UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A PINTURA DE PAUL CÉZANNE COMO REALIZACÃO FENOMENOLÓGICA EM MERLEAU-PONTY

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A PINTURA DE PAUL CÉZANNE COMO REALIZACÃO FENOMENOLÓGICA EM MERLEAU-PONTY

Patrícia Mara Rodrigues Silva

Projeto apresentado ao programa de Pós-graduação em filosofia da UFMG, como avaliação parcial para seleção ao MESTRADO em filosofia. Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte

Patrícia Mara Rodrigues Silva

BELO HORIZONTE 2015

A) TITULO: A PINTURA DE PAUL CÉZANNE COMO REALIZACÃO FENOMENOLÓGICA EM MERLEAU-PONTY B) RESUMO O objetivo central deste projeto é estabelecer, de forma clara, uma relação entre a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty e a pintura de Paul Cézanne. A obra de Cézanne é considerada, por Merleau-Ponty, uma experiência fenomenológica semelhante à investigada em seu próprio projeto em “Fenomenologia da Percepção”. Através de um estudo perceptivo sobre o processo da pintura, demonstra-se que a obra de Cézanne é resultado de um contato intencional do artista com um mundo primordial, possível apenas através de uma percepção de mundo anterior à objetivação. O corpo é uma forma de consciência perceptiva, e a expressão seu gesto mais autêntico. C) APRESENTACÃO DA HIPÓTESE DE TRABALHO Segundo Merleau-Ponty existe um mundo primordial em que o homem se instala verdadeiramente. Não é o mundo externo que existe independente do homem, nem o mundo reflexivo, é o mundo do “corpo próprio”, do corpo como consciência perceptiva. É este mundo primordial que se tenta alcançar em sua “fenomenologia da percepção”. O presente projeto tem como objetivo, explicitar a hipótese de que, para Merleau-Ponty, a obra de Paul Cézanne é resultado da relação ou imersão do artista com o mundo primordial da fenomenologia. Se assim é, Cézanne cumpre o papel de desvelador da verdade da experiência perceptiva através da pintura. D) FUNDAMENTACÃO DA HIPÓTESE Para a fenomenologia, não se deve tentar explicar nem analisar, mas descrever a experiência de mundo. Porém deve-se, necessariamente, diferenciar a noção de redução fenomenológica que trabalharemos na presente pesquisa da existente na fenomenologia de Husserl. A redução fenomenológica, nos é apresentada como um retorno à uma consciência de mundo livre dos juízos da ciência e da tradição filosófica. No entanto, em Husserl, a experiência redutiva é realizada pela consciência, o fenômeno acontece, destarte, em um nível intelectual. (JOHNSON,1993) Já para Merleau-Ponty a experiência da redução é realizada antes, através da percepção e não é nunca uma síntese intelectual, “toda consciência é consciência perceptiva, mesmo a consciência de nós mesmos.” (MP, 1990 p. 42). Para o desenvolvimento da hipótese será estabelecida uma relação clara entre o projeto fenomenológico1 de Merleau-Ponty e o projeto de pintura de Paul Cézanne. Segundo Komarine Romdehn-Romluc (2010), a investigação de Merleau-Ponty é desenvolvida sobre o processo de redução transcendental-fenomenológica, isso envolve suspender o “pensamento objetivo” para, em lugar de explicar, descrever uma experiência da realidade. “O real deve ser descrito, não construído ou constituído.                                                                                                                

1  Este   projeto   de   pesquisa   está   focado   no   primeiro   momento   da   filosofia   de   Merleau-­‐Ponty,   a  

fenomenologia   da   percepção.   Portanto   não   pretende   trabalhar   com   conceitos   de   sua   ontologia   presentes  em  textos  posteriores  como    “O  olho  e  o  espírito”  e    “O  visível  e  o  invisível”.      

