UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Relações entre Favelas e Estado no Século XX

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Relações entre Favelas e Estado no Século XX.

Mario Sergio Ignácio Brum Orientador: Mario Grynszpan

Niterói, 2003

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Mario Sergio Ignácio Brum

Relações entre Favelas e Estado no século XX

Monografia de bacharelado apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal Fluminense para obtenção de Grau de Bacharel em História. Eixo cronológico: Contemporâneo Linha temática: Poder e Idéias Políticas Leitor Crítico: Prof. Dr. Paulo Knauss

Orientador: Prof. Dr. Mario Grynszpan

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Niterói, 2003

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RESUMO

Comumente as favelas do Rio de Janeiro são consideradas como um ‘outro lado’ da cidade. Através de todo século XX, diversos estigmas recaíram sobre seus moradores. Nas últimas décadas, as favelas são associadas à intensa violência urbana que vivemos. A história das favelas do Rio de Janeiro é a história da resistência destas em ter direito à cidade. A partir das relações do Estado: fossem elas repressivas ou paternalistas, formaram a identidade dos favelados, que a partir destas relações, se organizaram em suas associações, com o passar do tempo redefinindo a própria maneira do Estado lidar com as favelas. As mudanças que favelas viveram nas últimas décadas do século XX foram muitas, mas por não terem considerado o estímulo à cidadania uma condição básica, estão longe de mudar a condição subordinada destas populações.

Palavras chaves: Favela; Estado; Rio de Janeiro; Organizações Comunitárias; Maré

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“Sebastian, Sebastião Diante de tua imagem Tão castigada e tão bela penso na tua cidade Peço que olhes por ela

Cada parte do teu corpo Cada flecha envenenada Flechada por pura inveja é um pedaço de bairro é uma praça do Rio Enchendo de horror quem passa” Sebastian (Gilberto Gil e Milton Nascimento)

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SUMÁRIO:

Agradecimentos......................................................................................................………...6 Introdução...............................................................................................................………...8 I – Siris na Lata.....................................................................................................................10 II – Uma (Pequena) História das Favelas do Rio de Janeiro….…………………....……....43 III – As Décadas de 1980 e 1990 na Maré: Um Estudo de Caso……...................….....…..158 Conclusão......……................................................................................................................197 Fontes Utilizadas.......................................................................................................……...200

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AGRADECIMENTOS: Muitas pessoas foram fundamentais para que esta monografia acontecesse, dando apoio ou colaborando ou ambos. Partindo do início. Ao meu pai Mario Jorge e minha mãe Elizabeth. Desnecessário dizer que os dois ajudaram em toda minha vida, e bastante na elaboração desta, e jamais deixaram de acreditar em mim. Espero que esta monografia dê a eles uma parte do orgulho que sinto por ser seu filho. Também agradeço o apoio de minha irmã Marcella, do meu cunhado Paulinho e aos sobrinhos Marianna, Tomás e Mateus. E às avós Aparecida e Lindalva. Duas pessoas foram fundamentais para que todo este apoio recebido se transformasse em estudo. Os professores Dulce Pandolfi e Mario Grynszpan. Foi através da bolsa desenvolvida na pesquisa deles; e pelo apoio e orientação que me deram, que a idéia desta monografia surgiu e se tornou realidade. Ao professor Paulo Knauss, por ter se disposto a ser o leitor crítico desta monografia, e pelo apoio dado quando solicitado. Aos professores que de diversas formas ajudaram bastante, não limitando fazer do ofício de professor algo uma mera profissão, mas sempre se dispondo a dividir os conhecimentos com os alunos quando solicitados, além claro, de na sala de aula me darem certeza de que fiz a opção acertada. São eles: Marcos Alvito, Cecília Azevedo, Cezar Honorato, Jorge Ferreira, André Campos, Virgínia Fontes, Márcia Motta, Carlos Addor, Fátima Gouvêa, Elisabete Cruvello, Renato Lessa, Almir, Marcos Barreto, Gil Gaviolli. E aos pesquisadores Lúcia Lippi Oliveira, Sergio Lamarão e Angela de Castro Gomes. Devo agradecer ao apoio dado pela equipe da Memória Institucional do IBGE; a Itamar Silva da Fundação Bento Rubião e ao Ceasm, principalmente nas figuras de Cláudia Rose, Anna Karla e Naldinho. Outras pessoas me ajudaram no apoio espiritual, que de colegas de faculdade, se tornaram amigos, espero, para vida toda. São elas: Fabíola, Fernanda, Michelle, Marcos, Gisela, Jefte, Anna Paula, Ricardo Patrício e Fábio

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Aos amigos do Cpdoc, ou que por lá passaram: Cris, Ana Carolina, Roberta, Andréia, Flávio, Viviane, Jeferson, Roberta, Carol, Gabi, Liana e Érica. Aos companheiros de luta que se tornaram amigos para todas as horas: Madureira, Danilo, Fernando, Mariluci, Paulinho, Digão, Gustavo, Renata, Marcelinho, Fernando “Diferente”, Cristiane, Diego, Marquinhos, Aline e Filipe. À Ana Cláudia, por todo o carinho e compreensão necessários para que eu pudesse escrever esta monografia. E muito boa sorte para que tenha sucesso na mesma empreitada, e que eu possa demonstrar o mesmo apoio que você me deu. Enfim, agradeço a todas estas pessoas, e quem mais que por algum descuido não foi lembrado aqui, mas de alguma forma ajudou. Esta monografia também foi escrita por todos vocês.

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INTRODUÇÃO: Esta monografia surgiu a partir de alguns fatores, listados a seguir sem ordem de importância. O primeiro foi minha bolsa de iniciação científica (Pibic) do CNPq, iniciada em janeiro de 2001, na pesquisa Um Estudo dos Efeitos das Ações de Organizações Governamentais e Não Governamentais em Comunidades de Baixa Renda desenvolvida pelos pesquisadores Mario Grynszpan e Dulce Pandolfi do Cpdoc/ FGV. Desde esta data passei a me aprofundar no tema favela, Estado e ONGs. Assim, esta monografia deriva direto de minha bolsa e deste projeto. O segundo é o entendimento de que foi feito um investimento público em minha formação, tanto pela bolsa como pelo fato de estudar numa universidade pública. Como esta formação é em História, aumenta a responsabilidade de oferecer um mínimo retorno à sociedade de todo este investimento. Acredito que a História é um auxílio para compreender o que nós somos e, a partir disto, atuarmos para transformar. No caso, o presente estudo aborda a relação das favelas com o Estado, das ações deste em relação à estas comunidades e da organização por parte das favelas pelo direito a existirem. Entendo este estudo como uma parte significativa da história do Rio de Janeiro do século XX. E a repercussão que o tema ‘favela’ vem obtendo por uma série de fatores, aos quis abordaremos aqui, reforça a idéia que estudar as favelas é estudar a cidade. A história das favelas revela como se deu o crescimento do Rio de Janeiro; as formas do Estado e das elites se relacionarem com as camadas mais pobres da cidade; entre outras coisas. Este estudo é dividido em três capítulos mais a conclusão. No primeiro capítulo, traçamos um panorama das favelas, partindo de como elas são vistas atualmente, qual o tratamento dado à elas pela imprensa, autoridades e pela sociedade de uma maneira geral. O que já foi discutido pela bibliografia sobre o tema; e partir destas discussões o que podemos entender sobre o que é favela e também o quem é o favelado, já que este é um ator que tentaremos ‘escutar’ durante todo este estudo. Enfim, esta primeira parte seria também uma introdução ‘ampliada’, ao qual apresentaremos também algumas questões que tentaremos responder nos outros capítulos e na conclusão.

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A segunda parte é um histórico das favelas do Rio de Janeiro, do surgimento destas e de suas relações com o Estado, desde a última década de século XIX até as duas últimas décadas do século XX, quando estas relações sofreram impressionantes modificações. Abordamos também as organizações comunitárias, desde as primeiras que se têm registro na década de 1940 até as ONGs surgidas dentro das favelas nos anos 1980 e 1990, relacionadas diretamente com as modificações destas décadas. O terceiro capítulo é um aprofundamento das transformações que as favelas e suas organizações comunitárias viveram, ao qual utilizamos o estudo de um caso particular, a Maré, maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro e oficialmente considerado (pelos órgãos públicos) como um bairro da cidade. Acompanharemos as novas relações das associações de moradores com o Estado e a emergência das ONGs como um ator relevantes na favela, a partir de um exemplo de uma ONG da Maré que já ultrapassou o espaço da favela e tem hoje repercussão nacional como um exemplo de luta pela superação da pobreza. Utilizamos a Conclusão para fazer um balanço final de tudo que for dito no decorrer deste estudo e que não for fechado nos segundo e terceiro capítulos. Por último, o terceiro fator que me encaminhou a escolher este tema é o amor pelo Rio de Janeiro. Espero que esta monografia ajude não a ‘reunir uma cidade partida’, mas a descobrirmos que somos todos de uma mesma cidade, onde saberemos respeitar nossas diferenças… isso quando elas existirem.

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CAPÍTULO I:

SIRIS NA LATA

“Nas grandes cidades, no pequeno dia-a-dia. O medo nos leva tudo, sobretudo a fantasia. Então erguemos muros que nos dão a garantia de que morreremos cheios de uma vida tão vazia

Nas grandes cidades, de um país tão violento os muros e as grades nos protegem de quase tudo mas o quase tudo quase sempre é quase nada e nada nos protege de uma vida sem sentido

Nas grandes cidades, de um país tão irreal os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal. ” Muros e Grades (Humberto Gessinger / Augusto Licks)

Numa tarde de maio de 2003, um dia de semana, tive de ir à Maré buscar alguns dados para este estudo. Mesmo já tendo ido algumas vezes ao local, a companhia de um amigo, morador de lá, sempre foi uma espécie de garantia, um ‘salvo-conduto’ para circular com certa segurança. As constantes notícias de confrontos entre facções de traficantes, e entre estes e a polícia, gerava um certo temor em mim sempre que precisava ir lá (além de um certo desespero para parentes que sempre sabiam a posteriori). O temor foi agravado desta vez por dois fatores: o primeiro, que havia se iniciado alguns dias antes, uma ‘ocupação policial’ na área da Maré; a segunda, que o amigo/morador não poderia me acompanhar. Para demonstrar que meus temores não eram infundados, reproduzo aqui a declaração da maior autoridade de segurança do estado à época, Anthony Garotinho, empossado poucas 11

semanas antes, sobre as dificuldades enfrentadas numa ação contra traficantes na Maré: “Tudo começou com a presença do Getam - Grupamento Especial Tático Móvel, porque eles atiraram contra o Getam. Não foi suficiente. Mandamos a Core - Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil, não foi suficiente. Mandamos os helicópteros, não foi suficiente. Mandamos o Bope - Batalhão de Operações Especiais - e vencemos! ” A sensação de estar indo para uma ‘zona de conflito’ era inevitável, e a ocupação policial, longe de tranqüilizar, deixava mais ansioso. Liguei para a pessoa com quem tinha marcado na Maré para saber dos ‘riscos’ que teria de enfrentar ao ir lá. Ao telefone perguntei como estava a situação agora, devido à presença da polícia, no que me foi respondido: “Deu uma acalmada”. Uma segunda história, também na Maré, ocorreu ao pegar umas fotos numa ONG formada por moradores e ex-moradores da Maré, o Ceasm (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré; do qual falaremos adiante no capítulo III). Entre as fotos que buscava, algumas antigas teriam de refletir o cenário de pobreza do local, como palafitas ou as casas de triagem construídas por governos com a função de abrigar removidos de outras favelas (sem maior conforto do que os barracos onde moravam). Auxiliado por dois estudantes que compunham a equipe do Ceasm, pude notar que alguns dos cenários da Maré, particularmente os das palafitas e das ‘casas de triagem’, eram tão distantes para eles quanto para mim. Não que não soubessem que eles existiram ou que, ainda mais pela atividade que desempenham no Ceasm, desconhecessem esta história. Mas me foi nítido o olhar de estranhamento deles. Com as duas pequenas histórias apresentadas, pretendo ilustrar uma parte do imaginário sobre as favelas do Rio de Janeiro.

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A primeira história nos remete a sensação de medo e insegurança presente no Rio de Janeiro, início do século XXI. Paralelo às imagens de bombardeios no Iraque, ou de tiros entre tropas israelenses e palestinos, tem se vivido o que ocorre no Rio como uma guerra. Com efeito, na imprensa a analogia tem sido freqüente. Do dia 26 a 30 de maio de 2003, o jornal local da TV Globo, RJ-TV circulou a série de reportagens “A Nossa Guerra”; já o Jornal do Brasil durante alguns dias estampava uma tarja preta, na capa e nas páginas, onde eram noticiados episódios de 12

violência do Rio, com a legenda (bastante fatalista, diga-se de passagem) “A Guerra Perdida” (JB – 09/05/03), alguns dias depois modificada para “A Guerra do Rio”. Para grande parte da sociedade, as favelas são tidas como lugar de violência, áreas em guerra, com seus moradores submetidos a um ‘poder paralelo’, cuja adesão, conforme a leitura que cada um faça, varia destes serem coniventes ou vítimas indefesas. Assim, às maneiras de se classificar o que tem acontecido no Rio como ‘guerra’, somam-se às metáforas belicistas constantemente utilizadas na imprensa. Na série do RJ-TV citada, a narrativa pergunta: “Como chegamos a este estado de guerra permanente? ” _ ou ainda _“Como os morros ficaram tão armados?”. Estas afirmações são acompanhadas pela imprensa escrita: “Em uma investida na favela Nova Holanda...” (escrito na matéria, JB – 07/03/03); “Ofensiva nos morros.” (manchete na seção Rio, O Globo – 21/03/03); “As nossas zonas de conflito.” (manchete na seção Rio, O Globo – 13/04/03) Não se busca aqui julgar a imprensa como alarmista, ou alegar que todos estes episódios de violência não existam ou são ‘aumentados’ por uma ‘conspiração’. Tampouco negar que a sensação de insegurança é real e viva para os cariocas enquanto são escritas estas linhas em junho de 2003. Os episódios de violência ou de ‘escalada do crime’ são vários: a fuga de Escadinha do Presídio de Ilha Grande em 1987 mostra o início da ousadia do tráfico; o seqüestro de empresários no início da década de 1990 (cujo mais notório é o de Roberto Medina, justamente num condomínio fechado da Barra da Tijuca, que deveria ser uma ‘ilha de segurança’); a Chacina de Acari em 1990; o Arrastão nas praias da Zona Sul em 1992; Candelária e Vigário Geral em 1993; o Muro da Cidade de Deus (com policiais espancando os moradores, sem querer saber se eram trabalhadores ou não) em 1996; as balas traçantes na Tijuca mostradas na TV; o ônibus 174 em 2000; a Universidade Estácio de Sá em 2003, dentre tantos outros episódios. A insegurança do carioca tem diversos episódios para serem lembrados. E nomes: Carlos Magno, Luciana, Gabriela, Camila, Geísa, Luís Henrique... Cada episódio novo soma-se ao anterior, contribuindo para aumentar a sensação de insegurança, de impotência, que geram aflições (“Onde nós vamos parar?”) e uma certa nostalgia de “um Rio que se perdeu ”. Não se quer aqui (aliás, nem se poderia) negar que há em cada morador do Rio, neste início do século XXI, a sensação de insegurança, a percepção de uma violência crescente. Em última escala, o medo é “real” a partir da maneira de cada um apreender a realidade que vive. 13

Assim, o “bom senso” nos recomenda evitar certos lugares, sempre ou em determinadas horas. E contribuindo para o ‘estado de guerra’, ocorrem o fechamento de comércio ou escolas, por ordens de traficantes (se são reais ou não, é, de um certo ponto de vista, irrelevante, se a simples suposição de que a ordem partiu de um traficante basta para que ninguém se arrisque) e as Segundas-sem-lei, quando diversos pontos da cidade são palco de episódios de violência. Mas preocupa-nos o uso de metáforas belicistas para definir o atual cenário. Particularmente a noção de que estamos vivendo uma guerra, existindo exércitos inimigos que controlam territórios, extremamente armados, organizados e dispostos a invadir ou promover ações no ‘nosso território’. Pode-se chegar à conclusão de que para um cenário de guerra, com um inimigo armado à espreita, a solução então deveria ser armada? Pois para se enfrentar exércitos é preciso um exército melhor. Se as favelas são territórios de bandos armados, então elas devem ser invadidas e estes bandos vencidos. Longe de ser uma previsão pessimista, este pensamento está presente em diversos segmentos da sociedade, desde políticos que utilizam a questão da violência como bandeira (procurando se mostrar como os ‘mais firmes’, e por isso os únicos capazes de enfrentar o crime) até toda uma indústria da (in)segurança (vigilantes, trancas, blindagem, etc.). Não é outra a matriz do pensamento que originou as Operações Rio I e II, e a mais recente presença do Exército nas ruas do Rio em março de 2003. A antítese deste pensamento não quer dizer que não seja necessário haver uma política de segurança pública, erro cometido (e de certa maneira compreensível por traumas recentes), pelos setores mais progressistas. Uma política que considere inclusive a sensação de medo presente na sociedade, a qual pede respostas imediatas, ainda que as soluções não sejam. Mas, concordando com a definição de Luís Eduardo Soares: “O medo torna-se parte do problema, quando deixa de ser a reação natural e saudável de vítimas potenciais, para converter-se na chave de leitura dos fenômenos sociais e matriz das soluções propostas.” (Soares,1996). Difunde-se a visão de que o Estado está desmoralizado, o monopólio da violência que possui, que deve ser inclusive fonte de sua legitimidade, é desafiado a todo tempo por quadrilhas que controlam territórios da cidade, gerando um clima de ingovernabilidade no Rio de Janeiro. Para a classe média e a elite, sendo o Estado incapaz de prover segurança, esta deverá ser obtida por meios próprios. Assim, setores da população buscam segurança pela iniciativa privada, a já citada indústria de segurança, com todas as conseqüências que isso traz: como o 14

controle de tais firmas, por exemplo1. Ainda: por ser um produto que precisa ser vendido, o marketing destas firmas acaba por contribuir para a sensação de insegurança2. Com efeito, é a própria cidade que se fragmenta, ou melhor, seu tecido sócio-espacial (Souza, 2000), com setores da classe média e alta se refugiando em grades, muros ou ainda, em enclaves como os condomínios fechados da Barra da Tijuca, com entrada restrita e guarnecida por seguranças armados. A cidade não se vê mais como um corpo único (alguns moradores da Barra da Tijuca quiseram que o bairro se emancipasse do Rio de Janeiro em 1988 e posteriormente, defenderam que o bairro tivesse guaritas e cancelas em suas rotas de acesso). Com suas particularidades, mas efeitos do mesmo fenômeno, as quadrilhas de traficantes que atuam nas favelas ganharam espaço como agentes da ordem nestes locais, embora os confrontos entre facções do tráfico e com a polícia (além de uma mudança notada por diversos autores utilizados neste estudo, de que as relações entre as quadrilhas e as comunidades nos últimos anos não têm sido tão ‘harmônicas’) relativizem esta ordem. De qualquer forma, o Estado nunca surgiu como provedor de ordem nas favelas, a não ser quando a ordem era a da cidade. E outro aspecto da leitura belicista que tem vigorado é da estigmatização das favelas. Se há um inimigo que assola a cidade, e se é nas favelas que ele se localiza, é lá que deve ocorrer o combate, tendo que ser ocupadas e/ou controladas. Outrora descrita como insalubres e antihigiênicas, moradia de pessoas ignorantes, preguiçosas, atrasadas, não acostumadas à cidade devido à sua origem rural, malandros, boêmios, vagabundos, o crescimento do tráfico3 na década de 1980 faz com que as favelas voltem a ser vistas como o lugar do ‘outro’ (Zaluar & Alvito, 1998), atualizando a bipolaridade sempre presente na maneira como a cidade se vê.

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O caso da estudante Luciana baleada na Universidade Estácio de Sá em 05/ 05/2003 é um exemplo (dentre outros)

do que queremos dizer. As investigações da Polícia Civil do Rio de Janeiro foram prejudicadas devido ao fato de que imagens gravadas pelo circuito interno da universidade foram apagadas. A maior suspeita de ter tomado tal atitude, até o início de junho de 2003, era a firma de segurança contratada pela Universidade. 2

Um caderno especial do Jornal do Brasil sobre violência (31/05/2002), com sugestivo título de Cidade Sitiada,

veio repleto de anúncios de firmas de vigilância, de blindagem de carros e de sistemas de alarme. 3

Embora o tráfico já existisse desde décadas anteriores, o que se pôde notar na década de 1980 no Rio de Janeiro foi

a substituição do binômio 38 + maconha pelo AR-15 + cocaína (Souza, 2000). 15

No início do século XX, a constatação inicial de Euclides da Cunha em Os Sertões (que no decorrer da campanha de Canudos parece mudar, com ele descobrindo que o “sertanejo é antes de tudo um forte”) é de que existe um Brasil urbano, esclarecido e moderno no litoral; e um outro: ignorante, atrasado e fanático no sertão. A analogia é transplantada para a cidade do Rio, apropriada pela elite e por muitos intelectuais (Valladares, 2000). Se o sertão é o local da ignorância e do atraso no país, na cidade este local é a favela, sempre vista como “outra face da civilização urbana carioca” (Alvito, 2001), um outro mundo, diferente da cidade, com outros costumes e outra gente. A favela foi assim descrita por vários cronistas, dentre os quais João do Rio, Olavo Bilac, Orestes Barbosa. Em 1908, Olavo Bilac narra numa crônica com o sugestivo título de “Fora da vida” sua surpresa com uma moradora do morro da Conceição, localizado no Centro do Rio, e que há trinta e três anos não descia o morro. Bilac escreve que foram feitas a Abolição, a República, abriramse avenidas “… e, tão perto materialmente de nós, no seu morro, essa criatura está lá 33 anos tão moralmente afastada de nós, tão separada de fato da nossa vida, como se, recuada no espaço e no tempo, estivesse vivendo no século atrasado, e no fundo da China.” (apud Zaluar & Alvito, 1998). Já no início da República, os intelectuais vêem uma ausência de povo no Brasil, devido à apatia deste, particularmente quando se referem à capital. Por exemplo, Aristides Lobo define o evento da proclamação da República no Campo de Santana, hoje Praça da República, como uma parada militar, onde o povo apenas assistiu a tudo “bestializado”, conforme foi descrito no livro de José Murilo de Carvalho “Os Bestializados…”(1987). Ainda segundo este autor, os intelectuais brasileiros tinham como um ‘modelo’ de povo, o europeu, com sua classe operária e pequenos camponeses. Estes sim exerciam sua cidadania, seja organizando-se em barricadas ou partidos, mas, de qualquer forma, sempre tendo participação ativa na ‘política’. Essa leitura era feita a despeito das diversas manifestações que sempre marcaram a capital brasileira com a participação de populares: durante o Império (Noite das Garrafadas /1831, Revolta do Vintém/1880, entre outras); durante a campanha abolicionista; e mesmo nos primórdios da República, em greves, passeatas, quebras, e revoltas como a da Armada (1893) e a da Vacina (1904). Porém, essas agitações eram vistas como desordem, não eram obra de cidadãos, mas da escória: pobres, negros e mestiços, movidos por paixões. Eram as massas incultas e ignorantes, as classes perigosas. 16

Se no começo do século XX o discurso higienista (ver adiante no capítulo II) encarava as classes pobres e suas moradias como estorvos à imagem de uma capital que deveria ser símbolo do progresso e da possibilidade de uma civilização nos trópicos. Uma cidade que fosse culta, branca e ordenada em largas avenidas e praças, devendo então estas moradias e os pobres, obstáculos que eram a estes propósitos, serem alvos de ações de ‘limpeza’. Passados cem anos, o discurso belicista vigente vê as favelas como enclaves no meio da civilização, dominadas por exércitos inimigos, em suma, áreas a serem ‘conquistadas’ e ‘ocupadas’. O Rio aparece sempre dividido em duas partes. Numa parte da cidade há a civilização, na outra a barbárie; numa há consciência política, noutra grassam o clientelismo e a manipulação política; numa vigoram as leis, a constituição, a autoridade legal, noutra o poder público não existe, vivendo essa população a partir de suas próprias leis, costumes e ‘chefes’, constituindo um estado paralelo. As favelas também são vistas como uma mácula a um dos maiores patrimônios da cidade, que é a sua paisagem composta pelo mar e as montanhas. Para alguns, a ocupação das encostas por barracos desordenados e amontoados agridem o panorama e ocupam valiosos terrenos, desvalorizando ainda os terrenos vizinhos4. Seja pela composição étnica de seus habitantes; pela diferença de seus aspectos culturais; pelas formas das habitações; ou pelas demais condições de vida dos seus habitantes, as favelas, 4

Flávio Ferreira (1985) faz uma discussão interessante. Numa cidade com inúmeras montanhas, pode-se imaginar

que ninguém moraria nelas, ou ao contrário, levando-se em conta que a ocupação da parte plana do Rio se deu através dos aterros de inúmeras lagoas que compunham sua paisagem primitiva, e do desmatamento de suas florestas, poderia haver uma cidade só nas encostas que permitisse a preservação de sua área plana? E mais, que entre várias construções que ocupam as encostas dos morros, como o conjunto de sete espigões conhecido como Morada do Sol, em Botafogo, Zona Sul do Rio, as favelas não seriam a que melhor se adequariam às encostas, sem causar grande impacto na paisagem? Vale dizer que quando Ferreira escreveu este artigo a verticalização das favelas, com pequenos prédios surgindo em muitas delas como se viu nos últimos anos do século XX, não era intensa. Além disso, há de se levar em conta o grande volume pluviométrico que anualmente caem sobre as encostas do Rio, o que já causou muitas mortes. Dados do IplanRio de 1993 (apud Souza, 2000) dizem que das 573 favelas registradas na época, 53% localizavam-se em áreas planas; 42% em encostas; e 5% conjugavam as duas formas. Ainda, que 30% das favelas do Rio tinham áreas com risco de deslizamentos. Sem maiores dados sobre este último ponto, faço aqui apenas a menção sobre o tema, discussão aliás que devo a Antônio Carlos, da Comissão de Meio Ambiente da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. 17

em que pesem as várias conjunturas e transformações que viveram em pouco mais de um século de existência5, mantêm a imagem de áreas apartadas da cidade, sendo o Rio uma cidade partida, expressão consagrada no livro do jornalista Zuenir Ventura (1994). A cidade, ao se ver partida, parece negar que a alteridade, a mistura, o cruzamento entre mundos ‘diferentes’ faz parte e constitui sua identidade, ‘mundos’ que pouco a pouco se mesclaram e criaram algo novo. Na análise de Darcy Ribeiro para o Brasil, e que o Rio como capital por mais de 250 anos tão bem simboliza: a partir de “brancos deseuropeizados” e negros “desafricanizados” (mais tarde se incorporando os elementos nortistas e nordestinos) formou-se um povo novo, o brasileiro. No Rio, uma das maiores expressões do que queremos dizer é o samba, surgido da Pequena África, no centro da cidade no início do século XX, e apresentado ao mundo inteiro como expressão da alma carioca. Longe de querer mostrar que as relações entre as ditas ‘partes’ sejam harmoniosas. Pelo contrário, a história do Rio é marcada pelo conflito, pela relação de seus poderes com suas classes pobres, e no último século, com suas favelas. Pela permanente tentativa de controle e ‘exclusão’ de um lado; e por outro, pelas tentativas dessas classes se incorporarem à cidade e usufruírem o que ela oferece. Deste cenário surge uma cidade plural, que não consegue se tornar ‘européia’, ‘planejada’ (tentativa feita em várias ocasiões, entre as quais, o ‘Bota-abaixo’ de Pereira Passos; o Plano Agache; e o Plano Doxiadis de Lacerda. No capítulo II analisaremos estas e outras ações), mas que também não oferece oportunidades iguais a todos os seus habitantes, ou que sequer consegue elevar todos à categoria de cidadãos. A cidade, segundo Maria Alice Rezende de Carvalho (1995), é ‘escassa’, restringindo a oferta aos favelados de serviços e espaços que ela oferece às classes média e alta. Os favelados lutam pelos espaços nas ‘franjas’ dos bairros ou criando novos espaços, como aterros; e só conseguem os mesmos serviços, que em bairros da cidade são vistos como obrigações mínimas do Estado, através de

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O marco do surgimento da favela no Rio de Janeiro é tido como o ano de 1897. Segundo alguns autores, foi ano da

instalação de soldados vindos da campanha de Canudos no Morro da Providência, nos arredores da Central do Brasil e do Ministério do Exército na época, que batizaram o local inspirados no morro localizado ao lado do arraial de Canudos. Porém, outras versões registram tanto datas quanto locais diferentes. (ver capítulo II) 18

complicadas negociações, que abrem campo fértil para o clientelismo6 e todo tipo de políticos oportunistas. Os favelados, ao mesmo tempo em que constroem prédios e trabalham em sua manutenção; que diariamente vão para as fábricas; que freqüentam os mais luxuosos apartamentos através de suas cozinhas, são vistos como estorvos à cidade. A maneira como são rotulados varia desde ‘perigosos’ até ‘dignos de pena’, e seja qual for a definição, são tidos como marginalizados. A favela como lugar do crime e da violência é uma atualização do mito da marginalidade, descrito por Janice Perlman (1977). Neste livro, escrito na década de 1970, a autora analisa os diversos estudos sobre populações ditas ‘marginalizadas’ e também o que se pode apreender de uma espécie de ‘senso comum’ sobre os favelados. As favelas eram tidas como locais sem uma organização interna, sendo os favelados solitários, isolados e anti-sociais; por sua origem rural, os favelados seriam tradicionalistas e atrasados, com as favelas 6

Para uma explicação resumida sobre o conceito de clientelismo, adotamos a análise de Eli Diniz (1982) referindo-

se ao fenômeno do chaguismo no Rio de Janeiro, conhecido como “política da bica-d’água”. O clientelismo surge como uma relação diádica, baseada na lealdade e reciprocidade entre o eleitor e o político. Ao invés da demanda apresentada pelo eleitor (ou eleitores, quando se tratar de uma determinada localidade) ser considerada uma relação entre cidadão e poder público, que seria universalista e impessoal, a demanda atendida é vista como uma relação pessoal entre o eleitor e o político, este ao atender uma reivindicação está prestando um favor (que pode ser à comunidade, como uma obra, ou individual, como uma vaga numa escola) ao qual em troca os eleitores dão seu voto. Alvito (2001) narra o orgulho de uma liderança comunitária de Acari que, após ter perdido tudo numa enchente, teve a casa remobiliada por um político. Mais que a mobília em si, o orgulho era pelo fato de tê-la ganho de um político. O clientelismo tem como uma de suas características a necessidade das lideranças comunitárias serem (e aparecerem como) ‘bem-relacionadas’ com políticos e com os canais oficiais do Estado, ou até mesmo com ONGs, significando capacidade de trazer projetos e obras para sua comunidade; para os políticos, importa aparecerem como os defensores da comunidade para conquistarem os votos. Uma das polêmicas notadas na literatura sobre favelas é se o clientelismo funciona ou não, com uma vertente afirmando que o eleitor favelado finge o voto em troca da obra mas que não se sente obrigado a votar. Mesmo que ocorra a promessa falsa de voto, considerando que o voto é secreto, o grau que isso ocorre não deve ser considerado suficiente para afirmar que o método não funciona, visto que é utilizado ainda hoje por diversos políticos que têm sido eleitos. Os políticos que se utilizam da prática do clientelismo podem ser acusados de muitas coisas, mas certamente ingenuidade não é uma delas. Outra ressalva a ser feita é de que o clientelismo não é exclusividade nem das classes mais pobres, nem do Brasil. 19

constituindo enclaves rurais em meio à cidade, de modo que os favelados não se sentem bem nela, não conseguindo se integrar e usufruir os serviços urbanos e demais benesses que a cidade oferece. O favelado está acostumado a pobreza, não quer progredir na vida. São dependentes, fatalistas e apáticos; não têm aspirações, portanto não possuem capacidade de planejar o futuro ou se prevenir, vivendo sempre o presente. Além disso, os favelados seriam um entrave ao progresso da cidade, pois como não trabalham, não produzem, sendo uma espécie de ralo na economia, sempre recebendo recursos (mesmo que pouco) sem nunca oferecer. Por tudo isso, os favelados são revoltados, rebeldes, baderneiros, sendo uma constante ameaça à ordem. Hoje, se o tráfico passou a ser o sinônimo de violência urbana, então as favelas, como territórios dominados pelo tráfico, são por excelência a fonte de toda violência que se abate sobre a cidade. Os favelados são vistos como cúmplices e/ou beneficiários dos traficantes. A favela continua a ser vista como um corpo à parte da cidade. Antes, a favela seria foco de doenças e epidemias, lugar da promiscuidade e falta de moral, passando pela visão de que nelas moram os negros não afeitos ao trabalho e mais tarde os nordestinos vindos do ‘sertão’, responsáveis por impedir o progresso do Brasil, visto que todos são preguiçosos e/ou ignorantes, parasitas da cidade. Hoje, as favelas são vistas como locais aonde vivem perigosos bandidos, que constituem uma espécie de ‘cerco’ à cidade.

