao mar, doença ou afeições de família, nunca pôs o nariz fora da barra. Terra do papelório! Ele não quer saber se a burocracia francesa é mãe da nossa. Também não lhe importa verificar se a administração inglesa é o que diz dela o filósofo Spencer, complicada, morosa e tardia. Terra do papelório! É uma idéia. Essa idéia, mamada com o leite da infância, nunca foi aplicada aos negócios judiciários. Entretanto, esta mesma semana vi publicado o despacho de um juiz mandando que o escrivão numere os autos da Companhia Geral das Estradas de Ferro desde as folhas mil e tantas, em que a numeração havia parado. O despacho não diz quantas são as folhas por numerar, nem a imaginação pode calcular as folhas que terão de ser ainda escritas e ajuntadas a este processo. Duas mil? três mil? Estendendo pela imaginação todas as folhas possíveis, ao lado das linhas férreas que a companhia chegaria a possuir, creio que o papel venceria o ferro. Que papelório maior, e, a certos respeitos, que mais inútil? Os escrivães lucram, não há dúvida, e escrivão também é gente; mas é muita folha. Afinal, quem vem a lucrar deveras é o Taine de 1950. Quando esse investigador curioso entrar a farejar o que está debaixo dos tempos, para saber o que se pensou, se disse e se fez; e for às casas particulares e às públicas, aos cartórios e aos jornais, e escavar montanhas de papel, manuscrito ou impresso, descomposturas e defesas, arrazoados de toda a sorte, para extrair, recolher e recompor, — então é que podem valer demandas, artigos, inquéritos. À falta de um Taine, um Balzac retrospectivo. Talvez o meu espanto seja risível. Pode ser que os processos de milhares de folhas andem a rodo; em tal caso, perde-se no ar toda essa cantilena em que venho por aqui abaixo. Não digo que não. Eu não conheço o foro. Conheci um fiel de feitos, mas não vi se há ainda agora fiéis de feitos. O tal era um sujeito magro, esguio, velho, paletó e calças de brim safado, e uns sapatos rasos sem tacão nem escova. Debaixo do braço um protocolo e autos. Levava autos de um lado para outro, aos juízes, aos advogados, ao cartório. Como

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levaria ele o processo da Companhia Geral de Estradas de Ferro ou qualquer outro do mesmo tamanho? De carro, naturalmente. Talvez tivesse carro... Pobre Juvêncio! Morreu tarde para as suas misérias, mas cedo para as suas glórias. Se já não houver fiel de feitos, quem fará hoje esse oficio? As próprias partes não pode ser, posto que um bom acordo e palavra dada valham mais que a diligência de um desgraçado. Os procuradores também não; os escrivães precisam escrever. Não adivinho. É caso para inventar um fiel mecânico, um velocípede consciente, mais rápido que o homem, e tão honrado. Tu, se tens o costume de inventar, recolhe-te em ti mesmo, e procura, investiga, acha, compõe, expõe, desenha, escreve um requerimento, e corre a sentar-te à sombra da lei dos privilégios. Quando o velocípede assim aperfeiçoado entregar autos e recolher os recibos no protocolo, pode ser aplicado às demais esferas da atividade social, e teremos assim descoberto a chave do grande problema. Dez por cento da humanidade bastarão para os negócios do mundo. Os noventa por cento restantes são bocas inúteis, e, o que é pior, reprodutivas. Vinte guerras formidáveis darão cabo delas; um bom preservativo estabelecerá o equilíbrio para os séculos dos séculos. Talho em grande; não sou homem de pequenas vistas nem de golpes à flor. Até lá, usemos da chocadeira, que um distinto ginecologista recomendou esta semana, em artigo sobre o famoso assunto da esterilização, que vai caminho das outras coisas deste mundo. A chocadeira é conhecida; foi inventada para completar cá fora a vida do ente que não a pôde acabar alhures. Por lei fatal, não viveria; a chocadeira impõe-lhe a vida, vencendo assim a natureza. Bem comparando, é o velocípede consciente. O autor do artigo chama-lhe mãe artificial. Propondo a chocadeira ao processo da esterilização, mostra ele que tal aparelho é necessário para um país que precisa de braços. Aviso aos nativistas. Quem não quiser aqui uma Babel de línguas, é chocar os tristes candidatos à existência, que não chegam a matricular-se. Aí terão eles matrícula e aprovação. Quem és tu, pobre coisa de nada, que a metafísica do amor, ajudada da física, trouxe até às portas da existência? Ego sum qui non sum. Pois serás, meio filho de entranhas impacientes; aqui vemos com que sejas. Não te digo se, uma vez conhecido, serás bispo, general ou mendigo; digo-te que antes mendigo que nada. Uma coisa, porém, que o autor do artigo não previu, nem o da chocadeira, é que extintas as demais aristocracias, virá essa outra, a dos nascidos a termo. O chocado fará o papel de plebeu. A sociedade compor-se-á de nascidos e chocados; e filho de chocadeira será a última injúria. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 212-214. Observação: Há referência breve à necessidade de braços e aos "nativistas" – termo usado na crônica de 28 de outubro de 1888 – quando trata de um suposto invento, a "mãe-artificial" ou, como chama Machado, "chocadeira", que parece ser algo como uma incubadora: "Propondo a chocadeira ao processo da esterilização, mostra ele – o inventor – que tal aparelho é necessário para um país que precisa de braços. Aviso aos nativistas. Quem não quiser aqui uma Babel de línguas, é chocar os tristes candidatos à existência, que não chegam a matricular-se. Aí terão eles matrícula e aprovação."

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[26] Crônica de 26 de março de 1893 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Entrou o outono. Despontam as esperanças de ouvir Sarah Bernhardt e Falstaff. A arte virá assim, com as suas notas de ouro, cantada e faladas, trazer à nossa alma aquela paz que alguns homens de boa vontade tentaram restituir à alma rio-grandense, reunindo-se quinta-feira na Rua da Quitanda. Creio que a arte há de ser mais feliz que os homens. Da reunião destes resultou saber-se que não havia solução prática de acordo com os seus intuitos. Talvez os convidados que lá não foram e mandara os seus votos em favor do que passasse, já adivinhassem isso mesmo. Viram de longe o texto da moção final, e a assinaram de véspera. Há desses espíritos que, ou por sagacidade pronta, ou por esforço grande, lêem antes da meia-noite as palavras que a aurora tem de trazer escritas na capa vermelha e branca, saúdam as estrelas, fecha as janelas e vão dormir descansados. Alguns sonham, e creio que sonhos generosos; mas a imaginação e o coração não mudam a cor rente das coisas, e os homens acordam frescos e leves, sem haver debatido nem incandescido nada. Comecemos por pacificar-nos. Paz na terra aos homens de boa vontade — é a prece cristã; mas nem sempre o céu a escuta, e, apesar da boa vontade, a paz não alcança os homens e as paixões os dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais que o céu. A própria guerra, cantada por ela, dá-nos a serenidade que não achamos na vida. Venha a arte, a grande arte, entre o fim do outono e o princípio do inverno. Confiemos em Sarah Bernhardt com todos os seus ossos e caprichos, mas com o seu gênio também. Vamos ouvir-lhe a prosa e o verso, a paixão moderna ou antiga. Confiemos no grande Falstaff. Não é poético, decerto, aquele gordo Sir John; afoga-se em amores lúbricos e vinho das Canárias. Mas tanto se tem dito dele, depois que o Verdi o pôs em música, que mui naturalmente é obra-prima. O pior será o libreto, que, por via de regra, não há de prestar; mas leve o diabo libretos. Antes do dilúvio, — ou mais especificadamente, pelo tempo do Trovador, dizia-se que o autor do texto dessa ópera era o único libretista capaz. Não sei; nunca o li. O que me ficou é pouco para provar alguma coisa. Quando a cigana cantava: Ai nostri monti ritorneremo, a gente só ouvia o vozeirão da Casaloni, uma mulher que valia, corpo e alma, por uma companhia inteira. Quando Manrico rompia o famoso: Di quella pira l'orrendo fuoco, rasgaram-se as luvas com palmas ao Tamberlick ou ao Mirate. Ninguém queria saber do Camarano, que era o autor dos versos. Resignemo-nos ao que algum mau alfaiate houver cortado na capa magnífica de Shakespeare. Têm-se aqui publicado notícias da obra nova, e creio haver lido que um trecho vai ser cantado em concerto; mas eu prefiro esperar. Demais, pouco é o tempo para ir seguindo esta outra guerra civil, a propósito do facultativo italiano, que mostra ser patrício de Machiavelli. Fez o seu anúncio, e entregou a causa aos adversários. Estes fazem, sem querer, o negócio dele: e se algum vai ficando conhecido, a culpa é das coisas, não da intenção; não se pode falar sem palavras, e as palavras fizeram-se para ser ouvidas. Não

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digo entendidas, posto que as haja de fina casta, tais como a isquioebetomia, a isquiopubiotomia, a sinfisiotomia, a cofarectomia, a histerectomia, a histerosalpingectomia, e outras que andam pelos jornais, todas de raça grega e talvez do próprio sangue dos atridas. Tudo isto a propósito de um processo ignoto e célebre. Descobriu-se agora (segundo li) que uma senhora já o conhece e emprega. Seja o que for, é uma questão reduzida aos médicos; não passará aos magistrados. Vamos esquecendo; é o nosso ofício. Bem faz o Dr. Castro Lopes, que trabalha no silêncio, e de quando em quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou por artigo. Anuncia-se agora um volume de questões econômicas, em que ele trata, além de outras coisas, de uma moeda universal. Um só rebanho e um só pastor, é o ideal da Igreja Católica. Uma só moeda deve ser o ideal da igreja do diabo, porque há uma igreja do diabo, no sentir de um grande padre. Venha, venha depressa esse volapuque das riquezas. Não lhe conheço o tamanho; pode ser do tamanho universal o mesmo que aconteceu com o volapuque. Acabo de ler que um dos mais influentes propugnadores daquela língua reconhece a inutilidade do esforço. O comércio do mundo inteiro não pega, e prefere os seus dizeres antigos às combinações dos que gramaticaram aquele invento curioso. É que o artificial morre sempre, mais cedo ou mais tarde. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 215-217.

Observação: há referência breve a Abel Parente, o médico italiano que propunha novo método de esterilização, parece que pouco eficaz. Em pelo menos duas outras crônicas Machado se refere a Cesare Lombroso, criminalista também italiano, e que chegou a visitar o Brasil. Não as incluí no corpus porque essas crônicas não tratam de imigração, mas creio que podem ser úteis para entender como os cronistas machadianos aborda certos determinismos científicos.

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[27] Crônica de 3 de setembro de 1893 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Quando eu soube da primeira representação do Alfageme de Santarém, do "pranteado e notabilíssimo escritor Visconde de Almeida Garrett", como dizem respeitosamente os anúncios, e logo depois a do Lohengrin, de Wagner, fiz tenção de dizer aos moços que não desdenhassem do passado, e aos velhos que não recusassem o futuro. Acrescentaria que a frescura vale a consagração, e a consagração a frescura, e acabaria com esta máxima: — A beleza é de todos os tempos. Não perderia muito em escrever assim, e o papel gasto valeria o assunto. Não o digo ou não continuo a dizer o que aí fica, porque seria dar entrada nesta coluna a matérias de outra competência, espetáculos ou livros, óbitos ou discursos. Por que lancei essas linhas? Unicamente para mostrar que há no nosso espírito assaz confiança e liberdade para poder aplaudir as obras de arte sem cuidar do cólera, que espero não venha, mas que pode vir. O cadáver levado à Copacabana, sem cara, que provavelmente os peixes haverão comido, e esses peixes, se forem pescados, — ou comidos por outros maiores, que se pesquem, — eis aí uma porção de idéias torvas. De S. Paulo nada há mais, salvo uma carta oficial que confirma haver aparecido e desaparecido o terrível mórbus. No Pará e Santa Catarina, receios. Enfim, estamos a trancar os portos a outros portos. Tudo isso, porém, não nos dispensa da arte, — passada ou futura, — Lohengrin ou Puritanos. O próprio caso do Carlo R. dava obra de arte nas mãos de um artista, um Poe, não menos. Ninguém receberá esse veículo da peste e da morte, que embarcou mil imigrantes, já iscados da moléstia, e veio por essas águas fora, em vez de tornar logo ao porto da saída. Um Poe imaginaria que os passageiros, agora, no alto mar, desesperados contra o capitão, pegavam dele e o alçavam ao mastro grande. Um dos passageiros, meio náutico, tomaria conta do navio. Vivo e sem comer, o capitão veria morrer no tombadilho todas as suas vítimas e algozes, cinco a cinco, dez a dez, até que ele único escaparia ao mal, por encontro de outro vapor que passasse e o recebesse a bordo. E de duas uma: ou o capitão levava em si a moléstia para bordo do navio salvador, e pagaria o bem com o mal, sem o sentir, ou não levava o cólera, mas o espetáculo do tombadilho o perseguiria por toda a parte. Deste ou daquele modo, um Poe daria o último capítulo. Esperemos que o navio não nos haja deixado o mal, como aquele árabe do poeta, que foi buscar a doença a Granada, para comunicá-la aos seus vencedores cristãos. Não se sabe ainda se os cadáveres de Santos são da mesma origem que o da Copacabana; sabese só que o mar os não quis guardar consigo. Comeu-lhes algum pedaço, mas rejeitou-os, ou por serem coléricos, ou por serem cadáveres. A terra que os engula. O fogo, se pega a lembrança, que os consuma. Seja o que for, como pode acontecer que o navio haja deixado algum vestígio de si, vamos desinfetando o corpo e a alma, para qualquer eventualidade futura. Nada se perde com isto. Da alma, além do que nos pode dar a estética, incumbe-se a religião; e aqui devo notar, de passagem, que tive anteontem, sexta-feira, uma visão de outros tempos. Do bonde