 

Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos atos ou da predicação”(MP,2015 p.05). No entanto, nota-se que ao se falar da experiência de uma árvore, na própria palavra “árvore” já está explicito que é uma planta que nasce de uma semente, e esse fato, entretanto, não me foi dado na experiência. Deste modo destaca-se a dificuldade em, através das palavras, se descrever algo que seja completamente livre de teorias e explicações e que expresse apenas o que lhe foi dado na experiência, “é impossível descrever algo de forma a capturar apenas o que lhe é dado, e que seja livre de proposições e teorias. Não há uma delimitação clara entre descrever algo ou oferecer uma explicação sobre ele.” (RORNDEHN-ROMLUC, 2010, p33)2 A esse alerta poderiamos presumir que uma fenomenologia da percepção deveria ser apenas perceptiva e não representativa? Que a pintura de Paul Cézanne, por não ser palavra e portanto não fazer uso de conceitos e explicações, obteria mais sucesso nessa descrição? E porque não a pintura de Da Vinci ou de Pissarro? Essas são algumas questões essenciais que serão esclarecidas ao longo do projeto, com ênfase à diferenciação de Cézanne aos seus contemporâneos, os impressionistas, que tinham como objetivo final o estudo aprofundado das aparências mas que, segundo Merleau-Ponty, não obtêm sucesso em descrever o mundo visual. O “corpo próprio” e a “percepção primordial” Segundo o autor, a verdadeira experiência perceptiva não é composta pela soma dos diferentes sentidos, como normalmente é considerado pelos empiristas e intelectualistas, mas que todos os sentidos se comunicam, interagem e se transformam gerando uma única percepção total. O pressuposto fundamental de sua argumentação está em considerar que, a experiência perceptual verdadeira não é composta por sensações. “O ‘algo’ perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele sempre faz parte de um ‘campo’. Uma superfície verdadeiramente homogênea, não oferecendo nada para se perceber, não pode ser dada a nenhuma percepção. Somente a estrutura da percepção efetiva pode ensinar-nos o que é perceber. Portanto, a pura impressão não apenas é inencontrável, mas imperceptível e portanto impensável como momento da percepção” (...) A teoria da sensação, que compõe todo saber com qualidades determinadas, nos constrói objetos limpos de todo equivoco, puros, absolutos, que são antes o ideal do conhecimento do que seus temas efetivos; ela só se adapta à superestrutura tardia da consciência. (MERLEAU-PONTY, 2015 p25)

Merleau-Ponty em sua fenomenologia da percepção, nos apresenta o conceito de “corpo próprio”, em que o corpo é considerado uma nova forma de consciência. O corpo agora, não é um objeto, e a consciência que tenho dele não é um pensamento. “O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema” (MERLEAU-PONTY,2015, p273). Tanto o empirismo quanto o intelectualismo consideram o corpo como um objeto físico, que tem seu comportamento definido pelas leis da causalidade, semelhante a uma mesa ou qualquer outro objeto. Essa atitude reflexiva da tradição cartesiana define o corpo como uma soma de partes, e a alma como um ser imaterial e independente. “O objeto é objeto do começo ao fim, e a consciência é consciência do começo ao fim. Há dois sentidos e apenas dois sentidos da palavra existir: existe-se como coisa ou existe-se                                                                                                                

2  Tradução  de  minha  responsabilidade  

como consciência” (MERLEAU-PONTY, 2015, p268). Para a fenomenologia da percepção, o corpo é uma forma de consciência, suas ações não são meras respostas causais a estímulos, mas uma forma de conhecimento. Merleau-ponty aponta que um sujeito incorporado é capaz de responder a uma demanda perceptivia de ação sem a necessidade de um pensamento reflexivo para guiar e controlar seu movimento. Isso é possivel pela aquisição de conhecimentos motores ou hábitos (…) O corpo sabe como agir, e tem um entendimento motor do que esta ao seu redor e que nao é redutível a um conhecimento conceitual. (Rorndehn-Romluc, 2010, p101)3