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As transformações que ocorreram nas favelas no decorrer do século XX e particularmente nas duas últimas décadas não foram poucas, o que não quer dizer que, conforme descrito acima, tenha havido uma mudança significativa na maneira que a cidade vê as favelas, ou melhor, na própria maneira de como a cidade se vê: dividida, partida… O que nos remete a segunda história apresentada no começo. O estranhamento dos jovens moradores da Maré quanto a imagens de palafitas e ‘galpões’ (como eram chamadas as casas de triagem construídas pelo governo Lacerda no início da década de 1960). Estávamos numa ONG cujo primeiro projeto foi um curso pré-vestibular para moradores da Maré, visando aumentar a presença de universitários na favela, montado por iniciativa de moradores e ex-moradores, a maioria com larga experiência no movimento comunitário, notadamente nas associações de moradores. As instalações confortáveis, modernos equipamentos e a equipe profissional do 20

Ceasm propiciaram que eu pudesse realizar a pesquisa com bastante proveito. Ver que para aqueles jovens as imagens antigas da Maré também surpreendiam, demonstrou-me que não só o lugar, mas o tempo também era outro. Melhor explicando: se para mim, ali eu estava numa ‘outra’ parte da cidade, marcada por estigmas como um lugar diferente por excelência; a visão daqueles jovens confirmou que muita coisa havia mudado ali. A imagem da Maré como lugar de miséria deveria então ser relativizada. Ao andar pela Maré, mais especificamente na Nova Holanda, descobri que as antigas casas de triagem, que um dia foram idênticas, já haviam se transformado. Foram reformadas, ampliadas verticalmente e remodeladas ao gosto de cada morador, sendo distintas entre si. Em muitas delas, há um comércio no primeiro pavimento, podendo ser este um bar, armarinho, videolocadora, fliperama, aviário, etc. As ruas estão asfaltadas, não vi esgoto correndo a céu aberto e o amigo/morador citado anteriormente, possui internet em casa. Em outras comunidades da Maré que estive, como a Baixa do Sapateiro e Morro do Timbáu, a situação é a mesma. Vale apenas ressaltar que não andei pela maior parte da Maré, para que pudesse afirmar aqui um retrato fiel de que o que vi ocorra em toda a Maré. Há relatos de que a situação é diferente na favela Marcílio Dias, incorporada à Maré quando da criação da XXX Região Administrativa. Ali estariam sendo reerguidas as palafitas por conta dos esgotos que correm a céu aberto, sendo um foco de proliferação de ratos e doenças.7 De qualquer forma, o caso da Nova Holanda é exemplar por esta estar longe de ser uma das áreas mais ‘nobres’ da Maré, conforme o Censo realizado pelo Ceasm (que apresentaremos no capítulo III), sendo ela uma comunidade ‘intermediária’ (comparativamente ao restante da Maré) em vários indicadores sócio-econômicos. As descrições de outras comunidades8 feitas pela literatura referente ao tema se assemelham ao que vi na Maré. No início da década de 1980, Alba Zaluar estudaram a Cidade de 7

“Maré de descaso” (sítio eletrônico Viva Favela: www.vivafavela.org.br, 02/01/2003)

8

Em Sociologia Do Brasil Urbano (Leeds & Leeds, 1978), Anthony Leeds trava uma discussão, sobre o conceito de

comunidade e sua aplicação ao caso das favelas. Segundo Leeds, o conceito deriva de uma transferência mecânica do que se aplica, nas ciências sociais, ao estudo de aldeias ou tribos para as favelas. Leeds entende que as favelas não se tratam de aldeias ‘isoladas’, mas locais em que seus moradores constituem relações em estrutura locais (vizinhança, igreja, escolas de samba, etc.) e supralocais (partidos políticos, parentes, Estado, etc.) sendo que as próprias instituições locais também se relacionam à nível supralocal (como a sede local de uma igreja com outras ou 21

Deus, conjunto habitacional na Zona Oeste do Rio inaugurado em 1966, com moradores removidos de outras favelas. E já naquela época, no livro A Máquina e a Revolta (1985), derivado deste seu estudo, ela descreve o conjunto. Se em uma parte da Cidade de Deus ela vê “… ruas esburacadas, cheias de lama e dejetos fétidos dos esgotos já arrebentados…”_ o cenário não é homogêneo em todo conjunto, como ela constata _ “… casas típicas de classe média suburbana com dois ou três andares, janelas de esquadrias de alumínio, grades de ferro enfeitadas, ladrilhos e cerâmicas, lado a lado com casas despojadas, pintadas em cores bem fortes, com as modificações do projeto inicial nunca terminadas. As primeiras são encontradas na rodovia principal que corta o conjunto e nas ruas mais próximas a ela, as segundas estão espalhadas por toda parte, mas concentram-se visivelmente nas ruas interiores. (…) Junto à avenida principal, tem-se a impressão de estar num bairro de subúrbio. Dois bem equipados supermercados, uma grande padaria, uma farmácia, vários bares e armarinhos ajudam a compor a fachada típica dos demais bairros da região.” Outra comunidade em que esta heterogeneidade é percebida é Acari, descrita por Marcos Alvito, em As Cores de Acari (2001). Ou melhor, Parque Acari, uma das quatro comunidades que compõem Acari9, que segundo um morador ouvido por Alvito, seria a ‘Zona Sul’ de Acari: a ‘matriz’; as associações de moradores e os órgãos de estado, entre muitos outros exemplos). Leeds prefere o termo localidade, que seria referência de organização de uma dada população, que se agrega num espaço e se entende como distinta de outras comunidades, o que não impede seu relacionamento com estruturas de nível superior à localidade. Além da localidade não postular uma unidade mínima ou máxima, assim, o morador pode ser da Nova Holanda, mas também da Maré, da cidade do Rio, etc. e não de uma comunidade como se fosse algo fechado. De modo que a localidade abarca mesmo uma pessoa que não tenha nascido na favela ou ainda, que não more nela, mas que tenha constituído laços de algum tipo ou que tenha que executar alguma tarefa específica na favela, como por exemplo um ex-morador que participe de uma ONG, como é o caso do Ceasm na Maré, ou um agente de um órgão estatal como policiais militares entre outros. Ou seja, as favelas existem se relacionando com estruturas supralocais, às quais se relacionam com uma favela específica tanto quanto com quaisquer outras favelas. No decorrer deste estudo pude constatar que, dependendo do interlocutor, os termos utilizados podem tanto ser comunidade (quase sempre acompanhado do adjetivo carente), entendendo favela como um termo pejorativo e estigmatizado; ou do contrário, utilizar os termos favela e favelado como forma de valorizar uma identidade própria. Assim, decidimos utilizar ambos os termos (comunidades e favelas) indiscriminadamente, sem maiores juízos de valor ou explicações sociológicas. 9

Um das surpresas de Alvito foi descobrir quatro comunidades onde se pensava existir somente Acari: Coroado,

Parque Acari, Amarelinho e Vila Esperança, além de cada uma delas se subdividir em microáreas. Assim como na 22

“…há pelo menos três lojas que vendem roupas de grifes famosas, inclusive surfwear (embora estejamos bem longe da praia). Aí se concentra o que aquele mesmo morador chamou de a ‘classe média da favela’. (…) Adentremos esta rua, que atravessa toda favela Parque Acari. Ela é bem asfaltada, com diversos quebra-molas. É bem iluminada e provida de um comércio bem variado: uma bela padaria, em cujo andar de cima funciona uma academia de ginástica e dança; vários armarinhos (um deles dispondo de fotocopiadora); uma videolocadora; uma pequena gráfica; um açougue; uma farmácia; uma peixaria; um aviário…” _ A descrição do comércio existente em Parque Acari é tão extensa quanto o comércio é variado, abrangendo vários ramos, desde pequenos vendedores de ‘churrasquinho’ até um posto de recolhimento de amostras laboratoriais. Alvito chama a atenção que sua descrição se refere a Parque Acari de junho de 1997, e que apenas um ano e meio antes, quando iniciou sua pesquisa, muitos destes estabelecimentos não existiam. O que é corroborado pela lembrança dos antigos moradores, que possuem memória das transformações ocorridas: “… a transformação dos antigos ‘barraquinhos feitos com tábuas de caixote’ na sólida casa de alvenaria (…) os aterros sucessivos que tornaram habitável uma região tão pantanosa onde havia jacarés. (…) No Parque Acari, somente os que têm 40 anos ou mais se lembram da época em que a rua Piracambu tinha mais ‘mato’ do que casas, ou de que lá havia até uma pequena lagoa (…) ao sair para o trabalho tinham que levar um par de sapatos adicional para pôr ‘lá fora’, pois havia muita lama (…). No Coroado, os que têm hoje pouco mais de 20 anos ainda se lembram dos barracos de madeira (às vezes tirada de caixotes de legumes), da vala servindo de banheiro, da água buscada do outro lado da avenida Brasil, dos lampiões de querosene, das precárias gambiarras. Os adolescentes já não se lembram disso. Talvez a favela também lhes pareça carente. Os moradores mais antigos, porém, lembram-se que a rede de abastecimento de água e a rede de esgotos são conquistas recentes.”[o grifo é meu]. Pelos exemplos citados (outros poderiam ser apresentados) podemos ver que as transformações ocorridas nas favelas, principalmente nas décadas de 1980 e 1990 são percebidas

Maré (e em várias outras comunidades do Rio de Janeiro) também se verifica a existência de várias comunidades. O modo como se apresentam como uma comunidade apenas ou como parte de algo maior (Nova Holanda ou Maré, Parque Acari ou Acari) é algo bastante flexível, variando de acordo com o interesse em jogo. Este tema será melhor abordado no Capítulo III. 23

tanto pela ‘academia’ quanto vivenciadas pelos moradores. E também são confirmadas pelo último censo realizado pelo IBGE em 2000. Nele, se constata que nas três maiores favelas do Rio, os dados sobre a quantidade de domicílios atendidos por rede geral de água impressionam, tendo a Maré praticamente a totalidade de seus domicílios atendidos: 99,9%; a Rocinha e o Complexo do Alemão não ficam muito atrás: 97,3% e 97,9% respectivamente. Quanto à coleta de lixo, os índices também são altos: 99,9% na Rocinha; 94,9% na Maré; e 99,3% no Complexo do Alemão. Os indicadores destas três favelas cariocas são muito superiores à média registrada para o Norte e Nordeste do Brasil10. Em outro levantamento, datado de 1997, realizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro (Favelas cariocas: índice de qualidade urbana), descobre-se que as dez favelas cariocas com melhores índices de qualidade de vida registravam indicadores acima da média de toda cidade. Enquanto as primeiras tinham 2,62% de água inadequada, o Rio tinha 3,9%. Quanto à taxa de esgoto inadequado: 6,84% para as favelas; 8,9% para o Rio. Coleta de lixo inadequada: favelas, 1,64%; Rio, 4,3%.11 Mas o IBGE define favela, como o fez ainda no último censo, como: “Aglomerado subnormal (favelas e similares) é um conjunto constituído de no mínimo 51 unidades habitacionais, ocupando ou tendo ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) disposta, em geral, de forma desordenada e densa, bem como carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais.” Pelos próprios dados do IBGE apresentados acima, pode se verificar que a realidade das favelas hoje é muito mais complexa, não sendo esta definição a mais adequada para descrevê-las hoje em dia. Vemos que pelo IBGE, a favela se caracteriza principalmente pela ausência, seja do título de propriedade do terreno, do ordenamento nas construções, de serviços públicos. No entanto, vê-se que no Censo 2000, realizado por este órgão, as favelas têm razoável oferta de serviços públicos (sua qualidade e a origem de sua implantação é uma discussão que faremos no capítulo II deste estudo). As favelas conseguiram, seja por seu próprio esforço, seja por investimento do Estado (ou os dois juntos) contar hoje com uma oferta variada de serviços públicos, em que o 10

“Favela bate indicadores de Norte e Nordeste.” (Folha de São Paulo, 21/12/2001) e Favelas cariocas: índice de

qualidade urbana. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / IplanRio, 1997 – Coleção Estudos da Cidade 11

“Vida na favela é melhor que na periferia.” (Folha de São Paulo, 23/04/2000) 24

grau e qualidade variam não apenas de uma favela para outra, mas mesmo dentro de cada favela as diferenças são marcantes. Sendo assim, o que define uma favela não pode continuar a ser uma suposta ausência de serviços públicos. Quanto à propriedade da terra, vários conjuntos habitacionais, ou mesmo algumas favelas, conseguiram o título de propriedade, embora realmente estes componham uma minoria12. Por outro lado, conforme noticiado pela imprensa, no decorrer de 2002 e 2003, a Prefeitura do Rio realizou uma campanha (que inclui a demolição) contra a construção ilegal13 de prédios de classe média alta na Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes. Segundo consta, os construtores não tinham a posse dos terrenos, entre outras irregularidades. Poderiam estes prédios, por não estarem legalizados, serem qualificados como favelas então? Construções toscas e desordenadas existem ainda, e são muitas. Particularmente no eixo atual de instalação de novas favelas, na Zona Oeste do Rio.14 Nestas realmente notamos ainda barracos de madeira ou de outros materiais. Mesmo em algumas favelas de ocupação antiga existem as tais construções toscas. Mas em muitas favelas as casas já carregam décadas de investimento de seus moradores: são casas de alvenaria, pintadas, com três pavimentos, sem nada a dever às casas de classe média. Inclusive, conforme vimos nos trechos descritos acima, é comum os moradores perceberem e se referirem a distinções entre quem mora ‘para dentro’ ou na ‘rua principal’ da favela, ‘na parte de cima’ ou ‘na de baixo’, entre comunidades que possam compor uma favela (ou um complexo) ou ainda, entre as áreas específicas da favela. Podemos ver que se numa parte da Rocinha há iluminação, asfalto, casas de alvenaria e até pequenos prédios de até sete andares15, e ruas de intenso comércio, com agências bancárias e filiais de lojas que existem por toda a cidade. Este comércio é tão consolidado que existe uma 12

Não conseguimos obter dados à respeito da porcentagem de favelas que seus moradores tenham títulos de

propriedade, só nos restando o consolo de estarmos em ilustre companhia. Segundo noticiado na imprensa, um dos problemas para a implantação do Projeto de Regularização Fundiária em favelas do governo federal é esta ausência de dados sobre título de propriedade: “Projetos esbarram até na falta de dados precisos sobre quantidade de favelas.” (O Globo, 05/01/2003) 13

“Quatro mil imóveis fora da lei.” (O Globo, 20/10/1999)

14

“Estudo aponta mais 49 favelas na cidade.” (O Globo, 20/04/2003)

15

“Cada vez mais verticais.” (O Globo, 09/08/2002) 25

associação de comércio e indústria local (Acibro – Associação Comercial e Industrial do Bairro Rocinha). Avançando para o alto e para dentro da Rocinha, veremos que existem ainda as valas de esgoto correndo a céu aberto, lixo acumulado, e casas com aspecto de inacabadas, com tábuas como parede em um dos lados da casa. Em Acari, Alvito (2001) percebe as distinções sociais entre as microáreas que compõem as comunidades. Conforme se dirige para o interior da favela, ele descreve que os estabelecimentos comerciais vão rareando, e o traçado geométrico da entrada da favela dá lugar a mais becos, “… são vias mais estreitas e sinuosas, com um nível de urbanização inferior às ruas propriamente ditas.” Em cada comunidade de Acari que percorre a constatação é a mesma, quanto mais se adentra a favela, menos urbanização, mais sinuoso é o trajeto e há mais casas inacabadas. As distinções sócio-econômicas presentes no traçado das ruas e no aspecto das casas (somadas a outros fatores como um marco geográfico, a origem dos moradores, a história da ocupação, etc.) contribuem para formar o que Alvito chamou de microáreas dentro de cada comunidade: Buraco Quente, Couro Grosso, Barreira, Bico Doce, Mangue Seco… Em Rio das Pedras, ao invés das microáreas de Acari, existem o que Burgos (2002) chama sub-áreas, que segundo o autor podem ser enquadradas nas categorias periférica, intermediária e central. Na primeira categoria, temos o Pantanal, descrito no livro por um morador como a “favela da favela”, e que Burgos descreve: “No Pantanal, estão muitos indivíduos e famílias que ainda ontem moravam nas ruas, e que conquistaram junto ao espelho d’água da Lagoa da Tijuca uma área para aterrar e erguer suas casas. Ainda que vivendo em meio a cobras e ratazanas, expostos a recorrentes enchentes, e tendo que se adaptar ao fato de que o solo afunda, obrigando-os a uma constante revisão do pé direito da casa, para a maioria deles estar ali significa uma vitória.” Burgos faz ainda a descrição das áreas intermediárias (Vila dos Caranguejos, Areal I e Areinha) que preterimos a descrição aqui para irmos direto ao ‘centro’ de Rio das Pedras. Além de ser o núcleo de habitação original da favela, é nesta área que se encontram as famílias de maior prestígio social, poder político e econômico. Não à toa é nela que se localiza a enorme e bem aparelhada sede da Associação de Moradores de Rio das Pedras. Bem ao lado, está localizado o Pinheiros, de habitação recente, com a ocupação da área planejada e coordenada pela associação de moradores, e que segundo Burgos, apropriada pela ‘elite’ da favela, e que mesmo apesar da ocupação recente “Trata-se de uma área com maior índice de urbanização que as demais ocupações, e a se tirar pelo tipo de construção das casas, o 26

nível de renda de seus moradores parece ser superior aos das demais áreas, sendo evidente também, o processo de verticalização, indicando valorização imobiliária (…) a sub-área foi a primeira a ser beneficiada pelo projeto Favela-Bairro.” Uma outra diferenciação que ocorre em Rio das Pedras é quanto ao conjunto Rio das Flores. O conjunto de prédios, contíguo à favela, inicialmente construído para abrigar parte da população de Rio das Pedras, acabou servindo para abrigar flagelados das chuvas de 1996, que causaram deslizamentos em várias favelas da cidade causando muitas mortes e desabrigando várias famílias. Pelas condições sócio-econômicas (a população de Rio das Flores é mais pobres que a média de Rio das Pedras), étnicas (a população de Rio das Pedras é majoritariamente de origem nordestina, e na de Rio das Flores predominam negros e mulatos) e as histórias de ocupação diferenciadas, a fronteira entre o conjunto e a favela de Rio das Pedras é mais simbólica que espacial, sendo Rio das Flores um ‘outro’ para Rio das Pedras, que acaba por reforçar a identidade desta (Burgos, 2002). Pelo que se pode constatar, existem favelas e favelas, e mesmo dentro de cada uma as variações entre suas partes, áreas, sub-áreas, microáreas, é enorme. Vemos então que o termo favela na verdade, em que pese a aparente evidência do que significa, pode abranger localidades que apresentam tantas distinções, quanto tantas são as favelas do Rio de Janeiro. Incluiria tanto conjuntos de prédios como o conjunto Amarelinho de Acari, quanto os barracos que vemos em várias favelas. As que ficam em encostas bem íngremes como Santa Marta e Formiga, quanto à plana Rio das Pedras. Favelas com mais de cem mil habitantes como a Maré quanto à favela da Rua Rodano - Lote 22 Quadra 31, com 62 habitantes, na Ilha do Governador.16 Aliás, várias favelas carregam todas estas diferenças dentro de si. Assim, a Maré possui sua maior parte plana, mas existe o morro do Timbáu; mesmo em Rio das Pedras já há a ocupação de pequenas encostas do Maciço da Tijuca. Na Rocinha há o Bairro Barcellos, cujos moradores em sua maioria têm o título de propriedade de suas casas e até uma certa resistência de se verem como integrantes da Rocinha (a ponto de constituírem sua própria associação de moradores), em que

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Ver Favelas cariocas: índice de qualidade urbana. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / IplanRio, 1997 –

Coleção Estudos da Cidade. Vale lembrar que o para o IBGE só se configura uma ‘favela’ as que tiverem mais de 50 unidades habitacionais, o que torna problemático os dados computados por aquele instituto, visto que no caso do Censo por exemplo, muitas favelas não são registradas como uma localidade específica. 27

pese à ausência de qualquer limite físico para quem olha a Rocinha de baixo. E há ainda as oposições entre cariocas x nordestinos como em Acari com Amarelinho X Coroado (Alvito, 2001); moradores novos x antigos, como em Rio das Pedras, entre o Pantanal e a parte central (Burgos, 2002); entre conjuntos (prédios) x casas, como na Cidade de Deus (Zaluar, 1985 e Valladares, 1978). Ou seja, é relativamente difícil definir o que é uma favela, visto que é um termo que abrange localidades tão distintas entre si. E o problema se agrava a partir das transformações das últimas décadas, que nos impede de definir a favela a partir do que lhe falta (Silva, 2002). Porém, não podemos esquecer que a sociedade em geral o faz, daí a aparente evidência do termo favela. A categoria favela permanece presente na mídia; como objeto de ação de políticas governamentais e de ONGs; ou ainda, como objetos de estudos acadêmicos (que é o nosso caso). Em que pesem as diferenças entre as favelas e seus moradores, estes adquiriram um status próprio, o de favelado. Ainda segundo Silva (2002) pode-se, com muita cautela, afirmar que “a favela venceu. Mas e os favelados?”. Contra as tentativas de remoção, erradicação e os preconceitos que enfrentaram e enfrentam até hoje, elas continuam a existir, e conforme veremos (Capítulo II), a grosso modo, em melhores condições do que antes. Mas seus moradores “… continuam a serem portadores de uma cidadania restrita, hierarquizada e fragmentada (…) a ‘vitória da favela’ ocorreu à custa da constituição de uma categoria social subalterna, cuja intervenção na cena pública, duramente conquistada, não mexeu no padrão de sociabilidade urbana, pouco alterando sua posição relativa na estratificação social e seu papel como força social.” (Silva, 2002).

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A sociedade brasileira se caracteriza pela falta de um aparato institucional que deixe claro o papel desempenhado por cada um na arena política, a partir da posição que ocupa na produção de riqueza e no acesso a ela. O que queremos dizer é que, no que diz respeito ao acesso aos bens produzidos, isso está muito bem definido pela posição de cada um no processo de produção. Resumindo um esquema que já foi bastante simplificado aqui: cada um sabe o quanto ganha e o que pode comprar. Porém esta mesma nitidez não ordena a posição de cada um na arena política 28

ou mesmo nas relações sociais. Muitas vezes (não sempre) convivemos em vários lugares. No caso do Rio de Janeiro, no carnaval ou na praia, apenas para dar dois exemplos. Desde os tempos da colonização portuguesa, várias formas de relação perduram na nossa sociedade ainda hoje (como o patriarcalismo ou o compadrio) típicas do ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda (1995). Nossas regras de convivência na sociedade não se caracterizam por uma cidadania universalista nos moldes de uma república baseada em relações impessoais do liberalismo, onde estando definida a posição de cada um no processo de produção, lidamos com nossos interesses através de instituições criadas para regular esta convivência, como a justiça, sindicatos, etc. As relações que caracterizam nossa sociedade ao se basearem na cordialidade (que não é sinônimo de bondade, mas de agir baseado na emoção. Uma relação cordial pode tanto ser um favorecimento pessoal no emprego quanto uma demissão por alguma vingança, ambos sem nenhum critério técnico), amortecem tensões entre classes, acomodam os desequilíbrios. O patrão pode continuar pagando um baixo salário, mas participa do futebol de domingo, então é ‘gente boa’. Ou ainda as famosas ‘caixinhas de natal’, que dispensam maiores comentários. As relações de trabalho no Brasil, mesmo depois do Estado Novo, nunca atingiram uma ampla regulamentação, que abrangesse amplas categorias do mundo do trabalho, como os trabalhadores do campo, ou mesmo a massa dos trabalhadores urbanos. A ausência desta ampla regulamentação do mercado de trabalho, e a partir deste, de um aparato político e institucional que o sustentasse, onde os atores, tendo seus papéis e regras definidas pudessem atuar, gerou um sistema no Brasil, que mesmo estando baseado no trabalho assalariado, a precariedade das leis que regem o mercado de trabalho, dificulta a definição de categorias: empregados, subempregados, desempregados… E também dificulta a legitimidade de um sistema que por não legislar claramente sobre um ponto básico da economia, os custos de reprodução da força de trabalho (que tem por conseqüência a fatia a que os trabalhadores terão direito no mundo do consumo) abre espaço para que estas se regulem por outras formas, como o clientelismo, por exemplo. A consolidação do capitalismo brasileiro, notadamente a partir da década de 1930, não foi acompanhada de uma ampla transformação social que determinasse as posições dos novos agentes que surgiram em cena e nem os espaços políticos sobre os quais atuariam. Pelos fatores aqui apresentados, como a não-universalização e não-institucionalização do mercado de trabalho brasileiro, os favelados nem são incorporados a uma condição de cidadão, 29

nem deixados à parte, como se não existissem. O que ocorre é que o Estado freqüentemente os controla, organizando ‘por cima’ a convivência entre os vários segmentos da sociedade brasileira. A incapacidade do Estado em exercer uma função básica, que seja, a de regular o mundo do trabalho de forma que garanta aos trabalhadores os custos de reprodução do trabalho, incluindo aí o custo de moradia, tem como paradoxo a existência de um Estado com pouca legitimidade, que não diria respeito à muitos de seus ‘cidadãos’, em constante busca para superar esta pouca ilegitimidade: ora através do assistencialismo, ora através da repressão. Bem ou mal, esta situação pôde-se manter devido às taxas de crescimento econômico do Brasil verificadas até a década de 1970. Este crescimento permitiu ao Estado brasileiro conseguir sua legitimidade através de algumas concessões conjugando também alguma repressão. O crescimento econômico permitia ainda gerar expectativas constantes, e algumas vezes realizada, de incorporação dos segmentos menos favorecidos no mercado de trabalho e até ‘galgarem’ uma posição acima da qual se encontravam (Machado, 1991).17 Isto dificulta um auto-reconhecimento por parte dos trabalhadores, e no caso que nos interessa, dos favelados. Pois se nas favelas existem vários trabalhadores braçais, existem também profissionais liberais, com poder aquisitivo de classe média. A partir do que então podemos definir os favelados como categoria? Pelo instável e anômico mercado de trabalho brasileiro brevemente analisado, fica difícil encaixar os favelados em categorias como operários, autônomos, biscateiros, informais. Até porque na favela as várias categorias podem morar numa mesma casa. Para Zaluar (1985), a identidade dos favelados se forma a partir da atuação nas diversas esferas de seu local de moradia: associações de moradores, praças, bares, agremiações recreativas-culturais-esportivas. Em que pese a heterogeneidade econômica que possa existir numa favela, a homogeneidade das múltiplas práticas e vivência cotidiana num mesmo local cria e renova os seus símbolos de identidade. As situações em que são colocados na categoria de subalternos, bem como as estratégias de resistência a estas situações forjam laços que não são

17

Isto é válido até a crise dos anos 1980 e sua continuidade durante toda a década de 1990, quando a perspectiva de

incorporação ao mercado de trabalho, e consequentemente, ao mundo do consumo se vê bem limitada quando não inexistente. A reflexão referente à esta afirmação preferimos fazer nos outros capítulos, incluindo o que trata sobre o tráfico, na nossa opinião uma das conseqüência desta crise. 30

fixos, nem definitivos, mas estão constantemente sendo renovados e reinterpretados. Estes laços dão o significado de sua identidade. Como, por exemplo, quando são vítimas da discriminação da polícia, ou quando no passado, reagiam a uma tentativa de remoção, ou quando hoje são impedidos de circular na comunidade de um ‘comando rival’ (ver adiante, capítulos III). O Estado ao lidar com a favela, considerando-a como um ‘problema’, define sua condição de moradia ilegal e/ou irregular. Intrinsecamente seus moradores são considerados marginais por, além de todas as descrições já apresentadas aqui, ocuparem a cidade de modo ilegal. Assim, para Machado (2002), é a condição de moradia dos favelados que define sua autoimagem, a partir da qual vão atuar. Ou seja, o que determina sua auto-identificação como parte integrante de uma mesma categoria, favelados, mesmo que economicamente heterogêneos, são os seus interesses comuns nas esferas urbana e social, com reivindicações de direito à cidade apresentadas em diversos instrumentos, um dos quais é a associação de moradores. A construção desta identidade se deu através dos constantes desafios que a favela enfrentou. Em inúmeras ocasiões, a favela para sobreviver teve de funcionar em uníssono: contra um senhorio que quisesse aumentar demasiadamente o aluguel; contra uma tentativa de remoção; para dotar a favela de água e luz, através de comissões ou ‘gatos’; para trazer obras do Estado para a comunidade. Frente ao Estado que sempre destinou parcos recursos para estas áreas, a união e mobilização dos moradores eram o principal (ou mesmo o único) recurso que as favelas dispunham. Ainda que de maneira subordinada, as favelas são funcionais e incorporadas a cidade. Os favelados funcionam como peça importante do jogo eleitoral, pois constituem importante fonte de votos; os favelados são vitais para o funcionamento da economia da cidade, como oferta de mão-de-obra barata em diversos setores, além de constituírem também um mercado consumidor que não pode ser desprezado. Por tudo isso, as favelas não são um mundo à parte ou uma outra cidade. A expressão de ‘cidade partida’ pode ter sido válida como denúncia quanto às desigualdades que marcam o Rio de Janeiro, mas ela mais confunde do que esclarece, impedindo de ver de que os favelados não são ‘excluídos’, mas incorporados (ao Estado, à economia, à cidade) de maneira subordinada, desigual e principalmente, ‘controlada’. Ao insistir na descrição de ‘cidade partida’ corre-se o risco de naturalizar o que se quer denunciar (para os bemintencionados) e reforçar o que várias vezes se tentou e se tenta fazer, uma cidade com espaços bem demarcados para ricos e pobres, ‘morro’ e ‘asfalto’, além de simplificar uma questão que é 31

complexa, não se resumindo simplesmente em ‘juntar duas partes’, mas sim superar problemas seculares no que tange às desigualdades que marcam nossa sociedade. Enfim, tornar a cidade um espaço de todos. Refutada a idéia de cidade partida, vemos que as favelas constituem sua identidade a partir de suas relações com o Estado, bem como com toda a cidade. Podemos resumir o que se disse na frase de Anthony Leeds, as favelas sempre tiveram função na cidade e foram objetos de preocupação do Estado: “Como uma força eleitoral e de trabalho, (…) elas devem ser mobilizadas (…); como uma força potencial de greve e desordem, elas devem ser contidas ou ativamente e reprimidas.” (Leeds & Leeds, 1978) Os favelados são aproveitados pelo sistema de diversas maneiras. São eles que aceitam os mais baixos salários, baixando custos de reprodução não só nos setores da indústria e comércio, mas mesmo no orçamento familiar de classe média, como com as empregadas ou pequenos biscates realizados pelos favelados, como um conserto ou uma obra em casa. Não pode ser desconsiderado de que a atração que as cidade exerceram na segunda metade do século XX até a década de 1980 nos migrantes que vieram para as favelas, contribuiu por um lado para atenuar o efeitos que este contigente teria no campo, em tensões pela posse da terra que marcaram esta época (Grynszpan, 2002). Por outro, este numeroso exército de reserva de mão-de-obra serviu para manter os custos de reprodução da força de trabalho um dos mais baratos do mundo. Para a classe média, os favelados ainda servem para comprar objetos de segunda mão ou mesmo se os favelados ganham estes objetos, prolongam sua utilidade, evitando que tenham como destino o lixo e o desperdício, processo diferente do que ocorre nos países capitalistas centrais, e que acarreta em sérias conseqüências ambientais. Para muitos políticos os favelados são importante fonte de votos, não necessitando serem angariados de maneira dispersa, mas apenas em seu curral eleitoral, que seja uma favela qualquer onde o político reivindique a paternidade de ações, que figuram como favores, mesmo que sejam realizadas pelo Estado e com dinheiro público, inclusive o dos próprios favelados. Muitas vezes essas obras são apresentadas como se o político a tivesse levado para a comunidade atendendo uma reivindicação da associação de moradores e que, em troca de votos, vai poder fazer mais pela comunidade, reproduzindo um importante mecanismo de controle: já que são os diretores da associação que figuram como os que conquistaram a obra por terem conhecimento e acesso aos 32

canais do Estado, e deste jeito conseguem permanecer à frente da associação. Reproduz-se continuamente o clientelismo, mudando apenas os seus beneficiários. Os favelados servem ainda como contraponto aos demais trabalhadores da sociedade, principalmente à classe média, que nas últimas décadas vê o seu poder aquisitivo cair, mas que se sente privilegiada diante dos barracos que olham de seus apartamentos, reduzindo assim tensões que possam surgir devido a queda de seu poder aquisitivo. Mais que isso, para muitos membros da classe média, os favelados (por sofrerem várias formas de preconceitos econômicos e/ou raciais) são os culpados dos desequilíbrios no sistema, já que não trabalham, desperdiçam dinheiro público e, mais recentemente, são os criminosos que assaltam e matam. Assim, poupase de críticas o sistema que gera a desigualdade, responsabilizando os que mais sofrem com ela, inclusive a sua face mais dramática hoje que é a violência do tráfico. Daí a metáfora que batiza este capítulo. Dizem que se você puser vários siris numa lata, eles não conseguem sair porque uns vão se apoiando nos outros para subir, tendo como resultados que todos permanecem no mesmo local: presos na lata.

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Neste primeiro capítulo tentamos demostrar que o favelado não é um ser marginalizado, excluído ou à parte da cidade, mas ao contrário, é justamente a cidade que ele busca. E à ela que ele quer se integrar, usufruir o que ela oferece de oportunidades de ascensão social, de empregos, instrução, serviços e lazer. As favelas se instalam nas áreas ‘vazias’ da cidade, sempre próximo de onde haja oportunidade de emprego e uma razoável oferta de serviços, como hospitais e escolas. O surgimento das favelas acompanha e deriva do crescimento da cidade. Os terrenos onde as favelas se instalavam eram geralmente morros, encostas, pântanos e mangues, portanto, sem interesse à especulação imobiliária. A propriedades destes terrenos era ou de origem duvidosa ou pertencentes à União e demais órgãos do Estado. Uma das prioridades era estar próximo ao emprego ou aonde este pudesse ser arrumado com maior facilidade: áreas industriais, ou no caso das favelas da Zona Sul, empregos na construção civil ou em serviços. Para explicar o que queremos dizer, vamos dar alguns exemplos: a favela do Jacarezinho surge na década de 1920, acompanhando as indústrias na Zona Norte; as primeiras comunidades daquilo que viria a ser a Maré, surgiram nas décadas de 1940 e 1950 acompanhando não só a 33

instalação de várias indústrias na Zona Norte, mas também a abertura da avenida Brasil, um dos principais eixos rodoviários do Rio; a ocupação da Rocinha ganhou força com a construção de prédios na Zona Sul e Barra da Tijuca; e não à toa as áreas tidas como o atual eixo de crescimento do Rio, Barra da Tijuca e Jacarepaguá, registrem duas das maiores taxas de surgimento de novas favelas.18 Os favelados construíram sua identidade a partir de uma história comum em cada comunidade. Da ocupação dos terrenos, passando pela construção de suas casas, a luta pela permanência no local. A configuração espacial da favela, com casas próximas umas das outras não lhes permitiu grande privacidade; as relações de solidariedade, como em caso de doença ou para tomar conta de filhos gerou o sentimento de pertencerem à uma comunidade em oposição ‘ao exterior’, que poderia ser tanto o asfalto ou o Estado (Oliveira et alli, 1993). A favela torna-se uma opção para escapar dos custos com moradia e transporte. Se em décadas atrás a opção de ocupar um terreno e construir uma casa inicialmente com madeira e materiais diversos barateava os custos com a aquisição de uma casa própria ou com aluguel, décadas de investimento dos moradores valorizaram suas casas, dotando-as com um conforto mínimo interno e também configurando-a externamente com uma aparência que nada fica a dever com as existentes nos demais bairros da cidade. Pela precariedade das relações de trabalho, muitas vezes sem ter assegurada uma aposentadoria para o futuro, ou mesmo no presente sem ter estabilidade no emprego, a possibilidade de aumentar a casa é extremamente importante para o favelado, pois ela possibilita que um pavimento seja utilizado por um filho que se casa ou que seja alugado para terceiros, aumentando assim a renda familiar.19 A favela oferecia outras vantagens: até poucas décadas atrás, não era difícil ver nas favelas da Zona Sul e Zona Norte numa área contígua às moradias uma roça com plantação e 18

“Estudo aponta mais 49 favelas na cidade.” (O Globo, 20/04/2003)

19

Para ilustrar essa afirmação, pude verificar as transformações numa casa de três andares na Maré. Segundo seus

moradores, anteriormente, a casa era de madeira e com um pavimento só. Hoje ela é de alvenaria, e se sua estrutura material conta com razoável conforto, verificado pelos móveis e eletrodomésticos, seu interior ‘desordenado’ demostra que as transformações nela foram e estão sendo feitas ao longo de anos, conforme as necessidades e as possibilidades de seus moradores. Por exemplo, a casa possui ao mesmo tempo cômodos com paredes muito próximas contrastando com outros mais espaçosos; se na parte mais baixa da casa a pintura é impecável, em outro dos andares algumas paredes não tem acabamento “ainda!”, como me disse um dos moradores. 34

criação de animais (ver foto da Rocinha/1958 no anexo, daí o nome Rocinha inclusive). Pelo adensamento populacional que essas favelas passaram, com a diminuição dos espaços vazios, a prática já não é tão comum, mas ainda ocorre, principalmente em favelas da Zona Oeste do Rio, como em áreas de Rio das Pedras, por exemplo. Outra vantagem é a possibilidade de, por estarem próximo de áreas com um poder aquisitivo maior, os moradores das favelas (incluindo seus filhos) realizarem pequenos bicos como forma de ajudar no orçamento da casa, ou mesmo como única fonte de renda no instável mercado de trabalho do Brasil. Ao mesmo tempo, os favelados enfrentam discriminação como no tratamento que a polícia dispensa; ou na hora de arrumar empregos, obrigando-os a dar endereço de parentes ou não especificar exatamente onde fica sua rua, o mesmo acontece quando realizam uma compra no crediário de uma loja; para citar estes entre muitos outros exemplos. Uma parte do estudo de Janice Perlman O mito da marginalidade…(1977) é dedicada a descrever alguns dos mitos sobre os favelados, já apresentados aqui anteriormente. Em outra parte do livro a autora se dedica a desfazê-los. Segundo ela, os favelados não possuem comportamento marginal, mas aspirações burguesas às quais não têm oportunidades de satisfazêlas, devido aos preconceitos que sofrem e a rígida estrutura social brasileira que dificulta muito a mobilidade social. Desde sua infância os favelados têm dificuldades de adquirir instrução, pelas grandes dificuldades que a escola pública no Brasil enfrenta hoje em dia, somada à própria dificuldade do favelado em manter-se na escola, tendo desde cedo que contribuir com o orçamento familiar, ou ele próprio ter prioridades diferentes da família quanto a gastos e procurar sua própria fonte de renda. Num ciclo vicioso, aos favelados ficam geralmente os piores empregos: os que têm menor remuneração, piores condições de trabalho, e menor estabilidade. Os favelados, segundo Perlman, também não são conformistas nem revolucionários, mas se aproveitam do sistema buscando os benefícios que ele possa oferecer. Entre assegurar o que conquistou ou arriscar uma luta por uma transformação radical, os favelados preferem a primeira. Investem seus esforços e suas economias no que já conquistaram: suas casas e em sua comunidade, às quais as benfeitorias conseguidas foram por seu esforço direto, empregando sua mão-de-obra, ou por terem criados canais com agentes do Estado, podendo se considerar privilegiados por terem conquistado essa relação. 35