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em que ia, de manhã, vi em poucos minutos quatro homens de opa, vara e bacia. Outrora eram muitos, depois escassearam, depois acabaram. Agora, só em uma direção achei quatro. É natural que reviva o tipo. Não me parece que seja mau; é característico, ao menos, e o incolor nos vai matando. Em criança, eu sabia de todas as cores de opas, verdes, roxas, brancas, encarnadas. Perdi-lhes o sentido, mas achei a sensação. Faltava, é certo, a esses irmãos a melopéia antiga; não pediam cantando, nem na ocasião pediam nada. Iam cosidos com a parede e levavam já muitas esmolas. Do corpo cuidemos ao sabor da autoridade, menos eu, talvez, mas por uma razão só minha, e que, aliás, pode ser de muita gente. Tenho um grande amigo, não menor médico, ao qual ouvi uma vez, — pedindo-lhe eu algum xarope que me tirasse um defluxo, — que não era costume deste receitar xaropes aos amigos. Não entendi bem a resposta; mas, tendo lido algures que não há doenças, mas doentes, pareceu-me que, uma vez que eu tivesse fé, a simples vista dos anúncios de xaropes me restituiria a saúde. Dei-me a essa terapêutica. Pegava dos jornais, ia-me aos anúncios dos xaropes, às cartas dos curados, agradecimentos, atestados médicos, isto durante dez minutos, em jejum; quatro dias depois, estava pronto. Tempo virá em que os princípios sejam inalados pelo mesmo processo, com um pouco de água por cima. Fórmulas e água. E talvez os princípios não esperem pelo Lohengrin, se é que já não vieram com o Alfageme. De um ou de outro modo, direi como de começo, — aos moços que não desdenhem o passado, — e aos velhos, que não recusem o futuro. A verdade, como a beleza, é de todos os tempos. Assim para os xaropes, como para os seus derivados. O que também se pode dar indistintamente por obra do passado ou do futuro, é o que tivemos anteontem, pequeno drama de amor da Rua do Senador Pompeu. O namorado atirou sobre ela e em si, morreu logo, a moça escapará. Há dois modos de tratar este assunto. Cair em cima do namorado, é o primeiro, em nome da moral e da justiça. O segundo é levantá-lo às nuvens como um modelo de paixão, que nem quis deixar a moça neste mundo, matando-se, nem sacrificá-la só, dando-lhe a morte, e com três tiros buscou corrigir a fortuna e a natureza. Qualquer que ele seja, há uma conseqüência certa, é que a vítima não esquecerá o algoz. No turbilhão das coisas humanas, más ou boas, chochas ou terríveis, ou tudo junto, por mais que os anos se acumulem e se multipliquem, com grandes caramelos à cabeça, ou inteiramente pelados, trôpegos, quase sem vida, como os do casal austro-húngaro, que acaba de celebrar as suas bodas seculares, a última idéia que se apagará no cérebro da vítima, será a daquele homem que, por paixão, tentou assassiná-la. Tudo se perdoa ao amor; tudo perdoamos aos que nos adoram. E isto quer se trate de casamento, quer de poder, quer de glória. A diferença é que os gloriosos esquecem, às vezes, e os poderosos podem esquecer muitas. In: A semana. Organização de John Gledson. São Paulo: HUCITEC, 1996, pp. 292-294.

Observação: Machado escreve sobre navio de imigrantes italianos que talvez estivesse contaminado pelo cólera. Parece que Machado, sem querer, deu idéia a Magalhães de Azeredo para um conto, ao

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qual se referirá em crônica posterior – 25/08/1895. Como a doença é o motivo principal da crônica – não a imigração –, não sei se merece ser transcrita integralmente no corpus definitivo.

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[28] Crônica de 15 de abril de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Tudo está na China. De quando em quando aparece notícia nas folhas públicas de que um invento, de que a gente supõe da véspera, existe na China desde muitos séculos. Esta Gazeta, para não ir mais longe, ainda anteontem noticiou que o socialismo era conhecido na China desde o século XI. Os propagandistas da doutrina diziam então que era preciso destruir "o velho edifício social". Verdade seja que muito antes do século XI, se formos à Palestina, acharemos nos profetas muita coisa que há quem diga que é socialismo puro. Por fim, quem tem razão é ainda o Eclesiastes: Nihil sub sole novum. A notícia da Gazeta deu-me que pensar. Creio que já li (ou estarei enganado) que o telefone também existia na China, antes de descoberto pelos americanos. O velocípede não sei, mas é possível que lá exista igualmente, não com o mesmo nome, porque os chins teimam em falar chinês, mas com outro que signifique a mesma coisa ou dê o som aproximado da forma original. O bonde verão que já é usado naquelas partes, talvez com outros cocheiros e condutores. Não falo dos grandes inventos que tiveram berço naquela terra prodigiosa. Confesso que, às vezes, é a própria China que está com a gente ocidental. Há dias, por exemplo, houve aqui no conselho municipal um trecho de debate que talvez haja passado despercebido ao leitor ocupado com outros negócios. Um dos conselheiros, reclamando contra alguns apartes que lhe puseram na boca, afirmou estranhá-los, tanto mais quanto que nenhuma razão havia para proferi-los. E acrescentou, explicando-se: "Eu sou dos poucos que ouvem os discursos do meu colega." Outro conselheiro protestou, dizendo que era dos muitos. Mas o reclamante insistiu que dos poucos, e lembrou que, por ocasião do último discurso, ele estivera ao pé da mesa, outro ao pé da porta, algum sentado, creio que, ao todo, havia uns cinco ouvintes. Se na China há conselhos municipais — e tudo há nela — é provável que os debates tenham desses clarões súbitos. O que a China não faz, é deixar os seus trajes velhos, nem o arroz, nem o pagode, nem nada. Quando eu vejo aí nas ruas algum filho do Celeste Império mascarado com as nossas roupas cristãs, cai-me o coração aos pés. Imagino o que terá padecido essa triste alma desterrada, sem as vestes com que veio da terra natal. Jovem leitor, eu os vi a todos os que aqui amanheceram um dia e se fizeram logo quitandeiros de marisco. Vi-os correr por essas ruas fora, vestidos à sua maneira, longa vara ao ombro e um cesto pendente em cada ponta da vara. Ao italiano, que o substituiu, falta a novidade, a cara feia, a perna fina, rija e rápida... Mas basta de chins e de incréus. Venhamos à nossa terra. Não nos aflijamos se o socialismo apareceu na China primeiro que no Brasil. Cá virá a seu tempo. Creio até que há já um esboço dele. Houve, pelo menos, um princípio de questão operária, e uma associação de operários, organizada para o fim de não mandar operários à câmara dos deputados, o contrário do que fazem os seus colegas ingleses e franceses. Questão de meio e de tempo.

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Cá chegará; os livros já aí estão há muito; resta só traduzi-los e espalhá-los. Mas basta principalmente de incréus; venhamos aos cristãos. Tivemos esta semana uma cerimônia rara. Uma moça de 23 anos recebeu o véu de irmã conversa da Congregação dos Santos Anjos. Não assisti à cerimônia, mas pessoa que lá esteve, diz-me que foi tocante. Eu quisera ter ido também para contemplar essa moça que dá de mão ao mundo e suas agitações, troca o piano pelo órgão, e o figurino vário como a fortuna pelo vestido único e perpétuo de uma congregação. Certo, o espetáculo devia ser interessante. É comum amar a Deus e à modista, ouvir missa e ópera, não ao mesmo tempo, mas a missa de manhã e a ópera de noite. Casos há em que se ouvem as duas coisas a um tempo, mas então não é ópera, é opereta, como nos dá o carrilhão, de S. José, que chama os fiéis pela voz de D. Juanita, ou coisa que o valha. Não há maldizer do duplo ofício do ouvido, uma vez que se ouça a missa de um modo e a ópera de outro... Isto leva-me a interromper o que ia dizendo, para publicar uma anedota. Há muitos anos, houve aqui um tenor italiano, chamado Gentili, que fez as delícias, como se costuma dizer, da população carioca. Esteve aqui mais de uma estação lírica, talvez três ou quatro. Era simpático, patusco e benquisto. Fisionomia alegre, baixo, um tanto calvo, se me não engana a memória, e olhos vivos. Fez o que fazem tenores, cantou, amou, bateu-se em cena pelas amadas, arrebatou-as algumas vezes, salvou a mãe da fogueira, como no Trovador, viu-se entre duas damas, como na Norma, assaltou castelos, tudo com grandes aplausos, até que se foi embora, como sucede a tenores e diplomatas. Passaram anos. Um dia, um amigo meu, o C. C. P., viajando pela Itália, achava-se, não me lembro onde, e não posso mandar agora perguntar-lho. Suponhamos que em Palermo. Era manhã, domingo, saiu de casa e foi à missa. Esperou; daí a pouco entrou o padre e subiu ao altar. Deus eterno! Era o Gentili. Duvidou a princípio; mas sempre que o celebrante mostrava o rosto, aparecia o tenor. Podia ser algum irmão. Acabada a missa, correu o meu amigo à sacristia; era ele, o próprio, o único, o Gentili. Foi visitá-lo depois, falaram do Rio de Janeiro e dos tempos passados. Vieram nomes de cá, fatos, um mundo de reminiscências e saudades, que, se não eram inteiramente de Sião, também não eram de Babilônia. O padre era jovial, sem destempero. Como ia dizendo, a cerimônia da recepção do véu deve ter sido interessante. Que não temos muitas vocações religiosas, parece coisa sabida. Ontem, vendo descer de um bonde um seminarista, lembrei-me da carta recente do ex-bispo do Rio de Janeiro, em que trata da escassez de padres ordenados no nosso seminário, — um por ano, há vinte anos. Não tendo estatísticas à mão, nem papel bastante, concluo aqui mesmo. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1063-1065.

Observação: referência à China e seu apego com o passado e com suas tradições, e também às especulações de que tudo havia surgido antes naquele país. Depois da crônica "mal entendida", Machado passa a colocar a ironia mais no fato de os chineses serem fechados a novidades e pouco adaptáveis do que nas vantagens – irônicas – deles como imigrantes. Nesta crônica também há referência a alguns poucos imigrantes chineses que o autor teria visto.

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[29] Crônica de 20 de maio de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Creio em poucas coisas, e uma das que entram no meu credo, é a justiça, tanto a do céu quanto a da terra, assim a pública como a particular. Além da fé, tinha a vocação, e, mais dia menos dia, não seria de estranhar que propusesse uma demanda a alguém. O adágio francês diz que o primeiro passo é que é difícil; autuada a primeira petição, iriam a segunda e a terceira, a décima e a centésima, todas as petições, todas as formas de processo, desde a ação de dez dias até à de todos os séculos. Tal era o meu secreto impulso, quando o Instituto dos Advogados teve a idéia de escrever e votar que a justiça não é exercida, porque dorme ou conversa, não sabe o que diz, tudo de mistura com uma história de leiloeiros, síndicos e outras coisas que não entendi bem. Como nos grandes dias do romantismo, senti um abismo aberto a meus pés. A fé, que abala montanhas, chegou a ficar abalada em si mesma, e estive quase a perder uma das partes do meu credo. Consertei-o depressa; mas não é provável que nestes meses mais próximos litigue nada ou querele de ninguém. Poupo as custas, é verdade, do mesmo modo que poupo o dinheiro, não assinando um lugar no teatro lírico; quem me dará Lohengrin e um libelo? Entretanto, sem examinar o capítulo da conversação nem o dos leiloeiros, creio que a inconsistência ou variedade das decisões pode ser vantajosa em alguns casos. Por exemplo, um dos nossos magistrados decidiu agora que a briga de galos não é jogo de azar, e não o fez só por si, mas com vários textos italianos e adequados. Realmente, — e sem sair da nossa língua, — parece que não há maior azar na briga de galos que na corrida de cavalos, pelotáris e outras instituições. O fato da aposta não muda o caráter da luta. Dois cavalos em disparada ou dois galos às cristas são, em princípio, a mesma coisa. As diferenças são exteriores. Há os palpites na corrida de cavalos, prenda que a briga de galos ainda não possui, mas pode vir a ter. Os cavalos têm nomes, alguns cristãos, e os galos não se distinguem uns dos outros. Enfim, parece que já chegamos à economia de fazer correr só os nomes sem os cavalos, não havendo o menor desaguisado na divisão dos lucros. Desceremos às sílabas, depois às letras; não iremos aos gestos, que é o exercício do pickpocket. Sim, não é jogo de azar; mas se a sentença fosse outra, podia não ser legal, mas seria justa, ou, quando menos, misericordiosa. Os galos perdem a crista na briga, e saem cheios de sangue e de ódio; não é o brio que os leva, como aos cavalos, mas a hostilidade natural, e isto não lhes dói somente a eles, mas também a mim. Que briguem por causa de uma galinha, está direito; as galinhas gostam que as disputem com alma, se são humanas, ou com o bico, se são propriamente galinhas. Mas que briguem os galos para dar ordenado a curiosos ou vadios, está torto. Se o homem, como queria Platão, é um galo sem penas, compreende-se esta minha linguagem; trato de um semelhante, defendendo a própria espécie. Mas não é preciso tanto. Pode ser também que haja em mim como que um eco do passado. O espiritismo ainda não

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chegou ao ponto de admitir a encarnação em animais, mas lá há de ir, se quiser tirar todas as conseqüências da doutrina. Assim que, pode ser que eu tenha sido galo em alguma vida anterior, há muitos anos ou séculos. Concentrando-me, agora, sinto um eco remoto, alguma coisa parecida com o canto do galo. Quem sabe se não fui eu que cantei as três vezes que serviram de prazo para que S. Pedro negasse a Jesus? Assim se explicarão muitas simpatias. Só a doutrina espírita pode explicar o que sucedeu a alguém, que não nomeio, esta mesma semana. É homem verdadeiro; encontrei-o ainda espantado. Imaginai que, indo ao gabinete de um cirurgião-dentista, achou ali um busto, e que esse busto era o de Cícero. A estranheza do hóspede foi enorme. Tudo se podia esperar em tal lugar, o busto de Cadmo, alguma alegoria que significasse aquele velho texto: Aqui há ranger de dentes, ou qualquer outra composição mais ou menos análoga ao ato; mas que ia fazer Cícero naquela galera? Prometi à pessoa, que estudaria o caso e lhe daria daqui a explicação. A primeira que me acudiu, foi que, sendo Cícero orador por excelência, representava o nobre uso da boca humana, e conseqüentemente o da conservação dos dentes, tão necessários à emissão nítida das palavras. Como bradaria ele as catilinárias, sem a integridade daquele aparelho? Essa razão, porém, era um pouco remota. Mais próxima que essa seria a notícia que nos dá Plutarco, relativamente ao nascimento do orador romano; afirma ele, — e não vejo por onde desmenti-lo, — que Cícero foi parido sem dor. Sem dor! A supressão da dor é a principal vitória da arte dentária. O busto do romano estaria ali como um símbolo eloqüente, — tão eloqüente como o próprio filho daquela bendita senhora. Mas esta segunda explicação, se era mais próxima, era mais sutil; pula de lado. Refleti ainda, e já desesperava da solução, quando me acudiu que provavelmente Cícero fora dentista em alguma vida anterior. Não me digam que não havia então arte dentária; havia a China, e na China, — como observei aqui há tempos, — existe tudo, e o que não existe, é porque já existiu. Ou dentista, ou um daqueles mandarins que sabiam proteger as artes úteis, e deu nobre impulso à cirurgia da boca. Tudo se perde na noite dos tempos, meus amigos; mas a vantagem da ciência, — e particularmente da ciência espírita, — é clarear as trevas e achar as coisas perdidas. Um sabedor dessa escola vai dar em breve ao prelo um livro, em que se verão a tal respeito revelações extraordinárias. Há nele espíritos, que não só vieram ao mundo duas e três vezes, mas até com sexo diverso. Um tempo viveram homens, outro mulheres. Há mais! Um dos personagens veio uma vez e teve uma filha; quando tornou, veio o filho da filha. A filha, depois de nascer do pai, deu o pai à luz. Algum dia (creio eu) os espíritos nascerão gêmeos e já casados. Será a perfeição humana, espiritual e social. Cessará a aflição das famílias, que buscam aposentar as moças, e dos rapazes que procuram consortes. Virão os casais já prontos, dançando o minuete da geração... Haverá assim grande economia de espíritos, visto que os mesmos irão mudando de consortes, depois de um pequeno descanso no espaço. Nessa promiscuidade geral dos desencarnados, pode suceder que os casais se recomponham, e, após duas ou três existências com outros, Adão tornará a nascer com Eva, Fausto com Margarida, Filêmon com Báucis. Mas a perfeição das perfeições será quando os espíritos nascerem de si mesmos. Com alguns milhões deles se irá compondo

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este mundo, até que, pela decadência natural das coisas, baste um único espírito dentro da única e derradeira casa de saúde. Ó abismo dos abismos! In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1071-1073.