É essencial ressaltar que essa união substancial do corpo e do espírito é revelada somente pela experiência perceptual e não pelo pensamento. O “pensamento objetivo” do intelectualismo e do empirismo mantém sua reflexão sobre a dicotomia mente x corpo ignorando a experiência perceptiva primordial. Entende-se como “percepção primordial” uma capacidade de decifração informulada sobre a natureza. Ela é informulada porque ainda não é linguagem, ela é o fundo de onde surge a linguagem e a ciência. Na “percepção primordial” as coisas são anexo ou prolongamento do corpo, não há divisão ou opostos, mas contrastes perceptivos. Segundo Renaud Barbarás (2014), a noção de corpo apresentada em “A fenomenologia da percepção” remodela a noção de experiência perceptual como uma experiência da consciência incorporada, o corpo não é um sujeito nem um objeto mas a mediação entre eles, é um mediador do mundo. (BARBARAS,2004 p07). A sensação, a percepção e a pintura Para Merleau-Ponty os sentidos são afetados e se comunicam sem precisar da atividade reflexiva. Portanto, a experiência perceptiva natural transborda espontaneamente para todo o corpo. Percebemos isto quando um ritmo auditivo interfere na percepção de uma imagem em movimento, por exemplo, se aplicarmos trilhas sonoras diferentes em um mesmo video, experiencia-se vídeos aparentemente distintos. A mesma interação acontece ao se olhar um objeto e perceber, apenas pelo olhar, sua rigidez, textura ou temperatura. Um indivíduo normal enxerga a rigidez e a fragilidade do vidro ou a maleabilidade do tecido sem ser preciso toca-los. Para Merleau-Ponty a fusão dos sentidos acontece na mesma ordem da fusão binocular, em que, a partir de duas imagens na retina, forma-se uma única imagem fenomenal, um acontecimento inato ao sistema nervoso. Quando uma imagem dupla se funde em uma imagem única não percebemos somente uma sobreposição mas o objeto ganha solidez e volume. Experiencia-se, pois, uma percepção total, e não fragmentada, do mundo. Todavia, haveria uma forma possível de, algum modo, desconcilia-se os sentidos. Esta atitude de se entregar a um único sentido, o autor caracteriza como uma experiência sensorial realizada por uma “atitude analítica” (MP,2015, pg 304). Que se difere da percepção natural, aquela que acontece em todo nosso corpo ao mesmo tempo revelando um mundo intersensorial. Essa forma de análise é utilizada por pintores realistas em seus estudos de observação. Ingres, ao pintar um vestido de cetim azul, se utiliza de vários tons de tinta azuis claros e escuros. Ocorre que, no olhar habitual não se enxerga um vestido manchado de azuis variados, vemos claramente um vestido de cetim de um                                                                                                                 3  Tradução  de  minha  responsabilidade  

único azul. Assim como quando um pintor representa um objeto dourado, muitas vezes não está sendo utilizado ali uma tinta dourada, mas e uma combinação de vários amarelos, marrons, branco e preto que nos causa a impressão de estarmos olhando para um objeto completamente dourado. Neste momento não se vê objetos, mas cores e formas. Uma espécie de atitude fenomenológica típica, como apregoava Husserl, “pôr o mundo entre parêntesis”. Ao observar algo para pintar, o artista precisa interromper sua percepção natural, ao invés de enxergar, por exemplo, um buraco na madeira, deve ver apenas uma mancha escura em um certo formato, que para o espectador aparecerá idêntica ao buraco real na pintura. “É a própria montanha que, lá de longe, se mostra ao pintor, é a ela que ele interroga com o olhar. Que lhe pede ele exatamente? Pede-lhe desvelar os meios, apenas visíveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos. Luz, iluminação, sombras, reflexos, cor, todos esses objetos da pesquisa não são inteiramente seres reais: como os fantasmas, só tem existência visual. Não estão, mesmo, senão no limiar da visão profana, e comumente não são vistos.” (Merleau-Ponty,1980 p.91.)