Isso gerou entre os favelados importantes laços de solidariedade, encontrada por Janice em várias favelas. O que nos remete ao que falamos anteriormente, o maior trunfo das favelas são seus moradores e sua capacidade de atuarem em conjunto. Os favelados ajudam uns aos outros em diversas situações, criando uma teia de relações importante para sobreviverem em condições difíceis. Assim, os favelados contam com diversas organizações comunitárias, que organizam a favela internamente, e são seus canais para se relacionarem externamente, seja com outras favelas, seja com o Estado. Estas organizações vão desde escolas de samba e times de futebol até as associações de moradores. Ou seja, a imagem de apatia e isolamento das favelas não corresponde à realidade. Os favelados se integram na cidade em todas as esferas: econômica, social, cultural. O que não quer dizer igualdade, seja perante a lei (na prática) ou no acesso a riqueza produzida. Concordamos com a crítica de Zaluar (1985) a uma visão que estaria presente no livro de Perlman, que ao desfazer os mitos da marginalidade, mostrando os favelados como partícipes da economia urbana; integrados culturalmente, com participação política longe de radicalismos, em suma: possuindo “aspirações da burguesia e valores dos patriotas”; ela estaria vendo o que seria uma identificação positiva dos pobres com a sociedade, na versão que a classe dominante tem desta. A sociedade surge como una, indivisa, como se houvesse uma única visão disseminada por todas as classes, sem alteridades e tensões como as que existem em qualquer sociedade. Perlman só reconhece a participação dos favelados em estruturas reconhecidas pelas elites, acabando por menosprezar alguns mecanismos de controle exercidos sobre os favelados, e os conflitos que marcam as relações destes com estes mecanismos. Além de ver uma atuação um tanto homogênea dos favelados, de forma que ali eles aparecem como tendo um único comportamento possível, o que está longe de ser verdade. Para exemplificar o que estamos falando, tomemos o caso das políticas de remoção de favelas na passagem das décadas de 1960-70 e a transferência dos favelados para conjunto habitacionais. No próprio livro de Perlman, uma de suas conclusões é de que a transferência dos favelados da favela da Catacumba para o conjunto do Quitungo. Segundo ela, a transferência para os conjuntos habitacionais destroçou laços comunitários, como a solidariedade da favela e suas organizações, além destes conjuntos possuírem condições de vida piores do que as favelas, o que acabava por causar o fracasso da política de remoção e muitas vezes significava até a volta de muitos removidos para a favela. Valladares (1978), estudando o conjunto habitacional da 36

Cidade de Deus, já identifica que os favelados ao não conseguirem manter o pagamento das prestações das casas, as passam adiante, com a ‘cessão de direitos’ da moradia no conjunto a pessoas de classe média, usando o dinheiro arrecadado para voltar à favela, ou ainda, que atrasavam propositadamente o pagamento das prestações como forma de reação a uma política imposta, ou seja, a transferência compulsória para os conjuntos. Alba Zaluar (1985), também estudando a Cidade de Deus, contraria a tese de Valladares dizendo que o número de favelados que ‘passaram a casa’ não foi tão numeroso, e que a volta à favela não era algo tão desejado assim, pois a Cidade de Deus, por abrigar removidos de dezenas de favelas diferentes, seria, ainda que com vários problemas, um lugar melhor do que algumas das favelas de onde vieram. Assim, o atraso das prestações era mais uma estratégia de sobrevivência, de escolhas de prioridades dentro de um orçamento apertado, do que uma reação a remoção. Importa aqui menos entrar no mérito da questão abordada do que ver que cada autora, a partir de comportamentos variados dos moradores dos conjuntos habitacionais, pôde chegar a uma conclusão diferente da maneira de como os favelados agiam frente a remoção. Só para constar, os três estudos foram realizados com cerca de uma década de diferença entre o primeiro e o último. Mesmo que daí se chegue a uma conclusão (a qual não concordamos) de que o espaço de tempo tenha permitido verificar melhor as conseqüências do processo de remoção e o impacto destes para os removidos, ficaria então a análise de que o comportamento dos favelados se altera conforme a conjuntura.20 O que foi dito até aqui não tira o mérito de Perlman, por denunciar por exemplo, a cultura da pobreza que responsabiliza o pobre, e não o sistema que gera e mantém sua pobreza, pela sua situação. Esta prática é utilizada até hoje, por exemplo na palavra da moda em programas dirigidos a comunidades de baixa renda: empreendedorismo, a solução de combate à pobreza passa pela simples inserção deste no mercado ( ver capítulos II e III). O que se pode apreender das várias ações do Estado dirigidas às favelas é que apoós as políticas de expurgo destas, que até os anos 1970 prevaleceram; não ocorreu sua substiutição por políticas que as ‘incorporassem’ à cidade de modo amplo e que, paralelamente a isso, elevassem os favelados à categoria de cidadãos, tanto quanto o resto dos que vivem na cidade são, em 20

O programa de remoção, a transferência para os conjuntos habitacionais e as conseqüências decorrentes disso

foram superficialmente analisadas aqui, deixando para o capítulo II um aprofundamento desta questão. 37

outras palavras, à cidadania existente em nossa sociedade, que já enfrenta grandes dificuldades de ser exercida. As políticas para as favelas, por serem fragmentadas, descontínuas, apresentadas mais como fruto da vontade de um político e/ou do bom relacionamento de um líder da favela do que um direito fundamental e obrigação do Estado, fazem com que as favelas permaneçam como algo à parte da cidade, ‘sob controle’. Vale dizer que isso não significa exclusão: “Os grupos assim explorados não são marginais, mas integrados em larga medida no sistema, funcionando como uma parte vital do mesmo. Em resumo, integração nem sempre significa reciprocidade.” (Perlman, 1977). Em que pese todas as obras e ações que chegam às favelas, através do Estado ou ONGs, os favelados figuram como cidadãos de segunda-classe. Vale dizer que muitas favelas têm como contraponto desta ações “a inexistência anterior destes serviços.” (Oliveira et alli, 1993). Se a situação nos permite uma brincadeira: os favelados hoje têm dois modelos de comparação: o primeiro é a situação anterior de possuírem uma cidadania de ‘quarta-classe’; o outro é a cidadania do asfalto, de ‘primeira-classe’, pelo menos nos moldes do Brasil. Um dos objetivos deste estudo é demostrar que os estigmas que recaem sobre os favelados são mais uma construção social, que atende aos mais variados interesses, do que um retrato fiel da realidade. Os estigmas são aproveitados por políticos ‘salvadores’, que se aproveitam de práticas clientelistas para aparecerem como a única chance de atenuar a situação de penúria dos favelados; atribui a culpa da pobreza ao pobre, isentando assim um sistema que não oferece oportunidades iguais à todos, e que sobrevive através da reprodução da desigualdade. Através de mecanismos, como o mito da marginalidade, constantemente reatualizado, mantêm-se o status quo. O mito é revitalizado cotidianamente, numa espécie de profecia que se auto-cumpre. Se os favelados são vistos como marginais, eles são marginalizados em diversas ocasiões, como no emprego ou em serviços públicos; se são todos bandidos, convém a polícia tratá-los como bandidos, alimentando o ódio e a desconfiança em relação à ela; se são todos cidadãos de segunda-classe, à eles não cabe tratá-los de modo respeitoso como se fosse um cidadão. É um ciclo que se retroalimenta a cada ação que marginaliza o favelado, qualificando-o como marginal e permitindo que se continue de tratá-lo como tal, e requalificá-lo, e assim sucessivamente. O raciocínio que acabou de ser apresentado pode parecer simples, e de fato o é, e é justamente sua simplicidade que esconde o fato de ser uma das bases da nossa sociedade, a qual 38

indica a posição que cada um deve ocupar na produção de riqueza, no acesso à esta riqueza produzida, enfim: o lugar de cada um na cidade. Desta construção participam inclusive os favelados, pois estes, como já foi dito, por não viverem em outra sociedade, mas especificamente nesta, compartilham das visões hegemônicas vigentes, de modo que assumem os estigmas e passam a atuar com base neles. Participando, por exemplo, de maneira ativa do jogo do clientelismo (que é baseado antes de tudo em reciprocidade); ou ainda, não raro, proferem um chavão diante das adversidade a que são submetidos: “Pobre não tem vez mesmo.”_ resignando-se a aceitarem sua posição de inferioridade na sociedade apenas tentando manobrar dentro da pequena margem que lhes é oferecida neste sistema. O que não quer dizer que tal aceitação seja comum a todos os favelados. Diga-se de passagem, favelado é antes uma identidade, construída pelos diversos fatores aqui levantados, do que uma condição inerente à uma determinada pessoa. Por isso afastamos a possibilidade de que o que afirmamos aqui seja uma regra irrestrita a todos os favelados sem exceção, ou que não exista graduações. O que também não quer dizer que as afirmações até aqui apresentadas não tenham base científica, pois foram extraídas a partir de pesquisas de campo, entrevistas, materiais produzidos pelos próprios favelados em associações e ONGs, além de alguns pontos serem compartilhados pela literatura anterior referente ao tema. Janice Perlman pondera ainda o que mantém os mitos, ou melhor, quais interesses estão em jogo para mantê-los. O principal seria a cultura da pobreza, que afirma que o pobre é responsável pela sua condição. Entre outros pontos, os mitos da marginalidade têm a função, ou deles derivam, cinco principais pontos, resumidamente: isolam segmentos das classes trabalhadoras, com a distinção entre trabalhadores favelados x não-favelados; a partir da visão de que os favelados por si só são incapazes de superarem sua condição, isto só se dará ‘pelas mãos’ de salvadores (políticos, autoridades ou demais agentes externos, como ONGs e igrejas), assim, através de medidas paliativas ou pequenas concessões mantém-se a relação de controle sem que mudanças efetivas sejam realizadas; os mitos justificam perante a sociedade a pobreza de alguns, sem revelar o que de fato causa tal desigualdade social, dando legitimidade e credibilidade ao sistema; torna legítima diversas ações voltadas aos favelados, se por um lado eles são ‘carentes’, qualquer ‘migalha’ que lhes seja destinada será bem vinda, pois é mais do que eles têm; e por outro, e este é de uma atualidade assustadora, sendo marginais (e perigosos) estes não devem ter 39

direitos, devendo ser tratados de maneira dura. Por vezes, os próprios favelados internalizam os mitos, culpando a si mesmo por sua situação, conformando-se por vezes com a repressão que são submetidos, outras aceitando ‘migalhas’ como gestos de boa vontade21, ou ainda, aceitando o jogo e participando dele à sua maneira, categoria na qual o tráfico de drogas nas favelas se enquadra. Para Alba Zaluar, esta aceitação deve ser relativizada, pois os favelados não são mero receptores desta (ou de outras) ideologia. Se o mito da marginalidade é antes de tudo uma estratégia de dominação, não há porque achar que o resultado desta estratégia na sociedade seja único ou mesmo ‘acabado’. Conforme já foi dito, os favelados participam da produção de sua identidade, pensam sobre o lhes acontece (qual lugar ocupam na sociedade) e sobre como são vistos. As estratégias de sobrevivência dos favelados numa sociedade desigual são muitas e variadas, podem incluir desde a aceitação, manobrando dentro dos espaços possíveis buscando tirar o maior proveito que lhes é permitido, mas também incluem a resistência, a luta ou ainda, a revolta. Assim, há também favelados que vêem num sistema no qual são discriminados, e no Estado que não os defende, a culpa por sua situação de pobreza, marcando sua atuação em cima desta análise. Não quero dizer que daí decorre uma atuação ‘revolucionária’, no sentido de transformação radical da sociedade (o que não quer dizer também que este tipo de ação não exista). Pode-se montar um curso pré-vestibular numa favela, como o Ceasm, de modo que esta ação possibilite surgir universitários na favela (e as conseqüências vindas deste fato, o de ter universitários na favela), sem que isso signifique se ver como culpado de sua situação de pobreza 21

Num estudo que deu origem a um livro utilizado aqui neste trabalho, Favelas e Organizações Comunitárias

(Oliveira et alli, 1993), feito pela Fundação Bento Rubião, criada e dirigida por diversos líderes comunitário, realizado em onze favelas cariocas constatou-se entre outras coisas que entre os favelados era comum a visão de que ‘agentes externos’, inclusive técnicos de empresas de serviço público como a Light e a Cedae, eram pessoas de boa vontade por estarem se deslocando do asfalto à favela para implementar um serviço. Vale registrar que o livro tem grande valor por estar analisando justamente uma época de grandes transformações das favelas, o início dos anos 1990. Ou seja, após a entrada de diversos serviços públicos nas favelas, a incorporação de diversas lideranças comunitárias na máquina do Estado, a ascensão do poder do tráfico nas favelas e as conseqüências de todos estes fatores nas favelas e suas organizações. 40

e tampouco desprezar as lutas nos canais institucionais para modificar o sistema. No capítulo III veremos que o Ceasm trabalha com empresas e vários órgãos estatais, mas que não deixa de ter uma análise crítica da atuação do Estado para as favelas, e inclusive reivindicar mudanças nesta atuação. Vale lembrar que muitas das lideranças do Ceasm tiveram como experiência anterior de militância as associações de moradores, ao qual eles viram limites para atuar de maneira crítica e transformadora em relação ao Estado. Outro exemplo do que queremos dizer é a Fundação Bento Rubião, que conta com um projeto, entre outros que desenvolve, de regularização fundiária, sem desconhecer os canais do Estado como instância legítima de atuação, nem vendo nos favelados os únicos culpados por sua própria situação. A luta dos favelados travada durante todo o século, e o fazem ainda hoje, foi para terem acesso a cidade. Foram os ex-escravos e demais pobres expulsos dos cortiços ou sem condição de pagarem aluguel em casas de cômodo, que não só queriam, mas precisavam estar nas partes da cidade onde houvesse trabalho. Foram alvo de inúmeras campanhas de ‘limpeza’ visando expulsá-los das áreas centrais da cidade, sobrando-lhes assim ocupar as encostas e pântanos desprezados. Foram os trabalhadores que apesar da extensão dos direitos trabalhistas, não foram incorporados ao mercado de trabalho formal, sobrevivendo dia a dia com astúcia e contando com a solidariedade de seus vizinhos. Os migrantes que se juntaram na busca por uma vida melhor, vindo também participar na luta pela cidade. E lutaram inúmeras vezes para terem assegurado seu direito básico a moradia, a tanto custo conquistado e com tanto esforço empreendido para fazer com que os antigos barracos de madeira, taipa, ou tudo mais que servisse como parede fossem transformados em casas de alvenaria, com vários pavimentos que abrigassem filhos, parentes, ou gerasse uma renda extra para família, alugando uma parte de sua ou abrindo um negócio. Os esforços coletivos para que a favela continuasse a existir e/ou desfrutasse de uma infra-estrutura mínima os levou a se organizar em associações de moradores, canal com o qual se relacionavam com o Estado. Estes esforços foram posteriormente absorvidos pelo Estado, contavam agora com recursos financeiros e critérios políticos para escolher as favelas beneficiadas e os beneficiados da favela, transformando os antigos mutirões de vizinhos baseados na solidariedade em importante fonte de poder para uns, e única oportunidade de empregos para outros. O clientelismo se sofisticava. 41

A identidade dos favelados também foi construída através de suas manifestações culturais, como o samba, as quadrilhas juninas, e demais manifestações com as quais os favelados não só se afirmavam positivamente mas também criavam laços com o asfalto, formando um dos aspectos mais ricos e talvez o mais marcante do que é o Rio de Janeiro. O samba originário de terreiros de ex-escravos da Praça Onze no Centro do Rio tem como um dos seus palcos o Sambódromo, e se tornou um negócio de milhões de dólares, exibido em rede nacional e também para outros países. Além de ser um dos elos de ligação entre diversas esferas da sociedade, desde os favelados, passando por grandes empresas, pelo Estado, e até por nebulosas relações com a esfera da ilegalidade. O discurso da ausência do Estado também é desmentido pela constante vigilância na qual os favelados sempre estiveram submetidos. Nos primórdios das favelas, após a Revolta da Vacina em 1904, a polícia subiu o morro da Favela à procura de revoltosos, sem encontrar nenhum (Carvalho, 1987). E através do século XX sua atuação não sofreu grandes modificações, sendo permanente a ida da polícia às favelas à procura de criminosos, não importando em distinguí-los dos moradores e tratando todos de maneira arrogante e à margem da lei, visto não considerarem os favelados como cidadãos. Para as autoridades e mesmo a sociedade, tal brutalidade seria tolerável e até necessária para disciplinar os favelados, mantendo as favelas sob controle e a cidade sob ordem. E este controle e vigilância assumiu várias faces além da polícia: autoridades sanitárias, visto que as favelas eram consideradas focos de doença; ‘fiscais’ que impediam construção de novos barracos (Alvito, 2001); da Igreja, através de várias instituições que atuou (ver capítulo II); de uma associação de moradores que tivesse à sua frente uma diretoria mais autoritária. A luta dos favelados pelo espaço à cidade em vários episódios registrou vitórias importantes, com o Estado atendendo reivindicações dos favelados que não podem ser menosprezadas, no Operação Mutirão da época de Lacerda, no Projeto Rio na década de 1970, as várias obras do governo Brizola ou, mais recentemente, o Favela Bairro. Mas um traço comum nestas vitórias é a permanente relação desigual entre os favelados e o Estado, marcada sempre como uma tentativa de controle político por parte do Estado, condicionado a votos e a incorporação de suas lideranças na máquina clientelista da vez, fosse ela lacerdista, chaguista, brizolista… Pode-se dizer que mesmo quando as vitórias são alcançadas, a não amplitude destas ações (como um programa de urbanização, por exemplo), restringidas a determinadas favelas, 42

fragmenta a organização dos favelados, que passam a lutar para que a ação chegue à sua favela, ao invés de uma resolução efetiva de seus problemas, atuando muito mais em cima de laços verticais, dos favelados com a autoridade constituída, do que em laços horizontais, que implicaria em questionar e buscar resolver efetivamente sua condição inferior na sociedade e seu espaço restrito na cidade. Pode se afirmar que a luta dos favelados pela cidade, e ações do Estado para as favelas se caracterizam por não incluir a cidadania como condição sine qua nom para superação da pobreza. Uma das faces mais cruéis desta condição de proto-cidadania em que vivem os favelados é que o tráfico nada mais faz do que aproveitar esta cultura e assumir várias práticas que sempre vigoraram nas favelas, levando-as a um grau inimaginável anteriormente: relação de clientelismo com a comunidade; controle dos favelados e de suas organizações; manutenção do status quo (da favela) pela violência.

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CAPÍTULO II :

UMA (PEQUENA)HISTÓRIA DAS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO.

“Minha cara autoridade eu já não sei o que fazer Com tanta violência eu sinto medo de viver Pois moro na favela e sou muito desrespeitado A tristeza e a alegria se caminham lado a lado Eu faço uma oração para uma santa protetora Mas sou interrompido a tiros de metralhadora Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela O pobre é humilhado, esculachado na favela Já não agüento mais essa onda de violência Só peço a autoridade um pouco mais de competência [vamo lá, vamo lá] Eu só quero é ser feliz Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci [ééé] E poder me orgulhar De ter a consciência que o pobre tem seu lugar.” Rap da Felicidade (Cidinho & Doca)

“Tivemos que remover algumas favelas. Removemos até algumas que existiam em terrenos muito valorizados, onde fazer

casinhas

populares

representava

um

tamanho

desperdício que seria um crime contra o pobre.” Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, sobre seu programa de remoção de favelas 22. 22

Carlos Lacerda, Depoimento. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987 (apud Lima, 1989). 44

A data de surgimento da favela no Rio de Janeiro é controversa. Há o registro de que, após a demolição do cortiço Cabeça de Porco em janeiro de 1893, nas proximidades da Central do Brasil, foi permitido ao seus moradores recolherem parte do material ao chão e utilizarem-no para construir novas moradias no morro da Providência (Vaz, 1986). Outra dá conta que após a Revolta da Armada, em 1893, soldados se alojaram no Morro de Santo Antônio, também no centro do Rio (Abreu, 1986). A versão mais corrente diz que após a campanha de Canudos, soldados vindos para o Rio à espera de pagamento por seus soldos, construíram suas moradias próximas ao Ministério do Exército, no Morro da Providência, batizando-o com o nome de Favela, similar ao monte situado ao lado do Arraial de Canudos. Algumas destas versões dão conta de que já haviam algumas habitações no morro da Providência, bem como habitações semelhantes em outros morros do Rio, incluindo o já citado Santo Antônio (conforme atesta levantamento da prefeitura realizado em 1897). De qualquer forma, consideramos o ‘marco zero’ da favela o ano de 1897, a partir do qual passou a figurar como uma forma de habitação específica, levando com o passar dos anos aos habitantes do Rio identificarem outros morros da cidade com características semelhantes e passarem a os chamarem também de favela, que assim deixou de identificar uma localidade específica para designar um novo tipo de moradia das classes pobres, inicialmente associada aos morros da cidade.23 A população do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX e virada do século XX, se concentrava principalmente na área que compreende hoje o Campo de Santana à oeste até a rua Primeiro de Março à leste, tendo ao sul e ao norte a Baía de Guanabara. Outra característica da parte central do Rio de Janeiro desta época eram seus morros (Providência, Pinto, Conceição, Santo Antônio, Castelo). Encravadas entre os morros, as ruas foram construídas muitas vezes, aterrando-se lagoas e pântanos. Nestas ruas, se localizavam os cortiços e casas de cômodo onde moravam as classes pobres da cidade. Nicolau Sevcenko, em seu livro A revolta da vacina… 23

Em interessante trabalho, Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense Marcier (in Zaluar & Alvito, 1998) analisam o

emprego da palavra ‘favela’ em várias músicas. Referindo-se apenas a designação de uma comunidade específica para se transformar num ‘substantivo’. 45

(1984) descreve assim o que era o Rio de Janeiro dos cortiços: “A enorme pressão por habitações levou os proprietários dos grandes casarões imperiais e coloniais, que ocupavam a região central da cidade, a redividi-los internamente em inúmeros cubículos, por meio de tabiques e biombos, os quais eram então alugados para famílias inteiras. Assim, transformados em imensos pardieiros, esses casarões acomodavam a maior parte da população urbana e transformavam a região central num torvelinho humano, que pululava. penoso e irrequieto desde as primeiras horas da manha, na luta por oportunidades cada vez mais escassas de sustento.” Os cortiços eram tidos como insalubres e focos de todo o tipo de doenças que assolavam o Rio: peste bubônica, malária, febre amarela, tuberculose, etc. No livro Cidade Febril… Chalhoub (1996) diz que a vinda de imigrantes e a crescente alforria de escravos a partir das décadas de 1850-60 contribuíram para aumentar o número destes tipos de habitações coletivas no Rio de Janeiro. Relatórios do Conselho de Saúde do Distrito Federal de 1886 apontam as más condições de higiene dos cortiços, recomendando ao governo a expropriação e demolição destes, e a transferência de seus moradores para outros tipos de moradia24. Proclamada a República, a necessidade de disciplinar e higienizar o espaço urbano permanece na mentalidade das autoridades. Com grande parte da população morando de aluguel (mais de 45.000 pessoas) em cortiços e estalagens, em 1890, o Código de Posturas Municipais instituía várias normas quanto estas habitações da cidade. O Código determinava: a necessidade de caiar as paredes da casa ao menos duas vezes por ano; azulejar cozinhas e banheiros; arejar os quartos com a instalação de aparelhos de ventilação; e ainda, a entrega da lista de locatários à polícia diariamente. De modo que toda esta população teria ficha na polícia atualizada diariamente. Como a lei ‘não pegou’, não poderemos saber que conseqüências sociais e políticas ela teria caso fosse seguida à risca. As modificações no país e em sua capital não se limitavam a esfera política. Desde a segunda metade do século XIX ocorriam diversas transformações econômicas, como uma ainda que tímida industrialização e o declínio da lavoura cafeeira fluminense. Ambos tinham como conseqüência a vinda de diversos migrantes (liberados também pela Abolição) que somavam-se às levas de imigrantes europeus que aqui chegavam atraídos, entre outras coisas, pelo fim da 24

(apud Leeds & Leeds, 1978) 46

mão-de-obra escrava. O crescimento demográfico da cidade fez com que passasse de cerca de 515 000 pessoas em 1890 (Censo 1890, apud Carvalho,1987) para cerca de 706 000 em 1904 (Joffily, 1998). Tal crescimento

era visto como um dos fatores que agravavam as já

problemáticas condições de higiene da cidade. A imprensa da época assim descrevia o Rio de Janeiro: “ Rio de Janeiro, a capital das doenças e epidemias nacionais - No verão, o porto e a cidade são atacados pela febra amarela. No inverno, o inimigo é a varíola (3 566 mortos em 1904). Por todos os lados há cólera e os surtos de peste bubônica. Na falta de um hospital, tuberculosos buscam refúgio em cortiços e favelas. Esse é o triste retrato do Rio de Janeiro, onde os esforços do Dr. Oswaldo Cruz, iniciados no anos passado, estão longe de chegar ao fim. Quatro entre cinco imigrantes que descem em seu porto sucumbem á febre amarela. A doença atinge tropas inteiras de companhias teatrais. Os brasileiros mais abonados fogem do Rio. Vão para Petrópolis, de onde avistam o Rio de muito longe. É para Petrópolis que sobem também, no verão, o presidente da República e seus ministros, deixando a Capital Federal entregue aos ratos, insetos e aos pobres. O Rio, a antiga corte, é uma vergonha nacional.” 25 A demolição do Cabeça de Porco em 1893 se dá neste contexto de repressão aos cortiços e demais moradias pobres. Consideradas insalubres por um lado; por outro eram consideradas sempre como possíveis focos de agitações populares, por neles morarem os negros, os imigrantes, e demais trabalhadores pobres. O Cabeça de Porco simbolizava todo tipo de chagas deixadas pela herança colonial que a República procurava superar. Nos projetos de uma cidade que se queria moderna, arrojada, que fosse símbolo da renovação, a população mestiça, irracional, inculta e supersticiosa era vista como entrave a uma civilização guiada pela razão, em busca de ‘ordem e progresso’. Os cortiços eram símbolos de um Rio de passado colonial e mestiço que devia ser superado. Da velha cidade de ruas estreitas, sujas, anti-higiênicas, surgiria em seu lugar uma cidade moderna, arejada, de amplas avenidas, jardins, em suma, que tivesse beleza e ordem à altura da civilização que se queria construir. Em

25

100 ANOS de República: um retrato ilustrado da história do Brasil. Editora Nova Cultural, São Paulo, 1989. vol.

II (1904-1918). apud sítio da biblioteca virtual da Casa de Oswaldo Cruz (www2.prossiga.br/Ocruz) 47

meio à Belle-Epoque26, as elites queriam fazer do Rio uma Paris tropical, e a população pobre da cidade era vista como um entrave a este plano (Benchimol, 1993). Em quinze de novembro de 1902, Rodrigues Alves tomava posse na presidência do país, anunciando em seu discurso a realização da várias obras na capital federal. Para prefeito, Rodrigues Alves nomeou o engenheiro Pereira Passos, que já tivera passagem em assunto de obras urbanas no Rio de Janeiro, tendo participado ainda no Império (em 1875) da elaboração do Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Para fazer frente a tal obra, Pereira Passos contou com poderes quase ditatoriais, pedindo a suspensão da câmara de vereadores por seis meses, podendo legislar através de decretos (Carvalho, 1987). A reforma teria três eixos: sanear – ordenar– embelezar. Durante o ano de 1903 são contratadas as firmas responsáveis pelas obras, que se iniciam em 1904. As obras não ficariam a cargo somente da prefeitura, tendo o governo federal assumido algumas delas, como o saneamento; a conclusão do Canal do Mangue; a abertura da Avenida Central (rebatizada Rio Branco em 1912); e a construção da avenida do Cais (hoje Rodrigues Alves) pondo fim aos antigos trapiches, modernizando o cais do Porto adequando-o para os novos tempos. Outra atribuição do governo federal foi o arrecadar financiamento para as obras. A prefeitura se responsabilizaria pela demolição dos cortiços e demais prédios do centro antigo, permitindo a abertura e o alargamento de diversas ruas como as ruas da Prainha (hoje rua do Acre), Visconde de Inhaúma, Assembléia, Sete de Setembro, e do Sacramento, que foi prolongada recebendo o nome de avenida Passos. Outra tarefa da prefeitura também seria o embelezamento de logradouros públicos.

26

Expressão que designa o clima intelectual e artístico do período que vai aproximadamente de 1880 até o fim da

Primeira Guerra Mundial, em 1918. Foi uma época marcada por profundas transformações culturais que se traduziram em novos modos de pensar e viver o cotidiano. Inovações tecnológicas como o telefone, o telégrafo sem fio, o cinema, a bicicleta, o automóvel, o avião, inspiravam novas percepções da realidade. Com seus cafésconcertos, balés, operetas, livrarias, teatros, boulevards e alta costura, Paris era considerada o centro produtor e exportador da cultura mundial. A cultura boêmia imortalizada nas páginas do romance de Henri Murger, Scènes de la vie de bohème (1848), era um referencial de vida para os intelectuais brasileiros, leitores ávidos de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Zola, Anatole France e Balzac. Ir a Paris ao menos uma vez por ano era quase uma obrigação entre as elites, pois garantia seu vínculo com a atualidade do mundo. Fonte: sítio eletrônico do CPDOC – FGV (www.cpdoc.fgv.br) 48

Pereira Passos também estabeleceu uma série de códigos de conduta para as ruas, como a proibição de nelas ordenar vacas, cuspir, urinar, entre outras práticas comuns do carioca. As restrições também se estendia às casas da área central da cidade, como a criação de suínos e o cultivo de hortas. José Murilo de Carvalho (1987) diz que muitas das medidas de Pereira Passos já haviam sido editadas em governos anteriores, mas que desta vez: “A população já se dera conta de que pelo menos o esforço de aplicação da lei seria muito maior.” Uma das medidas para sanear a cidade dizia respeito ao remodelamento urbano: as ruas deveriam ser alargadas, criando condições para arejar, ventilar e iluminar melhor os prédios. Por outro viés, quanto a higiene, as epidemias como febre amarela e peste bubônica deveriam ser combatidas preventivamente. Para isso, o médico sanitarista Oswaldo Cruz foi nomeado diretor do Serviço de Saúde Pública, cuja tarefa seria a limpeza e desinfecção de ruas e casas, que seriam feitas através das brigadas sanitárias compostas por 1 chefe, 5 guardas mata-mosquitos e um operário de limpeza pública. Estas percorreriam as ruas e visitariam as casas desinfetando, limpando, exigindo reformas quando necessário (a abertura de uma janela para ventilar o ambiente por exemplo). As brigadas tinham autoridade para interditarem as habitações enquanto tais reformas não fossem feitas e até ordenarem a demolição quando se mostrassem impraticáveis. Os alvos principias da campanha sanitária eram as áreas mais pobres, e mais densamente povoadas, onde dezenas de pessoas se espremiam nos cortiços, casas de cômodo e estalagens. A derrubada de cortiços não se deu só por motivos sanitários. Assim como em Paris, a reforma urbana também era importante para o controle do espaço urbano e da população, vista como um fator de desordem em plena capita da República. Para Nicolau Sevcenko, a base da Reforma de Pereira Passos foi _“O replanejamento urbano de Paris, encarregando o Barão Haussmann de abrir amplos boulevards e avenidas, que impedissem a população de tomar a cidade de assalto, protegendo-se por trás de um cinturão de barricadas e enfrentando violentamente a polícia. As ruelas estreitas e o calçamento de pedras constituíram o cenário imprescindível dos vários motins, revoltas e Comunas de Paris, os planejadores urbanos logo o perceberam. As avenidas amplas e asfaltadas tornavam as barricadas praticamente inviáveis e davam total liberdade de ação à força policial. Não parece, pois, muito casual o fato de o engenheiro encarregado da reforma do Rio ter sido justamente o Prefeito Pereira Passos, que esteve em Paris e acompanhou de perto a ampliação do novo projeto urbanístico da cidade. 49

Pode-se deduzir, portanto, que a transformação do plano urbano da capital obedeceu a uma diretriz claramente política, que consistia em deslocar aquela massa temível do centro da cidade, eliminar os becos e vielas perigosos, abrir amplas avenidas e asfaltar as ruas. (Sevcenko, 1984) Quarteirões inteiros foram derrubados para alargar ou criar novas ruas. Tal operação ficou conhecida como Bota-abaixo, responsável pela demolição de 640 edificações apenas para abrir a avenida Central. Inaugurada a quinze de novembro de 1905, data de aniversário da República e da posse de Rodrigues Alves, a avenida era o novo eixo principal do Rio, rasgando o antigo centro da Prainha (posteriormente aterrada e hoje a Praça Mauá) até o Passeio. Já tendo sido inaugurada com iluminação elétrica e linha de bondes circulando, a avenida simbolizava o avanço e a modernidade que a capital da república deveria ter, agora regenerada física e moralmente (Rocha, 1986) A Avenida Central, abrigando prédios de arquitetura européia (que seguiam deliberações de Paulo de Frontin, um dos engenheiros encarregado das obras), que chefiava a comissão encarregada das construções, cujo mais simbólico é o Teatro Municipal (sua construção foi iniciada por Pereira Passos, mas foi inaugurado somente 1909), inspirado na Ópera de Paris, na França. Os cafés, as lojas de artigos de luxo, mais a Biblioteca Nacional e a Escola Nacional de Belas Artes davam os ares de Belle-Epoque que as elites desejavam. A capital do país deixava de ter feições coloniais e passava a ter ares burgueses. As reformas de Pereira Passos também implicavam em interesses milionários na especulação imobiliária, com intensa valorização do solo urbano da área central da cidade, e atendia interesses ligados à construção civil, inclusive firmas estrangeiras. Também a partir dela se configura uma lógica de segregação espacial da cidade (Abreu, 1986), destinando espaços separados aos ricos e aos pobres. Para se chegar a bela cidade de ordem e progresso, remodelando seu centro, foram feitas reformas que atingiriam em cheio as classes pobres que ali se concentravam. Cerca de 1.600 velhos prédios residenciais foram demolidos. Grande parte desta massa permaneceria no centro, subindo os morros, pois, mesmo com o crescimento da Zona Norte e subúrbios da cidade, os custos com transporte tornava essa alternativa inviável aos mais pobres, que ainda tinham no centro da cidade uma fonte privilegiada de oferta de trabalho. Assim, grande parte desta 50

população se dirigiu para as áreas próximas ao centro do Rio de Janeiro, como a Glória e a área da freguesia do Espírito Santo, localizada próximo à área onde seria hoje o bairro do Estácio.27 As reformas de Pereira Passos demostram que o foco de atenções das autoridades neste momento era o reordenamento do centro da Cidade, com o expurgo dos cortiços da área central da cidade. As favelas que já tinham surgido não constam como objeto de preocupação destas autoridades ainda28. No Decreto 391, de 10 de Fevereiro de 1903, durante os preparativos das obras, fica decidido que “…barracões toscos não serão permitidos, seja qual for o pretexto de que se lance mão para obtenção de licença, salvo nos morros que ainda não tiveram habitação mediante licença.” (apud Lima, 1989_ o grifo é meu). A tolerância com a prática dos próprios desalojados do Bota-abaixo, que recolhiam dos escombros de suas antigas moradias todo material que pudesse ser reutilizado para construir suas novas casas nas encostas dos morros que circundavam o centro (Abreu, 1996) é outro indício do que queremos dizer. Além disso, o próprio volume de obras da Reforma atraiu trabalhadores para o Rio, aumentando ainda mais o déficit de moradias já causado pela demolição dos cortiços, casas de cômodo e estalagens, o que 27

Um tema de grande controvérsia é a Revolta da Vacina, irrompida em novembro de 1904. Uma das polêmicas é se

ela foi uma reação às reformas de Pereira Passos. Por ser um tema muito extenso para ser tratado aqui, faremos apenas a menção. A causa mais evidente da revolta foi a obrigatoriedade por lei da vacina contra a varíola, que seria aplicada por agentes autorizados a entrar dentro das casas, obrigando “a esposa e a filha a desnudar braços e colos para agentes da vacina”. José Murilo de Carvalho pelos diversos participantes e os alvos das vaias e pedradas desses, aponta que a Revolta da Vacina conjugou várias revoltas dentro de si. O governo que já havia iniciado o ‘Botaabaixo’ e a política de saneamento das casas e cortiços por Oswaldo Cruz, ultrapassava os limites toleráveis de interferência na vida do povo com a possível entrada na privacidade do lar das pessoas por agentes sanitários para aplicação das vacina. Assim aos insatisfeitos com a obrigatoriedade da vacina somavam-se os comerciantes que com o deslocamento de casas no centro haviam perdido muitos fregueses, os militares e alguns operários organizados que queriam a derrubada do governo; os insatisfeitos com a má-qualidade e o alto preço dos serviços públicos. Para Murilo, foi uma revolta acima de tudo do povo para não ser tratado arbitrariamente pelo governo. Para maior aprofundamento ver: (Benchimol, 1993; Carvalho, 1987; Sevcenko, 1984). 28

Na troca de correspondência entre o delegado da 10ª circunscrição e o chefe de polícia do distrito Federal datada

de novembro de 1900 (apud Zaluar & Alvito, 1998), o morro da Favela já é apontado como um problema, “foco de ladrões e desertores do Exército ”, recomendando que se encaminhe a queixa à prefeitura, que através da Diretoria de Saúde Pública ordenaria a demolição dos “pardieiros” que ali se encontravam. Zaluar e Alvito não encontraram no Arquivo Nacional os documentos subsequentes, referentes às providências tomadas pela Prefeitura, só sabemos que a Favela no morro da Providência não foi derrubada. 51

elevou os aluguéis pela grande procura e pouca oferta, não restando outras alternativas para estes trabalhadores do Bota-abaixo juntarem-se aos desalojados indo para os morros, visto que era no centro da cidade que a maioria arranjava seu sustento.