Observação: Há nova referência, irônica, ao fato de na China existir de tudo antes de qualquer outro lugar. O argumento era um dos mais comuns para justificar a vinda de chineses; uma maneira de mostrar que os chineses não eram tão "inferiores" como os africanos, por exemplo.

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[30] Crônica de 15 de julho de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Quando estas linhas aparecerem aos olhos dos leitores, é de crer que toda a população eleitoral do Rio de Janeiro caminhe para as urnas, a fim de eleger o presidente do Estado. Renhida é a luta. Como na Farsália, de Lucano, pela tradução de um finado sabedor de coisas latinas, Nos altos, frente a frente, os dois caudilhos, Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.

Não sei quem seja aqui César nem Pompeu. Contento-me em que não haja morte de homem, nem outra arma além da cédula. Se falo na batalha de hoje, não é que me proponha a cantá-la; eu, nestas campanhas, sou um simples Suetônio, curioso, anedótico, desapaixonado. Assim que, propondo aos meus concidadãos uma reforma eleitoral, não cedo a interesse político, nem falo em nome de nenhuma facção; obedeço a um nobre impulso que eles mesmos reconhecerão, se me fizerem o favor de ler até ao fim. Ninguém ignora que nas batalhas como a de hoje costuma roncar o pau. Esta arma, força é dizê-lo, anda um tanto desusada, mas é tão útil, tão sugestiva, que dificilmente será abolida neste final do século e nos primeiros anos do outro. Não é épica nem mística, está longe de competir com a lança de Aquiles, ou com a espada do arcanjo. Mas a arma é como o estilo, a melhor é que se adapta ao assunto. Que viria fazer a lança de Aquiles entre um capanga sem letras e um eleitor sem convicção? Menos, muito menos que o vulgar cacete. A pena, "o bico de pena", segundo a expressão clássica, traz vantagens relativas, não tira sangue de ninguém; não faz vítimas, faz atas, faz eleitos. O vencido perde o lugar, mas não perde as costelas. É preciso forte vocação política para preferir o contrário. O grande mal das eleições não é o pau, nem talvez a pena, é a abstenção, que dá resultados muita vez ridículos. Urge combatê-la. Cumpre que os eleitores elejam, que se movam, que saiam de suas casas para correr às urnas, que se interessem, finalmente, pelo exercício do direito que a lei lhes deu, ou lhes reconheceu. Não creio, porém, que baste a exortação. A exortação está gasta. A indiferença não se deixa persuadir com palavras nem raciocínios; é preciso estímulo. Creio que uma boa reforma eleitoral, em que esta consideração domine, produzirá efeito certo. Tenho uma idéia que reputo eficacíssima. Consiste em pouco. A imprensa tem feito reparos acerca do estado do nosso turfe, censurando abusos e pedindo reformas, que, segundo acabo de ler, vão ser iniciadas. Um cidadão, por nome M. Elias, dirigiu a este respeito uma carta ao Jornal do Comércio, concordando com os reparos, e dizendo: "Ora, a nossa população esportiva, constituída por dois terços da população municipal, pode assim continuar sujeita, como até agora, ao assalto de combinações escandalosas?" Foi este trecho da carta do Sr. Elias, que me deu a idéia da reforma eleitoral.

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A princípio não pude raciocinar. A certeza de que dois terços da nossa população é esportiva, deixou-me assombrado e estúpido. Voltando a mim, fiquei humilhado. Pois quê! dois terços da população é esportiva, e eu não sou esportivo! Mas que sou então neste mundo? Melancolicamente adverti que talvez me faltem as qualidades esportivas, ou não as tenha naquele grau eminente ou naquele extenso número em que elas se podem dizer suficientemente esportivas. A memória ajudou-me nesta investigação. Recordei-me que, há alguns anos, três ou quatro, fui convidado por um amigo a ir a uma corrida de cavalos. Não me sentia disposto, mas o amigo convidava de tão boa feição, o carro dele era tão elegante, os cavalos tão galhardos e briosos, que não resisti, e fui. Não tendo visto nunca uma corrida de cavalos, imaginei coisa mui diversa do que é, realmente, este nobre exercício. Fiquei espantado quando vi que as corridas duravam três ou quatro minutos, e os intervalos meia hora. Nos teatros, quando os intervalos se prolongam, os espectadores batem com os pés, uso que não vi no circo, e achei bom. Vi que, no fim de cada corrida, toda a gente ia espairecer fora dos seus lugares, e tornava a encher as galerias, apenas se comunicava a corrida seguinte. Uma destas ofereceu-me um episódio interessante. Ao saírem os cavalos, caiu o jóquei de um, ficando imóvel no chão, como morto. Cheio de um sentimento pouco esportivo, quis gritar que acudissem ao desgraçado; mas, vendo que ninguém se movia, cuidei que era uma espécie de partido que o jóquei dava aos adversários, não tardaria a levantar-se, correr, apanhar o cavalo, montá-lo e vencer. Dois verbos mais que César. De fato, o cavalo dele ia correndo, mas, pouco a pouco, vi que o animal, não se sentindo governado, afrouxava, até que de todo parou. Nisto entraram dois homens no circo, tomaram do jóquei imóvel, cujas pernas e braços caíam sem vida, e levaram o cadáver para fora. Não lhe rezei por alma, unicamente por não saber o nome da pessoa. Não veio no obituário, nem os jornais deram notícia do desastre. Perder assim a vida e a corrida, obscuro e desprezado, é por demais duro. Vindo à minha idéia, acho que a reforma eleitoral, para ser útil e fecunda, há de consistir em dar às eleições um aspecto acentuadamente esportivo. Em vez de esperar que o desejo de escolher representantes leve o eleitor às urnas, devemos suprir a ausência ou a frouxidão desse impulso pela atração das próprias urnas eleitorais. A lei deve ordenar que os candidatos sejam objeto de apostas, ou com os próprios nomes, ou (para ajudar a inércia dos espíritos) com outros nomes convencionais, um por pessoa, e curto. Não entro no modo prático da idéia; cabe ao legislador achá-lo e decretá-lo. A abstenção ficará vencida, e nascerá outro benefício da reforma. Este benefício será o aumento das naturalizações. Com efeito, se nos dois terços da população esportiva há naturalmente certo número de estrangeiros, não é de crer que essa parte despreze uma ocasião tão esportiva, pela única dificuldade de tirar carta de naturalização. A lei deve até facilitar a operação, ordenando que o simples talão da aposta sirva de título de nacionalidade. Se a idéia não der o que espero, recorramos então ao exemplo da Nova Zelândia, onde por uma lei recente as mulheres são eleitoras. Em virtude dessa lei, qualificaram-se cem mil mulheres, das quais logo na primeira eleição, há cerca de um mês, votaram noventa mil. Elevemos a mulher ao eleitorado; é mais discreta que o homem, mais zelosa, mais

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desinteressada. Em vez de a conservarmos nessa injusta minoridade, convidemo-la a colaborar com o homem na oficina da política. Que perigo pode vir daí? Que as mulheres, uma vez empossadas das urnas, conquistem as câmaras e elejam-se entre si, com exclusão dos homens? Melhor. Elas farão leis brandas e amáveis. As discussões serão pacíficas. Certos usos de mau gosto desaparecerão dos debates. Aquele, por exemplo, que consiste em dizer o orador que lhe faltam os precisos dotes de tribuna, ao que todos respondem: Não apoiado, havendo sempre uma voz que acrescenta: "É um dos ornamentos mais brilhantes desta câmara", esse uso, digo, não continuará, quando as câmaras se compuserem de mulheres. Qualquer delas que tivesse o mau gosto de começar o discurso alegando não poder competir em beleza e elegância com as suas colegas, ouviria apenas um silêncio respeitoso e aprovador. Os homens, que fariam os homens nesse dia? Deus meu, iriam completar o último terço que falta para que a população inteira fique esportiva. O contágio far-nos-ia a todos esportivos. Seria a vitória última e definitiva da esportividade. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1086-1088.

Observação: referência ao grande número de abstenções nas eleições. O cronista sugere que sejam feitas apostas nos candidatos, e afirma que isso ia inclusive aumentar o número de naturalizações, já que os estrangeiros iam querer participar das apostas e influenciar nos resultados, votando.

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[31] Crônica de 2 de setembro de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Acabo de ler que os condutores de bondes tiram anualmente para si, das passagens que recebem, mais de mil contos de réis. Só a Companhia do Jardim Botânico perdeu por essa via, no ano passado, trezentos e sessenta contos. Escrevo por extenso todas as quantias, não só por evitar enganos de impressão, fáceis de dar com algarismos, mas ainda para não assustar logo à primeira vista, se os números saírem certos. Pode acontecer também, que tais números, sendo grandes, gerem incredulidade, e nada mais duro que escrever para incrédulos. Parece que as companhias têm experimentado vários meios de fiscalizar a cobrança, sem claro efeito. Atribui-se ao finado Miller, gerente que foi da Companhia do Jardim Botânico, um dito mais gracioso que verdadeiro, assaz expressivo do ceticismo que distinguia aquele amável alemão. Dizia ele, se é verdade, que, pondo fiscais aos condutores, comiam condutores e fiscais, melhor era que só comessem condutores. Há nisso parcialidade. Ou o espiritismo é nada, ou Miller foi condutor de bonde em alguma existência anterior, e daí essa proteção exclusiva a uma classe. Não haveria bondes, mas havia homens. Miller terá sido condutor de homens, os quais, juntos em nação, formam um vasto bonde, ora atolado e parado, como a China, ora tirado por eletricidade, como o Japão. Mas eu não creio que Miller tenha dito semelhante coisa; há de ser invenção do cocheiro. Ninguém acusa o cocheiro de conivência na subtração dos mil e tantos coitos, sendo aliás certo que, no organismo político e parlamentar do bonde, ele é o presidente do conselho, o chefe do gabinete. O condutor é o rei constitucional, que reina e não governa, os passageiros são os contribuintes. Que o condutor não governa, vê-se a todo instante pela desatenção do cocheiro à campainha, que o manda parar. "Advirto Vossa Majestade, diz o cocheiro com o gesto, que a responsabilidade do governo é minha, e eu só obedeço à vontade do parlamento, cujas rédeas levo aqui seguras." Segundo toque de campainha recomenda ao chefe do gabinete que, nesse caso, peça às câmaras um voto de aprovação. "Perfeitamente", responde o cocheiro, e requer o voto com duas fortes lambadas. O parlamento, cioso das suas prerrogativas, empaca; é justamente a ocasião que o passageiro ágil e sagaz aproveita para descer e entrar em casa. Não é preciso demonstrar que as sociedades anônimas, como as políticas, são outros tantos bondes, e se Miller não foi condutor de algumas destas, é que o foi de algumas daquelas. Mas deixemos suposições gratuitas. Ninguém jura ter ouvido ao próprio Miller as palavras que à lenda lhe atribui. Que ficam elas valendo? Valem o que valem outras tantas palavras históricas. Não percamos tempo com ficções. Vamos antes a duas espécies de subtração, que devem ser contadas na soma total — uma contra as companhias, outra contra os passageiros. A primeira é rara, mas existe, como as anomalias do organismo. Tem-se visto algum passageiro tirar modestamente do bolso o níquel da passagem, — ou não tirá-lo (há duas escolas) — e ir olhando cheio de melancolia pelas casas que lhe ficam à direita ou à esquerda, segundo a ponta do banco em

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que está. Os olhos derramam idéias tristes. Se o condutor, distraído ou atrapalhado na cobrança, não convida o passageiro a idéias chistosas, dá-se este por pago, e o níquel torna surdamente para a algibeira de onde saiu, ou, se não saiu, lá fica. A segunda espécie de subtração é também rara, e ainda mais prejudicial ao passageiro que espere o troco da nota que este lhe deu. Às vezes nem é preciso pedir, faz um gesto ou não faz nada: subentende-se que toda nota tem troco. O passageiro prossegue na leitura ou na conversação interrompida, se não vai simplesmente pensando na instabilidade das coisa desta vida. Acontece que chega à casa ou à esquina da rua em que mora, e manda parar o bonde. Igualmente sensível ao aspecto melancólico das habitações humanas, o condutor toca maquinalmente a campainha, e o homem desce, louvando ainda uma vez esta condução tão barata, que lhe permite ir por um tostão do Largo de São Francisco ao Campo de São Cristóvão. Este segundo caso é de consciência. Com efeito, se o condutor não deu troco ao passageiro, há de entregar a nota à companhia? Não; seria fazer com que cobrasse dez vezes a mesma passagem. Há de trocar a nota para entregar só a passagem e ficar com o resto? Seria legitimar uma divisão criminosa. Há de anunciar a nota? Seria publicar a sua própria distração, e demais arriscar o emprego, coisa que um pai de família não deve fazer. A única solução é guardar tudo. Mas ainda, sem estes dois elementos, parece que a perda anual é grande, e algum remédio é necessário. A idéia de interessar os próprios passageiros, ligados por um laço de caridade, pode ser fecunda, e, em todo caso, é elevada. O único receio que tenho, é da pouca resistência nossa, por preguiça de ânimo ou outra coisa. O interesse é mais constante. José Rodrigues, a quem consultei sobre esta matéria, disse-me que isto de perder são os ônus do ofício; também a companhia de que ele tinha debêntures, perdeu-os todos. Mas lembrou-me um meio engenhoso e útil: incumbir os acionistas de vigiarem por seus próprios olhos a cobrança das passagens. Interessados em recolher todo o dinheiro, serão mais severos que ninguém, mais pontuais, não ficará vintém nem conto de réis da caixa. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1098-1100.