O que Merleau-Ponty deseja ressaltar é que essa atitude analítica é uma espécie de redução fenomenológica, portanto não é nunca completa. “O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa. Eis porque Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade da redução. Se fôssemos o espírito absoluto, a redução não seria problemática” (MP,2015,p10) e portanto deve-se, necessariamente, ter consciência dessa limitação. Este tema foi desenvolvido novamente por Merleau-Ponty em seu texto “A Dúvida de Cézanne” (1980), onde ele parece demonstrar que a pintura de Paul Cézanne4 é resultado de uma “redução fenomenológica” consciente e verdadeira, realizada pelo artista. Neste texto é ressaltada sua crítica ao intelectualismo e ao empirismo como teorias baseadas em um mesmo solo secundário através dos movimentos artísticos do Renascimento, baseado em conhecimentos abstratos como a geometria, e do Impressionismo, baseado em ciências empíricas como a física óptica. O movimento artístico Impressionismo tem como objetivo dirigir-se à natureza, para assim, pinta-la sem interferência da idealidade. Ele nega o desenho e a construção imaginada da pintura clássica, e recorre à observação direta da natureza e de como ela chega aos nossos olhos. Deste modo, negando a linha e dando lugar à cor. Em A Dúvida de Cézanne (1980), Merleau-Ponty demonstra que, embora os impressionistas tinham a pretensão de expressar a verdade da percepção, eles tentavam alcança-la através de um olhar puro, e para isso, acabaram se fixando no solo do conhecimento objetivo da teoria das sensações e dos estudos físicos da cor e da ótica, em uma tentativa radical de pintar o que nos chega aos sentidos e não o que percebemos. Já a pintura de Paul Cézanne é apresentada como um exemplo de gesto que, semelhante à fenomenologia, tenta estabelecer um contato pré-reflexivo com o mundo sem intervenção direta de conhecimentos científicos e consciente da impossibilidade de uma percepção da sensação visual pura. Sua pintura nega a dicotomia, pensamento x sensação que encontramos nas pinturas renascentista e impressionista. Suas obras                                                                                                                 4  É  importante  considerar  que  o  objetivo  de  Merleau-­‐Ponty  não  é  fazer  uma  analogia  entre  a  pintura  

e  sua  filosofia,  mas  apontar  uma  semelhança  real  de  estruturação.  Também  não  há  uma  análise   estética  da  pintura,  mas  uma  investigação  perceptiva  do  processo  do  artista.  

não possuem uma construção geométrica idealizada e também não são puras composições de cores. “O que motiva um gesto do pintor não pode residir unicamente na perspectiva ou na geometria, em leis da decomposição das cores ou em qualquer outro conhecimento.” (MERLEAU-PONTY, 1980, p119). Ele tenta escapar, sempre, das alternativas prontas das escolas de pintura que se destacam pelas dicotomias do pintor que pensa e do pintor que vê, dos sentidos e da inteligência, da natureza e da composição. Ele traz a tona não apenas a característica visual do objeto mas toda a percepção pré-objetiva daquele objeto, o que inclui propriedades táteis e até olfativas. Ele representa, em sua pintura, o modo como aquele conjunto de coisas está se mostrando para ele sem ignorar o fato de ter dois olhos ao invés de um, ou de vez em quando mover a posição do seu olhar, gerando deformações na imagem, sem ignorar principalmente o fato de que em nossa percepção efetiva, nosso pensamento, nosso conhecimento e nossa imaginação estão agindo o tempo todo. “O artista pinta não com uma mão-coisa, mas com uma mão-fenômeno.” (MERLEAU-PONTY, 1980 p.116). Surge, assim, o conceito de “operação de expressão”. Antes da expressão, existe apenas uma febre vaga e só a obra feita e compreendida poderá provar que se deveria ter detectado ali antes alguma coisa do que nada. Por ter-se voltado para tomar consciência disso no fundo de experiência muda e solitária sobre o que se constrói a cultura e a troca de idéias, o artista lança sua obra como o homem lançou a primeira palavra (...) As dificuldades de Cézanne são as da primeira fala. (MERLEAU-PONTY, 1980, p 121.)