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Nas primeiras décadas do século XX, a erradicação dos cortiços com o reordenamento e embelezamento da área central da cidade são prioridade das autoridades, não sendo as favelas objeto de preocupação durante a década de 1910. Na gestão de Carlos Sampaio na Prefeitura do Rio a partir de 1920, a questão da favela volta à tona, e mesmo assim de forma incipiente ainda. Carlos Sampaio fez a remoção de parte da população dos morros de Santo Antônio e Providência, ambas consideradas as primeiras favelas da cidade. Mas a grande obra de sua gestão, tanto no que tange ao ‘embelezamento/ higienização’ da cidade, quanto às classe pobres, foi o arrasamento do morro do Castelo, na parte central da cidade, ligado a fundação da cidade e onde estava enterrado seu fundador, Estácio de Sá, numa das mais antigas igrejas do Rio. O projeto de arrasar o morro era antigo, datando do século XVIII. Ganhando ímpeto após a Reforma de Pereira Passos, visto que continuava a existir a poucos metros da mais preciosa obra de toda a Reforma, a Avenida Central já então chamada de Rio Branco, um resto do Rio Antigo que se queria enterrar de vez, com casarões antigos e ainda uns poucos cortiços. O argumento higienista continuava, argumentando que a derrubada do morro iria ventilar o centro da cidade. “Aos antigos argumentos dos higienistas e dos engenheiros somava-se o de preparar a cidade para a Exposição Internacional de 1922, que comemoraria o centenário da nossa independência e atrairia milhares de visitantes estrangeiros, aos quais não deveríamos exibir assim escreviam os detratores da época. (…) ‘esta cárie’. (…) O arrasamento se iniciou às pressas, em 1920, e terminou por desalojar mais de 4 mil moradores. A terra, jogada às margens da antiga praia de Santa Luzia e no prolongamento da ponta do Calabouço, serviu para os aterros que abrigaram a Exposição de 1922 e dariam origem ao Aeroporto Santos Dumont. Datam destes anos as mais melancólicas imagens do Castelo, feitas principalmente pelos fotógrafos Augusto Malta e Guilherme Santos: os derradeiros moradores das ladeiras e dos cortiços, a última missa na Igreja de S. Sebastião, a transferência dos restos de Estácio, os 52

operários armados de picaretas avançando escoltados pelas escavadeiras mecânicas... Após o final da Exposição, a demolição prosseguiria lentamente até o final da década, deixando como marca uma extensa esplanada, que permaneceria por muitos anos inteiramente desocupada.” (Kessel, 1997). Nesta obra, às causas higienistas se somaram a questão paisagística. A ruptura da cidade com o seu passado continua a predominar. E como vemos, novamente esta ruptura se dá em segregar parte de sua população, a mais pobre, da cidade idealizada por sua elite e pelo governantes. As favelas crescem durante a década de 1920, passando de 1164 moradias em (Censo 1920 apud Alvito, 2003) para 2542 habitações em 1928 (Lobo et alli, 1992)29. O Rio de Janeiro constituía um pólo de atração de migrantes (entre os quais muitos portugueses). A capital do país não só era um importante porto, como passou a contar com fácil acesso também por terra, com a construção de rodovias pelos governos da República Velha, como o de Washington Luís (‘governar é abrir estradas’) que facilitou a chegada de pessoas atraídas pela industrialização. E ainda, a queda do preço do café (produto que anteriormente havia atraído para as áreas cafeeiras da região sudeste muitos migrantes) devido a Crise de 1929 foi outro fator que levou as pessoas para a cidade (Leeds & Leeds, 1978). Se até então a segregação espacial da cidade havia se limitado na erradicação dos cortiços das áreas centrais, a partir da prefeitura de Prado Júnior a relativa tranqüilidade que a favela gozava é interrompida. Foi encomendado ao urbanista francês Alfred Agache um plano de urbanismo para a cidade, cujo resultado é o Plano Agache, visando principalmente a questão da remodelação e embelezamento, apontando as favelas como um obstáculo a ambos. No relatório do Plano Agache, as favelas aparecem como um problema social, estético, de segurança, de higiene, enfim, as favelas são descritas como fonte de vários males à cidade: “…lepra, que suja a vizinhança das praias e os bairros mais graciosamente dotados pela natureza, despe os morros do seu enfeite verdejante. ”. Pelo relatório podemos ver também que as favelas são vistas como um local à parte da cidade: “Em toda a parte existe o contraste, os morros, estes rochedos isolados que surgem da planície central desses bairros do commercio 29

Os dados referentes a 1920 e 1928 são de fonte distintas. Enquanto o primeiro é a partir do Censo realizado pelo

governo federal, o segundo é a partir de relatos de delegados sanitários. Citados no livro Rio de Janeiro Operário… coordenado por Eulália Maria Lahmeyer Lobo. 53

possuindo bellos edifícios, com artérias largas ostentando armazéns movimentados, às vezes luxuosos, têm as suas costas e cumes cobertos por uma multidão de horríveis barracas. São as favellas uma das chagas do Rio de Janeiro, na qual será preciso, num dia próximo, levar-lhe o ferro cauterizador.” (Prefeitura do Districto Federal, 1930 apud Abreu, 1997_ o grifo é meu). A bem da verdade, Agache propõe que a remoção das favelas só se dê após a construção de habitações adequadas aos moradores da favela, entendendo que estes só moram em tais condições pela necessidade de estarem próximos ao local de trabalho. No entanto, algumas remoções chegaram a ser feitas em 1928. Dos já citados mais de 2500 barracos existentes, praticamente metade deles, 1200, próximos à Estação Marítima e à Central do Brasil, foram derrubados pelas autoridades de Saúde alegando razões de higiene e valorização das áreas. O Plano Agache não foi além de algumas obras pontuais de embelezamento, e a própria prefeitura de Prado Júnior não durou o suficiente para executá-lo. Após a Revolução de 30, o interventor Pedro Ernesto (depois Prefeito eleito indiretamente através da Câmara Municipal), teria dito ser o Plano Agache impraticável (Abreu, 1997). Pedro Ernesto também consta como uma interrupção nos prefeitos- urbanistas, priorizando as políticas sociais, nos campos da educação e saúde principalmente. Pedro Ernesto inaugurou hospitais, uma rede de escolas públicas, a qual faz parte inclusive a primeira escola numa favela, na Mangueira (Motta, 2001). Também é Pedro Ernesto que incorpora o desfile de escolas de samba ao calendário oficial de carnaval da cidade em 1935 (Burgos, 1998) Nas primeiras décadas do século XX, importantes mudanças, algumas já tratadas aqui, alteraram as relações de produção no Brasil que acabavam por modificar a configuração espacial da cidade. Vimos inclusive que às vezes o Estado assume a responsabilidade de modificar esta configuração adequando-a aos novos tempos e às novas necessidade. Assim, a industrialização e a fábrica como local de trabalho, a evolução do sistema de transportes coletivos (trens e bondes) tornou possível e até mesmo necessário a incorporação de novas áreas à cidade, que se ‘desconcentrava’ (Lima, 1989). O Estado através de planos de obras, remodelava o espaço urbano, como Pereira Passos e a tentativa de Prado Júnior através do Plano Agache. Na década de 1930, a crescente industrialização vai agravar ainda mais a questão habitacional no Rio de Janeiro. E a medida que a cidade se expandia desde a década de 1900, ainda de maneira horizontal, com o loteamento de grandes terrenos nos subúrbios servidos pelas 54

linhas de trem da Central do Brasil e Leopoldina, os ‘terrenos vazios’, encostas, pântanos, de sem-proprietário ou de propriedade duvidosa vão sendo igualmente ocupados por aqueles que não podem arcar com os custos ‘convencionais’ de moradia, cada vez mais altos pela valorização dos imóveis, ou com o transporte para os subúrbios do Rio. Uma assistente social verificou em 1942 (apud Parisse, 1969) que havia mais de trinta favelas no Rio de Janeiro, sintomaticamente localizadas nas áreas mais urbanizadas (Zona Sul, Tijuca) e industrializadas, como a favela do Jacarezinho, na Zona Norte, que à essa época era a maior do Rio (ver sítio eletrônico www.vivafavela.org.br)

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A questão habitacional das classe pobres nos primeiros anos da Era Vargas não são objeto de grande preocupação. Somente no Estado Novo que começa a ação do Estado em se responsabilizar em baixar os custos de reprodução da força de trabalho, incluindo aí a habitação (Lima, 1989). Uma das políticas implantadas no início da década, em 1933, é a incorporação das antigas caixas de aposentadoria e pensão dos trabalhadores e sua transformação em Institutos de Aposentadoria e Previdência (IAPs), que foram responsáveis pela construção, a partir de 1937 em conjunto com a Prefeitura do Distrito Federal, de quarenta e oito conjuntos habitacionais destinados aos trabalhadores durante as décadas de 1930 e 1940, dentre os quais: Padre Miguel, Realengo, Lins de Vasconcelos, Del Castilho, Penha, Irajá e Marechal Hermes (Lobo et alli, 1992). Desde 1939, os IAPs eram obrigados por lei a ‘alocarem parte de seus recursos a áreas de grande interesse social’ (Lobo et alli, 1992). Desta forma que se deu, por exemplo, a construção das 1400 unidades habitacionais em 1943 pelo IAPI (industriários) em Realengo, numa área comprada pelo IAPI, que também deveria financiar a compra dos imóveis. Em Lobo et alli (1992) consta que os cinco IAPs (sem contar o maior, o IAPI que não divulgou dados) construíram até agosto de 1943 3872 prédios. Ao mesmo tempo que o Estado promovia a construção de conjuntos habitacionais, o Decreto 6000, da Prefeitura, conhecido como Código de Obras, para organização sistemática da ocupação e uso do solo do Rio de Janeiro combate as formas de moradias das classe pobres já existentes. O Código de Obras proíbe a construção de cortiços e estalagens, permitindo aos já existentes realizarem apenas pequenos consertos. Tratando mais diretamente das favelas o 55

código determinava: a proibição da formação de novas favelas; qualquer reparo ou nova construção nas favelas já existentes; rigorosa fiscalização para impedir a proliferação das favelas, autorizando a demolição de barracos com aviso de vinte e quatro horas de antecedência; a extinção das favelas e sua substituição por núcleos de habitação do tipo mínimo (apud Burgos, 1998; Lima, 1989; Parisse, 1969; Valladares, 2000). O Código de Obras se inseria nas diretrizes traçadas pela Comissão de Elaboração do Plano de Melhoramentos do Rio de Janeiro. Este plano seguia o ‘modelo’ discutido poucos parágrafos acima de adequar a cidade remodelando-a. a partir dele foram realizadas importantes obras: como a avenida Brasil, importante artéria da cidade, ligando o centro às áreas industriais e às rodovias; a avenida Presidente Vargas no centro; o Corte do Cantagalo, na Lagoa; e a duplicação do Túnel Novo, ligando Copacabana à Botafogo; o aterro da Ponta do Calabouço, no centro; a urbanização da esplanada do Castelo; e o saneamento de áreas do subúrbio do Rio O combate às favela se explica por, além dos impactos negativos no aspecto urbanístico, os higiênicos que continuam a ser objeto de preocupação das autoridades30, e as favelas já começam a ser vistas como fonte de renda para aproveitadores que cobram taxas aos favelados (Lima, 1989). Também por essa época, as favelas já são caracterizadas pela elite como reduto da malandragem, dos negros e mulatos desafeitos ao trabalho. Para alguns intelectuais, a favela retrata a genuína alma brasileira, com seu samba e religiosidade, sua boa gente, solidária, simples e sincera. A partir da década de 1920, e principalmente a partir da década de 1930, a favela ganha visibilidade através de diversos intelectuais e artistas como, por exemplo, João do Rio, Benjamin Costallat e Noel Rosa (Carvalho, 1994), que divulgam esta imagem idílica do morro. Quanto ao axioma do morro ser local de boêmia, parecia ser compartilhado por todos, quer criticassem a favela, quer a louvassem. O projeto varguista de construção da nação passava pela elevação moral dos ‘trabalhadores do Brasil’, que deveriam estar à altura de tal projeto, que passava pelo tipo de moradia que se quer para existir uma classe trabalhadora que fosse disciplinada e vivendo conforme padrões higiênicos, éticos e morais da elite. As favelas são vistas como uma antítese à 30

O Rio de Janeiro dos anos 1930 possuía um alto índice de mortalidade, contrastando com a tendência mundial de

queda nas taxas de mortalidade por doenças. Entre as doenças, a tuberculose, associada à más-condições de vida, era a que mais matava (apud Lobo et alli). 56

tudo isto. Num artigo do jornal do IAPI (apud Lobo et alli, 1992), as moradias das classes pobres: “[são] todas, sem exceção, de má qualidade, compreendendo-se assim habitações prejudiciais à saúde física e moral dos inquilinos.” A favela, além de todos os riscos à saúde, constitui-se de um lugar degradante à moral, que não se enquadra num país que quer se industrializar e se desenvolver. Em 1941, o I Congresso Brasileiro de Urbanismo, realizado na capital do país, também combate frontalmente as favelas, com direito a examinar in loco uma delas, a Mangueira, numa visita organizada dos participantes do congresso. No jornal Correio da Manhã de 24/01/1941, a visita é relatada, e o ponto de vista apresentado é simbólico sobre como as favelas são vistas pelo senso comum no período: “O problema das favelas é dos que exigem solução radical mas pensada, um golpe mais transformador do que mortal. Porque até agora as favelas têm parecido imortais… de vez em quando uma, visada, desaparece como uma plantação de cogumelos varrida por súbito vento de destruição. As famílias protestam, mães assomam à porta dos barracos carregando nos braços filhos que ficarão ao relento, mulatos com o violão a tiracolo passam com a camisa listada, olham com desprezo os trabalhadores municipais, os do batente, que vêm lhes acabar com a casa, e partem para rumo ignorado.” (apud Lima, 1989). No decorrer do congresso, o tema favela é abordado ainda à respeito das qualidades étnicas e rurais de seus habitantes. É feita porém, a ressalva de que elas surgem à procura da inserção no mercado de trabalho. O congresso reforça as deliberações do Código de Obras de 1937, inclusive a substituição das favelas por moradias adequadas, se possível no mesmo local da favela. Na mesma linha do congresso, ainda em 1941, o diretor do albergue da Boa Vontade, Vítor Tavares Moura, elabora o Esboço de um plano para solução do problema das favelas do Rio de Janeiro. No plano, Moura propõe ao secretário de Saúde e Assistência do Distrito Federal, Jesuíno Carlos de Albuquerque a construção de casas modestas mas higiênicas, no local onde estão as favelas ou próximos a este. Moura indica ainda que um censo deveria levantar as características dos terrenos onde estavam as favelas, como eram os barracos, e um perfil dos moradores. Para construção dos novos locais de habitação, Moura recomenda que, da mesma maneira como as favelas surgem, se aproveite os espaços vazios entre os bairros sem que se afete de modo chocante o desenvolvimento da cidade, no que as casas inicialmente modestas irão dar lugar a melhores com o passar dos anos. Outro ponto que chama atenção é que Moura defende que o terreno das favelas poderá ser aproveitado para novas moradias, desde que o Estado tome 57

medidas “severas, todavia legais” contra proprietários inescrupulosos que exploram os terrenos (apud Parisse, 1969). Como conseqüência do plano de Moura, o secretário Jesuíno de Albuquerque nomeou uma comissão para dar seqüência ao plano, composta por médicos (entre os quais o próprio Moura) e engenheiros. A comissão encaminhou ao prefeito um plano final propondo ações preventivas e ações realizadoras para acabar com as favelas, contando com entusiástico apoio da imprensa (Parisse, 1969). Entre as ações, o plano recomendava o controle da migração, incluindo aí o recambiamento de indivíduos ao estado de origem; rígida fiscalização na obediência ao determinado no Código de Obras; recuperação social do favelado degradado pelas condições de moradia na favela. Como conseqüência do relatório e plano da comissão, iniciou-se a construção do Parque Proletário n.º 1, da Gávea (Parisse, 1969) 31. Além deste da Gávea, foram construídos mais dois parques proletários, o n.º 2, do Caju e o n.º 3, o da Praia do Pinto (Leblon). Os três juntos somavam de 7 mil a 8 mil moradores (Lima, 1989). Tendo sido extintas totalmente as favelas do Capinzal, Olaria (as duas na Gávea), Arará e Largo da Memória. E apenas parcialmente, a Praia do Pinto e Macedo Sobrinho. O serviço de propaganda estatal alardeava os avanços que os parques proletários significavam na questão habitacional e de promoção moral dos trabalhadores, noticiando também as constantes visitas que as autoridades realizavam aos parques. Até Getulio Vargas simbolicamente ganhou a chave de sua unidade no parque da Gávea, durante a cerimônia de inauguração (Burgos, 1998). Os parques seriam habitações provisórias, dentro do plano de Moura de se construírem moradias próximas as favelas, servindo o parque para ‘reeducar’ os favelados. A construção das novas moradias nunca saiu do papel, e o Parques Proletários, de provisórios, viraram moradias permanentes (Leeds & Leeds, 1978; Lima, 1989; Valladares, 1978).

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Em estudo publicado em 1943 (Favelas do Distrito Federal apud Leeds & Leeds, 1978) Moura realizou um censo

em 14 favelas que chega a conclusões diferentes do estigma desorganização social – malandragem - criminalidade que se pensa sobre as favelas na época. No estudo os favelados aparecem com uma elaborada organização social, contando com relações familiares sólidas e uma intensa vida associativa. Anthony Leeds (Leeds & Leeds, 1978) associa tal estudo como parte do relatório elaborado pela comissão, mas não tece maiores comentário sobre o assunto e nem achamos referência a ele na bibliografia sobre o tema Como as conclusões de Moura no relatório são diametralmente opostas ao pensamento que levaram a construção dos Parques Proletários (recuperação moral do favelado), não conseguimos elaborar conclusões a partir daí, só achando válido que vale o registro da questão. 58

O Parque Proletário n.º 1, o da Gávea, contava com escola, creche, clínica médica, área recreativa, posto de bombeiros, escola técnica, um posto da Caixa Econômica Federal, auxílio de alimentação através dos Serviços de Alimentação da Previdência Social (SAPS), além de uma igreja. A entrada dos moradores só era permitida através de carteiras de identificação, sendo os portões fechados às 22 horas. Mas antes, o administrador do Parque fazia o ‘chá das nove’, onde comentava os fatos do dia e fazia preleções sobre higiene e moral. O administrador do parque da Gávea, candidato à Câmara Municipal anos mais tarde, defenderia o ‘chá das nove’ como uma maneira de “aconselhar os menos afortunados (…) ensinando o caminho do bem (…) formando excelentes homens e operários” (apud Lima, 1989). O controle também se dava através dos visitadores sociais, que acompanhavam as famílias instruindo-as nos aspectos higiênicos e morais. A diretora de uma das escolas localizadas nos parques proletários relata a heterogeneidade dos moradores dos parques, havendo grupos de vida regularmente organizada quanto ao lar, filhos, trabalho, saúde, disciplina, moral; e outros com dificuldade de aceitarem o novo local, de vida familiar desorganizada e vida profissional instável “…que exigiam uma quase tutela em todas as suas atividades familiares e profissionais.” (: Casas operárias – Os Parques Proletários, M.ª Isolina Pinheiro, 1943 apud Lobo et alli, 1992_ o grifo é meu). Como conseqüência dos relatos da diretora, foi criado o Serviço de Reeducação Familiar para atuar nos Parques Proletários do Caju e Praia do Pinto. No balanço das políticas habitacionais para classes pobres do Estado Novo, em comparação com os conjuntos construídos pelos IAPs, o parque proletário consistiu numa tentativa de ‘solução global’ para os favelados que lá fossem morar, pois se buscava com os parques não só a habitação em si, mas também o auxílio em diversos aspectos como saúde, instrução e alimentação, e principalmente, uma grande preocupação com os aspectos morais. Os Parques Proletários foram, acima de tudo, uma ação do Estado para ‘formação’ de operários de elevada moral, com valores familiares e patrióticos, prezando a ordem. Porém, o pouco alcance da experiência dos parques proletários, tanto na parcela da população favelada alcançada (7 ou 8 mil para uma população de 130 mil favelados apud Lima, 1989) quanto no tempo (o governo Vargas chegou ao fim em outubro de 1945, interrompendo o programa com somente os três parques construídos) prejudica análises mais apuradas sobre os efeitos do programa. Com o passar dos anos, sem o rígido controle exercido pela administração na época de Vargas, os próprios parques proletários foram se favelizando, surgindo novas construções no 59

conjuntos que modificaram a configuração espacial original. Poucos anos mais tarde, os parques proletários são chamados de “favelas do governo” ( ‘O preço da crise das habitações’ _ Correio da Manhã, 20/04/1953 apud Lobo et alli, 1992) . Pode-se dizer, no entanto, que a maior conseqüência das políticas habitacionais de Vargas foi a visão de que o Estado poderia se responsabilizar por garantir moradia aos trabalhadores. Até Vargas, o máximo que o Estado havia feito para essa área (isto quando o próprio Estado não desalojava as classes pobres, como vimos anteriormente) era incentivar as indústrias a assumirem os custos de moradia de seus empregados, construindo vilas operárias (Abreu, 1997; Lima, 1989; Lobo et alli, 1992), sem ter tido muito sucesso nesta empreitada, pois pouquíssimas indústrias se dispuseram a fazê-lo. Os parques proletários e os conjuntos habitacionais financiados e construídos pelos IAPs possibilitou que os trabalhadores vislumbrassem a oportunidade da luta pela moradia ser atendida pelo Estado e terem sua casa própria. A questão da casa própria ganhou ainda mais ímpeto após medida do governo em 1942 do congelamento dos aluguéis, visando frear o aumento destes que se verificava desde fins da década de 1930. A medida, segundo Marta Santos Farah (Estado, Previdência Social e Habitação, 1983 apud Lima, 1989) ao contrário de facilitar os custos de moradia para os trabalhadores teve efeito contrário, pois o mercado imobiliário deixou de se orientar para o aluguel de unidades habitacionais e voltou-se para aquisição de unidades com fins de moradia, orientando as construtoras ao mercado de classe média e alta. Os avanços na indústria de construção civil que ocorreram na década de 1930 constituem um outro fator que impulsionou este mercado. A invenção do vergalhão de aço permitia uma construção mais rápida e houve também a dissociação entre o dono do terreno e o construtor, que não mais necessariamente era o mesmo. Isto impulsionou a indústria da construção civil e o crescimento vertical da cidade, surgindo prédios com vários pavimentos principalmente nas áreas mais nobres da cidade, como a Zona Sul (Lobo et alli, 1992). Assim, sem a saída do aluguel, e sem que houvesse uma mercado imobiliário acessível às classes pobres, só lhes restou a auto-construção de suas moradias em favelas ou em loteamentos nos subúrbios (solução de maior custo em todos os aspectos). Porém, a extensão dos direitos trabalhistas passou também por incorporar os custos de habitação. E o Estado, até então visto somente como árbitro na questão de aluguéis ou por reivindicações salariais passa a ser visto como um possível atendente das reivindicações por moradia, como os conjuntos habitacionais 60

dos IAPs demostravam (Lima, 1989), porém estes eram para os trabalhadores incorporados à um dos institutos de previdência. À margem da solução de moradia pelo IAPs (e pelos limites da experiência dos parques proletários), aqueles que não estivesse inseridos na cidadania da Era Vargas, os trabalhadores sem carteira assinada, continuaram a habitar as favelas.

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Ao fim do Estado Novo, as favelas continuaram a ser vistas como focos de vários tipos de problemas. Às velhas questões levantadas quando se abordava o ‘problema favela’ somaram-se três novos. Um é a expansão já falada do mercado imobiliário do Rio, que quer dizer a expansão da própria cidade. As favelas que antes se localizavam em ‘franjas’ dos bairros, agora ocupavam terrenos cada vez mais valorizados por um mercado em expansão. Datam desta época as tentativas de várias remoções por supostos proprietários dos terrenos onde se localizavam as favelas, como é o caso do Catumbi (Nunes, 1980). Outro é o crescimento das cidade devido a industrialização, que atraiu grande contigente de trabalhadores. A vinda de diversos trabalhadores para a cidade aumentava a procura por moradias (e o seu preço). Isto somado ao baixo poder aquisitivo destes trabalhadores e ao constante aumento do custo de vida, fazia com que as favelas crescessem, pois eram a única a solução possível de moradia para eles (Parisse, 1969). E o terceiro fator é o crescimento do Partido Comunista do Brasil (PCB), legalizado com o fim do Estado Novo, tendo este partido sido o terceiro mais votado nas eleições de 1945 para a Constituinte (com Luís Carlos Prestes alcançando mais de 150 mil votos para senador) e o mais votado na Câmara Municipal em 1947 (Joffily, 2000). Paralelo a este terceiro fator vamos acrescentar que até então os favelados sempre são objetos das políticas governamentais, nunca são interlocutores. Lima (1989) ao analisar os documentos relativos aos programas habitacionais do Estado Novo, verifica que o favelado nunca ‘tem voz’ em qualquer ação. A conjuntura do pós-guerra e a abertura democrática vão dar ímpeto a organização dos favelados, como por exemplo na formação das comissões de moradores de algumas favelas que lutavam contra a remoção para os parques proletários, como Cantagalo, Pavão-Pavãozinho e Babilônia (Fortuna & Fortuna, 1974). Outro exemplo de organização dos favelados são os Comitês Populares Democráticos, organizações de bairro 61

criadas sob orientação do PCB, que contavam com subcomitês em favelas, como foi o caso do morro do Turano na Tijuca, que acabou por organizar a resistência contra a remoção em 1947. Estes comitês serviriam para agregar simpatizantes e potenciais eleitores do PCB através da atuação nas questões de cada bairro. Além disso, por reunir também vários segmentos de classe média, como médicos, professores e estudantes, os comitês acabaram servindo como um modo do PCB se aproximar das favelas através de várias ações de assistência, como cursos de alfabetização de adultos (mais à frente abordaremos de maneira mais profunda esta questão da organização dos favelados). Consta ainda que em alguns morros como o São Carlos e Providência, o PCB tinha construído escolas e levado água (Nunes, 1980). Passa a haver um certo temor por parte de alguns setores da elite e do Estado da crescente presença dos comunistas nos morros. Vale lembrar que é o início da Guerra Fria, e que o crescimento do PCB assustava alguns setores mais conservadores, tanto que o PCB desfrutou apenas dois anos de legalidade, tendo seu registro cassado em 1947.32 Já é o governo de Eurico Gaspar Dutra, e no intuito de “subir o morro antes que os comunistas o desçam” (Aspectos Humanos da Favela Carioca. SAGMACS33, 1960 apud Leeds & Leeds, 1978), durante a curta gestão de Hildebrando de Góis (primeiro semestre de 1946), a prefeitura do Distrito Federal entra em entendimento com o Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, da Arquidiocese do Rio de Janeiro, para criação da Fundação Leão XIII, através do Decreto Presidencial 22498 de 22/01/1947. A Fundação Leão XIII trabalhava com a perspectiva de medidas a médio prazo, que promovesse moralmente os favelados, cabendo à Fundação dar assistência moral e material à estes “dentro de um espírito democrático e de responsabilidade pessoal de cada um de seus membro, sendo totalmente banido desse movimento qualquer idéia paternalista ou de protecionismo mal compreendido e prejudicial à recuperação moral do homem.” (apud Burgos, 1998). Para isso, a Fundação queria criar em cada favela escolas, clínicas e centros sociais. A 32

Para mais informações sobre o período, ver o livro Camaradas e Companheiros – história e memória do PCB de

Dulce Pandolfi. 33

SAGMACS: sigla de Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos complexos Sociais. O

relatório foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo em 13/04/1960. Mais à frente analisaremos a origem deste documento e seu significado para história das favelas do Rio de Janeiro (ver página 81). 62

Fundação encarava a promoção social dos favelados como uma necessidade premente à urbanização das favelas. Isto significa que, na visão da Fundação, apenas a urbanização não serviria, sendo necessário uma transformação na mentalidade do favelado. Assim, antes mesmo do Decreto 22498 de janeiro de 1947, do governo federal, que cria a Fundação Leão XIII, já existia um Centro de Ação Social na favela Barreira do Vasco, que serviria para desenvolver diversas atividades com função de que instruir moralmente os favelados. Outra forma de alcançar a promoção moral dos favelados para Fundação, e que marca uma mudança nas ações em favelas, é a participação comunitária, atribuindo responsabilidades aos favelados, que deveriam se organizar em sociedades de moradores. Esta idéia, segundo materiais da própria Fundação, encontrou dificuldades de ser implementada (apud Lima, 1989). De modo que a Fundação passou cada vez mais a ser ‘intermediária’ entre os moradores e o Estado, assumindo funções até mesmo deste, como a distribuição de energia elétrica nas favelas onde atuava. De 1947 até 1954, a Fundação atuou em 34 favelas, montando os Centros de Ação Social em 8, das quais se incluem as maiores da cidade (Jacarezinho, Rocinha, Telégrafo, Barreira do Vasco, São Carlos, Salgueiro, Praia do Pinto e Cantagalo. A Fundação trabalhou na urbanização de algumas destas favelas, dotando-as de água, energia elétrica, esgoto e obras de calçamento da favela (Lima, 1989; Parisse, 1969) Em meio a crescente industrialização e urbanização, outras propostas do governo de Eurico Gaspar Dutra têm como base que é necessário uma resposta de caráter mais emergencial, dentro da visão do Estado enquanto responsável em garantir a habitação das classes mais pobres. Assim, em 1º de Maio de 1946, é criada a Fundação da Casa Popular e o presidente Dutra nomeava uma comissão interministerial que se debruçaria sobre o problema apontando soluções. Ambos podem ser considerados uma resposta ao momento político de grande efervescência e mobilização de diversos setores, incluindo aí, como vimos, os favelados. A Fundação da Casa Popular diferente dos programas anteriores, faria a venda dos imóveis, o que causou certa polêmica sobre a possibilidade destes imóveis virem a ser adquiridos pelas classes mais pobres. Pode-se dizer que de concreto, a comissão interministerial apenas ‘atualizou’ o Código de Obras para os novos tempos. Determinando: a proibição de novas casas nas favela; proibição de venda ou aluguel de casas abandonadas nas favelas; lista das pessoas que alugam imóveis em favelas ou cobram eletricidade dentro destas; urgente urbanização dos 63

terrenos da prefeitura para impedir o surgimento de novas favelas nestes; recomendação aos órgãos públicos para evitarem a ocupação de seus terrenos por favelas; empenho em cumprir as medidas legais já existentes para fornecer casas aos trabalhadores; responsabilizar indústrias e edifícios a fornecerem moradias para seus empregados. A comissão, segundo Leeds (1978), se limitou a estudar o problema e analisar as causas da favela, apenas se referindo ao controle e repressão às favelas sem no entanto tomar nenhuma medida prática para acabar com as favelas e substituí-las por outro tipo de moradia. E suas determinações acabaram não saindo do papel. A prefeitura de Mendes de Morais, que substituiu Hildebrando de Góis ainda em 1946, se inicia com uma das marcas dos programas relativos à questão habitacional para as classes pobres, ou, dito de outro modo, a questão das favelas. Que é a descontinuidade das políticas, como o leitor já deve ter notado nos vários programas e projetos de sucessivos governos mostrados até aqui. Ao que podemos acrescentar também a constante falta de sintonia entre as esferas de governo. Mendes de Morais, com o Decreto 9124, criou o Departamento de Habitação Popular, dentro da estrutura da Secretaria de Viação e Obras, com função de atender as necessidades de habitação das classes pobres. As medidas propostas foram aprovadas por um departamento mas não por outro, que alegou falta de um estudo dos impactos para o conjunto da cidade das ações propostas (Leeds & Leeds, 1978). O relatório SAGMACS (1960) aponta ainda que o Departamento acabou servindo para financiamento de moradias à classes de renda mais alta, como num projeto de construção de prédios na Estrada das Canoas, Zona Sul do Rio, “a fim de atender a população que anualmente procura fora do Rio as estações de veraneio” (Diário Carioca, 16/05/1948 apud Lima 1989). Outro ponto que comprova-se a descontinuidade das políticas é o tratamento de Mendes de Morais dispensado a Fundação Leão XIII, tendo a prefeitura parado de lhe destinar verbas alegando que esta acabava por consolidar a favela (Lima, 1989). Em 1947, Mendes de Morais cria uma comissão para extinção das favelas que propõe: o envio dos favelados aos seus estados de origem; os que tivessem acima de 60 anos ficariam em albergues sobre a tutela do Estado; expulsão das favelas de moradores cujo salário excedesse um

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mínimo estipulado34; a resolução de moradia aos favelados que fossem contribuintes dos IAPs por estes. Mendes de Morais, em entrevista alguns anos depois, disse que faltou apoio ao seu projeto, desde os governadores de outros estados até o chefe de polícia do Distrito Federal. De fato, a única realização concreta da comissão foi a realização do primeiro censo das favelas em 1948, que apontou a existência de 119 favelas no Rio de Janeiro. O censo serviu ainda para esclarecer alguns aspectos das favelas como: a inserção dos favelados no mercado de trabalho; a localização das favelas e o eixo de crescimento destas, no caso, as zonas Norte e Sul, seguindo a urbanização da cidade. Sobre a origem dos favelados, o censo mostra que mais de 38% haviam nascido no Rio, o que implicava uma razoável porcentagem da população favelada que não poderia ser mandada ao seu ‘estado de origem’ como queria Mendes de Morais, e outros. Uma das propostas em voga na época, era que os favelados fossem mandados para terrenos na periferia do Rio (Lima, 1989), o que passará a ser feito nos programas de remoção da década de 1960. Em 1948, o tema favela também vem à tona através de série de artigos escritos no jornal Correio da Manhã por Carlos Lacerda, que alcançaram grande repercussão na época. Nos artigos Lacerda chama atenção para que o problema da favela seja encarado como um problema nacional, e não apenas do Rio, bem como em todos os aspectos que envolve, não sendo uma questão apenas habitacional ou de higiene. Dois pontos de vista ficam evidentes nos artigos de Lacerda. O primeiro: mais que vir do Estado, a solução passa pela autopromoção dos favelados, no que se aproxima da visão da Fundação Leão XIII (Lacerda, inclusive, tinha boas relações com a ala conservadora da Igreja). Qualquer ação nas favelas, para Lacerda, deveria buscar “ a elevação do nível cultural, social, econômico, moral, e para isto, do nível de habitação, de hábitos de higiene, de preparação física, etc., dos favelados. ” (Correio da Manhã, 21/05/1948 apud Lima, 1989). O segundo ponto é a centralidade que Lacerda atribuía ao problema da favela, tanto que batizou sua série de artigos como “A Batalha do Rio”, no que foi acompanhado por outros órgãos de imprensa, como O Globo, que em editorial de 19/05/1948 afirma: “a favela não é um simples problema social. É sobretudo o ‘problema social’ do momento no Rio de Janeiro.” (apud Lima, 1989) 34

Só a título de curiosidade: este ponto serviu como base para expulsão do vereador do PCB José Joaquim do Rêgo,

portuário, da favela da Penha, já que seu salário de vereador excedia o mínimo estipulado (apud Lima, 1989) 65

A Batalha do Rio pode ser entendida também como uma campanha de oposição de Lacerda (ligado a UDN) a Dutra e Mendes de Morais. Lacerda punha a culpa da situação no grande desequilíbrio do país e também na inércia dos governantes de até então, que nada haviam feito de efetivo para solucionar o problema da favela. Outra preocupação de Lacerda era minar a influência dos comunistas nas favelas. Lacerda acreditava que para disputar tanto as bases do trabalhismo de Vargas quanto enfraquecer os comunistas, não caberia uma política repressiva, de erradicação das favelas, nem a transferência dos favelados para colônias agrícolas, uma das propostas ventiladas na época que, para Lacerda, só serviria de reforço à influência dos comunistas. Lacerda defendia que uma solução viável teria de passar pela coordenação das várias esferas e órgãos de governo, sem que houvesse burocracia, com o responsável pelo programa respondendo direto ao prefeito. A campanha acabou por angariar amplo apoio, inclusive do prefeito Mendes de Morais (Leeds & Leeds, 1978), que nomeou uma comissão composta pelo Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, Negrão de Lima e Herbert Moses. Subordinada a esta comissão funcionariam sete subcomissões: finanças e doações; aquisição de terrenos; projetos; construção e recuperação de obras anteriores; levantamento dos habitantes; encaminhamento dos favelados; saúde e assistência social. A comissão propôs a erradicação de várias favelas e a construção de 40 mil novas moradias, das quais poucas foram feitas. Uma delas foi um prédio no Parque Proletário da Gávea. Segundo o Relatório SAGMACS, a Batalha pouco ou nada realizou por contrariar diversos interesses ligados à existência da favela; e que para que tivesse algum êxito teriam de ser feitas tão profundas modificações na administração do Estado que “implicaria uma verdadeira revolução” (SAGMACS, 1960 apud Leeds & Leeds, 1989). O relatório ainda avaliou a comissão como “uma comissão de favelas que não deixou nenhum vestígio ou traço de documentação de suas ações. Ela consistia de políticos que durante oito anos se reuniram sem realizar nada.” Quanto a crítica aos políticos que compunham a comissão, esta é bem verdadeira. No período democrático que vai de 1945 a 1964, as favelas eram importante fonte de votos. É corrente na bibliografia do tema o registro de que os favelados apoiaram Getulio (Leeds & Leeds, 1978; Perlman, 1977 - note-se que ambos os estudos foram realizados muitos anos após a morte de Getulio). Mas a busca por votos não se restringia a políticos do PTB. Muito comum era 66

a existência dos cabos eleitorais nas favelas, bem ao estilo do coronelismo, onde em troca de um bom número de votos o cabo seria pago em espécie ou em favores, como também a favela conseguia pequenas obras, como calçamento, uma bica d’água ou a instalação de luz na favela. No livro de Guida Nunes (1980) Favela – Resistência pelo direito de viver consta diversos relatos de antigos moradores de favelas (alguns que foram os primeiros a se instalarem nelas) como Borel, Catumbi, Turano entre outras. É corrente entre estes moradores a lembrança de que, nesta época (décadas de 1940 e 1950) muitos políticos indicavam terrenos vazios e até forneciam os materiais de construção para se formarem favelas, numa maneira de montar seus currais eleitorais. Um deles, líder comunitário do Catumbi, se referiu aos políticos que compunham a comissão formada por Mendes de Morais após a ‘Batalha do Rio’: “Estão mais interessados em votos do que em expulsar o pessoal, e vão ficar embromando (…) é fácil [para as favelas] conseguir apoio dos políticos do PTB.” Frente a descontinuidade das políticas em relação à favela, ou mesmo a não-concretização de vários projetos que não saíram do papel, os políticos eram muitas vezes os únicos que ‘ofereciam’ algo às favelas, em meio a situação de carência que elas viviam. Aos políticos interessava esta condição de carência, tonando-se os ‘defensores’ das favelas sem nunca resolver efetivamente este quadro de carência, permitindo-lhes na eleição seguinte retomar novamente a busca de votos em troca de pequenos favores.