Observação: há comparação breve entre China e Japão, usando uma metáfora com bonde: "Miller terá sido condutor de homens, os quais, juntos em nação, formam um vasto bonde, ora atolado e parado, como a China, ora tirado por eletricidade, como o Japão." De fato, parece que a leitura errada da crônica de 18 de setembro de 1892 fez com que o cronista começasse a usar outras maneiras de criticar a China e, conseqüentemente, a possibilidade da vinda de imigrantes daquele país.

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[32] Crônica de 23 de setembro de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Os depoimentos desta semana complicaram de tal maneira o caso da bigamia Louzada, que é impossível destrinçá-lo, sem o auxílio de uma grande doutrina. Essa doutrina, eu, que algumas vezes me ri dela, venho proclamá-la bem alto, como a última e verdadeira. Com efeito, vimos que a primeira mulher do capitão é negada por ele, que afirma ser apenas sua cunhada. Outros, porém, dizem que a primeira mulher é esta mesma que aí está, e quem o diz é o vigário que os casou em 1870, e o padrinho, que assistiu à cerimônia. Mas eis aí surge a certidão de óbito e o número da sepultura da primeira esposa, que, de outra parte, são negadas, porque a pessoa morta não é a mesma e tinha nome diverso. Há assim uma pessoa enterrada e viva, mulher, cunhada e estranha, um enigma para cinco polícias juntas, quanto mais uma. Vinde, porém, ao espiritismo, e vereis tudo claro como água. Eu não cria no espiritismo até junho último, quando li na União Espírita que, há anos, um distinto jurisconsulto nosso, antigo deputado por Mato Grosso, consentiu em assistir a uma experiência. Foi invocado o espírito da sogra do deputado e respondeu o Marquês de Abaeté: "Meu amigo; o espiritismo é uma verdade. Abaeté". Caíram-me as cataratas dos olhos. Certamente o caso não era novo; mais de uma resposta destas aparecem, que eu sempre atribuí à simulação. A circunstância, porém, da assinatura é que me clareou a alma, não só porque o marquês era homem verdadeiro, mas ainda porque o espírito assinara, não o seu nome de batismo mas o título mobiliário. Se houvesse charlatanismo, teria saído o nome de Antônio, para fazer crer que os espíritos desencarnados deixam neste mundo todas as distinções. A assinatura do título prova a autenticidade da resposta e a verdade da doutrina. Sendo a doutrina verdadeira, está explicada a confusão da esposa, da cunhada e da senhora estranha, que se dá no processo do capitão, porquanto os doutores da escola ensinam que os espíritos renascem muita vez mortos, isto é, os filhos encarnam-se nos pais, nas mães e não é raro um menino voltar a este mundo filho de um primo. Daí essa complicação de pessoas, que a polícia não deslindará nunca, sem o auxílio desta grande doutrina moderna e eterna. Converta-se a polícia. Não há desdouro em abraçar a verdade, ainda que outros a contestem; todas as grandes verdades acham grandes incrédulos. A resposta do marquês prova que os homens, de envolta com a carne, que é matéria, não deixam o título, que é uma forma particular de espírito. Quando o Japão começou a ter espírito, não adotou só o regime parlamentar, nacionalizou também os condes, e lá tem, entre outros, o seu Conde Ito, que dizem ser estadista eminente. A China, invejosa e preguiçosa, ergueu a custo as pálpebras e murmurou como no nosso antigo Alcazar da Rua Uruguaiana: Vous avez de l'esprit? Nous aussi. E criou um marquês, o Marquês Tcheng, mas não foi adiante.

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Quanto a mim, não só creio no espiritismo, mas desenvolvo a doutrina. Desconfiai de doutrinas que nascem à maneira de Minerva, completas e armadas. Confiai nas que crescem com o tempo. Sim, vou além dos meus doutores; creio firmemente que um espírito de homem pode reencarnar-se em um animal. Em Mogi-Mirim, Estado de São Paulo, acaba de enlouquecer um burro. Assim o conta a Ordem por estas palavras: "Segunda-feira passada, um burro do Dr. Santo di Prospero enlouqueceu repentinamente". E refere os destroços que o animal fez até achar a morte. Ora, esta loucura do burro mostra claramente que o infeliz perdeu a razão. Que espírito estaria encarnado nesse pobre animal, amigo do homem, seu companheiro, e muita vez seu substituto? Talvez um gênio. A prova é que o perdeu. Com quatro pés, não pode entrar onde nós entramos com dois. Quanta vez teria ele dito consigo: — Não fosse a minha ilusão em reencarnar-me nesta besta, e estaria agora entre pessoas honradas e ilustradas, falando em vez de zurrar, colhendo palmas, em vez de pancadaria. É bem feito; a minha idéia de incorporar o burro na sociedade humana, se era generosa, não era prática, porque o homem nunca perderá o preconceito dos seus dois pés. Outro ponto que me parece deve ser examinado e adicionado à nossa grande doutrina, é a volta dos espíritos, encarnados (se assim posso dizer) em simples obras humanas, veículo ou outro objeto. Penso, entretanto, que a gradação necessária a todas as coisas exige para esta nova encarnação que o espírito haja primeiro tornado em algum bruto. Assim é que um espírito, desde que tenha sido reencarnado na tartaruga, logo que se desencarne, pode voltar novamente encarnado no bonde elétrico. Não dou isto como dogma, mas é doutrina assaz provável. Já não digo o mesmo da idéia (se a há) de que um serviço pode ser reencarnado em outro. Serviço é propriamente o efeito da atividade e do esforço humano em uma dada aplicação. Tirai-lhe essa condição, e não há serviço. É um resultado, nada mais. Pode não prestar, ser descurado, não valer dois caracóis, ou ao contrário pode não ser excelente e perfeito, mas é sempre um resultado. Quem disser, por exemplo, que o serviço da antiga Companhia de bondes do Jardim Botânico está reencarnado no novo, provará com isto que de certo tempo a esta parte só tem andado de carro, mas andar de carro não é condição para ser espírita. Ao contrário, a nossa doutrina prefere os humildes aos orgulhosos. Quer a fé e a ciência, não cocheiros embonecados, nem cavalos briosos. Voltando à bigamia do capitão, digo novamente à polícia que estude o espiritismo e achará pé nessa confusão de senhoras. Sem ele, nada há claro nem sólido, tudo é precário, escuro e anárquico. Se vos disserem que é vezo de todas as doutrinas deste mundo daremse por salvadoras e definitivas, acreditai e afirmai que sim, excetuando sempre a nossa, que é a única definitiva e verdadeira. Amém. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1106-1108.

Observação: nova comparação entre China e Japão, numa crítica evidente à primeira. A referência é curta, e diz respeito a uma tentativa incipiente de imitação por parte da China, que havia "criado" um marquês – Tcheng –, já que o Japão tinha o conde Ito. Novamente aparece a comparação entre o Japão ocidentalizado, com parlamento e aristocracia "à européia", e a China rudimentar, atrasada.

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[33] Crônica de 14 de outubro de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Um cabograma... Por que não adotaremos esta palavra? A rigor não preciso dela; para transmitir as poucas notícias que tenho, basta-me o velho telegrama. Mas as necessidades gerais crescem, e a alteração da coisa traz naturalmente a alteração do nome. Vede o homem que vai na frente do bonde elétrico. Tendo a seu cargo o motor, deixou de ser cocheiro, como os que regem bestas, e chamamos-lhe motorneiro em vez de motoreiro, por uma razão de eufonia. Há quem diga que o próprio nome de cocheiro não cabe aos outros, mas é ir longe demais, e em matéria de língua, quem quer tudo muito explicado, arrisca-se a não explicar nada. Custa muito passar adiante, sem dizer alguma coisa das últimas interrupções elétricas; mas se eu não falei da morte do mocinho grego, vendedor de balas, que o bonde elétrico mandou para o outro mundo, há duas semanas, não é justo que fale dos terríveis sustos de quinta-feira passada. O pobre moço grego se tivesse nascido antigamente, e entrasse nos jogos olímpicos, escapava ao desastre do largo do Machado. Dado que fosse um dia destruído pelos cavalos, como o jovem Hipólito, teria cantores célebres, em vez de expirar obscuramente no hospital, tão obscuramente que eu próprio, que lhe decorara o nome, já o esqueci. Mas, como ia dizendo, um cabograma ou telegrama, à escolha, deu-nos notícia de haver falecido o célebre humorista americano Holmes. Não é matéria para crônica. Se os mortos vão depressa, mais depressa vão os mortos de terras alongadas, e para a minha conversação dominical tanto importam célebres como obscuros. Holmes, entretanto, escreveu em um de seus livros, o Autocrata à mesa do almoço, este pensamento de natureza social e política: "O cavalo de corrida não é instituição republicana; o cavalo de trote é que o é." Tal é o seu bilhete de entrada na minha crônica. Aprofundemos este pensamento. Antes de tudo, notemos que ao nosso conselho municipal, por inexplicável coincidência, foi apresentado esta mesma semana um projeto de resolução, cujo texto, se fosse claro, poderia corresponder ao pensamento de Holmes; mas, conquanto aí se fale em corridas a cavalo, não estando estas palavras ligadas às outras por ordem natural e lógica, antes confusamente, não têm sentido certo, nada se podendo concluir com segurança. A verdade, porém, é que o conselho trata de combater por vários modos, não sei se sempre adequados, mas de coração, as múltiplas formas do jogo público. Um dos seus projetos, redigido em 1893, e revivido agora pelo próprio autor, vai tão longe neste particular que não se contenta de proibir a venda dos bilhetes de loteria nas ruas, chega a proibi-la expressamente. "É expressamente proibido vendê-los nas ruas e praças, etc." diz o artigo 2.º — Expressamente — não há por onde fugir. Indo ao pensamento de Holmes, descubro que a melhor maneira de penetrá-lo é tãosomente lê-lo. Que o leitor o leia; penetre bem o sentido daquelas palavras, não lhe sendo preciso mais que paciência e tempo; eu não tenho pressa, e aqui o espero, com a pena na

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mão. Talvez haja alguma exageração quando o ilustre americano compara o cavalo de corrida às mesas de roleta, — roulette tables; mas quando, assim considerado, o apropria a duas fases sociais, definidas por ele com grande agudeza, não parece que exagere muito. Em compensação, a pintura do cavalo de trote, puxando o ônibus, o carro do padeiro e outros veículos úteis, basta que seja tão útil como os veículos, para que a devamos ter ante os olhos, de preferência a outros emblemas. Não tenho pressa. Enquanto meditas e eu espero, Artur Napoleão conclui o hino que vai ser oferecido ao Estado do Espírito Santo por um dos seus filhos. Sobre isto ouvi duas opiniões contrárias. Uma dizia que não achava boa a oferta. — Não o digo por desfazer na obra, que não conheço, nem na intenção, que é filial, menos ainda no Estado, que a merece. Eu preferia mandar comprar um exemplar único da Constituição Federal, impresso em pergaminho, encadernado em couro ou em ouro. Ou então uma carta profética do Brasil, — o Brasil um século depois. Também podia ser um grande álbum em que os chefes de todos os Estados brasileiros escrevessem algumas palavras de solidariedade e concórdia, qualquer coisa que pudesse meter cada vez mais fundo na alma dos nossos patrícios do Espírito Santo o sentimento da unidade nacional. Um hino parece levar idéias de particularismo. — Discordo, respondeu a outra opinião, pela boca de um homem magro, que ia na ponta do banco, porque esta conversação era no bonde, ontem de manhã, em viagem para o Jardim Botânico. — Discorda? — Sim, não acho inconveniente o hino, e tanto melhor se cada Estado tiver o seu hino particular. As flores que compõem um ramiIhete, Sr. Demétrio, podem conservar as cores e formas próprias, uma vez que o ramilhete esteja bem unido e fortemente apertado. A grande unidade faz-se de pequenas unidades... A conversação foi andando assim, talhada em aforismos, enquanto eu descia do bonde, metia-me em outro e tornava atrás. Os animais, apesar de serem de trote, ignoravam este outro aforismo — time is money —, ou por não saberem inglês, ou por não saberem capim. Tinha chuviscado, mas o chuvisco cessou, ficando o ar sombrio e meio fresco. Apesar disso, ou por isso, trago uma dor de cabeça enfadonha que me obriga a parar aqui. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1110-1112.

Observação: há uma referência muito breve na crônica a um rapaz grego, vendedor de balas, que havia sido atropelado e morto por um bonde. O cronista não perde a oportunidade para remeter à antiguidade helênica, procedimento constante nas crônicas. O poucos imigrantes gregos eram poucos e, em geral, bem pobres, mas devido à sua nacionalidade, parece que Machado nunca deixa escapar de sua crônica os poucos de que ouve falar.

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[34] Crônica de 28 de outubro de 1894 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

O momento é japonês. Vede o contraste daquele povo que, enquanto acorda o mundo com o anúncio de uma nova potência militar e política, manda um comissário ver as terras de São Paulo, para cá estabelecer alguns dos seus braços de paz. Esse comissário, que se chama Sho Nemotre, escreveu uma carta ao Correio Paulistano dizendo as impressões que leva daquela parte do Brasil. Levo, da minha visita ao Estado de S. Paulo, as impressões mais favoráveis, e não vacilo em afirmar que acho esta região uma das mais belas e ricas do mundo. Pela minha visita posso afiançar que o Brasil e o Japão farão feliz amizade, a emigração será em breve encetada e o comércio será reciprocamente grande.