Para Merleau-Ponty o gesto proveniente do contato primordial com a natureza é através da operação de expressão, ela não é nunca tradução de um pensamento claro. A operação de expressão é o ato de transformar o silêncio em fala, ela não traduz mas realiza uma significação. A pintura de Paul Cézanne Podemos considerar que, para Merleau-Ponty, a pesquisa de Cézanne possui um caráter filosófico. Seu estudo é sobre sua percepção da natureza e a obra parece ser apenas o meio utilizado para alcança-la. Portanto, para Merleau-Ponty, o processo de desenvolvimento da pintura parece ser o principal objeto de estudo da fenomenologia, e não a sua obra acabada. Por este motivo, em “A Duvida de Cézanne”, ele se ocupa em descrever a forma como eram realizadas as pinturas e cita comentários do artista acerca de seu trabalho e sua vida, demonstrando preocupação em mostrar que as pinturas de Cézanne eram estudos, seriam talvez como rascunhos, meros resultados de uma exaustiva investigação. Frutos de um estudo aprofundado e consciente acerca de sua percepção pessoal, como ele descreve no trecho a seguir: “Eram-lhe necessárias cem sessões de trabalho para uma natureza morta, cento e cinquenta de pose para um retrato. O que chamamos sua obra para ele era apenas a tentativa e a abordagem de sua pintura. Escreve em 1906, com 67 anos, um mês antes de morrer: ‘Eu me achava num tal estado de distúrbios cerebrais, num distúrbio tão grande, que temi, por um momento, que minha frágil razão não resistisse...Agora parece que estou melhor e que penso mais corretamente na orientação de meus estudos. Chegarei ao fim tão procurado e por tanto tempo perseguido? Estudo sempre a natureza e parece que faço lentos progressos’. A pintura foi seu mundo e sua maneira de existir.” (MP, 1980, pg113)

As primeiras pinturas de Cézanne são construções ideológicas, possuem temas mitológicos e estruturas imaginativas. Foi através de Pissarro e dos Impressionistas que Cézanne começou a sua pesquisa sobre o mundo visível realizando “um estudo preciso das aparências” (MP,1980,115). Mas logo se separa do método aprendido e inicia sua busca por um resultado pictórico dentro de sua própria experiência, sem utilização de técnicas mas somente de sua própria investigação sobre o mundo visível. Cézanne, diferente de grande parte dos artistas de sua época, não se identificava com a vida parisiense e preferia se isolar em Aix-en-Provence. Mas apesar de sua voluntária soledade, encontramos vários registros de suas palavras, algumas em formato de cartas, outras por entrevista que serão de extrema importância para a presente investigação. Através desses relatos, que estão constantemente presentes nas obras de Merleau-Ponty, temos condições de estudar os objetivos do artista em seu trabalho e melhor entender seu processo de pesquisa. Como, por exemplo, ao descrever sua pintura dessa forma, “Tomo essas cores, essas gradações cromáticas e fixo-as, combino-as. Formam linhas, convertem-se em objetos, rochas, arvores, sem que eu pense”(Cézanne, RICART, 2007. pg84) ele parece demonstrar que, para chegar no resultado de sua obra, um processo não racional ou reflexivo estava em curso. Como se ele esquecesse, por alguns instantes, do mundo das coisas e se fixasse em um mundo das cores, da visão, para assim, criar novamente as coisas, agora em pintura. “A natureza não está na superfície, mas na profundidade. As cores são expressão dessa profundidade na superfície. Surgem das raízes do mundo. São sua vida, a vida das ideias.” (Cézanne, RICART, 2007 pg32). Cabe, portanto, considerar que Cézanne, de alguma forma, percebe que existe uma natureza que não está na superfície da consciência, e que para ele, as cores parecem fazer parte da expressão desse mundo primário no mundo das ideias, concordando nitidamente com o estudo de Merleau-Ponty acerca da percepção, em que ele expõe: “Cézanne dizia de um retrato: ‘Se pinto todos os pequenos azuis e todos os pequenos marrons, eu faço olhar como ele olha...Ao diabo se eles desconfiam como, casando um verde matizado com um vermelho, se entristece uma boca ou se faz uma face sorrir.’ Essa revelação de um sentido imanente ou nascente no corpo vivo se estende, como veremos, a todo mundo sensível, e nosso olhar, advertido pela experiência do corpo próprio, reencontrará em todos os outros ‘objetos’ o milagre da expressão” (MP,2015, pg 268)