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Agora através do voto, Vargas volta ao poder em 1950, com apoio das classes mais pobres, empolgadas com a retórica do populismo. O problema habitacional se tornava crítico, principalmente nas capitais. Durante o ano de 1952 o debate sobre a questão era corrente, e o jornal Correio da Manhã, novamente se debruçou sobre o tema. Num artigo intitulado “O Plano das Favelas”, o jornal sugeria o levantamento de todas as habitações proletárias existentes e apontava quatro soluções: construção de bairros populares; concessão de crédito aos trabalhadores para aquisição de casa própria; envio dos desocupados para o campo; e tratamento especial para os marginais (apud Lobo et alli). Dando resposta a crise de habitação e ao apoio recebido pelas classes pobres, o governo Vargas toma algumas medidas, dentre as quais a abertura de financiamento para aquisição de casa própria pelo IAPI, já que segundo o órgão de imprensa do instituto, baseando-se em 67

números do censo da prefeitura de 1948, aproximadamente 45% dos industriários moravam em favelas (Industriários - órgão oficial do IAPI agosto/1952 apud Lobo et alli, 1992). Não só o IAPI, mas outros IAPs são obrigados pelo governo a alocar recursos para questão da moradia. Vargas inclusive modifica a diretoria destes, acusando-as de não terem cumprindo com sua função de entregar as moradias prometidas anteriormente. Vargas reduz o preço dos aluguéis no conjuntos habitacionais do IAPI e abre inscrição para aquisição de casa própria pela Fundação da Casa Popular, que alcançou em julho de 1952 o número de 35 000 inscritos interessados na aquisição de casa própria (Tribuna da Imprensa, 12 e 13/ 07/1952 apud Lobo et alli, 1992). O prefeito do Distrito Federal, João Carlos Vital, indicado por Vargas, criou em 1952 o Serviço de Recuperação de Favelas, que tinha como proposta a urbanização das favelas sem necessidade de remoção. A tônica do novo governo Vargas é dada pela frase de Guilherme Romano, responsável pelo novo órgão: “Não destruiremos a favela sem construirmos algo melhor que a substitua. A pior favela é melhor que nada.” (Tribuna da Imprensa, 03/03/1952 apud Parisse, 1969_ o grifo é meu). Outra aspecto deste segundo governo Vargas é o tratamento das habitações das classes pobres como uma questão nacional, relacionando as favelas no Rio, com os mocambos em Recife, com as malocas no Sul. A partir do qual foi encarregada à Comissão de Bem Estar Social, ligada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio que fizesse um amplo estudo sobre estas habitações, para o que foi feito uma série de conferências analisando as favelas (e seus correlatos) como uma solução de famílias que buscam moradia compatíveis com seus poucos recursos, e que a solução para este problema passa por diversos aspectos: econômico, social, legal (Leeds & Leeds, 1978). Novamente, os estudos sobre as habitações proletárias prevaleceram às medidas efetivas. Uma das propostas, apresentada por Geraldo Moreira, político do PTB muito ligado as favelas, era de expropriar as terras onde estas se localizavam, urbanizando-as e dando a escritura aos favelados, que num prazo de cinco anos teriam de reformar suas casas conforme os padrões de habitação vigente. A proposta vai ao encontro das propostas de movimentos organizados de favelados que começam a surgir com mais força nesta época. Talvez seja importante agora fazer uma pausa para dar entrada na cena a um ator que até então não tinha fala. Ou se tinha, esta não foi ouvida. Não é preciso nem ser muito atento para notar que até então os favelados não foram, em nenhum momento, ouvidos à respeito das 68

políticas que lhes era destinada. Os atores principais até aqui, o Estado e a Igreja, mesmo quando não queriam ‘acabar’ com a favela, como nos inúmeros episódios de remoção que vimos até então, falavam pelo favelado. É marcante o paternalismo em ações como a dos Parques Proletários ou na ‘promoção moral’ da Fundação Leão XIII.

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As políticas para as favelas, fossem repressivas, fossem paternalistas, são marcadas pela tentativa de controle e normalização. Por outro lado, são justamente estas políticas que começam a formar a identidade do favelado, tema já abordado no capítulo I, através das inúmeras ações de despejo, quer por medidas higienizadoras, urbanísticas, etc. O favelado que até então havia sido algo a ser removido, passa a ser alguém que quer disputar espaço na cidade. Não ser mero objeto de remoção ou de controle. Não à toa, as primeiras associações de moradores que se tem registro foram justamente contra a remoção para os parques proletários (Cantagalo, Babilônia, etc._ conforme já vimos). Ou, no caso da União de Defesa e Melhoramentos da Barreia do Vasco, em reação à atuação da Fundação Leão XIII, que queria proibir que os favelados realizassem melhorias em seus barracos (SAGMACS, 1960 apud Lima, 1989). A conjuntura democrática e de efervescência política também não pode ser um fator desconsiderado como favorável a mobilização. E a polarização decorrente deste período também auxiliou a organização dos favelados, visto que eram objeto de disputa pela Igreja, comunistas, trabalhistas, entre outras forças políticas, como a UDN através de Lacerda. Para os favelados, morar em favela era a solução possível (não a ideal) para sobrevivência com o alto custo de vida e baixo salário. E não estava sendo mais tolerada a perspectiva de perderem o direito a moradia. Este direito começava a ser encarado como um direito fundamental a ser garantido pelo Estado. Tal idéia era corroborada no Brasil pelo Trabalhismo de Vargas e enfatizada pelo Partido Comunista, nesta época com grande inserção no movimento de favelas. No plano mundial, os anos que se seguem a II Guerra apontavam igualmente para uma maior atenção por parte do Estado para garantia de alguns direitos

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fundamentais, orientação expressa pela ONU na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)35 e pela Igreja, na encíclica Mater et Magistra (1961).36 Por um lado, o Estado já havia se mostrado um ator com possibilidade de interferir na questão habitacional, por outro, era o direito de propriedade da terra por supostos donos que começava a ser questionado. Isto foi transformado em bandeira pelos favelados, que naquele chão haviam já investido alguns anos de sua vida e trabalho para verem tudo perdido. Por exemplo, no caso do Catumbi, a favela foi formada num terreno de propriedade da Ordem Religiosa São Francisco de Paula, através da venda de lotes por um funcionário da Ordem. A Ordem, anos depois (em fins da década de 1940), alegou que o mesmo fazia isto sem conhecimento desta, e quis expulsar os favelados. Através de mobilização, apoio de políticos e de autoridades do governo federal, os favelados conseguiram sustar o despejo, pois entendiam que haviam pago pelo terreno e não seria justo serem expulsos (Nunes, 1980). Do mesmo modo, é na resistência contra uma ação de despejo que surgirá aquele que é considerado o marco inicial na organização dos favelados, a UTF, União dos Trabalhadores Favelados, em 1954. A entidade surgiu inicialmente no morro do Borel, na Tijuca, quando a loja Seda Moderna, segundo Manuel Gomes, líder comunitário e protagonista daquele movimento, conseguira por meio de grilagem o reconhecimento legal de posse do terreno onde estava a favela do Borel. Para resistir à remoção, os favelados buscaram apoio de um advogado, 35

O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada na Assembléia Geral da ONU diz: “Todo

homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.” ( o grifo é meu.) 36

A Mater et Magistra é uma encíclica do Papa João XXIII, inserida na Doutrina Social da Igreja. Ao mesmo tempo

que defende a propriedade privada criticando o socialismo, defende uma maior participação do Estado como promotor de justiça social: “…é necessária a participação do poder civil para a promoção de um justo acréscimo da produção, que favoreça o progresso da vida social e, em conseqüência, beneficie todos os cidadãos (…) os recentes progressos da ciência e da técnica, mais do que em qualquer época, oferecem aos poderes públicos amplas possibilidades de reduzirem os desequilíbrios entre os vários setores da economia, entre as diferentes regiões de um mesmo pais (…) É por essa razão que os poderes públicos responsáveis pelo bem comum são chamados, com maior insistência, a exercer no campo econômico uma ação mais variada, mais extensa e mais bem ordenada do que no passado, adotando, para isso, convenientemente, as suas instituições, os seus órgãos, os seus meios e métodos.” 70

Magarinos Torres Filho, ligado ao Partido Comunista, que propôs aos favelados que se organizassem em uma associação para que, entre outras coisas, se cotizassem para os custos do processo. Do Borel, a UTF expandiu núcleos para outras favelas37, cuja bandeira passou a ser a posse do terreno onde estavam. Além de Magarinos, outros militantes do PCB e também do PTB se incorporaram a UTF. A UTF baseou sua ação em passeatas e mobilizações na Câmara dos Vereadores, onde eram votados os projetos de desapropriação dos terrenos onde estavam as favelas. Além do Borel, diversas ações de despejo foram fator de mobilização dos favelados, como as das favelas do Dendê, Santo Antônio, Santa Marta, e União. Além das mobilizações na Câmara, a UTF buscava se organizar nas favelas através de festas e montagem de postos com vários serviços, como atendimento médico, departamento cultural, recreativo, etc. A idéia era organizar núcleos da UTF no maior número de favelas possível. Os núcleos da UTF pretendiam ser o centro de organização e representação da favela, ‘incorporando’ todas as demais organizações que pudessem existir, como associações de moradores, escolas de samba, times… O núcleo da UTF na Formiga, por exemplo, era sediado na Escola de Samba Unidos da Tijuca (Lima, 1989). A mobilização dos favelados, bem ao clima de polarização do país que existia na época, foi motivo de controvérsia na imprensa. A imprensa conservadora se escandalizava com a “invasão dos favelados” à Câmara dos Vereadores por ocasião da votação de projeto de lei apresentado pelo vereador Geraldo Moreira, que desapropriava o terreno da favela União. O escândalo é mostrado nas manchetes do dia 02/07/1954: “Transformada a Câmara dos Vereadores em hospedaria dos favelados” ( Correio da Manhã); “A Favela mudou-se para a Gaiola de Ouro38 ” (O Globo); “Motim dos favelados na Câmara dos Vereadores” (Tribuna da

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Jacarezinho, Esqueleto, Santo Antônio, Santa Marta, Formiga, Providência, Alemão, Liberdade (nome temporário

que os favelados do morro do Turano adotaram após resistirem a uma ação de despejo) Mangueira, Rocinha, Salgueiro, e Mata Machado. 38

Apelido dado a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. 71

Imprensa). Enquanto isso, o órgão de imprensa do PCB, Imprensa Popular, dava destaque as mobilizações da UTF, mais um elemento que indica as ligações desta entidade com o PCB 39. A UTF conseguiu algumas vitória, impedindo ação de despejo em algumas favelas, o que não foi o caso do morro Santo Antônio, removido em 1955. Mesmo neste caso, a UTF se mostrou um laço importante entre os favelados, no que tange à solidariedade, pois a UTF do Borel providenciou terrenos na favela para os moradores do Santo Antônio ( As lutas do povo do Borel de Manuel Gomes,1980 apud Lima, 1989). Outro eixo de mobilização da UTF foi contra violência do Estado exercida através da polícia, que sempre se abateu de forma dramática sobre os favelados. Uma das manifestações da UTF foi a entrega de queixa-crime contra o chefe de polícia do Distrito Federal ao Ministro da Justiça Seabra Fagundes, por centenas de favelados mobilizados pela UTF, contra os seguidos episódios de violência sofrido nas favelas Esqueleto, Curral das Éguas e Parada de Lucas (Lima, 1989). A violência da Guarda Municipal é uma das lembranças mais marcantes deste período por parte dos favelados. Era prática comum a polícia realizar batidas sem mandados, com grande brutalidade, à procura de criminosos ou mesmo havendo repressão contra a própria favela, desmontando barracos, impedindo a construção de novos e há até mesmo o registro de incêndios propositais em algumas favelas (Nunes, 1980; Lima, 1989). Tão importante como direito ao terreno, era o direito a um tratamento justo por parte da polícia exigido pelos favelados. Ambos são parte de uma mesma luta, que é a reorientação da relação das favelas com o Estado, o que trazia algumas novidades na arena política. A primeira é a de que os favelados se constituíram como um movimento organizado, com voz e objetivos próprios, a despeito deste movimento ser incentivado por agentes externos como o PCB, pois em várias ocasiões, as posições políticas do PCB e da UTF não são semelhantes. Conforme veremos mais adiante. A segunda é a reivindicação de reconhecimento por parte do Estado do direito das favelas existirem. A opção de se instalar numa área de certa forma desprezada, vista inicialmente como 39

É importante ressaltar que o próprio nome União dos Trabalhadores Favelados, marca esta ligação do PCB com a

entidade. Muitos dos primeiros militantes da UTF eram sindicalizados, principalmente operários das indústrias têxteis e de construção civil. E a UTF surgiu como uma das maneiras do PCB de organizar os trabalhadores. Também não deve ser desconsiderado que o nome era uma maneira de se afastar do estigma de malandro, constantemente associado aos favelados (Lima, 1989; Nunes, 1980). 72

provisória por parte das autoridades e até mesmo por alguns favelados que pretendiam ficar na favela até se estabelecerem numa moradia mais adequada aos padrões de habitação, havia se revelado permanente, e até mesmo a única possível frente as disparidades entre o custo de vida e o poder aquisitivo das classes mais pobres. Assim, anos de auto-investimento, por parte dos favelados, foram feitos em suas moradias e mesmo em suas comunidades. Além disso, outros motivos eram apresentados pelos favelados na defesa deste direito: a favela se localizava próximo ao emprego; nela os favelados constituíram toda uma rede de solidariedade; entre outros. A possibilidade de perder o que havia sido conquistado pelos favelados até então não seria mais tolerada numa conjuntura democrática e polarizada, onde canais de expressão para os favelados estavam abertos e seu potencial de mobilização estava sendo disputado por forças à esquerda e à direita. Uma nova instituição voltada para as favelas, a Cruzada São Sebastião criada em 1955 por D. Hélder Câmara, na época bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, é um exemplo prático do que afirmamos aqui.

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Em seus estatutos a Cruzada se justifica como voltada para o amparo e proteção a que o favelado tem direito. O surgimento de outra organização voltada a favela dentro da Igreja se explica por dois fatores. Um deles é de que a Cruzada surgiu a partir da ala mais progressista da Igreja, tanto que sua atuação foi mais ligada a políticos do PTB e PSD, ao passo que a Fundação Leão XIII estava mais ligada a políticos da UDN (Lima, 1989). Outro fator importante é o desgaste que a Fundação havia sofrido, associada que estava às tentativas de controle nas favelas onde atuava. Este desgaste consta nos relatórios da própria Fundação, que descreve a existência de vários conflitos com favelados, ligados a questão de controle da luz, água, disputas eleitorais, reforma ou construção de barracos. (Lima, 1989; Parisse, 1969). Apesar das aparentes divergências, a atuação da Cruzada tinha alguns pontos em comum com a Fundação. Como a idéia da promoção moral dos favelados através da educação precedendo qualquer urbanização. A idéia principal defendida pela Cruzada era a “integração dos favelados a os bairros.” (Parisse, 1969). Já há alguns anos D. Hélder regularmente se 73

expressava em vários artigos publicado na imprensa à respeito da moradia das classes pobres que ele considerava “uma situação escandalosa” (Nunes, 1980). A Cruzada realizou obras de urbanização e implementação de equipamentos coletivos (Bicas d’água, rede de luz) em várias favelas: Santa Marta, João Cândido, Brás de Pina, Ilha das Dragas, Cachoeirinha, Parque Alegria, Vigário Geral, Parada de Lucas, Prazeres, Chapéu Mangueira, São Carlos. A urbanização, mais que uma melhoria para a favela em si, era feita apoiada pelos próprios favelados como forma de autopromoção social baseada em sua organização e esforço coletivo. Vemos que para Cruzada, esta autopromoção passava pela organização comunitária. Assim, nas favelas onde a Cruzada atuava, os antigos conselhos de moradores foram transformados em associações. Mais não era que uma forma também de afastar a influência comunista das favelas, já que estamos na época de pleno funcionamento da UTF. E ambas disputam influência nas favelas com os favelados se organizando através de uma ou de outra (Nunes, 1980). Em janeiro de 1957, a Cruzada realiza com representantes de várias favelas cariocas onde esta havia formada comitês de moradores, o Congresso Geral dos Representantes das Favelas Cariocas. Neste congresso, D. Hélder, logo na abertura, condena igualmente o oportunismo de alguns políticos que fazem promessas e não cumprem e os comunistas para os quais “quanto mais miséria existir, haverá mais campo a ser explorado” (Tribuna da Imprensa, 07/01/1957 apud Lima, 1989). A visão de que a Cruzada poderia ser uma forma de combater a influência dos comunistas é apontada também em outros órgão de imprensa. Esta postura incluía o auxílio da Cruzada na resistência contra a remoção das favelas do Esqueleto, Borel e Santa Marta, em 1958 e 1959, tendo a Cruzada intercedido junto ao Estado pela não-remoção (Valladares, 1978). A postura de autopromoção social dos favelados da Cruzada seria posta à prova quando o governo federal destinou uma verba à Cruzada para urbanização de uma favela. Os dirigentes da Cruzada tiveram de relegar a segundo plano o lento trabalho de educação moral dos favelados e optar pela realização de uma obra de impacto que provasse ser possível a integração da favela ao bairro. Desta forma foram feitas: a urbanização do Parque Alegria; a urbanização parcial do Morro Azul no Flamengo; e o conjunto, que leva o nome da Cruzada, de dez edifícios no Leblon, bairro nobre da Zona Sul do Rio, que removeu parte dos favelados da Praia do Pinto, próxima ao local. Vale notar que, em que pesem as mudanças na conjuntura e na diferença de atuação entre a 74

Fundação Leão XIII e a Cruzada São Sebastião, ambas acabaram atuando, de alguma forma, como agências executoras de políticas de Estado, contando inclusive com verbas públicas para tal. O mandato de Juscelino Kubitschek à frente da presidência da República, na Segunda metade da década de 1950 também deve ser compreendido em meio ao contexto de expressão dos favelados através dos diversos canais políticos, e pela mobilização para terem suas reivindicações atendidas. Em 1956, JK promulga a Lei n.º 2875 de 19/09/1956, conhecida como Lei das Favelas, determinando que o Ministério da Justiça e do Interior destinasse parte de seus recursos a órgãos que lidassem com a questão das moradias das classes proletárias, com vista a melhorar a condição de moradia destas em quatro capitais brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Vitória. No caso específico do Rio de Janeiro, a lei determinava ainda a suspensão de qualquer processo de despejo de moradores de favelas durante dois anos. Tal medida visava combater também a exploração de supostos proprietários dos terrenos das favelas que utilizavam a ameaça de expulsão como modo de cobrar taxas dos favelados (Leeds & Leeds, 1978). Por um lado, a medida beneficiava os favelados diretamente, por outro pensava-se que tal medida atrapalhava o comércio imobiliário clandestino das favelas, que vinha ganhando peso nos últimos anos, freando assim o crescimento das favelas. Outra medida dos anos JK é a criação, pelo Prefeito Negrão de Lima, do Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA), no Decreto 13304 de 28/08/1956. Como expresso no próprio nome do novo órgão, este não iria lidar apenas com as favelas, mas as demais formas de habitação das classes pobres. Outra novidade do órgão é que este buscava coordenar as várias instituições que na época trabalhassem de alguma forma com a questão de moradia das classes pobres, combatendo assim a falta de comunicação entre estes órgãos e o paralelismo de suas ações. O SERFHA centralizou em si órgãos como a Fundação Leão XIII, o Departamento de Habitação Popular, Departamento de Higiene, Polícia de Vigilância, Departamento Sanitário. Em artigo publicado, um diretor do SERFHA (apud Leeds & Leeds, 1978) disse que este tinha como premissa a aceitação do favelado em trabalhar com o órgão, que para tal, estabelecia desde seu decreto de criação a formação de cooperativas habitacionais que, além das obras de transformação de sua casas e comunidade, elas mesmas produziriam os materiais de construção, barateando os custos de obras. Estas cooperativas também contariam com escolas de formação profissional para capacitar os moradores para as 75

obras. Apesar das intenções expressas tanto no decreto de criação quanto nos primeiros documentos, a ação do novo órgão basicamente se restringiu a montar alguns postos em favelas em que não houvesse atuação da Fundação Leão XIII e principalmente, e à repressão às novas construções através do Serviço de Repressão de Construção, vinculado ao SERFHA. Será somente no início dos anos 1960 (como veremos) que o SERFHA terá uma atuação mais relevante e de acordo com os princípios que levaram à sua criação. De qualquer forma, vemos que as favelas passavam a constar na agenda de todos os governos desde Vargas, visto as diversas medidas tomadas e órgãos criados que se voltavam à esta questão. Alguns fatores contribuíram para isso, como o peso que o ‘problema favela’ ganhou pela intensa e crescente urbanização do Brasil nesta época. A favela também havia ganho uma grande importância política, com a postura do Estado em relação à ela variando desde a repressão (remoção, proibição de reformas ou de construção de barracos) até o assistencialismo ou medidas de defesa dos direitos dos favelados (como no caso da Lei de Favelas). Há de se fazer referência ainda que o período democrático possibilitava algumas conquistas aos favelados, ainda que fosse através de políticas clientelistas, conseguindo algumas melhorias na favela, em seus barracos ou até mesmo a possibilidade de construírem uma nova favela, conforme relatamos acima. Num curto intervalo de tempo, de 1946 até 1960, vemos que foram criados: a Fundação da Casa Popular; Fundação Leão XIII; comissões da prefeitura do Distrito Federal ou do governo federal voltadas para o tema; o Serviço de Recuperação de Favelas; a Cruzada São Sebastião; e o SERFHA. Houve ainda as vezes que o tema assumiu grande repercussão como no caso da ‘Batalha do Rio’ e o fato de que os favelados não eram mais atores passivos, se organizando como no caso da UTF ou mesmo ‘sendo organizados’ conforme vimos, principalmente a partir da atuação da Igreja, endossada pelo Estado. Um dos aspectos desta organização dos moradores por parte da Igreja, no caráter de autopromoção moral (ou social) que Victor Valla aponta, no que concordamos com ele, que na forma que ela se apresenta, acaba por transferir ao favelado a responsabilidade pela sua condição precária de vida e a partir desta, a responsabilidade por sua superação. Para Valla, mesmo a atuação da Cruzada São Sebastião que buscava “implantar atividades de melhorias nas favelas ‘dentro de um espírito democrático e de responsabilidade pessoal de cada um de seus membros’ implica, na verdade, em manter as camadas populares residentes na favela, desmobilizadas e 76

afastadas da participação política, que é o espaço onde se torna viável a luta pelas transformações estruturais necessária à superação do problema.” (Para uma formulação de uma teoria da educação extra-escolar no Brasil: ideologia, educação e as favelas do Rio de Janeiro_ 1880-1980 Victor Vincente Valla et alli, 1981 apud Lima, 1989). O fato de haver ações de organização dos favelados por parte da Igreja e/ou do Estado não quer dizer necessariamente que este movimento se restrinja aos objetivos iniciais de seus planejadores. O reconhecimento do Estado e Igreja pela existência do ‘problema favela’, portanto, passível de solução, traz uma nova questão para os demais agentes sociais, incluindo aí os favelados. É a partir da forma como solucionar este ‘problema’ que estes demais agentes atuarão, cada qual defendendo seus interesses. O que não quer dizer que esta atuação seja homogênea por parte de cada um destes agentes sociais. A organização e atuação dos favelados, o segmento que mais nos interessa, é multifacetada, podendo ser de resistência, conflito, cooptação, negociação, ‘controle negociado’, conforme veremos em todas as ações do Estado para a favela a partir da emergência do favelado como ator relevante na década de 1940 até os dias atuais. Não pode ser desconsiderado que o controle desta grande parcela da população e o risco dela abraçar causas revolucionárias era uma preocupação da elite e do Estado. Prova do que queremos dizer está no grande número de estudos relativos à favela, que se multiplicaram na virada dos anos 1950 – 1960 (outra prova da importância política que o ‘problema favela’ assumiu), sendo que vários destes estudos eram realizados por quadros do Estado que trabalhavam em órgãos voltados para a favela. A compreensão do que era o ‘problema favela’ e a quais fatores se relacionava, e as medidas possíveis de serem tomadas, era uma maneira de manter o controle desta população e orientar a ação do Estado. A citação a seguir, extraída de artigo escrito pelo advogado do SERFHA, Waldir Meuren, não pode ser evidência maior do que queremos dizer: “Na capital da república, centro político do país de maior relevância nacional, podem as favelas ser a causa direta de uma convulsão revolucionária de princípios conhecidos, mas de fins incalculáveis. Se o problema não for devidamente encarado pelas autoridades competentes cedo, não mais será possível evitar a eclosão das massas, à frente, a multidão de favelados.” (Breves considerações sobre a Lei de Favelas. Waldir Meuren s/d apud Parisse, 1969). Outro trecho revelador consta no relatório SAGMACS, falando sobre a influência dos comunistas nas favelas: “…há favelas que os comunistas são fortes e seu apoio ou oposição podem decidir o voto da maioria (…) as indicações do PC chegam apenas 72 horas antes da 77

eleição. O nome apoiado se espalha pela favela sem se saber como é confirmado pela Imprensa Popular” (SAGMACS, 1960 apud LIMA, 1989). O que nos leva a retomar a discussão sobre a UTF e a influência do Partido Comunista nela, e como este influenciou em sua atuação. A UTF, embora surgida à margem do Estado e da Igreja, também não pode ser considerada como uma organização ‘espontânea’ dos favelados, visto que o advogado Magarinos Torres desde seus primeiros momentos colaborou com sua criação, e sua vinculação, vista até mais como um atrelamento da UTF com este, foi objeto de críticas por parte de algumas lideranças faveladas40. De qualquer modo, se a influência de Magarinos não pode ser menosprezada, também não pode ser superestimada, ignorando que a atuação das lideranças comunitárias que participaram da fundação da UTF no Borel e de sua ampliação para outras favelas foi desde o começo ativa e expressiva, afinal a UTF surgiu, acima de tudo, como uma ‘cooperativa’ dos favelados para fazer frente a uma ação de despejo. Como falamos anteriormente, o PCB não só dava grande destaque à UTF e à atuação de Magarinos Torres em seus órgãos de imprensa, como de fato o partido desempenhou papel preponderante na formação e organização da UTF nos primeiros anos da entidade. Mas várias pessoas ligadas à UTF entrevistadas por Lima (1989)41 tentavam demostrar o caráter apartidário desta, que incluía pessoas ligadas ao PTB ou até mesmo sem nenhuma filiação partidária. O próprio grau de envolvimento de Magarinos com o PCB é controverso. Há versões que dão conta de que Magarinos foi filiado por pouco tempo, enquanto outras dizem que este jamais foi filiado, somente simpatizante. No livro de Nunes (1980) que também apresenta diversos relatos orais de militantes da UTF, a relação de Magarinos com os comunistas é tida como sólida, sem entrar no mérito se é filiado ou não ao partido. A eleição presidencial de 1955 pode ser um pouco reveladora à respeito da ligação de Magarinos com o PCB. Segundo Lima (1989), enquanto os militantes comunistas na UTF 40

Em Nunes (1980) é registrada uma conversa entre duas lideranças comunitárias de duas favelas da Tijuca: “ Na

UTF, os favelados são assalariados do Magarinos. No fim das contas, é sempre o cara da classe média que, às vezes, tem boa intenção, mas na de salvar os oprimidos acaba dando a palavra de ordem.” No livro de Nunes podemos perceber ainda que muitas vezes as comunidades que se afastavam da UTF acabavam por se aproximar da Igreja, mesmo que fosse somente através do padre da paróquia local, como foi o caso do Catumbi. 41

Manuel Gomes, liderança comunitária do Borel; José Talarico Gomes, na época deputado pelo PTB; e Hércules

Correia, dirigente do Partido Comunista. 78

defendiam o apoio da entidade à Juscelino, de acordo com a orientação do PCB, Magarinos teria defendido que a UTF promovesse debates entre os candidatos à presidência, a fim de comprometer-lhes publicamente com políticas de interesse dos favelados. Tendo um conhecimento maior sobre a organização do PCB, sabemos que tal divergência à respeito de uma orientação partidária não seria relevada pela direção do partido. Devemos lembrar ainda que à esta época, meados da década de 1950, o PCB rumava para uma política mais ampla, que incluía atuar junto às demais forças políticas nacionais que estivesse no campo anti-imperialista e democrático. Faz parte desta mudança de orientação a construção de uma frente ampla destas forças, que não necessariamente estaria sob a direção do PCB (Pandolfi, 1995). Isto explica a atuação conjunta dos comunistas com os trabalhistas na UTF, e isto pode explicar o apoio dado a Magarinos Torres (se for o caso deste ter se desfiliado do PCB ou mesmo nunca ter sido membro. O leitor há de compreender que é difícil ter uma prova definitiva dos registros do PCB, principalmente nos quesitos burocráticos como fichas de filiação). As mudanças na linha política do PCB se refletem na UTF. O dirigente comunista Hércules Corrêa explicou que nos primeiros anos de atuação do PCB junto aos favelados, antes da UTF inclusive, a tática era de preparar para o confronto. Diversas obras realizadas pelos comunistas em favelas tinham este caráter de ação armada, como por exemplo, a instalação de tanques de água coletivos na Rocinha ou na Barreira do Vasco. Feitas com ligações clandestinas e se preciso enfrentando a polícia (apud Lima, 1989). Já quando a atuação do PCB passa a se dar dentro dos marcos democráticos, ou melhor dizendo, para uma atuação nas instituições legais (parlamento, judiciário, etc.) a UTF também se volta para esta arena política. Além dos projetos de lei e mobilizações na Câmara de Vereadores, o melhor exemplo é o lançamento da candidatura de Magarinos Torres a vereador e José Talarico Gomes a deputado federal pela legenda do PTB42. Ambos eram apresentados como os candidatos dos favelados. Magarinos surgia como nome de maior prestígio e mais possibilidade de aceitação, sendo difícil arrumar um

42

A candidatura de Magarinos pelo PTB não diz muito sobre sua condição partidária, já que tendo o PCB vivendo

na condição de semi-legalidade nesta época, atuando abertamente, mas sem o registro partidário, não podendo portanto disputar eleições levando-o a utilizar outras legendas para isso. Um exemplo desta tática é a eleição de Hércules Corrêa, que só sairá do PCB na década de 1980, para deputado pelo PTB nos anos 1960. 79

candidato entre os favelados. Além disso, pelo nome de Magarinos estar ligado ao movimento, sua candidatura foi incorporada pela UTF. Magarinos não conseguiu se eleger, tendo feito mais uma tentativa em 1960, igualmente frustrada. Já a eleição de José Talarico Gomes foi de extrema importância para o movimento dos favelados, tendo aberto um importante canal de expressão destes às grandes esferas da política, como por exemplo, o Ministério do Trabalho, cujo apoio foi fundamental para organização do Congresso dos Trabalhadores Favelados em maio de 195943. Era no Ministério do Trabalho que se realizavam as reuniões preparatórias para o congresso, uma demonstração da importância que o movimento assumia, e também da ligação entre comunistas, trabalhistas e demais setores reformistas que apoiavam o congresso. A realização de um congresso faz parte da tática do PCB pela construção de um movimento amplo que viabilizasse reformas estruturais na sociedade brasileira, articulando os diversos segmentos da sociedade que viabilizassem as transformações anti-imperialistas e democráticas. Novamente, é no contexto de polarização do período que se deve entender o congresso e a reação de alguns setores à este, incluindo aí Geraldo Moreira, que apesar de ser do PTB, via o congresso, não sem razão, como uma forma dos comunistas aumentarem sua influência nas favelas, base eleitoral de Geraldo Moreira. Sobre o Congresso e o apoio do Ministério do Trabalho, Geraldo declarou à imprensa: “Seria um desestímulo aos que combatem os extremismos em nossas favelas se as nossas autoridades amparassem congressos comandados pelo conhecido agitador comunista Magarinos Torres Filho. E é este elemento que organiza com habilidade e audácia todo plano de ressurgimento comunista nas favelas.” (Jornal do Brasil, 31/05/1959 apud Lima, 1989). Dando seqüência às discussões do congresso, plenárias foram feitas em diversas favelas, sempre acompanhadas com interesse da imprensa do PCB (edições de junho a outubro de 1959 do semanário Novos Rumos apud Lima, 1989). Em novembro, numa assembléia realizada no Ministério do Trabalho, é criada a Coligação dos Trabalhadores Favelados da Cidade do Rio de Janeiro. Da fundação desta nova entidade participaram representantes das favelas: Brás de Pina, Borel, Muquiço, Parada de Lucas, Jacarezinho, São Carlos, Santa Marta, Providência, Honório 43

A idéia de um congresso dos favelados pelos núcleos da UTF vinha desde 1954, quando surge a idéia de sua

realização para o ano seguinte, 1955 (Imprensa Popular, 05/11/1954 apud Lima, 1989). 80

Gurgel, Telégrafos, Vila São Miguel, Vila Kosmos, Juramento, Parque Arará, Dona Francisca, São Sebastião, Bairro da Graças, Rocinha, Acari, Barros Filho, Vigário Geral, Camboatá. A formação da CTF é encarada por seus militantes como um passo à frente na organização dos favelados a partir da UTF. Pode-se entender esta última como uma organização com um caráter mais ‘horizontal’. As favelas precisavam se filiar à UTF e se organizarem em núcleos da UTF, ainda que houvesse um núcleo central (inicialmente no Borel, depois na Providência) mas sem pretender ser ‘a’ representação de todas as favelas do Rio. Já a CTF busca ser a única representação legítima de todos os favelados do Rio de Janeiro, inclusive pleiteando junto ao Estado este reconhecimento. Em seu estatuto, a entidade defende que o Estado reconheça a CTF como órgão de utilidade pública, dando-lhe “as prerrogativas de órgão único e controlador e lhe seja para isso outorgada em lei essa autoridade em defesa dos trabalhadores e moradores em favela.” A entidade se define ainda como responsável “…pela coordenação e proteção legal às associações de moradores em favelas, clubes esportivos, agremiações recreativas e culturais.” (Diário Oficial, 27/01/1960 apud Lima, 1989). Nota-se novamente que a representação, ao modelo da UTF, não pretende se restringir às associações de moradores, mas a todas e quaisquer organizações comunitárias. A CTF, pelo seu estatuto, abrangia até lavradores que cultivassem terras devolutas na cidade. A partir do Estatuto da CTF também podemos apreender a linha política que guiava a entidade, inserida no contexto de luta por reformas nos marcos democrático e legal. A CTF lutava para assegurar o direito a terra, contra possíveis ações de despejo e pela inviolabilidade do lar. Para isso ela promoveria por todos os meios possíveis a conquista da posse da terra por parte dos favelados: através do usucapião; em caso de haver proprietário legítimo do terreno que seja loteado e aforado, se preciso for com auxílio de financiamento do Estado; o aforamento das terras de domínio público às famílias que nelas habitam. A CTF defendia ainda que o Estado destinasse parte de sua verba para construção e recuperação das habitações nas favelas e demais moradias proletárias da cidade e a urbanização de favelas e, evidenciando que a CTF é encarada como parte de um movimento maior por reformas estruturais no país, a entidade reiterava o empenho na defesa da Lei da Reforma Agrária, inclusive como forma de frear o êxodo rural para os grandes centros urbanos. A defesa da unicidade da representação deve ser entendida como parte dos conflitos decorrentes com demais instituições que buscavam igualmente organizar os favelados, como o 81

caso da Cruzada São Sebastião, que como vimos, alguns anos antes tinha também organizado um congresso de favelados. Os conflitos da CTF com a Cruzada e também com o SERFHA serão freqüentes. Ambos são acusados pelas lideranças da CTF de serem escoadouro de verbas públicas sem nada realizar pelos favelados. Os confrontos com o SERFHA serão analisados mais à frente, quando veremos a atuação deste órgão no governo de Lacerda, por enquanto cabe dizer que a organização das associações de moradores por parte do Estado, e o novo tratamento dado à estas foi um grande empecilho para que a CTF atuasse nos moldes que pensaram seus fundadores.