Ao mesmo tempo, o Sr. Dr. Lacerda Werneck, um dos nossos lavradores esclarecidos e competentes, acaba de publicar um artigo comemorando os esforços empregados para a próxima vinda de trabalhadores japoneses. "É do Japão (diz ele) que nos há de vir a restauração da nossa lavoura." S. Ex. fala com entusiasmo daquela nação civilizada e próspera, e das suas recentes vitórias sobre a China. Não esqueçamos a circunstância de vir do Japão o novo ministro italiano, segundo li na Notícia de quinta-feira, fato que, se é intencional, mostra da parte do rei Humberto a intenção de ser agradável ao nosso país, e, se é casual, prova o que eu dizia a princípio, e repito, que o momento é japonês. Também eu creio nas excelências japonesas, e daria todos os tratados de Tien-Tsin por um só de locohama. Não sou nenhuma alma ingrata que negue ao chim os seus poucos méritos; confesso-os, e chego a aplaudir alguns. O maior deles é o chá, merecimento grande, que vale ainda mais que a filosofia e a porcelana. E o maior valor da porcelana, para mim, é justamente servir de veículo ao chá. O chá é o único parceiro digno do café. Temos tentado fazer com que o primeiro venha plantar o segundo, e ainda me lembra a primeira entrada de chins, vestidos de azul, que deram para vender pescado, com uma vara ao ombro e dois cestos pendentes, — o mesmo aparelho dos atuais peixeiros italianos. Agora mesmo há fazendas que adotaram o chim, e, não há muitas semanas, vi aqui uns três que pareciam alegres, — por boca do intérprete, é verdade, e das traduções faladas se pode dizer o mesmo que das escritas, que as há lindas e pérfidas. De resto, que nos importa a alegria ou a tristeza dos chins? A tristeza é natural que a tenham agora, se acaso o intérprete lhes lê os jornais; mas é provável que não os leia. Melhor é que ignorem e trabalhem. Antes plantar café no Brasil que "plantar figueira" na Coréia, perseguidos pelo marechal Yamagata. Já este nome é célebre! Já o almirante Ito é famoso! Do primeiro disse a Gazeta que é o Moltke do Japão. Um e outro vão dando galhardamente o recado que a consciência nacional lhes encomendou para fins históricos.

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Aqui, há anos, o mundo inventou uma coisa chamada japonismo. Nem foi precisamente o mundo, mas os irmãos de Goncourt, que assim o declaram e eu acredito, não tendo razão para duvidar da afirmação. O Journal des Goncourt está cheio de japonismo. Uma página de 31 de março de 1875 fala do "grande movimento japonês", e acrescenta, por mão de Edmundo: Ç'a été tout d'abord quelques originaux, comme mon frère et moi... Esse "grande movimento japonês" não era o que parece à primeira vista; reduzia-se a colecionar objetos do Japão, sedas, armas, vasos, figurinhas, brinquedos. Espalhou-se o japonismo. Nós o tivemos e o temos. Esta mesma semana fez-se um grande leilão na rua do Senador Vergueiro, em que houve larga cópia de sedas e móveis japoneses, dizem-me que bonitos. Muitos os possuem e de gosto. Chegamos (aqui ao menos) a uma coisa, que não sei se defina bem chamando-lhe a banalidade do raro. Mas, enquanto os irmãos de Goncourt inventaram o japonismo, que faria o Japão, propriamente dito? Inventava-se a si mesmo. Forjava a espada que um dia viria pôr na balança dos destinos da Ásia. Enquanto uns coligiam as suas galantarias, ele armava as couraças e forças modernas e os aparelhos liberais. Mudava a forma de governo e apurava os costumes, decretava uma constituição, duas câmaras, um ministério como outras nações cultas vieram fazendo desde a Revolução Francesa, cuja alma era mais ou menos introduzida em corpos de feição britânica. Vimos agora mesmo que o Micado, abertas as câmaras, proferia a fala do trono, e ouvia delas uma resposta, à maneira dos comuns de Inglaterra, mas uma resposta de todos os diabos, mais para o resto do mundo que para o próprio governo. Este acaba de recusar intervenções da Europa, nega armistícios, não quer padrinhos nem médicos naquele duelo, e parece que há de acabar por dizer e fazer coisas mais duras. São dois inimigos velhos; mas não basta que o ódio seja velho, é de mister que seja fecundo, capaz e superior. Ora, é tal o desprezo que os japoneses têm aos chins, que a vitória deles não pode oferecer dúvida alguma. Os chins não acabarão logo, nem tão cedo, — não se desfazem tantos milhões de haveres como se despacha um prato de arroz com dois pauzinhos, — mas, ainda que se fossem embora logo e de vez, como o chá não é só dos chins, eu continuaria a tomar a minha chávena, como um simples russo, e as coisas ficariam no mesmo lugar. O momento é japonês. Que esses braços venham lavrar a terra, e plantar, não só o café, mas também o chá, se quiserem. Se forem muitos e trouxerem os seus jornais, livros e revistas de clubes, e até as suas moças, alguma necessidade haverá de aprender a língua deles. O padre Lucena escreveu, há três séculos, que é língua superior à latina, e tal opinião, em boca de padre, vale por vinte academias. Tenho pena de não estar em idade de a aprender também. Estudaria com o próprio comissário Sho Nemotre, que esteve agora em S. Paulo; ensinar-lhe-ia a nossa língua, e chegaríamos à convicção de que o almirante Ito é descendente de uma família de Itu, e que os japoneses foram os primeiros povoadores do Brasil, tanto que aqui deixaram a japona. Ruim trocadilho; mas o melhor escrito deve parecer-se com a vida, e a vida é, muitas vezes, um trocadilho ordinário.

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In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1114-1116.

Observação: esta crônica parece importante. Trata da possibilidade da vinda de japoneses, que o cronista vê com otimismo que não parece irônico. Novamente se refere aos imigrantes chineses que teria visto no Rio de Janeiro. Parece que o autor vê nos japoneses uma maneira de mostrar que a questão racial era irrelevante, já que "racialmente" estes são muito próximos dos chineses.

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[35] Crônica de 21 de abril de 1895 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Estão feitas as pazes da China e do Japão. Há muitos anos apareceu aqui uma companhia de acrobatas japoneses. Eram artistas perfeitos, davam novidades, tinham idéias próprias. O efeito foi grande; representaram não sei se no teatro de S. Pedro, onde agora representam, fora de portas, uns engraxadores italianos, se no antigo Provisório, cuja história não conto, por muito sabida, mas que devia ser ensinada nas escolas para exemplo do que pode a vontade. Lembro só que se chamava Provisório, e foi construído em cinco meses para substituir o teatro de S. Pedro, que ardera. Já isto é bastante: mas, se nos lembrarmos também que o Provisório foi tal que ficou permanente, e passou a Grande Ópera, teremos visto que a vontade é a grande alavanca... O resto acha-se nos discursos de inauguração. Também se pode achar em verso, em algum hino ao progresso, pouco mais ou menos assim: Bate, corta, desfaz, quebra, arranca Essas pedras que estão pelo chão; A vontade é a grande alavanca, Etc., etc.

Sabe-se o resto; é não perder de vista a alavanca da vontade e ir por diante derrubando pedreiras, morros, casas velhas, compondo estradas, muros, jardins, muita porta franca, muita parede branca. A vontade é a grande alavanca. Também se pode fazer o hino sem sentido; é mais difícil, mas uma vez que se lhe conserve a rima, tem vida, tem graça, ainda que lhe falte metro. Afinal, que é metro? Uma convenção. O sentido é outra convenção. Bem; onde estávamos nós? Ah! nos japoneses. Eram exímios; a opinião geral é que eles não prestariam para mais nada, mas que, em subir por uma escada de uma maneira torta, e fazer outras dificuldades, ninguém os desbancava. Deixaram saudades. Grandes artistas tivemos de outras nações, Miss Kate Ormond, os irmãos Lees... Onde vão eles? Talvez ela tenha fundado alguma seita religiosa no Alabama; eles, se não dirigem alguma companhia de vapores transatlânticos, é que dirigem outra coisa... Tudo mudado, tudo passado. Os japoneses, não me canso de o dizer, eram exímios. Meti-me, logo que eles se foram embora, a estudar o Japão, de longe e nos livros. O país tinha adotado recentemente o governo parlamentar, o ministério responsável, a fala do trono, a resposta, a interpelação, a moção de confiança e de desconfiança, os orçamentos ordinários, extraordinários e suplementares. Parte da Europa achava bom, parte ria; uma folha francesa de caricaturas deu um quadro representando a saída dos ministros do gabinete imperial com as pastas debaixo do braço. Que chapéus! que casacos! que sapatos! O Japão deixava rir e ia andando, ia estudando, ia-pensando. Tinha uma idéia. Os povos são como os homens; quando têm uma idéia, deixam rir e vão andando. Parece que a idéia do Japão era não continuar a ser unicamente um país de curiosos ou de estudiosos,

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de Loti e outros navegadores. Queria ser alguma coisa mais alta, coisa que até certo ponto mudasse a face da terra. Não me digam que a idéia era ambiciosa. Sei que sim; a questão é se a frase é ambiciosa também, e aqui é que eu vacilo, não por falta de convicção, mas de papel e de tempo. A demonstração seria longa. Contentem-se em crer, e vão seguindo, meio desconfiados, se querem. Concordo que, depois dos boatos montevideanos e riograndenses, sobre revoluções, separações e saques, há lugar para duvidar um pouco das vitórias japonesas. Eu creio no Japão. Na tragédia conjugal que houve há dias na rua do Matoso, até aí acho o meu ilustre e valente Japão. Não é só porque tais peças têm lá o mesmo desfecho, mas pelo estilo dos depoimentos das testemunhas do caso. Segundo um velho frade que narrou as viagens de S. Francisco Xavier por aquelas terras, há ali diversos vocabulários para uso das pessoas que falam, a quem falam, de que falam, que idade têm quando falam e quantos anos têm aquelas a quem falam, não sabendo unicamente se há diferença de varões ou damas: o Padre Lucena é muito conciso neste capítulo. Pois os depoimentos das testemunhas de cá usaram, quando muito, dois vocabulários, sendo um deles inteiramente contrário ao de Sófocles. Pão pão, queijo queijo. É claro que a justiça, sendo cega, não vê se é vista, e então não cora. Viva o japonismo! Dizem telegramas que a idéia secreta do Japão é japonizar a China. Acho bom, mas se é só japonizar a crosta, não era preciso fazer-lhe guerra. Não faltam aqui salas, nem gabinetes, nem adornos japônicos. Os irmãos Goncourts gabam-se de terem sido na Europa os inventores do japonismo. Um bom leiloeiro, quando apregoa um vaso sem feições vulgares, chama-lhe japonês, e vende-o mais caro. Viva o japonismo! Quanto a mim, as pazes com a China estão feitas, e, por mais que as condições irritem a Europa, como há agora mais uma grande potência no mundo, é preciso contar com a vontade desta, e eu continuarei a ler com simpatia, mas sem fé, a propaganda do Sr. Dr. Nilo Peçanha a favor do arbitramento entre as nações. Para deslindar questões, creio que o arbitramento vale mais que uma campanha; mas para fazer andar as coisas do mundo e do século, fio mais de Yamagata e seus congêneres. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1165-1167.

Observação: há nova referência ao Japão. O cronista reconhece no país uma nova potência mundial e parece ver isso com bons olhos. Há também pequena referência a engraxates italianos.

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[36] Crônica de 9 de junho de 1895 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Não estudei com Pangloss; não creio que tudo vá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. Por isso, quando acho que censurar na nossa terra, digo com os meus botões: Há de haver males nas terras alheias, olhemos para a França, para a Itália, para a Rússia, para a Inglaterra, e acharemos defeitos iguais, e alguma vez maiores. Não costumo dizer: "Olhemos para o Japão", porque é o único país onde parece que tudo se aproxima do otimismo de Pangloss. Vede este pedacinho da proclamação do micado ao povo, depois de vencida a China. "Regozijemo-nos pelas nossas recentes vitórias, mas é ainda longo o caminho da civilização que temos de percorrer... Não nos deixemos guiar por sentimentos de amor-próprio excessivo, caminhemos modesta e esforçadamente para a perfeição das nossas defesas militares, sem cair no extremo... O governo opor-se-á a todos quantos, desvanecidos pelas nossas recentes vitórias, buscarem ofender as potências amigas do Japão, e principalmente a China..." Que diferença entre esta e as proclamações dos outros grandes Estados! Em verdade, essa linguagem prova que o Japão é alguém; mas, ainda assim, impossível que lá não haja tratantes. Notemos uma coisa: nós não lemos os jornais da oposição de Tóquio. A que propósito isto? A propósito da eleição da Bahia. Li que na apuração dos votos apareceram agora centenas de eleitores inventados, contando várias paróquias três e quatro vezes mais do que tinham há um ano. O espanto e a indignação que este fato causou a algumas pessoas, foram grandes, mas a falta de memória dos nossos concidadãos não é menor. Quem pode ignorar que essa multiplicação de eleitores não é coisa nova, nem baiana? Sabe-se muito bem que a urna é um útero. Peço licença para recordar uma frase, não delicada, não cortês, mas vigorosa, que antigamente se aplicava aos casos em que era preciso aumentar as cédulas; dizia-se: emprenhar a urna. Que admira, com tal força de natalidade, que os eleitores cresçam e apareçam? É um mal, concordo; mas não haverá males análogos em outras terras? Olhemos para a Itália. As urnas italianas não são fecundas; aí vai, porém, um extraordinário fenômeno eleitoral. Sabemos telegraficamente o resultado total da eleição da câmara. Há uns tantos deputados governistas, uns tantos radicais, uns tantos socialistas, finalmente um pequeno número de indecisos. Leitor, imita o meu gesto, deixa cair o queixo. Certamente a indecisão é um estado ou uma qualidade do espírito, mas o que me abalou estes pobres nervos cansados, foi imaginar a intenção dos eleitores que os mandaram para a câmara. Compreendo que os eleitores governistas perguntassem aos candidatos se eram pelo governo, e votassem neles, e assim os outros seus colegas. Não acabo de crer que inquirissem de alguns candidatos o que eram, e, ouvindo-lhes que ainda não estavam certos disso, corressem a elegê-los deputados. Uma só coisa pode explicar o fenômeno, a indecisão dos próprios eleitores; daí a escolha de pessoas não mais decididas que eles. Pode ser; mas semelhante mal parece-me ainda maior que a simples fecundação das urnas

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ou a multiplicação dos algarismos. Onde não há opiniões, é útil inventá-las; mas não as ter e mandar para a câmara pessoas igualmente pobres, nem é útil, nem legítimo. Vejamos. Qual será a situação de tais deputados, quando começarem os seus trabalhos? A indecisão, antes de fazer mal ao país, faz mal ao próprio indivíduo que a tem consigo. Como falar? Como votar? Podem falar contra e votar a favor, e vice-versa, mas isso mesmo é sair da indecisão. Já não serão indecisos, serão inconsistentes. Hamlet, indeciso entre o ser e o não-ser, tem o único recurso de sair de cena; os deputados podem fazer a mesma coisa. Saiam do recinto, quando se votar. Enquanto se discutir, não falem, não dêem apartes, leiam uma página de Dante, posto que a leitura seja amarga, uma vez que o poeta põe justamente os indecisos logo no princípio do inferno, almas que não deixaram memória de si e são desprezadas tanto pela misericórdia como pela justiça: Fama di loro il mondo esser non lassa; Misericórdia e giustizia li sdegna: Non ragioniam di lor, ma guarda e passa.