“O trabalho artístico de Cézanne é a expressão do que foi encontrado na percepção.”5 (QUINN, 2009 p.15) ele torna concretas suas experiências, utilizando como guia apenas a percepção da natureza. Sua arte é a objetificação de sua perspectiva, a formalização concreta da vida que “espontaneamente interpreta ela mesma” (SLAUGHTER Jr, 1979, p.63). Cézanne não acha que deve escolher entre a sensação e o pensamento, assim como entre o caos e a ordem. Não quer separar as coisas fixas que nos aparecem ao olhar de sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matéria ao tomar forma, a ordem nascendo por uma organização espontânea. Para ele a linha divisória não está entre “os sentidos” e “a inteligência”, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das ideias e das ciências. Percebemos coisas, entendemo-

                                                                                                               

5  Tradução  de  minha  responsabilidade  

nos a seu respeito, nelas ancoramos e é sobre este pedestal de natureza que construímos ciência. É este mundo primordial que Cézanne quer pintar. (MERLEAU-PONTY, 1980, p 116.)

Encontra-se, portanto, uma coesão sem conceito, do mundo primordial (procurada pela fenomenologia), na pintura de Paul Cézanne. Dever-se-ia, portanto, considerar seu trabalho como uma fenomenologia do visível através da pintura? Conclusão e descrição metodológica Para Merleau-Ponty a ciência moderna constrói seus próprios modelos para, assim, operar sobre eles. A filosofia, de forma semelhante, tenta chegar a uma verdade completa e para isso ela faz uma assepsia do mundo, cria seus próprios conceitos e realiza suas operações de pensamento sobre esse mundo criado. É em mundo de conhecimentos abstratos, do pensamento objetivo que costuma-se referir para falar de mundo. A ambas, necessariamente, escapou a noção de um mundo primordial, anterior à linguagem, que é o objeto de estudo da fenomenologia da percepção. As pinturas Renascentistas, embebidas no intelectualismo por estarem baseadas nos estudos da geometria e anatomia, estão por demais longe da verdade da percepção, assim como o Impressionismo, que atrai Cézanne inicialmente. Em ambas escolas, permanece o solo do “pensamento objetivo”, pois se fundam em teorias e técnicas que são secundarias à percepção primordial. Não percebemos o mundo através da soma dos sentidos, temos uma única percepção completa que se dá em todo o corpo simultaneamente, e para Merleau-Ponty, ao pintar, Cézanne tenta estabelecer esse tipo de experiência primordial com o mundo, que nos é dado de imediato e completamente. Para o esclarecimento e desenvolvimento dos objetivos será apresentado, em um primeiro capítulo introdutório, alguns conceitos presentes no projeto fenomenológico de Merleau-Ponty como “corpo próprio” e “percepção primordial”. Em um segundo capítulo será exposta a perspectiva do autor sobre a percepção visual e suas relações com a pintura através de uma análise profunda do trabalho de Paul Cézanne e das teorias do Impressionismo, onde serão destacados os motivos que o levaram a considerar a teoria do Impressionismo insuficiente para a expressão da experiência perceptiva. Para conclusão, em um ultimo capítulo, serão esclarecidos os pontos em que se faz possível estabelecer um paralelo entre o trabalho de Paul Cézanne e o projeto da fenomenologia tal como Merleau-Ponty a entende.   E) BIBLIOGRAFIA BARBARAS, Renaud. The being of the phenomenon: Merleau-Ponty`s ontology – Indiana University Press, 2004. BRUBAKER, David. Merleau Ponty’s Eye and Mind: Re-thinking the Visible. Journal of Contemporary Thought, 17. 2003. Disponível em: http://www.academia.edu/485645/Merleau-Pontys_EYE_AND_MIND_ReThinking_the_Visible CARMAN, Taylor. Merleau-Ponty. Routledge, New York, 2008. P261 ENGELMANN, Arno. A Psicologia da Gestalt e a Ciência Empírica Contemporânea, In: Psicologia e Pesquisa. Universidade de São Paulo. Jan-Abr 2002. Vol. 18 n. 1, pp.001-0016.