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Antes de entrarmos no período referente ao governo de Carlos Lacerda convém apresentarmos uma das figuras chaves para a política de favelas daquele governo: José Artur Rios, que nos remonta ainda ao ano de 1958, elaboração do relatório SAGMACS, quando Rios foi diretor-técnico desta pesquisa. Segundo Rios, a pesquisa surgiu a pedido do jornal O Estado de São Paulo, na época oposição a Juscelino Kubistchek, que com o relatório queria demonstrar o desperdício de verbas gasto na construção de Brasília enquanto vários outros problemas ainda estavam sem solução, dentre os quais as favelas do Rio de Janeiro, como vimos, tema em voga na época. Através do Padre Lebret, dominicano, difusor da doutrina ‘Economia e Humanismo’ criada na França, e que exerceu influência em alguns economistas e sociólogos, entre os quais Rios, que dirigia o escritório de Economia e Humanismo no Rio de Janeiro (o próprio SAGMACS), que o jornal chegou a Rios e encomendou o “estudo sociológico sobre as favelas” (entrevista de José Artur Rios a Lima, 1989). O estudo foi feito em dois anos. No primeiro, Rios estudou vários aspectos das doze maiores favelas do Rio. No segundo ano, ele aprofundou o estudo em duas delas - o Parque Proletário da Gávea e a Barreira do Vasco – realizando entrevistas pessoais com os favelados sobre diversas questões como comportamento eleitoral, familiar, delinqüência, idéias dos favelados a respeito da urbanização. A idéia inicial de transformar o relatório em livro não se concretizou, saindo na forma de dois suplementos no Estado de São Paulo em abril de 1960 com o nome de Aspectos Humanos da Favela Carioca. Em outubro do mesmo ano, Carlos Lacerda 82

publica o relatório em seu jornal, a Tribuna da Imprensa, a partir de então, convencendo Rios a entrar para política (entrevista de José Artur Rios a Freire & Oliveira, 2002). Anthony Leeds (Leeds & Leeds, 1978) considerava o relatório SAGMACS, até a data da publicação de seu livro, “o melhor e mais precioso relatório publicado sobre favelas no Rio de Janeiro”, já que o relatório propunha qual deve ser o tipo de relação entre o Estado e povo, especialmente o proletariado, a partir da análise das diversas ações anteriores para as favelas no Rio de Janeiro. O relatório tece várias críticas a estas ações, algumas das quais já citamos aqui. As críticas são tanto a atuação do Estado quanto da Igreja, que se alternavam entre medidas repressivas ou paternalistas. Nem a Cruzada São Sebastião é poupada de críticas, com o relatório dizendo que o conjunto construído no Leblon “aburguesa o favelado, sem educálo”(SAGMACS, 1960 apud Lima, 1989). Outra crítica veemente que o relatório faz é do ‘uso’ político-eleitoral das necessidades dos favelados, e que as características da favela a tornam uma área de grande interesse por parte de políticos: “A própria residência na favela, mais que qualquer outra área urbana, identifica certo tipo de eleitor e certa categoria de problemas urbanos que o político arguto pode utilizar na sua propaganda. Daí a insistência cada vez maior que os políticos se voltam para as favelas, intensificando, nesses aglomerados, suas atividades de propaganda e relacionamento.” (SAGMACS, 1960 apud Valladares, 1978). Para SAGMACS, uma solução para as favelas teria de passar a margem dos interesses políticos e se basear nos aspectos técnicos e humanos. Do relatório pode-se entender a nomeação de Rios para a Coordenação de Serviços Sociais, logo que Lacerda assumiu o governo do recém-criado Estado da Guanabara no final de 1960, e sua atuação à frente da política para favelas. Durante a campanha eleitoral, Lacerda fazia referências à urbanização das favelas como meta de governo, referindo-se a seus artigos na ‘Batalha do Rio’. Antes mesmo da eleição, Lacerda já havia anunciado que Rios seria o responsável de seu governo pela área. Rios defendia a urbanização das favelas com a participação comunitária, por meio das associações (e criandoas onde ainda não existissem) através da qual também fariam a reivindicações das obras a serem feitas, participariam do planejamentos e disporiam mão-de-obra, recursos etc. Para Rios, a participação dos moradores na urbanização era fundamental, pois significava “uma mudança de mentalidade do favelado no sentido de quebrar a dependência dele dos benefícios do governo.” (entrevista de José Artur Rios a Lima, 1989). Além da influência cristã, outra concepção que guiava a atuação de Rios à frente da Coordenação de Serviços Sociais é o ‘desenvolvimento de 83

comunidades’, predominante nas escolas de Serviço Social do Brasil. A ONU definiu em 1956 ‘desenvolvimento de comunidades’ como “Processo através do qual os esforços do próprio povo se unem ao das autoridades governamentais, com o fim de: melhorar as condições econômicas, sociais, e culturais das comunidades; integrar estas comunidades na vidas nacional; e capacitálas a contribuir plenamente para o progresso do país.” (apud Lima, 1989). No Brasil, o desenvolvimento comunitário se viu influenciado também pelas doutrinas cristãs, entre as quais se incluem as idéias do Padre Lebret. Rios advertiu que só trataria diretamente com os favelados, não admitindo intermediários que falassem em nome destes, como padres ou políticos. A partir do contato inicial com as associações ou a criação destas onde não houvesse, seriam apresentadas as reivindicações dos favelados e traçados os planos da urbanização nas favelas. Consta que toda semana Rios recebia as associações na Coordenação que passou a integrar vários órgãos, incluindo aí o SERFHA, que foi revitalizado. Era através do SERFHA que se efetuaria a política de urbanização de favelas proposta por Rios. A urbanização se daria em parceria com as associações de moradores através da Operação Mutirão. Durante o período de Rios à frente da Coordenação, foram criadas 50 associações de moradores (entrevista de Rios a Freire & Oliveira, 2002). Em junho de 1961, Rios assinou o termo de compromisso pela Coordenação de Serviços Sociais com associações de moradores de duas favelas, Praia do Pinto e Morro do Vintém. Ao assinar o acordo Rios disse: “Favela é um problema de governo, e não pode ser atacado apenas por um serviço ou mesmo uma secretaria de Estado, mas por todos os órgãos governamentais, em cooperação com as entidades particulares. E a obra de sua recuperação deve ser feita pelos próprios favelados, reunidos em um grande mutirão, que é uma das manifestações mais legítimas das comunidades brasileiras.” (Jornal do Brasil, 24/06/1961 apud Lima, 1989_ o grifo é meu). Ainda no dia da assinatura do acordo, Lacerda declarou que não seria permitido cobrança de aluguel nas favelas por quem não tivesse título de propriedade registrado no SERFHA . Nos termos do acordo assinado entre as associações e o Estado, as associações deveriam, entre outros pontos: cooperar na urbanização da favela recolhendo quaisquer contribuições dos residentes para a melhoria local, responsabilizando-se pela utilização de tais contribuições e submetendo-se à supervisão da coordenação; contribuir para substituição progressivas dos barracos por construções mais adequadas e cooperar através da mobilização de trabalho para 84

realização de outros trabalhos de emergência na favela _ Operação Auto-ajuda_ conforme os planos técnicos e a orientação desta coordenação; cuidar das contribuições e melhorias feitas na favela; solicitar a autorização da Coordenação para a melhoria das casas, especificando as necessidades de reparo e manutenção; impedir a construção de novos barracos, vindo quando necessário, a esta Coordenação para apoio policial; encaminhar à Coordenação as necessidades e reivindicações da favela relativas a serviços públicos manutenção, saneamento, polícia e higiene; na favela, manter a ordem, o respeito pela lei e, de um modo geral, garantir o cumprimento das determinações da Coordenação e do Governo. A Coordenação, pelo acordo, ficaria obrigada a: fortalecer a associação da favela e a nada fazer nas favelas ou vilas operárias sem anúncio ou acordo prévio; desenvolver um plano permanente de bem-estar para a favela com relação a melhorias no local, suas habitações e a situação de seus habitantes; supervisionar a utilização dos recursos recolhidos pela associação e aplicados para a melhorias na favela; substituir progressivamente os barracos por construção mais adequadas com ajuda dos próprios favelados; autorizar a melhoria nos barracos existentes, tendo que ser os reparos aprovados pela associação; dar assistência às necessidades e reivindicações da favela, procurando a ajuda de outros organismos, mas sempre em cooperação com a associação de moradores; impedir a exploração dos favelados sob qualquer forma, especialmente com relação ao aluguel de barracos e fornecimento de eletricidade44. (apud Leeds & Leeds, 1978; Lima, 1989) A partir das reivindicações dos moradores, o Estado entraria com a parte que lhe caberia. Consta que para urbanização das favelas até sobras das demolições realizadas pela Secretaria de Obras, numa época que Lacerda fazia grande obras como a adutora do Guandu, e outras obras viárias na Guanabara, com a abertura de diversos túneis e o Aterro do Flamengo. Além disso a Coordenação encaminharia as reivindicações dos favelados às secretarias do governo, pedindo instalação de escolas à Secretaria de Educação, postos de saúde à Secretaria de Saúde, etc. Os técnicos do governo nem sempre eram necessários, já que na favela, além de morar muitos

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Prática comum nas favelas nessa época era a existência do ‘dono do relógio’ ou ‘da cabine’. Era instalado um

medidor da Light em um ponto da favela ou próximo (no asfalto), a partir do qual eram feitas ligações para alguns barracos da favela. O dono cobrava, além da taxa de luz fornecida pela Light, uma taxa extra para si, fazendo com que os favelados pagassem muito mais caro para ter eletricidade em casa. 85

mestres-de-obra com experiências de trabalho por toda a cidade, a experiência da autoconstrução era comum a muitos moradores. A Operação Mutirão aconteceu em cerca de 80 favelas (Nunes, 1980), e uma de suas grandes obras realizadas foi a rede de luz no Jacarezinho, na época a maior favela do Rio. A idéia de Rios era, numa segunda etapa, que as associações criassem cooperativas habitacionais para reformar as casas nas favelas. Mas a urbanização não era a única ação da SERFHA, que também executou remoções em algumas favelas: tinha a atribuição de demolir alguns barracos ou mesmo algumas favelas. Total, como nas favelas: Bom Jesus; Álvaro Ramos; Ponta do Caju; CCPL e; Moreninha. Ou parcial, removendo alguns barracos nas favelas: Vila da Penha, Vila do Vintém, Timbó, São Carlos, Maré; Querosene; e Morro dos Prazeres. As remoções às vezes geravam grandes protestos, como num episódio no Bairro Desembargador Magarinos Torres na Maré45. Outra programa da gestão de Rios à frente do SERFHA foi a construção da Nova Holanda, centro de habitação provisória destinado a abrigar os removidos de outras favelas até serem realocados em outras moradias (ver capítulo III). Para Rios, o controle sobre a construção de novos barracos deveria ficar à cargo da associação, conforme visto no modelo de acordo entre a Coordenação e as associações. Isto evitaria que as favelas que tivessem recebido obras de urbanização voltassem a se ‘favelizar’ com a vinda de novos moradores. Tal postura por parte das associações não se efetivou. Entre outros motivos, pela solidariedade entre favelados ser forte, e também porque a urbanização resolvia (se tanto) os efeitos, não as causas do crescimento das favelas, tornando-se difícil 45

No Arquivo Público do Estado (APERJ) [ Fundo Polícias Políticas do Rio de janeiro / setor investigação policial –

pasta 87 ] encontramos um dossiê elaborado pelo Dops sobre Magarinos Torres Filhos. Neste dossiê consta um documento referente a Maré, mais especificamente um requerimento de Magarinos ao delegado do 19º Distrito Policial, de abril de 1962, sobre a derrubada de barracos e perseguições à moradores no bairro Desembargador Magarinos Torres (batizado em homenagem ao pai do advogado e hoje Parque Rubens Vaz – ver capítulo III). O loteamento era defendido por Magarinos Torres Filho quando o SERFHA ordenou a demolição de oito barracos, a partir de requisição do Departamento de Estradas de Rodagens, pela polícia de vigilância da Guanabara. Magarinos diz que as ações são promovidas por funcionários do SERFHA. No requerimento, além de Magarinos descrever os fatos citados, se diz vítima de calúnias da parte de José Artur Rios e do arcebispo D. Hélder Câmara, na época dirigindo o SERFHA e a Cruzada São Sebastião, respectivamente, a quem acusa de lucrarem com a ‘indústria de proteção ao favelado’ (ver adiante). 86

impedir a vinda de novos moradores ou que os próprios parentes dos moradores já instalados construíssem seus barracos na favela. A Operação Mutirão ganharia impulso ainda, e a atenção por parte de alguns políticos, pela expectativa de receber recursos do Fundo do Trigo firmado entre o governo da Guanabara e a Usaid (Agência de desenvolvimento externo norte-americana) como parte do programa Aliança para o Progresso. A Aliança foi um programa de cooperação internacional entre os Estados Unidos e a América Latina, criado pelo governo Kennedy em 1961, como forma de combater a influência da Revolução Cubana e também melhorar a imagem dos Estados Unidos no continente, seriamente desgastada nessa época (Azevedo, 1999). O fundo consistia em recursos vindos da compra de trigo dos Estados Unidos pelo Brasil que eram emprestados ao governo brasileiro para serem reaplicados em projetos de desenvolvimento. O acordo determinava que os recursos deveriam ser aplicados na urbanização total de uma favela (Vila da Penha); a construção de um posto médico em Madureira; entre outras obras (ver adiante). O governo do estado deveria entrar com 3% de sua receita. Durante o primeiro semestre de 1962 a expectativa da assinatura do acordo era freqüente nos jornais, que falavam da importância dos recursos para as obras da Coordenação de Serviços Sociais, que na época estava concluindo obras de melhorias nas doze maiores favelas da cidade. Rios diz que foi muito procurado por políticos interessados nos recursos, já que 1962 era ano eleitoral, e que advertia à estes políticos que este dinheiro já estaria destinado para as favelas, contrariando assim diversos interesses (entrevista a Freire & Oliveira, 2002). A base de Lacerda na Assembléia Legislativa e outros políticos que compunham seu governo foram os que mais lutaram pela queda de Rios, principalmente os ligados à indústria imobiliária, como Rafael de Almeida Magalhães (vice-governador), Amaral Neto, que queriam interromper o processo de urbanização de favelas. Leeds (1978) argumenta que a urbanização de favelas encaminhada por Rios contrariava interesses imobiliários pelos seguintes motivos: por não remover as favelas localizadas em terrenos valiosos, que poderiam ser aproveitados (lembre-se da frase de Lacerda na abertura deste capítulo); o esquema de mutirão tornava desnecessário o pedido de grandes empréstimos às agências internacionais de fomento, também pelo fato de não estar acontecendo nenhum mega-projeto de construção de novas moradias. Com a queda de Rios antes da assinatura do acordo e a política de remoção que se instala a partir daí, estes interesses aparecem de maneira mais clara, e veremos que são a tônica da política de remoção de Lacerda: remoção 87

de favelas – ocupação de (alguns) terrenos para construção de prédios de classe média – grandes empreendimentos habitacionais (adiante falaremos do tema da remoção com mais profundidade). Após intensas pressões destes interesses, em maio de 1962 Rios foi demitido do cargo. A partir daí Lacerda fez profundas modificações na política de favelas de seu governo, reestruturando os órgãos que lidariam com a questão. A demissão de Rios por Lacerda às vésperas da assinatura do acordo Fundo do Trigo, que já havia sido tentado um ano antes, nos leva a algumas considerações que faremos a seguir. As favelas eram tidas como reduto do PTB, onde políticos como Geraldo Moreira, José Gomes Talarico, Hércules Corrêa46 (comunista na legenda do PTB) conseguiam grande número de votos. A eleição de Lacerda para Guanabara não foi de maneira nenhuma expressiva, tendo conseguido apenas 35% dos votos (Joffily, 1998), o que significa que praticamente 2/3 dos eleitores não haviam votado em Lacerda, entre os quais estava a grande parte dos favelados. Assim, a política de Rios à frente da Coordenação de Serviços Sociais foi um modo de Lacerda ter inserção nas favelas, ganhando em dobro, pois ao mesmo tempo que conquistava novos apoios, reduzia a base de seu antagonista, o PTB. Rios admite a importância de sua atuação para ampliação da base de apoio de Lacerda: “Quando ele assumiu o governo, as favelas eram hostis a ele. Depois essa hostilidade diminuiu bastante. Ele começou até a receber apoio de favelas, o que era impensável um ano antes. As favelas eram reduto da oposição.” (entrevista a Lima, 1989). Igualmente, não é desconhecido o fato de que Lacerda nesta época já tinha planos de se lançar a presidência, tornando esta inserção nas classes pobres mais necessária. Nísia Trindade Lima, em sua dissertação “O movimento de favelados no Rio de Janeiro…” (1989) conta que durante pesquisa desenvolvida em algumas comunidades em 1982, o nome de Lacerda era lembrado de maneira positiva, isto mesmo após as políticas de remoção. Vale destacar que a avaliação positiva se deve ao fato de serem favelas que receberam algum tipo de obra que não a remoção. A tentativa de inserção de Lacerda nas favelas passava pela cooptação das associações de moradores pelo aparelho do Estado, que buscou exercer um intenso controle nas associações. Tal controle é explicitado no acordo assinado entre as associações de moradores e a Coordenação de 46

Hércules Corrêa foi um dos deputados que mais defendeu questões relativas à favela, encampando inclusive

propostas da CTF como a destinação de 10% da arrecadação do estado para urbanização das favelas. (Lima, 1989) 88

Serviços Sociais descrito acima. Machado da Silva, cientista político com longa experiência no tema favela, no artigo “Política na Favela” (1967), dizia que as limitações às associações impostas pelo acordo “…por si só seriam provavelmente incapazes de limitar as atividades das associações. Acontece que os órgãos públicos possuem recursos limitados, que exigem decisões sobre quais favelas que devem ser beneficiadas. E como tais decisões assumem quase sempre caráter político, grande parte do esforço das associações é carreado para política administrativa.” (apud Lima, 1989). As associações de moradores se voltam para conquistar as obras da Operação Mutirão para sua comunidade, e como os recursos são limitados, alguns critérios têm de ser levado em conta pelo Governo, entre eles o político. A escolha da favela beneficiada pelo programa passa por quanto aquela obra renderá de capital eleitoral, a partir da relação de reciprocidade que é a base do clientelismo. A permanência da favela no terreno, como vimos, foi de algum modo garantida pelo governo, pelo menos para maioria das favelas. De modo que tornava desnecessária uma mobilização das associações de moradores contra o despejo, até então preocupação maior dos favelados, podendo a associação (sendo necessário até) partir para outras reivindicações, como, por exemplo, a urbanização das favelas. E é pelo Estado que esta reivindicação será atendida. Ou, melhor dizendo, a partir das (boas) relações construídas pelas associações com o Estado que estas reivindicações passam a ser atendidas. Tal controle não foi implementado de forma homogênea e tampouco deixou de encontrar resistências por parte do movimento de favelados anterior a gestão de Rios e a nova relação do Estado com as associações. Retomando o episódio da demolição a mando do SERFHA dos oito barracos no Bairro Desembargador Magarinos Torres, no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, no dossiê Magarinos Torres Filho elaborado pelo DOPS47, podemos ver traços da relação da UTF / CTF com o SERFHA e outras entidades como a Cruzada São Sebastião, além de ser uma prova que algumas favelas continuavam a se organizar à margem do SERFHA. No requerimento que o advogado Magarinos Torres Filho encaminhou ao delegado do 19º Distrito Policial, datado de março de 1962, em conjunto com vários moradores, relatando diversos fatos que vinham ocorrendo desde novembro de 1961, solicitando para que este apurasse “…crimes de

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Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro: Fundo Polícias Políticas do Rio de janeiro / setor investigação

policial – pasta 87 89

ação pública perpetrados por dois funcionários que executaram ordens emanadas do senhor governador Carlos Lacerda e orientados pelo SERFHA chefiado por Artur Rios.” Magarinos denuncia ainda que os favelados têm recebido ameaças de morte, e que uma campanha caluniosa tem sido veiculada no jornais por homens do governo e pelo arcebispo D. Hélder Câmara, acusando Magarinos de lucrar com a venda de terrenos na favela, e que isto se deve ao fato do mesmo deste acusar a Cruzada São Sebastião de nada ter feito com o dinheiro recebido e que tem tentado desmascarar “…o grande negócio que é a ‘indústria’ da proteção ao favelado, na qual a dita Cruzada, em primeiro lugar, depois a Fundação Leão XIII e o SERFHA, que já consumiram, dos cofres públicos e de doações de particulares, em 25 anos de ‘proteção’, mais de 40 bilhões de cruzeiros, continuando as favelas cariocas sem água, luz, esgoto, escola, posto médico, calçamento…” Magarinos narra ainda que no Bairro Desembargador Magarinos Torres tudo têm sido feito pelos favelados, como escola, aterro das ruas, um posto médico, encanamentos. E que a constante presença de policiais e funcionários do SERFHA têm perturbado os moradores da favela “…que está se transformando num bairro operário por orientação da UTF (…) sem necessidade de um tostão dos poderes públicos.” (o grifo é meu). Para Magarinos, este é o cerne da questão, pois com isso, ele argumenta, fica provado que “… os ‘protetores’ dos favelados como o SERFHA, a Cruzada São Sebastião e a Fundação Leão XIII não mais poderão obter as vultuosas verbas que vem conseguindo.” No referido Dossiê consta ainda uma ação de manutenção de posse da Favela da Maré impetrada por Magarinos contra o SERFHA, na pessoa de Artur Rios. Na ação o advogado argumenta que os moradores ocupam a área “há mais de dez anos” e que ela se situa em terreno da Marinha, portanto área federal, não cabendo a atitude do SERFHA de derrubar os barracos. A disputa pela influência no movimento de favelados é patente aqui. Nota-se também que o controle não é exclusividade do SERFHA, conforme vimos quando Magarinos se refere que a UTF está orientando a transformação da favela num “bairro operário”. No próximo capítulo, relativo a Maré, veremos que a formação e/ou consolidação de alguns bairros da Maré por Magarinos Torres Filho também foi feita com certo centralismo por parte deste, proibindo jogos e prostituição nos locais, chegando até a queimar barracos construídos sem sua permissão. Por ora, nos interessa analisar a atuação do SERFHA e a relação deste com favelas que não se dispusessem a fazer parte da Operação Mutirão. 90

As divergências atingiram em cheio o movimento organizado dos favelados quanto à atitude a ser tomada frente a proposta do SERFHA. A CTF, na época da Operação Mutirão, se viu em grandes dificuldades para continuar a mobilizar as associações, ficando cada vez mais esvaziada. Alguns fatores contribuiriam para este esvaziamento: o primeiro destes é a partidarização da CTF e dos núcleos da UTF nas favelas por parte do PCB e PTB, que afastou várias lideranças (Nunes, 1980). O segundo fator é que grande parte da mobilização dos favelados foi impulsionada, conforme vimos anteriormente, na resistência contra ações de despejo e pela desapropriação dos terrenos onde as favelas se localizavam. Em maior ou menor grau, ambas foram incorporadas pelo governo Lacerda, quando do ato de criação da SERFHA, esvaziando assim bandeiras políticas importantes das associações de moradores e, principalmente daqueles que as queriam com um caráter mais combativo, caso dos comunistas entre outros. Tornara-se bastante difícil mobilizar para uma luta mais geral quando diversas reivindicações pontuais e também mais imediatas poderiam ser atendidas pelo Estado, caso de uma escola ou a iluminação de uma favela. Ainda que a implementação destes benefícios não se dessem como se daria no resto da cidade, tendo os favelados que entrar com mão-de-obra e com parte dos custos, isso era um avanço infinitamente superior às políticas que os favelados esperavam do Estado. O terceiro fator é a maneira como Estado passou a lidar com as associações, tendo este aberto canais de negociação direta com os favelados48. Se por um lado, Rios ao desconhecer qualquer representante dos favelados que não fossem as associações contribuiu para o fortalecimento (ou mesmo a criação) destas; por outro ao se relacionar diretamente com cada associação, fazia com que o movimento de favelados como um todo se fragmentasse, sendo agora suas reivindicações atendidas a partir de cada comunidade. O próprio Rios diz que não restou muito espaço a um tipo de entidade geral dos favelados, pois além do governo ter se antecipado em uma série de iniciativas, ao estar em contato direto com as associações, não caberia mais intermediários.

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Apenas para ilustrar o quanto era novo a abertura deste canais, Rios (entrevista a Freire & Oliveira, 2002) lembra

que nas primeiras reuniões as lideranças comunitárias iam bastante arrumadas e tentavam falar difícil e que com o passar do tempo foram se sentindo mais à vontade, abandonando as ‘formalidades’ voltando a falar como sempre. 91

Assim, diversas associações que participavam da CTF, a despeito dos esforços de seus dirigentes em manter os favelados na oposição à Lacerda, acabaram se integrando à Operação Mutirão. Alguns argumentavam que a CTF não tinha realizado nada de concreto, e que precisavam fazer alguma coisa por suas comunidades. E somente a partir da colaboração com o Estado que isso seria possível. A despeito dos esforços aparentemente sinceros de Rios de modificar a situação das favelas, duas características aproximam as ações de Rios de outras ações anteriores: a primeira é que uma das prerrogativas de Rios é modificar a mentalidade do pobre, concepção que se aproxima das teorias sobre a cultura da pobreza, atribuindo a causa da condição de pobreza a um determinado grupo de características do pobre, que o manteria nestas condições, cabendo ao Estado atuar no sentido de modificar estas características. Ainda que diferenciada das idéias da Fundação Leão XIII e da Cruzada São Sebastião sobre a autopromoção moral ou social do favelado, está presente a idéia do favelado como agente principal de superação de sua pobreza, o que pode ser entendido como o responsável por ela. Lembremos da idéia de Rios, que apresentamos acima, do favelado não depender dos benefícios do governo. A organização do favelado tem para Rios um papel socializador, que não deixa de se aproximar das concepções da Igreja. O elemento fundamental agora é que existia um movimento organizado por parte dos favelados, que mobilizava forças consideráveis. Supondo que um efetivo controle deste movimento não estava nos planos de Rios, provavelmente estava nos de Lacerda e de outras forças à direita que viam em Lacerda um contraponto ao avanço da esquerda neste período. E uma das maneira de se contrapor a este avanço era disputando os segmentos organizados da sociedade, incluindo aí os favelados. O êxito, pelo menos parcial, de Lacerda é comprovado na disputa pela sua sucessão em 1965, quando diversas lideranças comunitárias apoiaram seu candidato, Flexa Ribeiro (adiante analisaremos a eleição para governador de 1965 e os desdobramentos do segundo momento da política de Lacerda para as favelas, as remoções). Rios também atribui uma polarização muito cristalina entre erradicação da favela / medidas repressivas de um lado e urbanização com participação comunitária / medidas progressivas de outro. A sua idéia de que era desnecessária uma entidade geral dos favelados, já que o Estado tratava diretamente com cada associação, é outro indício deste pensamento (Lima, 1989). Isso nos remete à segunda característica da ação de Rios, que é a inclusão subordinada dos favelados. Além do controle das associações por parte do Estado (através da cooptação), era 92

necessário, para que as favelas se urbanizassem, que fosse utilizado o emprego de mão-de-obra voluntária (e não-remunerada) dos favelados, o aproveitamento das sobras de demolições, entre outras coisas. Nossa indagação é se esse tipo de atuação do Estado seria possível em outras áreas da cidade, particularmente nos bairros de classe média ou alta? Vemos que estas ações tem a concepção de atribuir ao favelado uma cidadania de segunda-classe, que não lhes permite desfrutar de possíveis benesses do Estado nos mesmos moldes das outras classes. Apenas uma provocação que requer um pouco de imaginação: seria possível um mutirão dos moradores numa obra em Ipanema?

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A partir da demissão de Rios (maio) e a nomeação de Sandra Cavalcanti (dezembro) para a recém-criada Secretaria de Serviços Sociais do Estado da Guanabara (o SERFHA foi extinto), a política para favelas do governo Lacerda demostra grandes modificações da linha que vinha tomando até então. Houve ainda uma reestruturação dos órgãos de governo durante o segundo semestre de 1962, incluído aí os que trabalhariam com a questão de favelas. Se antes a linha era a urbanização das favelas, com apenas algumas removidas (ou parte destas), a partir deste momento a linha passou a ser a remoção das favelas, com apenas algumas urbanizadas. Se o combate aos cortiços no início do século XX pode ser chamado de a ‘era das demolições’, o período a partir daqui pode ser caracterizado como a ‘era das remoções’. A partir do governo Lacerda será implementada uma política sistemática de erradicação das favelas, com milhares de famílias removidas, nunca vista antes, que continuará durante a Ditadura Militar, até meados da década de 1970. Aliás, tal política também não foi vista depois. Esta política de remoção contará com órgãos com atribuições definidas em todas as etapas do processo, desde a decisão de remover determinada favela até a instalação das famílias nos conjuntos habitacionais. Só que tal nível de planejamento terminava aí, na transferência da família no conjunto, não havendo um planejamento para mantê-la nele, como veremos. As pressões para a saída de Rios são insuficientes para explicar a mudança de atitude de Lacerda. Como Rios mesmo declarou em mais de uma entrevista, o apoio que vinha sendo conquistado junto às favelas, em meio ao projeto de Lacerda para concorrer a eleição presidencial prevista para 1965, fez com que Rios pensasse que estaria garantido no cargo, e 93

mesmo que achássemos alguma referência a um incidente qualquer entre Rios e Lacerda (o que não aconteceu), isto não explica a brusca mudança da política de Lacerda em relação às favelas. Algo que chama atenção é a iminência da assinatura do Acordo do Fundo do Trigo, que destinaria um considerável aporte de recursos ao Estado para questão das favelas, cerca de quinze dias depois da demissão de Rios. O acordo previa: a urbanização de Vila da Penha; a melhoria de 35 favelas do Rio de Janeiro; a construção de casas populares em Bangu ((2250) e Botafogo (1500); a construção de um posto médico em Madureira49. Deve-se acrescentar que a assinatura do acordo foi feita com grande divulgação na época. O que nos faz pensar se Lacerda não viu no acordo a ‘grande política para favelas’ de seu governo, tornando o trabalho que Rios vinha desenvolvendo ‘desnecessário’ e até inócuo em resultados a curto prazo. Outros interesses se somam aí. Na assinatura do acordo, (ainda segundo o press-release da USIS) fica delegada à Fundação Leão XIII, revigorada por Lacerda, “a responsabilidade do planejamento urbano, reconstrução de habitações, administração e aplicação das linhas de orçamento, atividades técnicas e sociais relacionadas à habitação e à urbanização do Estado da Guanabara” (o grifo é meu). Na ocasião, Lacerda declarou que graças à reforma estatutária (reestruturação do governo) e a compreensão do Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, poderia confiar o projeto à uma instituição privada como a Fundação Leão XIII, supervisionada pelo Estado. O status jurídico da Fundação ajuda bastante a esclarecer os interesses que moveram a política de Lacerda para as favelas, incluindo aí a assinatura do acordo do Fundo do Trigo. As relações de Lacerda com a ala mais conservadora da Igreja vinham de longa data, e através do Decreto 1041 de 07/06/1962 do governo estadual, ela se tornou um órgão estatal operado pela Igreja visando o bem-estar social, embora Lacerda no ato de assinatura do Acordo tenha dito ser a Fundação uma instituição privada. Este caráter ambíguo da Fundação parece ter sido fundamental para que Lacerda atribuísse à ela o papel de representar o Estado e ser a receptora das verbas vindas do Fundo do Trigo, até a incorporação da Fundação Leão XIII pela Cohab, Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara, quando esta passa a administrar a 49