Melhor que tudo, porém, será imitar aquele personagem de uma velha comédia, que atravessa cinco atos sem saber com qual de duas moças há de casar, e acaba escolhendo uma delas, mas dizendo à parte (o que o deputado pode fazer em voz alta para que os eleitores ouçam): "Creio que teria feito melhor casando com a outra." Assim se podem fundir a indecisão e o voto. Dei um exemplo de defeitos que achem análogos em outras terras, sem diminuí-los da grandeza, como nos não diminuem os nossos. Nem por isso deixamos de caminhar todos na estrada da civilização, uns mais acelerados, outros mais moderados. Não vamos crer que a civilização é só este desenvolvimento da história, esta perfeição do espírito e dos costumes. Nem por ser uma galera magnífica, deixa de ter os seus mariscos no fundo, que é preciso limpar de tempos a tempos, e assim se explicam as guerras e outros fenômenos. Um daqueles mariscos... Perdoem-me a comparação; é o mal de quem escreve com retóricas estafadas. O melhor estilo é o que narra as coisas com simpleza, sem atavios carregados e inúteis. Vá este e seja o último. Um daqueles mariscos da galera é a desconfiança mútua dos homens e a convicção que alguns têm da patifaria dos outros. A confiança nasceu com a terra; a inocência e a ingenuidade foram os primeiros lírios. No fim do século passado dormia-se no Rio de Janeiro com as janelas abertas. Mais tarde, a polícia já apalpava as pessoas que eram encontradas, horas mortas, a ver se traziam navalha ou gazua. Afinal, começamos a ajudar a polícia; vendo que outros povos usam do revólver, para defesa própria e natural, pegamos do costume, e a maior parte da gente traz agora o seu. Conquanto a necessidade seja triste, sai daí um melhoramento. Era costume nesta cidade, sempre que a polícia prendia alguém, entoar em volta do agente aquele belo coro da liberdade: Não pode! Não pode! Vai acabando o costume. Há dias, tendo um sujeito ferido ou matado a outro, foi perseguido pelo clamor público; como arrancasse a espada ao agente de polícia e usasse dela correndo, muitas pessoas correram atrás e a tiros de revólver conseguiram detê-lo e prendê-lo. O assassino ficou em sangue, verificando-se assim a

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sentença da Escritura: "Quem com ferro fere, perecerá pelo ferro." Este processo de capturar à distância impedirá a fuga dos malfeitores. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1179-1181.

Observação: nova referência ao Japão. Com um toque de ironia, o cronista observa que o otimismo japonês talvez pareça perfeito porque "nós não lemos os jornais da oposição de Tóquio." Mas, no geral, a visão que apresenta do país parece positiva. O cronista se preocupa em mostrar que todos os países têm seus defeitos, e o Japão – apesar do que parece – também deve ter os seus. Creio que há aqui uma retomada do "viva a galinha com sua pevide" de outra crônica, que reflete certo "patriotismo" machadiano.

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[37] Crônica de 10 de novembro de 1895 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Três pessoas estavam na loja Crashley, rua do Ouvidor, um moço, um mocinho e eu. Víamos, em gazeta inglesa, os retratos do duque de Marlborough e de Miss Consuelo Wanderbiltt, que vão casar. A noiva é riquíssima, o noivo nobilíssimo, vão unir os milhões aos brasões, e a Europa à América; não é preciso lembrar que a jovem Wanderbiltt é filha do famoso ricaço americano. Um de nós três, o moço, declarou francamente que não acreditava nos milhões da donzela. A quantia maior em que acredita é um conto de réis; não descrê de dois, acha-os possíveis; dez parecem-lhe invenção de cérebro escaldado. O mocinho já creu em vinte e sete contos, mas perdeu essa fé ingênua e pura. Eu, por amor do ocultismo, creio em tudo que escapa aos olhos e aos dedos. Sim, creio nos oitenta mil contos da linda Wanderbiltt, assim como creio nos séculos de nobreza de Marlborough. Uma revista célebre (vá por conta de Stendhal) opinou no princípio deste século que "há só um título de nobreza, é o de duque; marquês é ridículo; ao nome de duque todos voltam a cabeça". Se é assim, o noivo inglês paga bem o dote da noiva americana, paga de sobra. As ricas herdeiras americanas amam os nobres herdeiros europeus; não há um ano que um duque francês desposou uma rica patrícia de miss Consuelo. Deste modo, sem bulha nem matinada, unem a democracia à aristocracia e fazem nascer os futuros duques do próprio seio que os aboliu. A nobreza européia está assim enxertada de muito galho transatlântico. Naturalmente a observação é velha, não peço alvíssaras. Peço alvíssaras por esta outra que fiz no dia seguinte àquele em que estivemos na loja Crashley, na rua do Ouvidor. Lendo uma correspondência de Breslau, acerca do congresso socialista, dei com a notícia de fazer parte da assembléia, entre outras senhoras, uma de quarenta anos, que, aos vinte e cinco, em 1880, renunciou o título de duquesa para se fazer pastora de cabras. É nada menos que filha do duque de Wurtemberg e da princesa Matilde de Schamburg de Lippe. O governo vurtemberguês, para que ela não ficasse só com o nome de Paulina, deu-lhe o de Kirbach (von Kirbach). A minha observação consiste no contraste das duas moças, uma que nasce duquesa e bota fora o título, outra que nasce sem título e faz-se duquesa. Pastora de cabras, pastora de dólares. Que querias tu ser, carioca do meu coração? A poesia pede cabras, a realidade exige dólares; funde as duas espécies, multiplica os dólares pelas cabras, e não mandes embora o primeiro duque que te aparecer. Vai com ele à igreja da Glória, agora que deu à sua triste torre uma cor de rosa ainda mais triste, casa, embarca, vai a Breslau, não digo para fazer parte do congresso socialista; há muita outra coisa que ver em Breslau, duquesa. Os japoneses, com quem acabamos de celebrar um tratado de comércio, não leram decerto a Revista de Edimburgo; se a tivessem lido, teriam decretado os seus duques; por ora estão nos condes e marqueses. Verdade é que um cronista lusitano do século XVI diz que eles tinham por esse tempo títulos vários e diferentes — "como cá os duques, marqueses e condes". Questão de tradução, mas justamente o que me falta é a notícia dos

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vocábulos originais e seus correspondentes. Entretanto, não é fora de propósito que eles, assim como aperfeiçoaram a pólvora dos chins e deram-lhes agora com ela, assim também aperfeiçoem as herdeiras ricas, e ninguém sabe se algum bisneto de Marlborough chegará a desposar alguma Wanderbiltt de Tóquio. Que as moças daquelas terras, como os homens, assimilam facilmente os costumes peregrinos, é fato velho e revelho. Não há muitos dias, estávamos à porta do Laemmert dois dos três da loja Crashley... Não digo os nomes dos outros, por não lhes ter pedido licença, mas eles que o confirmem aos seus amigos, e os amigos destes aos seus, e assim se farão públicos. Estávamos à porta do Laemmert, quando vimos sair duas parisienses; minto: duas japonesas. Realmente, salvo o tipo, eram duas parisienses puras. Se vísseis a graça com que deram o braço aos cavalheiros que iam com elas, as botinas que calçavam, os tacões das botinas, o pisar leve e rápido... Os tacões diziam claramente que não carregavam o peso da Ásia, que as duas moças eram como aquelas borboletas de papel que os seus avós faziam avoaçar no teatro, com o simples movimento do leque. E foram-se, e perderam-se rua acima. Vamos tê-las agora às dúzias, se o tratado, que o Sr. Piza negociou, admitir que venham mulheres e uma pequena porcentagem de moças da cidade. Mas ainda que venham só as rústicas, é gente que, com pouco, fica cidadã. Vamos tê-las modistas, estudantes, professoras. Nas escolas não se limitarão a ensinar português, ensinarão também o seu idioma natal, e, graças à facilidade que temos em aprender e ao amor das belezas estranhas, acabaremos por escrever na língua do micado. Há quem jure que algumas pessoas não falam em outra; mas é opinião sem grande fundamento. É certo que, no meio da linguagem oratória, aparecem locuções, frases, alguma sintaxe estranha, mas, além de se não poder afirmar que sejam todas do Japão, sucede que muitas são claramente do Café Riche, — e, por serem de café, têm a desculpa nacional. Venham os professores, e digam-nos a história e os costumes do parlamento de Tóquio, a fim de que possamos explicar como é que um sistema que entrou tão bem no Japão está prestes a dar com o presidente do Chile em terra. Não chego a entender as dificuldades deste presidente. Que, durante alguns dias, os chefes de gabinete possíveis não mostrem grande vontade de subir ao leme do Estado, vá; não é natural, mas, um pouco de artifício dá graça à alma humana, e particularmente à alma política. Já lá vão semanas e semanas, e não há meio de alcançar um grupo de cinco a seis pessoas que governem a República. Não esqueçamos que o Chile fez uma revolução para restaurar o sistema parlamentar. Se há de acabar por não ter ministros, Montt deixa a presidência, para não fazer de Balmaceda... Não é claro. Claro é ainda o princípio da crônica, o caso do duque de Marlborough e da próxima duquesa; tão claro como o da princesa Colona, que é também filha de um banqueiro americano, casada há alguns anos. Rimei acima milhões com brasões; posso agora empregar a toante espanhola, e rimar capitães com capitais, mas podem acusar-me de trocadilho, e eu prefiro ficar calado a fazer um calembour — calembour sem g, meus bons amigos da revisão.

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In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1224-1226.

Observação: há referência positiva à possibilidade de imigração japonesa para o Brasil. Não parece haver ironia no modo como o cronista elogia a imigração japonesa, como possibilidade de melhorar o país. O grande potencial de adaptação facilitaria a assimilação desses imigrantes.

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[38] Crônica de 27 de setembro de 1896 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias Não é preciso dizer que estamos na primavera; começou esta semana... Oh! bons tempos em que os da minha turma repetíamos aquilo do poeta: Primavera, gioventú dell'anno: gioventú, primavera della vita! Alguns iam ao ponto de repetir aquiloutro do lusitano: Ah! não me fujas! Assim nunca o breve tempo fuja da tua formosura! Vai tudo em linha de prosa, que é de prosa o meu tempo, não o teu, leitor de buço e vinte anos; donde resulta a mais trivial das verdades deste mundo, e provavelmente do outro, que o tempo é para cada um de nós o que cada um de nós é para ele. Nem todos terão aquele verdor nonagenário do visconde de Barbacena, que não sei se veio ao mundo no mesmo dia que Vítor Hugo, dois anos depois de começado o século, mas em todo caso já então Rome remplaçait Sparte. Quem o vê andar, falar, recordar tudo, examinar, discernir, entrar e sair de um trâmuei, como os rapazes seus netos, põe de lado estações e idades, e crê que, em suma, tudo isto se reduz a nascer ou não com grande força e conservá-la. Dizem as gentes européias que a primavera nas suas terras delas entra com muito maior efeito, quase de súbito, fazendo fugir o inverno diante de si. Entre nós, povo lido, a primavera entra pelos almanaques. Não há almanaque, não há folhinha, ainda as que servem só de mimo aos assinantes de jornais, que não traga a entrada da primavera no seu dia próprio, fixo e único. Já é alguma coisa; e quando a civilização chegar ao ponto de só dominar neste mundo o espírito do homem, mais valerá ter a primavera encadernada na estante que lá fora na campina, se é que ainda haverá campina. O natural é que os homens se vão estendendo, e as casas com eles, e as ruas e os teatros e as instituições, e todo o mais aparelho da vida social. A terra será pequena, a gente prolífica, a vida um salão, o mundo um gabinete de leitura. Não te aflijas se a estação das flores não entra aqui como por outras partes; aqui é eterna. A terra vale o que ainda agora nos disse de Pernambuco o Sr. Studebaker, um dos membros da comissão americana, que há pouco nos deixou. A carta desse cavalheiro é um documento que devia estar diante dos olhos de cada um de nós; não dirá nada novo, mas é um testemunho pessoal e americano. Diz ela que nós podemos produzir tudo quanto nasce da terra... mas temos entre nós homens perniciosos, tornando-se necessário que os íntegros se dediquem à causa do bem. Creio em ambas as coisas; mas toda a nossa dificuldade vem de não sabermos exatamente quais são os perniciosos nem quais são os íntegros. Vimos ainda agora em Sergipe que os perniciosos são dois, o padre Campos e o padre Dantas, e que os íntegros não são outros. De onde resulta uma anistia em favor do padre Campos. Também recomenda braços o nosso hóspede, braços e temor a Deus. O segundo é preocupação anglo-saxônia, que não entra fundo em almas latinas ou alatinadas. Quanto aos braços, era eu pequeno, e, apesar da vasta escravatura que havia, já se chorava por eles. Muitos tinham sido já chamados e fixados. Vieram depois mais e mais, até que vieram muitos e muitos. Os alemães enchiam o sul; os italianos estão chegando aos magotes, e se a última questão afrouxou um pouco a importação, não tarda que esta continue e a questão