GASQUET, Joachin. “Paul Cézanne”, Seguido de “O que ele me disse...”. Editora Sistema Solar, Lisboa, 2012. P 152. GOMBRICH, E.H. Arte e ilusão, um estudo da psicologia da representação. Martins Fontes, São Paulo, 2007. JOHNSON, Galen. Phenomenology and Painting: “Cézanne’s Doubt. In: The Merleau-Ponty Aesthetics Reader: Philosophy and Painting. Northuestern University Press, 1993. P.03-13 KOLER, Psicologia da Gestalt. Belo Horizonte, Itatiaia Editora, 1980. P207 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Livraria Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1971. _________________. A duvida de Cézanne. In Maurice Merleau-Ponty - textos selecionados. Abril Cultural, São Paulo, 1980. p. 113 a 126. ________________, Maurice. Fenomenologia da percepção. Martins Fontes, São Paulo, 2015. P662 _________________.The World of perception. Translated by Oliver Davis. Routledge, Oxfordshire, 2004. _________________, O primado da percepção e suas consequencias filosóficas. Tradução: Constança Marcondes Cesar, Editora Papirus, Campinas, SP.1990. P.93. CÉZANNE, Paul, DURAN, Michael. Conversations with Cézanne. University of California Press, Berkeley, California, 2001. P. 278 QUINN, Caroline. Perception and Painting in Merleau-Ponty’s Thought. In International Postgraduate Journal of Philosophy, Volume II, Dublin 2009. Disponível em: http://www.ucd.ie/philosophy/perspectives/past_issue_vol2.html RORNDEHN-ROMLUC, Komarine, Merleau-Ponty and Phenomenology of Perception. New York, 2010. P260 RICART, Juan.(ORG) Paul Cézanne: Coleção folha grandes mestres da pintura. Traduão: Martin Ernesto Russo. Editorial Sol 90, São Paulo, 2007. P.96 SIMONDON, Gilbert. Cours sur la Perception (1964-1965). Les Éditions de La Transparence, Chatou, 2006. P415 SLAUGHTER JR., Thomas F. Some remarks on Merleau Ponty’s Essay “Cezanne Doubt”. In Continental Philosophy Review, Man and World, Vol 12, Issue 1, p. 6169, Martinus Nijhoff, 1979. http://link.springer.com/article/10.1007/BF01249181 SILVERMAN, Hugh J. Cezanne’s Mirror Stage. In Journal of Aesthetics ans Art Criticism, Vol.40, No 4. Pp.369-379, 1982. WILLIAMS, Forrest. Cézanne, Phenomenology, and Merleau-Ponty In: The MerleauPonty Aesthetics Reader: Philosophy and Painting. Northuestern University Press, 1993. P.165-173

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