Ver press-release da USIS (Serviço de Informação dos Estados Unidos) sobre o Acordo do Fundo do Trigo,

assinado entre os Estado Unidos e o Brasil para Urbanização de Favelas do Estado da Guanabara (apud Leeds & Leeds, 1978). 94

verbas vindas do Fundo, ficando a Fundação como um departamento de bem-estar social da Cohab. A criação da Cohab na esteira da reestruturação do governo feita por Lacerda também é esclarecedora sobre a reorientação política deste em relações às favelas e também dos interesses em jogo. Primeiro deve se considerar que todos estes movimentos se dão numa época de intensos embates entre o governo de Lacerda e o governo federal, presidido por João Goulart, sendo Lacerda, um dos mais tenazes, senão o maior, dos opositores à João Goulart. A Aliança para o Progresso é um dos componentes desta disputa, sendo peça importante na campanha do governo americano contra João Goulart. Para confirmar a importância da Guanabara como um pólo antiGoulart, basta ver que a Aliança destinou mais verbas para a Guanabara do que para toda a região Nordeste do Brasil, notadamente mais pobre (Azevedo, 1999). As bandeiras de reformas de Goulart já começavam a mobilizar as forças de esquerda no país, sendo que uma delas era a Reforma Urbana, que previa, resumidamente, o combate a especulação imobiliária e solucionar a questão habitacional (Lima, 1989). Para isso, em 25/07/1962, o governo federal criou o Conselho Federal de Habitação (Decreto Federal 1281), que tinha entre suas atribuições garantir o acesso à moradia pelas camadas populares, desenvolver pesquisas habitacionais e o controle sobre recursos vindos do exterior para serem aplicados em projetos de habitação. Este último ponto é essencial, pois está diretamente relacionado ao aporte de recursos para o governo da Guanabara da Aliança Para o Progresso, parecendo ser uma resposta de Goulart a essa mobilização de recursos para Lacerda, de modo que Goulart quis criar uma maneira de controlálos. A contra-ofensiva de Lacerda foi a criação da Cohab no segundo semestre de 1962, que além de ter as mesmas atribuições do Conselho Federal de Habitação, seria o instrumento pelo qual Lacerda executaria ‘a sua reforma urbana’. Para não deixar dúvidas do que dissemos aqui, do papel da Aliança para o Progresso em fortalecer o governo da Guanabara como contraponto ao governo federal, e também da intenção de Lacerda de disputar as bandeiras das reformas (por um viés anti-esquerdista), o discurso de Lacerda quando da assinatura do Acordo do Fundo do Trigo não poderia ser mais claro: “Aqui hoje começa a Reforma Urbana! Mas ainda mais importante, aqui hoje continua nosso esforço para que o povo saiba que tudo isso quem lhe dá é a liberdade. A liberdade que permitiu ao povo trabalhador dos Estado Unidos ter o que 95

emprestar aos seus irmãos, para a segurança de todos os homens livres, lá no seu país, aqui no nosso país” (Jornal do Brasil, 13/06/1962 apud Lima 1989) A Cohab passou a ser a autoridade na área habitacional para as classes pobres (não se restringindo somente à elas, como veremos). O seus status de companhia mista, ou seja, com participação do Estado e de capital privado (que detinha 49% da Cohab) lhe permitia comprar terrenos de particulares, contratar firmas, etc. sem maiores entraves burocráticos. Vale registrar ainda o fato de que estes 49% de capital privado da Cohab pertenciam ao grupo político de Lacerda, na figura do vice-governador Raphael de Almeida Magalhães (que também era secretário de Planejamento, lidando diretamente com as obras que a Cohab se encarregaria de realizar) e do genro de Lacerda, Flexa Ribeiro, secretário de Educação (Leeds & Leeds, 1978). Em dezembro de 1962, como foi dito, a Cohab passou a gerir os recursos do Acordo do Fundo do Trigo e todos os demais recursos encaminhados ao programa de erradicação de favelas realizado no governo Lacerda. Antes de entrar no período remocionista, talvez seja válido apenas algumas referências sobre as demais ações do Estado voltadas para favela entre a demissão de Rios e a nomeação de Sandra Cavalcanti para Secretaria de Serviços Sociais do Estado da Guanabara. Como dissemos anteriormente, no período corria na Assembléia Legislativa da Guanabara uma reestruturação do governo, podendo caracterizar estes meses como um hiato entre as duas linhas de ação de Lacerda. A Fundação Leão XIII ficou como o órgão responsável pelas favelas, implementando alguns projetos de urbanização de algumas delas e a construção da Vila Aliança, o primeiro dos conjuntos habitacionais que abrigariam os removidos. À esta época a remoção ainda não apresentou o caráter compulsório que teria mais tarde, sendo removidos para Vila Aliança apenas os favelados convencidos por assistentes sociais de favelas da avenida Brasil ou famílias que estivessem em áreas de risco em outras favelas (Zaluar, 1985). Outras políticas foram desenvolvidas por Lacerda, através de novos órgãos ou programas, sem que implicasse remoção da favela. A Fundação Leão XIII foi revigorada no segundo semestre de 1964, aparentemente como meio de anular os impactos negativos que as remoções vinham causando na imagem de Lacerda entre os favelados. Contando com verbas da USAID, no programa chamado Bemdoc (Brasil Estados Unidos – Movimento de Desenvolvimento e Organização de Comunidade) que originalmente seria um programa piloto de desenvolvimento comunitário em poucas favelas. A Fundação entraria com toda infra-estrutura, incluindo pessoal, 96

e a USAID faria o financiamento, tendo acesso às contas. Algumas melhorias foram feitas nestas favelas com os recursos do Bemdoc, mas a Fundação fazia questão de reivindicar o crédito. Nas favelas onde não houvesse um núcleo da Fundação, as associações de moradores, que como vimos havia criado importantes canais de relação com o Estado, o espaço para este canal agora seriam as Administrações Regionais, através dos conselhos comunitários que estas formariam, devendo definir as linhas de atuações dos demais órgãos de estado em cada região do Estado da Guanabara., segundo Lima (1989), os depoimentos de lideranças comunitárias da época é de que estes conselhos pouco ou nada funcionaram. Lacerda também criou a Comissão Estadual de Energia em 1964 como forma de suprir demandas não alcançadas pela empresa responsável pelo fornecimento na Guanabara, a Light. A CEE serviria também para levar eletricidade às favelas, combatendo a exploração dos ‘donos de relógio’. Um ponto que atingiu diretamente o movimento organizado dos favelados é de que a CEE montaria comissões de luz nas favelas que deveriam ser organismos independentes da associação de moradores. Isso foi encarado por estas como uma forma de divisão e enfraquecimento das associações. De mais a mais, a exploração, antes feita por particulares, passou a ser gerida pelas comissões, já que os favelados tinham de pagar pela instalação dos equipamentos e mais uma taxa de 20% em cima da conta de luz para manutenção, a ser depositada no Banco do Estado da Guanabara. Anthony Leeds acrescenta que, por não haver necessidade de prestação de contas do banco ao Tribunal de Contas, mensalmente o Estado dispunha dos recursos vindo do pagamento destas taxas “…como uma verba secreta a ser mobilizada para os objetivos políticos

e públicos do Estado não divulgados.” (Leeds &

Leeds,1978). A Cohab, desde os primeiros meses de existência, encarava que a solução possível para o problema favela era a remoção. Um documento produzido nos primeiros meses da Cohab, louva o avanço da administração Lacerda no entendimento do problema: “Depois de 1955, o Estado voltou seus olhos mais uma vez para o problema. Criou vários órgãos e instituições que tentaram por várias formas e meios minimizar os efeitos das pressões sócio-econômicas que atuaram sobre a população favelada. Nenhum deles tinha como objetivo a erradicação dessas aglomerações. O atual governo [ Lacerda] foi o primeiro a enfrentar o problema em termos de erradicação.” (Relatório Geral 1963-1965. Cohab, apud Leeds & Leeds, 1978). O diagnóstico da Cohab é, ao nosso ver, acertado na descrição dos programas anteriores, que atuaram apenas na 97

forma de ‘minimizar os efeitos das pressões sócio-econômicas’, sem nunca buscar resolver efetivamente o que causava a ida das pessoas para a favela. Só que o ‘remédio’ recomendado pela Cohab a partir deste diagnóstico será bastante amargo para grande parte da população favelada no Rio de Janeiro (e não só para os favelados, mas posteriormente para a toda cidade, ponto que pretendo abordar na conclusão). Como já dissemos, Lacerda realizava várias obras na Guanabara, e as primeiras remoções estavam ligadas às áreas onde estavam previstas algumas destas obras, como favelas na avenida Brasil, para construção do Mercado São Sebastião ou a favela do Esqueleto, para construção da Universidade da Guanabara (hoje Uerj). Em entrevista recente (a Freire e Oliveira, 2002), Sandra Cavalcanti, secretária de Serviços Sociais, secretaria a qual a Cohab estava vinculada, disse que a urbanização não poderia ser uma regra. Na entrevista, Sandra Cavalcanti defende as remoções feitas em áreas de alto risco ambiental, em que tivesse havido devastação de encostas ou manguezais (que na época era a maioria absoluta das favelas, o que nos remete à discussão feita brevemente no Capítulo I; nota 5 pág. 7) ou que os custos de urbanização seriam muito caros, na mesma linha da frase de Lacerda apresentada no começo deste capítulo. Assim, o programa de remoções passou para favelas que estivessem em terrenos de alto valor imobiliário, como é o caso da favela do Pasmado, em Botafogo. Os recursos vindos com as vendas dos terrenos para empreendimentos particulares deveriam ainda ser revertidos para continuidade do programa de remoção. A remoção da favela do Pasmado em janeiro de 1964 é um caso paradigmático, pois envolve os vários aspectos significativos para entender o que foi o programa de remoção. Localizado em área nobre de Botafogo e com vista privilegiada para Baía da Guanabara, no Relatório da Cohab (1963-1965 apud Leeds & Leeds, 1978) constava que o lugar serviria para construção de um hotel da rede internacional Hilton. Sandra Cavalcanti diz que a proposta foi apresentada por Roberto Campos, e que Lacerda teria recusado para preservar a área verde. (entrevista a Freire e Oliveira,2002). À remoção, seguiu-se a queima dos barracos, com certo simbolismo do que era a nova etapa que estava sendo iniciada. Outro elemento é a remoção compulsória dos favelados para Vila Kennedy, um dos conjuntos construídos com os fundos da Aliança para o Progresso, e batizado em homenagem a um dos protagonistas do programa. No discurso de Sandra Cavalcanti à imprensa, ela definiu a remoção do Pasmado e a transferência dos moradores para Vila Kennedy como a ‘primeira revolução social realizada no Brasil’ _ e 98

ainda que, a partir da Operação Pasmado “…começa realmente o trabalho com os antigos favelados do Pasmado, que receberão na Vila Kennedy, escolas, serviço social e condições de higiene, passando verdadeiramente de um século para o outro em questão de condições de vida.” (O Globo, 18/01/1964 apud Lima, 1989). Foi a partir da remoção do Pasmado também que o movimento organizado de favelados se voltou para encarar a remoção como o maior desafio a ser enfrentado pelas favelas, tema mais corrente no primeiro Congresso da Federação de Associações das Favelas do Estado da Guanabara, a Fafeg. Adiante iremos abordar melhor o movimento de favelados após a saída de Rios da Coordenação de Serviços Sociais e as reações dos favelados às políticas de remoção. A remoção do Pasmado foi apenas o sinal do ímpeto que o remocionismo tinha ganho. Ainda no ano de 1964, seriam removidas as favelas (acompanha o número de famílias entre parênteses). Totalmente: Pasmado (911); Getulio Vargas (113); Maria Angu (460); João Cândido (665); Maneta (41); Vila do Sase. Parcialmente: Conjunto São José (20); Macedo Sobrinho (14); Del Castilho (9); Marquês de São Vicente (32); Ladeira dos Funcionários (8). Em 1965 foi removida totalmente Rio Joana (23); completada a remoção do Esqueleto (2027); e parcialmente removidas: Turano (34); Morro do Quieto (46); Praia do Pinto (20); e Brás de Pina (366). Segundo dados da Cohab, durante o governo Lacerda foram removidas 6290 famílias, destas, 4800 foram apenas no período que vai de janeiro de 1964 a julho de 1965 (Cohab, 1963-1965 apud Leeds & Leeds, 1978). Dos recursos do Fundo do Trigo que originalmente serviriam para urbanizar as favelas, apenas uma parcela foi utilizada para este propósito. Algumas favelas receberam obras parciais de urbanização, como: Jacarezinho; Rocinha; Salgueiro; e ainda, houve a urbanização de Vila da Penha, completada em junho de 1965. No governo Lacerda, foram utilizados os recursos do Fundo nestas primeiras remoções e na construção dos conjuntos que abrigariam os removidos: Vila Esperança, Vila Aliança, Vila Kennedy, e Cidade de Deus (apenas iniciada a construção). Os três últimos se localizam na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a algumas dezenas de quilômetros das favelas de onde viriam os removidos. A política de segregação espacial da cidade tomou proporções inéditas, removendo os favelados das áreas centrais da cidade, particularmente na valorizada Zona Sul, transferindo-os para terrenos vazios na periferia, a algumas dezenas de quilômetros do centro da cidade e de seus antigos empregos. Segundo o então Secretário de Planejamento e sócio da Cohab, Rafael de Almeida Magalhães, a construção destes conjunto se 99

insere num planejamento da cidade que ganhará forma com o Plano Doxiadis50. Os novos conjuntos habitacionais seriam horizontais e ocupariam grandes faixas às margens ou próximas a avenida Brasil, ou em Jacarepaguá (caso da Cidade de Deus). Com o Golpe de 1964, o programa remocionista ganha ímpeto pelo apoio do regime instaurado. Uma das primeiras ações do ‘novo’ governo federal é a criação em agosto de 1964 (Lei 4380 21/08/194) do Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão financiador e responsável por programas habitacionais, que seriam estabelecidos pelo Sistema Financeiro de Habitação. Sinal das articulações que levaram ao golpe, e das imbricações entre o programa remocionista de Lacerda e do governo federal, é a nomeação de Sandra Cavalcanti para a presidência do BNH, em outubro do mesmo ano. Sandra já havia sugerido em abril, através de uma carta ao Marechal Castello Branco a criação de um organismo que solucionasse o problema de moradia das ‘massas’ como maneira de angariar simpatia para o regime: “Achamos que a Revolução vai necessitar agir vigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de modo que vamos nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução do problema de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica sobre suas feridas cívicas.” (apud Zaluar, 1978). Assim foi montada uma estrutura para sistematizar a política de remoções, cabendo o BNH papel de executor das política habitacionais, tendo entre suas atribuições angariar os recursos para remover e assentar os favelados em novos locais. Assim, a remoção, um fantasma que nunca havia estado totalmente ausente da vida das favelas, pôde ser executada com força total num contexto ditatorial, já que, à medida que vão se passando os anos pós-64, a remoção era garantida por uma repressão nunca vista antes. E neste contexto, o poder do voto, que havia sido utilizado pelos favelados através de diversas estratégias de sobrevivência, já estava bastante enfraquecido, o quer não quer dizer que estivesse totalmente desaparecido, como veremos adiante. De qualquer forma, no período que se segue ao golpe, os favelados veriam drasticamente reduzidas suas margens de manobra para se contrapor aos interesses envolvidos na erradicação das favelas. 50

Plano-Diretor para o Rio de Janeiro feito pelo escritório do engenheiro grego homônimo que, entre outras coisas,

previa o deslocamento da área industrial do Rio para a Zona Oeste, próxima ao Porto de Sepetiba, ligando as áreas da cidade através de um sistema rodoviário com vários túneis e as linhas policromáticas (Vermelha, Amarela, etc.) sendo a avenida Brasil um dos eixos principais, onde se instalariam os bairros-proletários. (Ver Freire & Oliveira, 2002) 100

E o que eram estes interesses? Algumas argumentações eram apresentadas para justificar as remoções. A primeira delas é quanto a legalidade da favela, estando a maioria ocupando áreas invadidas, não possuindo portanto qualquer respaldo jurídico que lhes garantisse a permanência do local. Soma-se à isso que o Censo de 1960 constatou que um grande número de favelas situava-se na área central da cidade, da Zona Sul a Tijuca, ou seja, áreas de grande valor imobiliário, cuja remoção abriria importantes faixas de terra para empreendimentos voltados a classes de maior poder aquisitivo, além do que a remoção em si valorizaria a área, eliminando do bairro uma área caracterizada como carente, degradada, fora das normas de urbanização e associada permanentemente como uma ameaça à cidade. Outra justificativa, que decorre diretamente da noção de favela como ameaça, é a visão da favela como um mundo à parte, onde os favelados não trabalham, são parasitas do Estado, e este não deve lhes dar caridade, mas funcionar no sentido de impor ordem ao espaço urbano, removendo da parte mais privilegiada da cidade o estorvo que a favela é no cotidiano da classe média e na imagem dos bairros e da cidade. O mito da marginalidade (Perlman, 1977 _ que tratamos no capítulo I) foi nesta época uma importante ideologia que serviu de justificativa das remoções. Se tudo até aqui descrito não bastasse, vale lembrar que “…acabar com as favelas implicava diretamente a construção, em larga escala, de unidades habitacionais para as famílias removidas, o que contribuiria para incrementar a construção civil.” (Valladares, 1978). Segundo autoridades federais, como o ministro do Planejamento Roberto Campos, a função do BNH deveria ir além de fornecer habitações às camadas populares. O BNH deveria funcionar como um impulso a economia do país, através do apoio a construção civil, estimulando as várias indústrias ligadas ao setor, desta forma gerando empregos e reaquecendo o mercado de capitais, já que o BNH seria um organismo de financiamento da casa própria. Resumindo: a construção de habitações populares deveria ao mesmo tempo resolver o ‘problema-favela’ e ‘reativar a economia’ (Leeds & Leeds, 1978).

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Pausa para retornar a voz aos favelados e saber suas reações à política de remoção. Antes, é necessário retornar cerca de dois anos antes do Golpe de 1964. 101

Ainda que não estivesse nas intenções de Rios, ou que pelo menos não figure como uma intenção declarada, conforme pudemos notar na sua fala acima, a criação da Fafeg se deve indiretamente à ele. As reuniões organizadas na Coordenação de Serviços Sociais foi um meio das associações travarem contatos entre si, particularmente aquelas que foram criadas pela própria coordenação. À época, os núcleos da UTF e a CTF já estavam bastante esvaziados, existindo apenas formalmente, assim continuando até 1965, quando Magarinos Torres é assassinado em circunstâncias nunca esclarecidas (Nunes, 1980). A partir dos encontros na Coordenação, ganhava força a idéia de fazer uma federação das associações, a partir do contato entre as lideranças dos morros 117, Catumbi, Coroa e Catacumba. Durante o ano de 1962 foram realizadas várias reuniões para criação de uma federação dos favelados, que encontrava certa dificuldade de se concretizar devido às divergências de pensamento entre eles, que envolvia comunistas, os ligados à Ação Católica Operária, e até os vinculados a Lacerda (Nunes, 1980). Finalmente em março de 1963, é aprovado o estatuto da Fafeg, que a princípio reuniu cerca de 20 associações. A formação da Fafeg também pode ser entendida a partir da polarização política existente no Brasil, ampliada no período de João Goulart, que como dissemos anteriormente, envolvia a disputa pelas forças políticas (à direita e à esquerda) de segmentos organizados da sociedade. Alguns líderes comunitários que participaram da formação da Fafeg atuavam no Movimento de Rearmamento Moral, movimento anticomunista originário dos Estados Unidos que atuou em vários países. Este movimento atuou em diversas favelas do Rio disputando influência nas associações de moradores, ressaltando que não necessariamente os dirigentes que à ele se vinculavam partilhavam inteiramente de sua linha ideológica. Alguns dirigentes procuraram o movimento como uma forma de apoio nas disputas internas pela associação e na conquista de benefícios para favelas (Lima, 1989). Outra indício do vínculo da Campanha de Rearmamento Moral com a Fafeg era o programa (de quinze minutos de segunda a sexta-feira de 1963 a 1965) que esta dispunha na Rádio Rio de Janeiro, pago por empresas que atuaram na campanha pela deposição de Goulart (Lima, 1989). Nas reuniões que antecederam o primeiro congresso da Fafeg, estavam presentes vários representantes da Campanha, e uma das sugestões apresentadas era a filiação da Fafeg à Confederação Brasileira de Trabalhadores Cristãos, uma das organizações que participavam da articulação para deposição de Goulart. No livro de Guida Nunes (1980), alguns depoimentos de 102

favelados que participaram da formação da Fafeg, embora relatem reuniões em que estiveram presentes membros da Campanha de Rearmamento Moral, dizem que a formação da Fafeg se deu sem vinculação com qualquer grupo, ao contrário, foi exatamente como uma resposta às diversas tentativas de organização do movimento de favelados (por agentes externos) que a Fafeg surgiu. De qualquer forma, não tardaria para Fafeg seguir uma linha autônoma e até oposta à que planejavam seus ‘apoiadores’ iniciais. Tão logo as remoções se mostraram como política oficial do Estado, implementada agora também pelo governo federal, os conflitos de interesses começaram a surgir. Na verdade, mesmo antes do golpe a Fafeg já tinha se pronunciado contra as remoções, como vimos no caso do Pasmado. E a medida que o Estado vai implementando a política remocionista, a Fafeg vai se encaminhando para oposição. Também à esquerda eram feitos movimentos para influir nas favelas da Guanabara e no programa do governo Estadual proposto para elas. Próximo ao dia do Golpe, algumas lideranças comunitárias se reuniram com o representantes do Ministério da Justiça, buscando a interferência do governo federal no programa remocionista de Lacerda. Na ocasião, o Ministério anunciou que tomaria medidas para proteger os favelados da Guanabara, não descartando o uso de tropas federais para missão (Correio da Manhã, 26/04/1964 apud Lima, 1989). No mesmo dia que acontecia a reunião no ministério, na Praia do Pinto, no Leblon, a secretária Sandra Cavalcanti, em meio a protestos organizados pela associação de moradores, afirmava que a remoção da favela era um boato espalhado pelos comunistas infiltrados nesta. Em outubro de 1964 se realizava o I Congresso da entidade da Fafeg. Nele se afirma a posição da Fafeg contrária às remoções, elaborando um anteprojeto de lei para garantir a existência da favela, onde se afirma: “Nenhuma favela será removida, a não ser em caso supremo, porém não ultrapassando de três quilômetros da área em que tiver localizada.” O anteprojeto previa ainda a formação de uma comissão mista com representantes dos favelados e do Estado para avaliar cada caso. O congresso também apontava medidas para garantir a alimentação dos favelados, como a criação por parte do Estado de uma rede atacadista de supermercados que vendesse gêneros alimentícios a preços mais acessíveis, além do apoio financeiro do Estado para formação de ‘cooperativas atacadistas privadas’ nas favelas, cuja fiscalização dos preços deveria ficar a cargo das associações de moradores. 103

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A despeito das posições da Fafeg, as remoções continuam em pleno vapor. Porém há um episódio em que a Fafeg conseguiu efetivamente impedir a remoção. Foi em dezembro de 1964 na favela Brás de Pina. Em meados do ano, já havia chegado a notícia dos planos de remoção da favela e a transferência de seus moradores para Vila Kennedy. A maior parte da Brás de Pina era composta de aterro em cima do mangue ou na beira de um rio. As palafitas eram erguidas nesses aterros, feitos com galhos secos, sobras do curtume da Penha, e tudo mais que os favelados conseguissem usar. Com a prática de criação de porcos muito comum na comunidade, somados à proliferação de ratos e mosquitos, e enchentes que a atingiam esporadicamente, a favela poderia ser descrita como um inferno. Ou seja, Brás de Pina se encaixa na definição de Sandra Cavalcanti de favela cuja urbanização é inviável. Ignorando a impossibilidade, os moradores tinham um plano de urbanização para a favela, no qual tiveram a ajuda de estudantes da PUC (Pontifícia Universidade Católica) na elaboração. As assistentes sociais da Secretaria de Serviços Sociais foram à comunidade convencer os favelados a se transferirem para o conjunto vila Kennedy, urbanizado e com oferta de serviços, no que alguns favelados foram verificar e viram as queixas dos moradores da área quanto a distância dos empregos que já fizera muitos deles serem demitidos. À exceção de alguns, a maioria da comunidade decidiu ficar. Liderados pela associação de moradores e com apoio fundamental do padre da comunidade, o caso tomou grandes proporções, sendo acompanhado passo-a-passo na imprensa, com publicação de um manifesto assinado por 80 padres contrários à remoção. O manifesto se aproximava da linha do congresso da Fafeg: defendendo a urbanização de Brás de Pina, condenando a transferência para distantes conjunto habitacionais, argumentando sobre os custos para o trabalhador com prestações e transporte; e também os custos para o próprio Estado de tal empreendimento, defendendo que a urbanização da favela seria uma solução mais em conta do ponto de vista financeiro e humano. Vale citar que pouco após este primeiro manifesto, um outro foi publicado, desta vez por padres que defendiam a remoção. Próximo ao natal de 1964, no dia marcado para remoção das primeiras 300 famílias, o aparato de caminhões e funcionários da Fundação Leão XIII e da Secretaria de Serviços Sociais se deparou com uma barreira de 50 padres que estavam lá para impedir a operação. O próprio Lacerda se dirigiu ao local, acompanhado do Cardeal D. Jaime Câmara. Após tensas 104

negociações, um acordo entre o Estado e a Igreja conseguiu que só seria feita a remoção daquelas famílias que quisessem sair. No dia seguinte, os jornais destacavam a derrota do governador. Carlos Nelson Ferreira do Santos, arquiteto que depois irá trabalhar na urbanização da favela, analisou o caso da Brás de Pina como um laboratório para os diversos atores do período_ moradores, Fafeg, Estado, Igreja_ após o qual dificilmente a experiência se repetiria: “A reação em Brás de Pina vai se dar quase como um balão de ensaio numa época que ninguém sabia o que aconteceria se se fizesse um movimento daqueles. A nível político, até o Estado é pegado de surpresa e vacila, dá espaço para os acontecimentos, coisa que no futuro não voltará a acontecer, pois já haverá maneiras de neutralizar os agentes intervenientes.” (Movimentos Urbanos do Rio de Janeiro, 1981 apud Lima, 1989). O caso Brás de Pina se tornará um paradigma contra a remoção protagonizando outro episódio em 1968, como veremos adiante. Quando esboçou-se uma resistência à remoção em outro episódio, na favela do Esqueleto, a disposição do Estado em remover a favela se mostrou mais efetiva, inclusive com a prisão do presidente da Fafeg quando este, no programa de rádio da entidade, se posicionou contra a remoção, defendendo a realização de um plebiscito no local para saber a posição dos moradores, o que não foi feito, não tendo a Fafeg conseguido impedir a remoção. O espaço de atuação dos movimentos organizados à esta altura já era bem restrito. Porém, ambos episódios serviram para demostrar o impacto negativo que as remoções tiveram entre a população favelada, incluindo aí a já removida. Na campanha para governador de 1965, o tema das remoções foi corrente entre os candidatos, com destaque para o caso Brás de Pina, ocorrendo as visitas de candidatos ou de seus representantes (no caso de Flexa Ribeiro, candidato apoiado por Lacerda). Todos haviam se comprometido com a urbanização da favela. Inclusive o ex-prefeito Negrão de Lima, apoiado pela coligação PTB - PSD, que dissera que a urbanização da Brás de Pina seria para ele ‘questão de honra’ de seu governo (Nunes, 1980). Aliás, durante a campanha, Negrão se comprometeu a não dar continuidade às remoções (Leeds & Leeds, 1978). As menores votações de Flexa Ribeiro foram exatamente nas áreas que se concentravam o maior número de favelados (Leeds & Leeds, 1978) e também nas seções eleitorais localizadas nos conjuntos habitacionais (ou próximas) que agora abrigavam os removidos, as de Vila Esperança, Vila Aliança e Vila Kennedy. Nestas duas últimas e mais no conjunto Jacqueline, o número de votos para Negrão de Lima era 11 vezes maior do que para Flexa Ribeiro, conforme 105

noticiado na imprensa, com a expressiva manchete “A resposta de Vila Kennedy” (Jornal do Brasil, 14/04/1964 apud Perlman 1977). Sandra Cavalcanti diz que é falsa a versão de que os removidos votaram contra Lacerda expressando revolta contra as remoções (entrevista a Freire & Oliveira, 2002), porque, segundo ela_ “Naquela eleição, os moradores de lá ainda votavam em seus distritos de origem. Nem urnas funcionavam nos novos bairros.” Mesmo admitindo que a transferência, que havia sido iniciada dois anos, antes não levasse em conta a implantação de seções eleitorais, a versão de Sandra é desmentida na notícia anterior e mesmo quando os favelados votaram nas antigas seções o resultado foi semelhante, como vemos: “Todos os que viviam na favela do Pasmado e foram transferidos tiveram de voltar para votar na urna 128 da 3ª Região Eleitoral de Botafogo. Nesta região, o candidato de Lacerda supostamente tinha as maiores chances de vencer, mas na realidade foi totalmente derrotado, conseguindo apenas 12 votos na urna inteira… Portanto, a Vila Kennedy não era o sonho dourado dos favelados.” (Jornal do Brasil, 16/04/1965 apud Perlman 1977).

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A eleição de Negrão de Lima para governador da Guanabara, não trouxe a mudança de rumo esperada pelos favelados que nele votaram, para que assim fosse afastado definitivamente o fantasma da remoção. Na mesma noite que saiu o resultado das eleições, e anunciada a vitória de um candidato oposicionista na Guanabara, a Ditadura Militar modificava o sistema partidário do país, extinguindo as siglas existentes até então. A Ditadura começava a dar sinais de desistir de se revestir de uma aparente fachada democrática e se assumir como um ‘regime de exceção’51. O fechamento do regime marcaria as relações entre o governo federal e o governo oposicionista, restando pouca autonomia para este último implementar políticas habitacionais distintas daquelas traçadas pelo governo federal desde a implantação do BNH, que mesmo tendo sofrido algumas modificações, ainda se baseava no remocionismo.

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Uma das conseqüências do fechamento do regime foi que, em novembro de 1965, pouco depois de completar um

ano na presidência do BNH, Sandra Cavalcanti se demite, segundo ela mesma, (entrevista a Freire & Oliveira, 2002) em protesto pela suspensão das eleições presidenciais previstas para aquele ano e que Lacerda concorreria. 106

Desde a época que Sandra Cavalcanti estava à frente do BNH, se registravam algumas discordâncias entre o que havia sido implantado no programa remocionista de Lacerda e o que queriam algumas autoridades do governo federal. A principal delas é a idéia de que o sistema teria de se auto-financiar e até se tornar rentável. Em 1967, já sem Sandra Cavalcanti à frente, o BNH, seguindo as idéias de Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, ministro da Fazenda, fez modificações no sistema do banco, que deixou de ter recursos próprios, que eram oriundos de descontos em folha de pagamento dos trabalhadores, e passou a dispor das verbas do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), o que tornou necessária a rentabilidade do sistema. Tal necessidade tornou a remoção mais difícil para os favelados, já prejudicados pelos custos de transporte para o emprego. Para garantir a rentabilidade desejada, as prestações que os favelados teriam de pagar pela aquisição da casa própria nos conjuntos habitacionais sofriam correção monetária mês a mês, se tornando um fardo cada vez maior para aqueles que viam aumentar o fosso entre seu poder aquisitivo (cada vez menor) e o custo de vida (cada vez maior) uma vez que os salários nunca eram reajustados acompanhando a inflação. Isso fez com que o BNH, originalmente criado para atender a demanda de habitações populares, se voltasse para atender as demandas da classe média. Alba Zaluar (1985) faz a observação que a necessidade de rentabilidade do sistema sofria influência da conjuntura política, se tornando mais ou menos intensiva de acordo com a necessidade do regime de angariar apoio entre as classes pobres. O BNH também aparece na história recente como um dos grandes esquemas de corrupção. Segundo Sandra Cavalcanti: “Muita gente saiu de lá milionária.” (entrevista a Freire & Oliveira, 2002). A despeito destas diferenças, em comum havia o interesse na remoção das favelas da Guanabara. O fato do BNH gerir recursos do FGTS, significava que o banco passaria a dispor de uma maior quantia de dinheiro. Na segunda metade da década de 1960 a construção de habitações populares deu um grande impulso a indústria da construção civil na Guanabara, tendo o BNH conseguido atingir alguns de seus objetivos (segundo o modelo proposto). Acrescente-se a isso que a construção de habitações populares significava um grande negócio para as empresas de construção pelos seguintes fatores: a construção em série de vários prédios (ou casas) semelhantes permite baixar os custos com material, acelera o ritmo da força de trabalho e ainda, por se tratar de habitações para classes pobres, utilizava-se materiais de qualidade inferior. O 107

resultado disso é que muitos conjuntos habitacionais apresentaram vários problemas pouco tempo após sua construção, sendo até mesmo as estruturas de alguns conjuntos condenadas.52 Outros fatores contribuiriam para que o programa remocionista continuasse a ser implementado. Em janeiro de 1966, fortes chuvas castigaram o Rio de Janeiro causando várias mortes (que se repetiriam no ano seguinte). Na esteira da tragédia, a opinião pública passou a culpar as favelas e suas ocupações ‘desordenadas’ de encostas. Num seminário interuniversitário coordenado pelo ministro da Educação Pedro Aleixo (a partir de 03/1967 vice-presidente de Costa e Silva) para debater as enchentes na região Leste (que à época compreendia os estados de MG, RJ, ES, BA e GB), diversos grupos de trabalho condenaram qualquer tentativa de urbanização de favelas, argumentando que pela topografia destas, sua espacialidade desordenada, e pelo baixo poder aquisitivo dos favelados, a urbanização torna-se antieconômica quando não impossível, sendo exceção os casos em que seria possível urbanizar uma favela. A transferência e a proibição da construção de novas favelas era a recomendação do seminário. Apenas o grupo de problemas sociais destoou da linha do seminário, defendendo a integração dos favelados nas comunidades locais através da implantação de serviços sociais e com a mobilização de recursos dos próprios favelados. Outras instituições se posicionaram à favor da remoção das favelas, como o Conselho Nacional de Economia e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, organização de empresários que participou ativamente da articulação do Golpe de 1964). No primeira metade do mandato de Negrão de Lima, podemos notar uma ambigüidade de sua política em relação às favelas. Negrão de Lima se opunha a remoção das favelas, um de seus compromissos de campanha, mas sofria fortes pressões do governo federal (que por exemplo interveio na nomeação do secretário de Segurança e posteriormente na do Chefe da Casa Civil) e evitava entrar em maiores choques com este. Negrão praticamente não fez alterações na estrutura herdada do governo anterior, mantendo organismos como a Fundação Leão XIII, que expandiu suas atividades ensaiando um retorno aos tempos que era o único órgão a trabalhar nas favelas, tentando assumir responsabilidades sobre questões de moradia, reativando postos médicos e exercendo controle sobre as associações de moradores. No início de 1966, a secretária de Serviços Sociais, Hortênsia Dunshee de Abranches, quis que o Bemdoc expandisse suas atividade para todas as favelas, o 52

Ver página 117 - nota 54. 108

que encontrava resistência por parte da Usaid e de algumas pessoas que trabalhavam no programa, que defendiam a manutenção deste restrito às poucas favelas que atuava, mais como uma operação técnica, de estudos de desenvolvimento comunitário que política, como interessava a Negrão. Após inúmeros conflitos, o Bemdoc é extinto em dezembro de 1966. A Cohab voltou-se principalmente para transferência dos flagelados das chuvas de 1966 e 1967 para conjuntos habitacionais, como a Cidade de Deus, inaugurado em 1966. A descentralização feita por Lacerda, repassando algumas responsabilidades às administrações regionais, também foi revista por Negrão num primeiro momento. O que se verifica na primeira metade de seu mandato é a tentativa de Negrão de Lima de construir uma base de influência nas favelas, utilizando a estrutura herdada da gestão de Lacerda, que por sinal a vinha utilizando para fim semelhante. As atribuições da Fundação Leão XIII após a demissão de Rios e na primeira metade do mandato de Negrão é o melhor exemplo de como se buscava usar a máquina do Estado como forma de angariar apoio entre as populações faveladas. Para Lacerda, como forma de minimizar os efeitos da política remocionista. Para Negrão, era um dos poucos instrumentos de que dispunha para se ‘contrapor’ ao programa remocionista do governo federal. A tentativa de conquistar apoio nas favelas passava também pelo controle político destas. Assim, em junho de 1967, Negrão publica o Decreto 870, que dispunha sobre as atribuições das associações de moradores, pondo estas sobre controle do Estado. Ao tratarmos sobre o movimento organizado dos favelados nesta época voltaremos ao tema. A promessa de urbanização nas favelas feita por Negrão parecia se concretizar quando da criação da Codesso, Companhia de Desenvolvimento de Comunidade em 1968. A Codesco pode ser considerada como uma conseqüência do Bemdoc, quando técnicos da Usaid vindos dos Estados Unidos realizaram estudos em algumas favelas do Rio e elaboraram um plano de desenvolvimento comunitário, que foi entregue ao governo do estado. O plano vagou por algum tempo entre estudos e comissões, outro sintoma da ambigüidade na política para favelas de Negrão de Lima, até finalmente tomar forma na criação da Codesco, que contou com uma verba doada pela Usaid, além de recursos do governo do estado e, em menor quantidade (se comparada a verba destinada ao programa de remoção), do BNH (Perlman, 1977). A Codesco realizou um estudo em várias favelas do Rio classificando-as a partir do grau de viabilidade de sua urbanização, a partir da análise do terreno da favela, sua densidade e sua 109

localização. Assim, foram escolhidas três favelas com características distintas entre os três critérios citados para receberem as obras de urbanização, que foram: União, Mata Machado e Brás de Pina. Esta última finalmente veria iniciada sua urbanização após quatro anos desde a tentativa de remoção. Tomando a urbanização da Brás de Pina como modelo de atuação da Codesco53, vemos que a ação desta é radicalmente distinta da linha de remoções presente no governo federal. A Codesco defendia a permanência dos favelados nas áreas próximas ao seu local de trabalho, realizando a urbanização juntando os estudos de técnicos com o conhecimento e vontade dos moradores, para as obras na comunidade e no desenho de suas ‘novas’ casas. O programa previa: a regularização dos lotes, pavimentação das ruas, iluminação, redes de água, esgoto e eletricidade, auxílio financeiro e técnico para melhoria das casas. A Codesco contava com uma equipe de sociólogos, arquitetos, economistas, enfim, vários jovens profissionais voltados para o estudo de habitações populares, dentre os quais estava um grupo de arquitetos que já haviam trabalhado com a Fafeg, como Carlos Nelson Ferreira dos Santos. A partir dos vários desenhos de casa feitos pelos técnicos e moradores, alguns modelos começaram a ser adotados em larga escala, ficando então disponíveis na associação de moradores. A Codesco fez um levantamento detalhado das condições de cada rua e casa da favela, apenas remanejando os barracos quando necessário. Ela também comprou os materiais para reforma das casas por atacado, permitindo assim repassá-los aos moradores por preços bem mais baixos que o normal, através das cooperativas (montadas pela Codesco) e com o financiamento do BNH, com parcelas menores e prazos mais longos, além de dar a alternativa à cada família de ir reformando a casa conforme seu gosto e sua possibilidade. Janice Perlman (1977) diz (e comprova com fotos) que dois anos após o início das obras muitas casas já eram de alvenaria, e cinco anos depois a Brás de Pina estava repleta de casas de dois andares, pintadas e cada qual com suas características próprias, em meio a áreas de lazer com bancos e árvores. Para comparação recomendamos ao leitor ir à página 103 deste estudo e rever as antigas condições da

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Que de fato o é. A urbanização da Brás de Pina foi o maior (pelo tamanho da favela) e mais famoso projeto de

urbanização da Codesco. As outras favelas escolhidas (Matta Machado, União e tempos depois Vigário Geral) tiveram as obras apenas iniciadas, tendo sido a Codesco extinta antes de sua conclusão (ver Burgos, 1998; Leeds & Leeds, 1978; Perlman, 1977). 110

Brás de Pina, cuja urbanização era considerada ‘inviável’ ou ‘cara demais’. Quem hoje passar na avenida Brasil próximo a Igreja da Penha terá dificuldades de localizar a antiga favela, que atualmente consta nos mapas como Penha Circular. A proposta de urbanização desenvolvida pela Codesco foi defendida (pelos responsáveis pelo projeto, pelos estudiosos do assunto e pela Fafeg) como a melhor solução não só do ponto de vista humano, já que evitava o processo traumático de remoção, mas também do ponto de vista econômico, com estudos feitos pela Usaid apontando que os preços da reforma das casas e urbanização da favela era a metade do gasto em cada unidade habitacional dos conjuntos da Cohab ( Favela et politique. Luís A. Machado da Silva & C.N. Ferreira dos Santos, 1969 apud Leeds & Leeds, 1978). Outro ponto positivo levantado é a viabilidade econômica para o próprio favelado, que parece ter sido desconsiderada nos programas de remoção, já que a permanência no local não afeta seu modo de vida com custos com transporte, prestações do BNH ou, em caso extremo, a perda do emprego que atingiu vários dos removidos. Vale uma ressalva. Novamente no livro de Guida Nunes (1980) é apresentado o relato do mesmo padre que em 1964 mobilizou a comunidade para resistir à remoção, de que a ação da Codesco não teria sido tão benéfica para todos os favelados. A principal crítica apresentada é de que a Codesco tomou à frente de um projeto de urbanização que já estava sendo planejado pelos moradores sem que se precisasse tomar empréstimos, sendo feita a compra de materiais somente pelas cooperativas. Então, segundo ele, muitas pessoas ao priorizarem a reforma das casas não tiveram condições de continuar pagando as prestações, tendo de abandonar a área. Na visão de padre Alberto, que dizia estar apoiado por parte dos moradores, a Codesco tinha virado uma ‘imobiliária’, que contava inclusive com mão-de-obra dos moradores, à exemplo de outras ações anteriores do Estado, como nós vimos. Outra crítica é de que a Codesco estava tomando à frente de qualquer mobilização da comunidade, esvaziando as demais organizações, como a associação de moradores e a Igreja local, que era bem atuante, como vimos. Quando ela anunciou planos de permanecer na comunidade, ampliando seu escritório, padre Alberto foi até lá derrubar à marretadas as paredes recém-construídas, tendo sido preso e enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Respondeu o processo em liberdade, defendido por Sobral Pinto e acabou condenado a seis meses de prisão, que cumpriu em liberdade. Achamos válido apenas apresentar o relato, que segundo o próprio padre Alberto, não era visão unânime da comunidade, estando ela dividida na avaliação da atuação da Codesco. De 111

qualquer forma, a Codesco é abordada de forma positiva por toda bibliografia que trata do assunto como um ‘oásis’ em meio ao ímpeto remocionista. A palavra ‘oásis’ é mais apropriada que ‘intervalo’, pois na mesma época de atuação da Codesco (a partir de 1968), o programa remocionista tomava novo fôlego, com a criação da Chisam (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana) através do Decreto Federal n.º 62. 654, em 03/05/1968. Apenas quatro meses após o surgimento da Codesco.