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acabe. É o que se espera do ministro novo, Sr. De Martino. Que há já muito italiano, é verdade; mas esta raça é fácil de ser assimilada, e trabalha e prospera. Tive amigos que vinham dela, e tu também, e aí os há que não vêm de outra origem. Agora mesmo ouço cantar um pássaro, e, se me não engano, canta italiano. Também os há que cantam alemão; Lulu Júnior acha que a música desta segunda casta é melhor que a daquela. Eu creio que todos os pássaros são pássaros e todos os cantos são bonitos, contanto que não sejam feios. O que não quero é que se negue ao alemão o direito de ser cantado. A língua que ora ouço ao pássaro é, como digo, a italiana, e por pouco parece-me Carlos Gomes. Eis aí um que ligou bem os dois países, as duas histórias e já agora as duas saudades. Partiu ontem um vapor armado em guerra para conduzi-lo até cá. Viva o Pará! que rejeitou a idéia de o mandar em navio mercante, e pôs por condição que ou viria com todas as honras da Arte e da Morte, ou ficaria lá com ele. Não ficaria mal à beira do Amazonas o cantor do nosso Brasil, nem o Pará merece menos que qualquer outra parte; ao contrário, a terra que serviu de berço a Carlos Gomes não teve para ele mais carinhos que essa que lhe serviu de leito mortuário, e, em todo caso, teve-os na prosperidade. Dá-los à dor é maior. Estávamos... Creio que estávamos nos braços italianos, não os que amam e fazem amar, mas os que lavram a terra; foram eles que me trouxeram aqui, a propósito do industrial americano, que lá vai. Tem-se dito que há muita aglomeração italiana em S. Paulo, o mesmo que se havia dito em relação aos alemães nas colônias do Sul. Há destas onde a língua do país não é falada nem ensinada, nem sabida, ou mal sabida por alguns rudimentos escassos que os próprios mestres alemães dão aos seus meninos, a fim de que de todo em todo não ignorem o meio de pedir fogo a alguém ou bradar por socorro. A culpa não é deles, mas nossa; e, se tal sucede em S. Paulo, a culpa é de S. Paulo. Há tempos falou-se no mal das grandes aglomerações de uma só raça. Seja-me lícito citar um nome que os acontecimentos levaram, como levam outras coisas mais que nomes, o de Rodrigo Silva, que foi aqui ministro da agricultura. Este ministro tinha por muito recomendado aos encarregados da colonização que intervalassem as raças, não só umas com as outras, mas todas com a do país, a fim de impedir o predomínio exclusivo de nenhuma. Circulares que o vento leva; a política era boa e fácil e dava ganho a todos, aos de fora como aos de dentro. Mas as circulares são como as ilusões: verdejam algum tempo, amarelecem e caem logo; depois vêm outras... Deixemos, porém, essa matéria mais de artigo de fundo que de crônica, e tornemos ao céu azul, ao sol claro, à temperatura fresca. Não há desfalque pequeno nem grande que resista ao efeito da bela catadura da natureza. Que vale um desfalque ao pé da saúde, que é a vida integral, a perfeita contabilidade humana? Depois, a saúde sente-se igualmente, não há duas opiniões. sobre ela; o desfalque, sem negar que é alguma coisa que falta (geralmente dinheiro), não há dúvida que é idéia filha da civilização, e a civilização, como dizia um filósofo amador do meu tempo, é sinônimo de corrução. E há sempre duas opiniões sobre o desfalque, — a do desfalcado e a outra. Que haja falta de dinheiro em alguma parte é natural. Esta coisa que uns americanos querem deva ter por padrão tão-somente o ouro, outros a prata igualmente, ainda se não acostumou tanto aos homens que não se esconda deles algumas vezes, e não desapareça

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como as simples bolas nas mãos de um prestidigitador. Dinheiro por ser dinheiro não deixa de ter vergonha; o pudor comunica-se das mãos à moeda, e o gesto mais certo do pudor é fugir aos olhos estranhos, — ou, pelo menos, às mãos, como na ilha dos Amores. Daí os desfalques; fica só o algarismo escrito, a moeda esvai-se; tais as ninfas da ilha correm nuas: . . . . . . . . . . . . . . . . . . .aos olhos dando O que às mãos cobiçosas vão negando.

Não importa; os que teimarem hão de acabar como o cavaleiro do poeta, que afinal pôde deitar os braços a uma das ninfas esquivas. E depois, ainda que não se alcance nenhuma, a terra é fértil, a população grande, e a gente nova aí vem com os seus braços para trabalhar e colher, não menos que para amar e engendrar. Tudo aqui é calor de primavera; a América, bem considerada, é a primavera da história. Há uma diferença entre esta e a do norte, é que por ora não brigamos por ouro ou prata, Bryan ou MacKinley; o papel nos basta e sobra. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1320-1322.

Observação: esta crônica parece importante para o tema. Há referência aos italianos em geral e aos alemães no sul. Coloca o problema da necessidade de ensinar o português aos imigrantes e de intercalar as nacionalidades para que se evite a formação de comunidades à parte da sociedade brasileira.

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[39] Crônica de 18 de outubro de 1896 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

Não se diga que a febre amarela tem medo ao saneamento; mais depressa o saneamento terá medo à febre amarela. Em vez de o temer, pôs a ponta da orelha de fora esta semana, e se a tinha posto antes, não sei; eu não sou leitor assíduo de estatísticas. Não nego o que valem, as lições que dão, e a necessidade que há delas para conhecer a vida e a economia dos Estados; mas entre negar e adorar há um meio termo, que é a religião de muita gente. A ponta da orelha que eu vi, foi um caso único do dia 15, publicado ontem, 17. Não tem valor, comparado naturalmente a outras doenças; mas tal é a má fama daquela perversa, que um só óbito basta para assustar mais que um obituário inteiro de várias, enfermidades, ou até de uma só. O vulgo não reflete que, bem observadas as coisas, ela nunca saiu daqui; uns anos cochila e cabeceia, outros dorme a sono solto, e, se acorda, é para esfregar os olhos e tornar a dormir; há, porém, os anos de vigília pura, em que não faz mais que entrar pelas casas alheias e obrigar a gente a dançar uma valsa triste, muitas vezes a última. Desta vez pode ser, e é bom esperar que seja uma espécie de memento, para que as vítimas possíveis se acautelem do mal, indo vê-lo de longe. Também pode não passar disto, um caso em outubro, dois em novembro, três e quatro em outros meses, até acabar o verão. Querem, porém, alguns que, pouca ou muita, enquanto a tivermos em casa, não há relatórios que a matem. As mais hábeis comissões não lhe tiram a alma. Há quem lhe tenha ouvido dizer: — Podem citar para aí os autores que quiserem, combater ou apoiar as opiniões todas deste mundo e do outro; enquanto não passarem da biblioteca à rua e da palavra à ação, é o mesmo que se dormissem. Ora, a ação de entestar com o mal, atacá-lo e vencê-lo, por meio de um trabalho longo, constante, forte e sistemático, é tão comprida que faz doer o espírito antes de cansar o braço, e é preciso tê-los ambos de ferro. Se a agregada nossa confia nisso, é mister que perca a fé. Nada do que fica aí é novo; a febre é velha, velhas as lástimas, velhíssimos os esforços para destruir o mal, e têm a mesma idade os adiamentos de tais esforços. Quando aqui apareceu o cólera, há muitos anos, — não por ocasião do ministro Mamoré, que o mandou embora, — falo da primeira vez, o destroço foi terrível, e a doença teria feito a lei da abolição por um processo radical, se não fosse o judeu errante que é, que não pára nunca, e tão depressa entra como sai. A amarela é caseira, gosta de cômodos próprios e não exige que sejam limpos nem largos; a questão é que a deixem ficar. Uma vez que a deixem ficar, podem discuti-la, examiná-la, revirá-la, redigir relatórios sobre relatórios, oficiar, inquirir, citar; words, words, words, diz ela para também citar alguma coisa. E, não saindo de Hamlet: "Se o sol pode fazer nascer bichos em cachorro morto..." Não serão cães mortos que lhe faltem. Quanto ao lençol de água, vê-lo-emos feito um formidável lençol de papel. Papers, papers, papers.

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Os italianos não crêem no mal. Assim o dizem as estatísticas, em que eu, como acima confessei, piamente acredito sem as freqüentar muito. Portugueses e alemães vêm depois deles, muito abaixo, e ainda mais abaixo franceses, russos, belgas, ingleses e outros. Quem crê deveras na febre é o chim; no ano passado não entrou nenhum, dizem as estatísticas; mas por que notam elas esta ausência do chim, e não citam a do abexim? Eis aí um mistério, que não será o primeiro nem o último das estatísticas. Conquanto um artigo de folha genovesa diga que a colônia italiana acabará por absorver a nacionalidade brasileira, eu não dou fé a tais prognósticos; mas quando italianos nos absorvessem, seriam outros, não seriam já os mesmos. Há aí na praça um napolitano grave, influente, girando com capitais grossos, velho como os italianos velhos, que orçam todos pela dura velhice de Crispi e de Farani. Pois esse homem vi-o eu muita vez tocar realejo na rua, simples napolitano, recebendo no chapéu o que então se pagava, que era um reles vintém ou dois. Tinha eu sete para oito anos; façam a conta. Vão perguntar-lhe agora se quer ser outra coisa mais que brasileiro, se não da gema, ao menos da clara. A propósito de realejo napolitano, li que em uma das levas de Gênova para cá veio como agricultor um barítono. Ele, e um mestre de música, perguntando-se-lhes o que vinham fazer ao Brasil, parece que responderam ser este país grande e cá enriquecerem todos: "Por que não enriqueceremos nós?" concluíram. Não há que censurar. A voz pode levar tão longe como a manivela. Demais, a terra é de música, e a música é de todas as artes aquela que mais nos fala à alma nacional. Um barítono, com boa voz e arte castigada, pode muito bem enriquecer, — ou, pelo menos, viver à larga. Tanto ou mais ainda um tenor e um soprano. Nem só de café vive o homem, mas também da palavra de Verdi e de Carlos Gomes. Dado, porém, que vivamos só de café, e não devamos cuidar de mais nada que de cultivar esta preciosa gramínea, ainda assim o barítono pode muito bem ser aceito e colocado. A fábula reza de Orfeu, que levava os animais com a simples lira que os gregos lhe deram. Por que não há de fazer a voz humana a mesma coisa às plantas? A semente lançada à terra escutará as melodias e porá o grelo de fora; com elas crescerá o talo, bracejarão as flores e abotoarão os grãos, que mais tarde havemos de exportar e de beber também. Seja milagre, mas é natural que a terra de Carlos Gomes neste particular faça das honras últimas aqui dadas ao maestro de Campinas. Realmente, a milagres. O Rio de Janeiro recebeu os restos do nosso maestro com as honras merecidas. S. Paulo vai guardálo como um dos mais célebres de seus filhos. O Pará, que o viu morrer, aqui o mandou, depois das mais vivas provas de que a unidade nacional existe. Anteontem, fui ao arsenal de guerra ver sair o féretro do autor do Guarani e da Fosca, para ser conduzido à igreja de S. Francisco de Paula e ouvi a marcha fúnebre de Chopin que a banda militar tocava, não pude deixar de recordar os longos anos passados, quando o préstito era outro, e saía de outro lugar, — o teatro Provisório que lá vai — e descia pela rua da Constituição. Era de noite; o maestro tinha estreado, sem Itália nem Guarani, mas eram tais as esperanças dadas, e tão jovens e ardentes éramos todos os que por ali íamos aclamando a estrela nascente! A música era a dos nossos peitos, podeis adivinhar se fúnebre ou festiva. Perguntai aos ecos da praça Tiradentes, — naquele tempo

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Constituição, e vulgarmente Rossio Grande, — perguntai o que eles ouviram, e se são ecos fiéis dirão coisas belas e fortes. O meu querido Salvador, que ia à testa da legião, recordálas-á com saudade, quando ler a notícia das honras últimas aqui dadas ao maestro de Campinas. Realmente, a diferença foi grande; uma vida inteira enchia o espaço decorrido entre as duas datas, e as melodias de Gomes estavam agora na memória de todos. Muitos que as repetiam consigo, não eram ainda nascidos por aquele tempo; os que eram moços, como esses são agora, viram branquear os cabelos e entraram no préstito com a alma igualmente encanecida; a evocação do pretérito os terá remoçado. Outros, enfim, nem moços nem velhos, ali não compareceram, por terem sido eliminados antes. Não falo dos que estão ainda em gérmen, e repetirão mais tarde as composições de Gomes. A matéria é ótima para uma dissertação longa; o lugar é que o não é, nem o dia. Fiquemos aqui; ou antes, voltemos à Itália e aos seus cantores. Que venham, eles, barítonos e tenores, e nos trarão, além da música que este povo ama sobre todas as coisas, as próprias melodias do nosso maestro, e assim incluiremos um artigo no acordo que ela está celebrando com o governo brasileiro, porventura mais vivo e não disputado. Também ela amou a Carlos Gomes, não por patriotismo, que não era caso disso, mas por arte pura. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1327-1329.

Observação: referência a imigrantes de várias nacionalidades e à febre amarela como problema que espantava os estrangeiros. O cronista é irônico, como de costume, quando relaciona a vinda de imigrantes ao medo da febre amarela, mostrando que os chineses eram os que mais tinham medo da doença – não havia entrado nenhum no ano anterior.

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[40] Crônica de 13 de dezembro de 1896 Coluna: "A semana" Periódico: Gazeta de Notícias

O Senado deixou suspensa a questão do veto do prefeito acerca do imposto sobre companhias de teatro. Não falaria nisto se não se tratasse de arte em que a, política não penetra, — ao menos que se veja. Se penetra, é pelos bastidores; hora, eu sou público, só me regulo pela sala. Houve debates à última hora, esta semana, e debate, não direi encarniçado, para não gastar uma palavra que lhe pode servir em caso mais agudo... Não, eu não sou desses perdulários que, porque um homem diverge no corte do colete, chama-lhe logo bandido; eu poupo as palavras. Digamos que o debate foi vigoroso. Não sei se conheceis o negócio. O que eu pude alcançar é que havia uma lei taxando fortemente as companhias estrangeiras. Esta lei foi revogada por outra que manda igualar as taxas das estrangeiras e das nacionais; mas logo depois resolveu o conselho municipal que fosse cumprida uma lei anterior à primeira... Aqui é que eu não sei bem que a lei restaurada apenas levanta as taxas sem desigualá-las, ou se a tornam outra vez desiguais. Além de não estar claro no debate, sucede que na publicação do discurso há o uso de imprimir entre parêntesis a palavra lê quando o orador lê alguma coisa. Para as pessoas que estão na galeria, é inútil trazer o que o orador leu, porque essas ouviram tudo; ma com nem todos os contribuintes estão na galeria, (ao contrário!) a conseqüência é que a maior parte fica sem saber o que é que leu, e portanto sem perceber a força da argumentação, isto com prejuízo dos próprios oradores. Por exemplo, um orador, X..., refuta a outro, Y...: "X... E pergunto eu. Vossa Ex.ª; pode admitir que o documento de que se trata afirme o que o governo do Estado alega? Ouça Vossa Ex.ª. Aqui está o primeiro trecho, o trecho célebre. (Lê) não há aqui o menor vestígio de afirmação... "Y... Perdão, leia o trecho seguinte. "X... O seguinte? Ainda menos. (Lê) não há nada mais vago. O governador expedirá o decreto, cujo art. 4.º; não oferece a menor dúvida; basta lê-lo. (Lê) Depois disto, que concluir, senão que o governador tinha o plano feito? Querem argumentar, Sr. Presidente, com o parágrafo § 7.º do art. 6.º; mas essa disposição é um absurdo jurídico. Ouça a Câmara. (Lê) "Vozes: Oh! Oh!" Não há dúvida que esse uso economiza papel de impressão e tempo de copiar; mas eu, contribuinte e eleitor, não gosto de economias na publicação dos debates. Uma vez que estes se imprimem é indispensável que saiam completos para que eu os entenda. Posso ser para preguiçoso, morar fora, e tenho direito de saber o que é que se lê nas câmaras. Se algum membro ou ex-membro do congresso me lê, espero que providenciará de modo que, para o ano, eu possa ler o que se ler, sem ir passar os meus dias na galeria do congresso. Como ia dizendo, não tenho certeza do que é a lei municipal restaurada; mas para o que eu vou dizer é indiferente. O que deduzi do debate é que há duas opiniões: uma que

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entende deverem ser as companhias estrangeiras fortemente taxadas, ao contrário das nacionais, outra que quer a igualdade dos impostos. A primeira funda-se na conveniência de desenvolver a arte brasileira, animando os artistas nacionais que aqui labutam todo ano, seja de inverno, seja de verão. A segunda, entendendo que a arte não tem pátria, alega que as companhias estrangeiras, além de nos dar o que as outras não dão, têm de fazer grandes despesas de transporte, pagar ordenados altos e não convém carregar mais as respectivas taxas. Tal é o conflito que ficou suspenso. Eu de mim creio que ambas as opiniões erram. Não erram nos fundamentos teóricos; tanto se pode defender a universalidade da arte como sua nacionalidade; erram no que toca aos fatos. Com efeito, é difícil, por mais que a alma se sinta levada pelo princípio da universalidade da arte, não hesitar quando nos falam da necessidade de defender a arte nacional; mas é justamente este o ponto em que a visão do Conselho Municipal, do prefeito e do Senado me parece algo perturbada. Posto não freqüente teatros há muito tempo, sei que há aí uma arte especial; que eu já deixei em botão. Essa arte (salvo alguns esforços louváveis) não é propriamente brasileira, nem estritamente francesa; é o que podemos chamar, por um vocábulo composto, a arte franco-brasileira. A língua de que usa dizem-me que não se pode atribuir exclusivamente a Voltaire, nem inteiramente a Alencar; é uma língua feita com partes de ambas, formando um terceiro organismo, em que a polidez de uma e o mimo de outra produzem nova e não menos doce prosódia. Este fenômeno não é único. O teuto-brasileiro é um produto do Sul, onde o alemão nascido no território nacional não fica bem alemão nem bem brasileiro, mas um misto, a que lá dão aquele nome. Ignoro se a língua daquele nosso meio patrício e inteiro colaborador é um organismo igual ao franco-brasileiro; mas se as escolas das antigas colônias continuam a só ensinar alemão, é provável que domine esta língua. Nisto estou com La Palisse. Não é pelo nascimento dos artistas que a arte franco-brasileira existe, mas por uma combinação do Rio com Paris ou Bordéus. Essa arte, que as finadas Mmes. Doche e D. Estela não reconheceriam por não trazer a fisionomia particular de um ou de outro dos respectivos idiomas, tem a legitimidade do acordo e da fusão nos elementos de ambas as origens. Quando nasceu? É difícil dizer quando uma arte nasce; mas basta que haja nascido, tenha crescido e viva. Vive, não lhe peço outra certidão. Acode-me, entretanto, uma idéia que pode combinar muito bem as duas correntes de opinião e satisfazer os intuitos de ambas as partes. Essa idéia é lançar uma taxa moderada às companhias estrangeiras e libertar de todo imposto as nacionais. Deste modo, aquelas virão trazer-nos todos os invernos algum recado novo, e as nacionais poderão viver desabafadas de uma imposição onerosa, por mais leve que seja. Creio que assim se cumprirá o dever de animar as artes, sem distinção de origens, ao mesmo tempo protegerá a arte nacional. Que importa que, ao lado dela seja protegida a arte franco-brasileira? Esta é um fruto local; se merece menos que a outra, não deixa de fazer algum jus à eqüidade. Aí fica a idéia; é exeqüível. Não a dou por dinheiro, mas de graça e a sério. Não me arguam de prestar tanta atenção à língua de uma arte e à meia língua de outra. Grande coisa é a língua. Aquele diplomata venezuelano que acaba de atordoar os espíritos dos seus compatriotas pela revelação de que o tratado celebrado com a Inglaterra,

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graças aos bons ofícios dos Estados Unidos, serve ao interesse destes dois países com perda para Venezuela, pode não ter razão (e creio que não tenha), mas dá prova certa do que vale a língua. Os outros dois são ingleses, falam inglês; foi o pai que ensinou esta língua ao filho. Venezuela é uma das muitas filhas e netas de Espanha que se deixaram ficar por este mundo. A língua castelhana é rica; mas é menos falada. Se o diplomata tivesse razão, em Caracas, que é o Rio de Janeiro de Venezuela, as companhias nacionais é que agüentariam os maiores impostos, enquanto que as de Londres e New York representariam sem pagar nada. Mas é um desvario, decerto; esperemos outros telegramas. Relevem o estilo e as idéias; a minha dor de cabeça não dá para mais. In: Obra completa, em quatro volumes: volume 4. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, pp. 1347-1350.

Observação: nesta crônica há referência ao "teuto-brasileiro" do sul e ao possível fato de só aprenderem alemão. Também é interessante a crítica que o autor faz à publicação dos discursos parlamentares sem as partes lidas pelos políticos.

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[41] Crônica de 11 de novembro de 1900 Periódico: Gazeta de Notícias

CRÔNICA Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos dava notícias tão graves como a taxa francesa sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia paraguaio, coisas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número, coisas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam. Não nego que o imposto sobre a falta de filhos e o celibato podia dar de si uma página luminosa, sem aliás tocar na estatística. Só a parte cívica. Só a parte moral. Dava para elogio e para descompostura. A grandeza da pátria, da indústria e dos exércitos faria o elogio. O regime de opressão inspirava a descompostura, visto que obriga casar para não pagar a taxa; casado, obriga a fazer filhos, para não pagar a taxa; feitos os filhos, obriga a criá-los e educá-los, com o que afinal se paga uma grande taxa. Tudo taxas. Quanto ao suicídio do chefe de polícia, são palavras tão contrárias umas as outras que não há crer nelas. Um chefe de polícia exerce funções essencialmente vitais e alheias à melancolia e ao desespero. Antes de se demitir da vida, era natural demitir-se do cargo, e o segundo decreto bastaria acaso para evitar o primeiro. Deixei taxas e mortes e fui à casa de um leiloeiro, que ia vender objetos empenhados e não resgatados. Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no prego. Não é lá muito engraçado, mas é natural, exato e evangélico. Está autorizado por Jesus Cristo: Tu es Petrus, etc. Mal comparando, o meu ainda é melhor. O da Escritura está um pouco forçado, ao passo que o meu, — o martelo batendo no prego, — é tão natural que nem se concebe dizer de outro modo. Portanto, edificarei a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo. Havia lá broches, relógios, pulseiras, anéis, botões, o repertório do costume. Havia também um livro de missa, elegante e escrupulosamente dito para missa, a fim de evitar confusão de sentido. Valha-me Deus! até nos leilões persegue-nos a gramática. Era de tartaruga, guarnecido de prata. Quer dizer que, além do valor espiritual, tinha aquele que propriamente o levou ao prego. Foi uma mulher que recorreu a esse modo de obter dinheiro. Abriu mão da salvação da alma, para salvar o corpo, a menos que não tivesse decorado as orações antes de vender o manual delas. Pobre desconhecida! Mas também (e é aqui que eu vejo o dedo de Deus), mas também quem é que lhe mandou comprar um livro de tartaruga com ornamentações de prata? Deus não pede tanto; bastava uma encadernação simples e forte, que durasse, e feia para não tentar a ninguém. Deus veria a beleza dela. Mas vamos ao que me põe a pena na mão; deixemos o livro e os artigos do costume. Os leilões desta espécie são de uma monotonia desesperadora. Não saem de cinco ou seis artigos. Raro virá um binóculo. Neste apareceu um, e um despertador também, que servia a acordar o dono para o trabalho. Houve mais uns cinco ou seis chapéus-de-sol, sem

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indicação do cabo... Deus meu! Quanto teriam recebido os donos por eles, além de algum magro tostão? Ríamos da miséria. É um derivativo e uma compensação. Eu, se fosse ela, preferia fazer rir a fazer chorar. O lote inesperado, o lote escondido, um dos últimos do catálogo, perto dos chapéusde-sol, que vieram no fim, foi uma espada. Uma espada, senhores, sem outra indicação; não fala dos copos, nem se eram de ouro. É que era uma espada pobre. Não obstante, quem diabo a teria ido pendurar do prego? Que se pendurem chapéus-de-sol, um despertador, um binóculo, um livro de missa ou para missa, vá. O sol mata os micróbios, a gente acorda sem máquina, não é urgente chamar a vista as pessoas dos outros camarotes, e afinal o coração também é livro de missa. Mas uma espada! Há dois tempos na vida de uma espada, o presente e o passado. Em nenhum deles se compreende que ela fosse parar ao prego. Como iria lá ter uma espada que pode ser a cada instante intimada a comparecer ao serviço? Não é mister que haja guerra; uma parada, uma revista, um passeio, um exercício, uma comissão, a simples apresentação ao ministro da guerra basta para que a espada se ponha a cinta e se desnude, se for caso disso. Eventualmente, pode ser útil em defender a vida ao dono. Também pode servir para que este se mate, como Bruto. Quanto ao passado, posto que em tal hipótese a espada não tenha já préstimos, é certo que tem valor histórico. Pode ter sido empregada na destruição do despotismo de Rosas ou López, ou na repressão da revolta, ou na guerra de Canudos, ou talvez na fundação da República, em que não houve sangue, é verdade, mas a sua presença terá bastado para evitar conflitos. As crônicas antigas contam de barões e cavaleiros já velhos, alguns cegos, que mandavam vir a espada para mirá-la, ou só apalpá-la, quando queriam recordar as ações de glória, e guardá-la outra vez. Não ignoro que tais heróis tinham castelo e cozinha, e o triste reformado que levou esta outra espada ao prego pode não ter cozinha nem teto. Perfeitamente. Mas ainda assim é impossível que a alma dele não padecesse ao separar-se da espada. Antes de a empenhar, devia ir ter a alguém que lhe desse um prato de sopa. "Cidadão, estou sem comer há dois dias e tenho de pagar a conta da botica, que não quisera desfazer-me desta espada, que batalhou pela glória e pela liberdade..." É impossível que acabasse o discurso. O boticário perdoaria a conta, e duas ou três mãos se lhe meteriam pelas algibeiras dentro, com fins honestos. E o triste reformado iria alegremente pendurar a espada de outro prego, o prego da memória e da saudade. Catei, catei, catei, sem dar por explicação que bastasse. Mas eu já disse que é faculdade minha entrar por explicações miúdas. Vi casualmente uma estatística de S. Paulo, os imigrantes do ano passado, e achei milhares de pessoas desembarcadas em Santos ou idas daqui pela Estrada de Ferro Central. A gente italiana era a mais numerosa. Vinha depois a espanhola, a inglesa, a francesa, a portuguesa, a alemã, a própria turca, uns quarenta e cinco turcos. Enfim, um grego. Bateu-me o coração, e eu disse comigo; o grego é que levou a espada ao prego. E aqui vão as razões da suspeita ou descoberta. Antes de mais nada, sendo o grego não era nenhum brasileiro, — ou nacional, como dizem as notícias da polícia. Já me ficava

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essa dor de menos. Depois, o grego era um, e eu corria menor risco do que supondo algum das outras colônias, que podiam vir acima de mim, em desforço do patrício. Em terceiro lugar, o grego é o mais pobre dos imigrantes. Lá mesmo na terra é paupérrimo. Em quarto lugar, talvez fosse também poeta, e podia ficar-lhe assim uma canção pronta, com estribilho: Levei a minha espada ao prego. Eu cá sou grego.

Finalmente, não lhe custaria empenhar a espada, que talvez fosse turca. About refere de um general, Hadji-Petros, governador de Lâmia, que se deixou levar dos encantos de uma moça fácil de Atenas, e foi demitido do cargo. Logo requereu a rainha pedindo a reintegração: "Digo a Vossa Majestade pela minha honra de soldado que, se eu sou amante dessa mulher, não é por paixão, é por interesse; ela é rica, eu sou pobre, e tenho filhos, tenho uma posição na sociedade, etc." Vê-se que empenhar a espada é costume grego e velho. Agora que vou acabar a crônica, ocorre-me se a espada do leilão não será acaso alguma espada de teatro, empenhada pelo contra-regra, a quem a empresa não tivesse pago os ordenados. O pobre-diabo recorreu a esse meio para almoçar um dia. Se tal foi, façam de conta que não escrevi nada, e vão almoçar também, que é tempo. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, volume 3, 2004, pp. 772-775.

Observação: última crônica de Machado. Nela, há referência à vinda de imigrantes e à venda de uma espada no prego. Como as estatísticas apresentam apenas um imigrante grego, o cronista brinca com a possibilidade de a espada ser dele.

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