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A Chisam estava vinculada ao Ministério do Interior, juntamente com o BNH, e teve como diretor-chefe o ministro General Albuquerque Lima. Ironicamente, a criação da Chisam estava embasada por duas teses quase que consensuais entre defensores ou contrários às remoções: a primeira, de que a favela era uma questão de âmbito nacional, e que qualquer política para ela necessitaria do apoio do governo federal, inclusive financeiro; a segunda vinha do plano de desenvolvimento comunitário elaborado pelos técnicos vinculados a Usaid que deu origem a Codesco, de que seria necessário uma autoridade metropolitana que comandasse as diversas iniciativas e órgãos que lidassem com a questão da favela, coordenando a atuação destes. Uma das altas autoridades da Chisam, o engenheiro Gilberto Coufal, também diretor do BNH, disse em material de divulgação do banco (Agente, 1968 apud Leeds & Leeds, 1978) que o órgão iria trabalhar pela ‘eliminação’ das favelas, negando que a erradicação estivesse em pauta. Coufal daria entrevistas a jornais, logo nos primeiros dias da Chisam, no mesmo sentido: “As soluções-gueto que isolam em vilas as pessoas da mesma classe sócio-econômica não serão mais adotadas pelo governo, agora voltado para o sistema de bairros que integrem numa mesma comunidade uma população heterogênea.” (O Globo, Jornal do Brasil e Correio da Manhã de 16 e 17/05/1968 apud Lima, 1989). Segundo Leeds, a partir das declarações iniciais de suas autoridades, poderia se entender que a Chisam trabalharia pela urbanização das favelas, mas (como ele afirma) os materiais da Coordenação não são claros quanto a isso. No mesmo material de divulgação, o BNH declarava como uma ação da Chisam o estudo de projetos de urbanização em três comunidades, exatamente as que a Codesco atuava. O banco, como vimos, de fato destinou recursos para o 112

programa, mas neste material de divulgação não é feita nenhuma referência à Codesco, que aliás já havia iniciado tal estudo antes da criação da Chisam. A ambigüidade de Negrão de Lima aparece outra vez nesta ocasião. Mesmo com a Codesco funcionando, e sendo a Chisam efetivamente uma intervenção do governo federal no Estado da Guanabara, dirigindo diretamente vários órgãos do governo do estado, Negrão de Lima saudou a criação da Chisam como uma “magnífica cooperação do governo federal” e que o fim das favelas só não teria ocorrido ainda por falta de terrenos onde construir os conjuntos habitacionais, o que ele esperava ver resolvido com a Chisam (Jornal do Brasil, 10/05/1968 apud Valladares, 1978). A vertente remocionista aparece nos primeiros documento da Chisam, que declara: “Apenas de 1962 em diante é que o problema da favela começou a ser abordado com maior profundidade.” (Chisam. Origens – Objetivos – Metas apud Leeds & Leeds, 1978). É significativo que a data escolhida pelas autoridades da Chisam como marco inicial de quando o Estado passa a lidar com as favelas ‘com maior profundidade’ seja o início do programa de remoções executado por Lacerda. Outro sinal é apontado por Anthony Leeds, que faz uma crítica veemente aos relatórios da Chisam, acusando de distorcer tanto os fatos referentes às favelas que, segundo ele, só pode ser algo deliberado. Por exemplo, quando se refere às moradias das favelas somente como barracos, quando já havia várias favelas em que a maior parte das casas já eram de alvenaria; a Chisam também jogava para cima, e muito, todos os dados relativos à população das favelas. Por exemplo, no material do BNH de 1969 (apud Leeds & Leeds, 1978), um artigo de autoridades da Chisam (Coufal) e da Fundação Leão XIII diz: “No Rio de Janeiro existem, 283 favelas, a maioria delas_ 36_ localizadas na região 6ª Região Administrativa, que abrange os bairro de Ipanema, Leblon Jardim Botânico, Lagoa e Gávea, precisamente a região mais aristocrática da Guanabara, onde se situam as casas mais luxuosas, as terras mais valorizadas e os clubes mais finos. ” Desconsiderando os erros matemáticos da frase acima, Anthony Leeds, a partir de outra fonte afirma que nem 36 favelas eram, mas 16, apreendendo a partir daí que tais distorções só poderiam ser a busca de justificativas para as remoções. Reforçando que a linha remocionista guiava a Chisam desde o princípio, a partir da análise de documentos da Chisam, Janice Perlman (1977) observa que a linha de sua atuação se enquadra na escola ecológica da marginalidade, segundo a qual a favela por suas condições físicas precárias degrada o favelado, daí a ênfase constante da Chisam em se referir aos 113

‘barracos’ nas favelas. Num ponto de vista semelhante, Anthony Leeds aponta que uma das práticas comuns da Chisam em seus materiais de divulgação era mostrar fotos das favelas que estavam para ser removidas, dando destaque para a precariedade dos barracos. Como Leeds alerta, isto é um sinal que a Chisam fazia distorções deliberadas, pois se a favela estava sob a iminência de ser removida, não haveria porque os favelados fazerem melhoria em suas casas ou reformas que não fossem urgentes. A partir desta linha, a transferência dos favelados para uma moradia ‘digna’ significaria a sua ‘recuperação’. O material da Chisam a seguir não pode ser mais explícito quanto a maneira de pensar das autoridades da Chisam, baseando-se em generalizações e preconceitos em relação aos favelados e seus propósitos: “O primeiro objetivo é a recuperação econômica, social, moral e higiênica das famílias faveladas. Da mesma maneira, o programa visa mudar a posição da família favelada, que ocupa ilegalmente propriedade alheia, com toda a insegurança que isso representa, pela de donos de casa própria. Tais famílias tronam-se, então, completamente integradas na comunidade, especialmente quanto à maneira de viver e de pensar” (Chisam – 1971 apud Perlman, 1977). Através de decreto presidencial, a Chisam recebeu 27 terrenos da União e do INPS. Em 1969 a construção do conjunto da Cidade Alta e de novas unidade da Cidade de Deus marcam a retomada das remoções pelo Estado, retomando os planos do BNH de remover as favelas e incentivar a indústria de construção civil. É no período que vai da criação da Chisam em maio de 1968 até março de 1971 que serão removidos o maior número de favelados, quase 64 mil (Cohab – GB apud Valladares, 1978). A maior parte da favelas removidas se localizava na Zona Sul da cidade, tendo a Chisam eliminado da orla da Lagoa as favelas da Catacumba, Jóquei Clube, Ilha das Dragas, e Praia do Pinto. A Chisam é definida como um órgão com funções de coordenar as ações para as favelas, não tendo funções executivas. À ela caberia atribuir as funções de cada órgão: a Secretaria de Serviços Sociais prestaria as atividades de assistência social através da Fundação Leão XIII e da Ação Comunitária do Brasil, subsidiária da entidade de origem norte-americana com viés anticomunista, com função de atuar em desenvolvimento comunitário, a entidade, passou portanto, a contar com a chancela do Estado para atuar; a Cohab se encarregaria da construção (projeto, contratação de firmas, fiscalização e comercialização) dos novos conjuntos. Além disso, a Chisam também iria articular a remoção com caminhões de outros órgãos, presença policial, 114

remoção do entulho com a DLU (Departamento de Limpeza Urbana, atual Comlurb). Esquematicamente: caberia a parte da remoção à secretaria de serviços sociais e a parte do assentamento nos conjuntos à Cohab. Diversas remoções foram feitas no período de existência da Chisam, como: a de parte da Rocinha, que a imprensa considerava ser uma “difícil passagem” para um importante ponto turístico, embora a favela já estivesse há muito tempo no local; a da Ilha das Dragas, que culminou com a prisão da diretoria da Fafeg; a da Praia do Pinto e a da Catacumba. Apenas para citar as mais emblemáticas Uma mostra de que a política remocionista seria implementada a qualquer custo é a remoção da Praia do Pinto, favela com 7 mil moradores situada em meio ao bairro do Leblon, um dos mais nobres da Zona Sul. Como os moradores resistiram às pressões das assistentes sociais e se recusavam a sair da favela espontaneamente, esta foi incendiada de maneira misteriosa. As suspeitas de que o incêndio foi criminoso, com diversas pessoas rondando o local durante a noite, é corroborada com o fato dos bombeiros não terem aparecido. Ao final, a favela estava praticamente arrasada e seus moradores foram transferidos para Cidade de Deus. No terreno da favela, foi construído um condomínio de classe média chamado Selva de Pedra, para onde foram muitos militares (Perlman, 1977; Zaluar, 1985). A remoção ocorria da seguinte forma: a partir da decisão de remover a favela, esta era visitada pelos técnicos da Chisam que entravam em contato com as organizações da favela (igrejas, associações de moradores, comércio, etc.). A Chisam costumava utilizar-se dos conflitos existentes nas favelas, cooptando algumas lideranças que, em troca, ganhariam algumas vantagens, como uma casa melhor nos conjuntos. Estas lideranças deveriam convencer a favela das vantagens da remoção. Da parte das lideranças, sabia-se que a margem de manobra era pouca, não havendo histórias de êxito em resistir à remoção (mesmo o caso da Brás de Pina foi em outra conjuntura, a resistência à remoção foi quatro anos antes, como vimos). Além do convencimento das lideranças, o governo também investia na propaganda da casa própria e das vantagens em serviços e urbanização que os conjuntos apresentavam. Este, aliás, era um dos pontos mais incisivos para defesa do programa de remoção por parte do governo. De que os favelados teriam (e queriam) a casa própria. Embora a maioria quisesse ficar, devido às relações construídas na favela, a proximidade do emprego e tudo mais, havia quem quisesse ir. Inclusive, a remoção atraía moradores para a 115

favela, que alugavam quartos, ou iam para casas de parentes, ou ainda, trocavam de moradia com aqueles que não quisessem ir para os conjuntos. Estes poderiam também vender seus barracos indo para outro lugar, inclusive outra favela. Assim, na Catacumba, por exemplo, que levou dois anos entre o aviso e remoção em si, existiam 200 famílias para 1857 barracos. Houve mesmo uma valorização dos imóveis na favela, cabendo à associação de moradores impedir a construção de novos barracos, o que era feito com certo relaxamento por parte desta, por solidariedade ou até mesmo por corrupção, já que há relatos de diretores da associação terem cobrado taxas de alguns ‘novos moradores’ para que fosse permitida sua instalação na favela. Esta demora na remoção da Catacumba demostra a grande dificuldade de sintonia entre os órgãos. A remoção era atrasada às vezes pela demora da Cohab em terminar os conjuntos. As assistentes sociais iam à favela avisar os moradores da remoção e fazer um levantamento sócio-econômico, com a qual se determinava a renda das famílias, e partir desta era feita a distribuição pelos conjuntos, ou ainda, casas de triagem, de acordo com a renda familiar. Isto fez com que a solidariedade que se encontrava nas favelas e que foi tão importante para as lutas que esta travara no passado, para a formação de sua identidade, e mesmo no cotidiano destes moradores, fosse despedaçada já que a remoção dispersou antigos vizinhos ou mesmo parentes por vários conjuntos. No dia marcado para a remoção, as famílias deviam esperar já com a mudança arrumada. Chegavam os funcionários da Chisam, as assistentes da Secretaria de Serviços Sociais, a tropas da polícia militar e civil, além da imprensa e curiosos. A polícia servia para conter possíveis protestos, roubos da mudança e a reocupação dos barracos, que tinham a luz e água imediatamente cortados por ordens da Chisam. O DLU demolia os barracos para que ninguém mais os ocupasse, deixando o terreno livre para novo uso. Na Catacumba removia-se em média 50 pessoas por dia, e as primeiras famílias foram justamente as dos colaboradores do início do processo. Os moradores da Catacumba foram em sua maioria transferidos para o conjunto do Quitungo, na Penha (Perlman, 1977; Valladares, 1978). Tomemos a chegada no conjunto Cidade Alta como exemplo das pompas que cobriam a inauguração do conjunto. Os removidos chegaram, participando de uma cerimônia com presença de Negrão de Lima, do secretário de Serviços Sociais, dos presidentes da Cohab e do BNH, do Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, que benzeu o conjunto. Cada autoridade entregou simbolicamente uma chave a alguns dos moradores, após o que, foram feitos alguns discursos 116

elogiando a obra como um elemento de integração do favelado na vida comunitária, de elevação do seu nível de vida e dos acertos da nova política do governo (Jornal do Brasil, 29/03/1969 apud Valladares, 1978). Nos planos originais da Chisam seriam removidas todas as favelas do Rio de Janeiro até 1976, para isso removendo cerca de 100 mil pessoas por ano. Como vimos, antes da meta ser cumprida a Chisam foi extinta, em setembro de 1973, removendo no total mais de 90 mil moradores de 62 favelas (remoção total ou parcial) (Lima, 1989; Perlman, 1977), transferindo-os para novas 35 517 unidades habitacionais em seus conjuntos. A esmagadora maioria destes conjuntos situavam-se nas zonas Norte e Oeste, e mesmo assim, na primeira ficaram apenas os menores.

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Nos três livros usados neste estudo que se voltam especificamente para estudar a remoção e seus efeitos (Perlman, 1977; Valladares, 1978; Zaluar, 1985), aparecem várias matérias de jornais que relatam, além de outras fonte que as autoras usam, que pouco tempo após a remoção, as conseqüências para os favelados eram dramáticas em várias esferas de sua vida. Haviam perdido as antigas redes de solidariedade que existiam nas favelas, já que antigos vizinhos foram espalhados por vários conjuntos; as antigas organizações comunitárias foram desfeitas por razões óbvias; e por vários fatores, a inadimplência nos conjuntos habitacionais era a regra. Como falamos anteriormente, a necessidade do sistema ser rentável tornou as prestações um sacrifício cada vez maior para os moradores destes conjuntos. Tal necessidade fez com que o BNH se voltasse para financiamento para habitação de classe média, até como maneira de dar continuidade ao programa de remoção, que necessitava de recursos. Este é outro indício do fracasso do programa de remoção. De abril de 1971 a março de 1974, já no governo Chagas Freitas (1971-1975) enquanto eram removidos 5333 barracos, foram entregues pela Cohab 13253 unidades habitacionais. Deve ser considerado que muitas unidades dos conjuntos da Cohab eram destinadas desde o começo a pessoas de classe média, chamadas pela Cohab de reserva-técnica, que, devido aos baixos custos das prestações (comparado ao mercado, como dissemos) atraíam os não-favelados para o conjunto. 117

A alta inadimplência dos moradores dos conjuntos, que vinha desde os primeiros anos da Cohab e do BNH e foi progredindo cada vez mais, foi um dos motivos, senão o principal, que levou à extinção da Chisam e do programa de remoção. O BNH partiu de algumas premissas sobre os mutuários do Sistema Financeiro Habitacional, no caso os removidos, que se revelariam falsas posteriormente, são elas: desejavam ter casa própria; aceitariam se comprometer com o pagamento em um longuíssimo prazo (mais de 15 anos segundo estimativas do BNH); se disporiam a destinar 25% de sua renda nesse pagamento; teriam capacidade financeira para isso; concordariam em ser compulsoriamente removidos e transferidos para os conjuntos habitacionais. Mesmo que as prestações dos conjuntos habitacionais fossem mais baixas que o mercado, tornaram-se um custo maior que o possível de ser arcado por muitas famílias. As prestações eram além das suas possibilidades por vários motivos: por terem mentido quando da visita das assistentes sociais sobre sua renda, sabendo que assim seriam removidos para um lugar cujas condições seriam melhores; tinham custos novos com transporte; novas taxas como condomínio, água, e às vezes até de reformas que tinham de fazer em suas moradias, visto a precariedade de vários destes conjuntos54; outro fator que não pode ser desconsiderado é que a favela surgia também pela possibilidade dos favelados aumentarem suas rendas com biscates nos bairros de classe média, agora distantes; e por último a perda de empregos que atingiu muitos deles, agora distantes do mercado de trabalho. As famílias tentavam garantir sua permanência mesmo sem pagar, mas a Cohab tinha um limite de tolerância e também tinha de cumprir obrigações financeiras com o BNH. De modo que vários favelados inadimplentes foram despejados, às vezes de forma violenta. Uma das soluções buscadas, já após o fim da Chisam, foi o cancelamento das dívidas e a reavaliação da capacidade de pagamento de cada família, se as prestações pagas ultrapassassem 25% (posteriormente reduzido para 18%) da renda familiar, os moradores seriam removidos novamente para as casas de triagem, como as de Paciência, mais longe que qualquer conjunto construído anteriormente (Perlman, 1977). Uma das saídas encontradas pelos inadimplentes era a ‘cessão’ de direitos, estando o morador do conjunto com promessa de compra e venda da casa, ele arrumava um interessado em 54

“Manguinhos: demolição após entrega do laudo” (O Globo, 07/01/1972) “Despejo e rachadura: as ameaças do

Quitungo” (O Globo, 22/07/1972). Ambos tirados de Valladares (1978). 118

pagar as prestações atrasadas (ou que conseguisse renegociar com a Cohab) e a transferência da documentação para seu nome. Em posse do dinheiro adquirido com a cessão de direitos, o ‘removido’ tinha entre suas opções a volta para a favela. O processo é descrito detalhadamente no livro de Lícia Valladares, cujo título alude à isto inclusive: “Passa-se uma casa”. O título surgiu a partir de uma placa vista por Valladares na porta de uma das casas na Cidade de Deus e foi uma espécie de símbolo do fracasso do programa habitacional do governo, com vários favelados revelando o desejo de voltar a favela ou a impossibilidade de permanecer nos conjuntos devido às prestações. A compra das unidades no conjunto por pessoas de classe média é um dos sinais de que o programa fracassara, não conseguindo fixar o favelado removido, que como vimos, pode até voltar a morar numa favela. Para Valladares (1978) a inadimplência surge como uma forma de reação ao sistema, à remoção compulsória e mostra o desapontamento dos favelados com o conjunto habitacional. Janice Perlman (1977) enfatiza que a remoção acabou por ampliar os efeitos do que, em tese, ela queria combater: ou seja, marginalizar o favelado, que nos conjuntos perdiam o emprego, as redes de solidariedade, suas organizações comunitárias, fazendo com que os moradores do conjunto desejassem voltar para a favela. Alba Zaluar (1985) faz sérias ressalvas quantos estas teses. A primeira é que faltam estudos mais aprofundados para saber em que grau houve a ‘cessão de direitos’ e a compra de unidades pela classe média, pois ela descreve que na Cidade de Deus do início dos anos 1980, conviviam casas com aspecto de classe média com outras, no interior da favela, com modificações nunca acabadas55. A autora também diz que deve ser relativizado este ‘desejo’ de voltar à favela ou a visão da favela como um ‘lugar melhor’ que o conjunto habitacional. Também não pode ser desconsiderado, sob pena de ‘idealizar’ a realidade dramática de algumas favelas ou de partes destas, que não houvesse quem quisesse ir para um lugar que, mesmo precário, era melhor que o anterior. Além disso, passado o impacto inicial da remoção, os favelados acabavam por criar novas redes de solidariedade e novas organizações comunitárias. 55

Zaluar acrescenta ainda que o que ocorre na Cidade de Deus parece ser válido também para os demais conjuntos

habitacionais construídos de 1958 a 1968. Uma pesquisa feita pelo IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal) revela qua a maioria dos moradores destes conjuntos (61,4%) tinham renda familiar de 0 a 5 salários mínimos. Tomando apenas a renda do responsável, 54 ,6 % ganhavam de 0 a 3 salários mínimos. Como vemos, as classes mais pobres continuaram a ser maioria nos conjuntos. 119

Baseando seus estudos na Cidade de Deus, Zaluar viu que a fundação de algumas organizações como associações de moradores ou grêmios recreativos datavam do início da década da 1970. Por último, a inadimplência mais que uma revolta contra o sistema, era uma questão de escolha de prioridades dentro de um orçamento cada vez mais apertado, podendo atrasar uma prestação para comprar comida e pagar outra prestação alguns meses depois. De qualquer forma, Zaluar faz a ressalva de que o SFH não foi composto por ‘proprietários felizes’ como previam seus idealizadores, mas por inadimplente insatisfeitos. Em defesa do programa de remoção, Sandra Cavalcanti afirma que a Vila Kennedy é um exemplo de sucesso e que lá os moradores tiveram uma efetiva “promoção social” (entrevista a Freire e Oliveira, 2002). Um artigo de Cecília Azevedo (1998) sobre Vila Kennedy, apesar de não se deter especificamente sobre a remoção ou seus impactos, traça um histórico que ilustra bem quais foram os impactos iniciais na chegada dos removidos à Vila Kennedy e em que situação eles estão trinta anos depois. Resumindo bastante o artigo, pode-se ver que a remoção nem abriu as portas do paraíso a felizes favelados que se tronaram proprietários de suas casas, nem caíram num inferno do qual nunca mais saíram. Das inúmeras dificuldade iniciais enfrentadas, tais como: falta de emprego nas redondezas, casas em que não cabiam os móveis, sistema de esgoto inadequado, falta de comércio, a descoberta de que seus terrenos não eram legalizados (só o foram em 1984, depois de longa disputa), os moradores de Vila Kennedy através dos anos e várias lutas, foram construindo novas redes de solidariedade, novas organizações, enfim a partir de sua mobilização e seus esforços superaram as dificuldades iniciais e conseguiram construir suas vidas em Vila Kennedy. Eles melhoraram suas casas, montaram comércio, e conseguiram até mandar alguns de seus jovens moradores para a universidade. Enfim, tudo isto foi alcançado em Vila Kennedy. Mas isso também foi feito em várias favelas da cidade, como vimos no Capítulo I. Assim, não parece muito certo atribuir tais conquistas à remoção, como o faz Sandra Cavalcanti. Tendo em vista que estes moradores tiveram, inclusive, de superar dificuldades que não existiam nas favelas onde moravam, acrescentando ainda que foram para lá obrigados. Nos parece melhor dizer que conquistaram tudo isso apesar da remoção. Apenas para fechar este raciocínio, Azevedo pôde perceber que a maioria dos moradores por ela entrevistados não têm a menor simpatia por Lacerda, a quem atribuem muitas das dificuldades que viveram. 120

No primeiro governo Chagas Freitas56 (1970-75) o remocionismo perdeu força. Segundo Diniz (1982), a atividade política da facção chaguista do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) se baseava na ‘política de bairro’ ou ‘comunitária’, isso era válido para qualquer parlamentar (fosse vereador, deputado federal, ou a partir de 1975 com a fusão entre a Guanabara e o Estado do Rio de Janeiro, deputado estadual). Esta política comunitária se define pelo clientelismo, cuja discussão fizemos no capítulo I. As limitações no legislativo para discussão de ‘grandes temas’, visto a centralização e repressão impostas pelo regime, também serviam para limitar a atuação parlamentar a conquistas de benefícios localizados, sendo importante para o político ter um curral eleitoral. Assim, vemos que o clientelismo foi a prática usada para que máquina chaguista se perpetuasse no poder e preenchesse a maioria dos cargos disputados na década de 1970, na câmara de vereadores do Rio (agora capital do Estado), e mesmo quando em 1975 Faria Lima é eleito governador, o chaguismo mantém maioria na assembléia legislativa e nas vagas disputadas na Câmara Federal. Nas favelas, esta ‘política comunitária’ consistia no político conseguir pequenas melhorias e obras num lugar marcado pela carência em serviços públicos e infra-estrutura. A assim chamada ‘política da bica d’água’ era particularmente importante para as favelas, pois cada pequena melhoria significava um reconhecimento ‘oficial’ da favela, e, na visão dos favelados, afastava a possibilidade de serem removidos. (Burgos, 1998; Diniz, 1982; Grynszpan & Pandolfi, 2002). Como vimos, o fracasso do programa remocionista (e seus efeitos, como o abandono ou despejo de moradores dos conjuntos habitacionais), pelos fatores que listamos anteriormente e a política clientelista exercida pela corrente chaguista no Rio de Janeiro fizeram com que a presença das favelas no cenário carioca não se alterasse significativamente após a ‘era das remoções’, em que pese todo o impacto que esta teve para as favelas (e para os removidos). A porcentagem da população favelada em relação à população total do município do Rio do Rio de Janeiro sofreu pouca variação: era 13,2 % na década de 1970, passou para 12,3 % na década de 56

Desde o Ato Institucional n.º 3, em 1966, a eleição para governador passou a ser de forma indireta. A mutilação

do MDB após o AI-5, tendo este perdido várias de suas lideranças foi um dos fatores que permitiu o ascenso da corrente chaguista, sendo Chagas Freitas caracterizado como o MDB ‘adesista’ em contraste com o grupo dos chamados ‘autênticos’, os adesistas são do partido da oposição (consentida) mas que atuam sem hostilizar o governo. Tanto que, mesmo sendo do MDB, foi indicado por Médici para governador da Guanabara em 1970, e novamente em 1978. (Joffily, 1998) 121

1980 (apud Burgos, 1998). A população favelada era de 335.063 em 1960, passou para 565.135 em 1970, e para 722.424 em 1980 (dados dos Censos – IBGE para 1960 e 1970, e IplanRio para 1980 apud Cavallieri, 1985). Tampouco a remoção logrou eliminar as favelas dos bairros ‘nobres’ da cidade. Embora esta área, que anteriormente foi a de maior concentração de favelas até os anos 1960, tenha passado a responder por apenas 28% do total da população favelada do município (apud Cavallieri, 1985), na metade da década de 1970, ao final do período do remocionismo, continuavam a existir mais de 50 favelas na Zona Sul e Tijuca, algumas de grande porte. Nunes (1976) citando dados de uma pesquisa da Secretaria de Serviços Sociais, diz que em 1967 existiam 230 favelas, sendo que 40 destas foram totalmente removidas pela Chisam. Poucos anos depois, vendo outra fonte, (o Censo de 1970) o número de favelas subiu para 300, e para 376 no início dos anos 1980 (IplanRio apud Cavallieri, 1985). Valladares (1978) aponta que justamente na época do remocionismo, entre 1962 e 1974, o número de favelas cresceu 74%, e o de favelados 36,5%. A explicação para isso é que o programa apenas combateu os efeitos que levam as pessoas a morarem nas favelas, e não as causas. Como vimos, todas as políticas habitacionais até aqui, sem exceção, trataram a favela como um problema exclusivamente de ordem habitacional, como se a causa fosse exclusivamente o déficit de moradia em meio a uma população urbana em crescimento. Foi partindo deste princípio, que os ministros da linha ‘monetarista’ (Roberto Campos e Gouvêa de Bulhões) da Ditadura Militar argumentaram que uma das funções do BNH seria de incentivar a indústria de construção civil, de modo que, resolvendo este déficit, não seria mais necessário a moradia em favelas. Concordamos com Valladares (1978) que diz: “A favela resulta, sobretudo, da exploração da força de trabalho em uma sociedade estratificada, onde as desigualdades tendem a se perpetuar e o processo de acumulação da capital é cada vez maior. Resulta ainda, de uma situação onde o uso do solo é cada vez mais determinado pelo seu valor, e onde o controle do espaço urbano é exercido pelas, ou em nome das camadas dominantes”. Esta afirmativa encontra respaldo nas declarações, algumas das quais usamos neste estudo, das diversas autoridades responsáveis pela remoção, como Lacerda, Sandra Cavalcanti e Coufal. A remoção não puseram fim, e nem este era o propósito, às condições que levavam as pessoas a procurarem as favelas como uma solução de moradia devido ao seu baixo poder 122

aquisitivo e ao alto custo de vida. Ao mesmo tempo que a Ditadura implementava o maior programa remocionista visto até hoje, sua política econômica comprimia os salários, que perdiam como nunca seu poder de compra57, deixando como saldo, no início dos anos 1980, uma grave crise econômica e social no país. Ou seja, a Ditadura não só não combateu as causas que levam parte da população a buscarem moradia na favela, mas ao contrário, as agravou.

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Nos voltemos agora para analisar as reações do movimento organizado de favelados durante este período, que pode ser considerado o mais dramático para os movimentos sociais organizados como um todo. No caso deste movimento, a situação se agravava, visto que existia, como vimos, uma política sistemática para extinguir as favelas. No I congresso da Fafeg, em fins de 1964, já podemos ver um certo distanciamento das associações de moradores em relação ao Estado (pelo menos as que participavam da Fafeg) e a busca de maior autonomia, contrapondo à política oficial de remoção a bandeira da urbanização, defendida com vigor, como vimos no caso da Brás de Pina. Por ocasião das chuvas de 1966, quando os desabrigados foram transferidos para os conjuntos habitacionais, a Fafeg cobrou de Negrão de Lima o compromisso feito na campanha de não remover as favelas, afirmando que a remoção traria conseqüências dramáticas aos favelados, que se veriam afastados de seus empregos. Isto, como vimos, numa época que a remoção vinha sendo amplamente defendida na imprensa por diversos segmentos da sociedade (Lima, 1989). Em 1967, Negrão de Lima publica o Decreto ‘N’ 870, de 15/06/1967, que põe as associações de moradores sob controle do Estado. O Decreto N 870 pode ser entendido como uma maneira de Negrão de Lima ter influência efetiva nas favelas, marca de sua política na primeira metade de seu mandato, e também como uma forma de exercer vigilância política num lugar que sempre foi visto como foco de subversão. Lembremos das difíceis relações entre

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Na história republicana, a Ditadura Militar foi o período que assistiu a maior concentração de renda. Em 1960, os

10% mais ricos detinham 39,6% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres ficavam com 17,4% dela. Em 1980, os 10% mais ricos passam a ter 50,9% e os 50% mais pobres 12,7%. (Joffily, 1998) 123

Negrão de Lima, eleito com o voto oposicionista e o governo federal, que sistematicamente vinha intervindo na Guanabara nas questões de ‘segurança’. O decreto determinava a unicidade de representação em cada favela, ponto positivo na opinião da Fafeg, mas também que todas as atividades, estatuto, eleições, balanço financeiro, deveriam ser submetidas à apreciação dos Serviços Sociais Regionais da secretaria de Serviço Social. As associações também deveriam solicitar ao serviço regional a autorização para reparos nos barracos e impedir a construção de novos. Caso algum dos pontos acima não fosse cumprido pela diretoria da associação, o Serviço Regional poderia intervir diretamente nela, nomeando uma junta governativa. Também no ano de 1967, a Fafeg elege uma diretoria com uma postura mais ‘combativa’, que tinham o entendimento de que os problemas vividos pelos favelados teriam de ser resolvidos através da luta política. Esta diretoria era presidida por Vicente Mariano, que havia militado na CTF, e dela faziam parte também diversos militantes da AP (Ação Popular), organização de esquerda a qual muitos de seus militantes posteriormente iriam para luta armada; do PCB; outras organizações ligadas a Igreja; e lideranças ligadas a políticos tradicionais. No II Congresso da Fafeg, que se realizou em novembro de 1968, vai prevalecendo a linha oposicionista à Ditadura Militar e a compreensão de que a Fafeg era uma organização da classe operária. Em todo processo, desde a preparação do congresso até o relatório final, vai se revelando a linha oposicionista e de participação na ‘grande política’, com ênfase no favelado como um operário e a compreensão de que somente a luta política irá melhorar sua situação. Muitos dos participantes da Fafeg nesta época haviam participado de sindicatos, como dos Metalúrgicos por exemplo, e tinham passado a se dedicar mais ao movimento comunitário pela intensa repressão que se abateu no movimento sindical após o Golpe de 1964 (Lima, 1989; Nunes, 1980). Já na convocatória do congresso, é enfatizado que existe um processo de disputa do espaço da cidade, conforme falamos no capítulo I, sendo a remoção conseqüência desta disputa: “ Com o trabalho do homem, a cidade cresce, o progresso aproxima-se das áreas onde você habita, crescendo a cobiça desses lugares já valorizados. Embora a lei seja igual [grifo no original] para todos, sempre vence o mais forte, e surgem as remoções para lugares longínquos, trazendo vários transtornos para o homem que vive de salário. O que será do trabalhador 124

quando a cidade chegar em Vila Aliança, Vila Kennedy e Cidade de Deus? Para onde você vai?” (apud Lima, 1989). No relatório final do congresso, a compreensão do favelado como um operário e da importância da luta política são igualmente enfatizados, ressaltando a participação: “…das comunidades operárias mais expressivas não só em termos de suas populações, como também pelo seu passado de lutas.” Em outra parte do relatório, são feitos os agradecimentos ao Sindicato dos Rodoviários, cuja sede ocorreu a plenária final, por terem entendido “…que só existe uma única classe, e esta é a classe operária, não importando aonde, no momento, estejam morando seus membros.” (apud Lima, 1989). No congresso são discutidos vários temas, como a política de remoções; a defesa da urbanização e da posse dos terrenos; e o controle das associações de moradores por parte do Estado na forma do Decreto N 870. As remoções são veementemente criticadas, defendo a urbanização das favelas. Na resolução sobre a política de remoções, a Fafeg decide a “Rejeição de qualquer remoção, condenação do desperdício humano e financeiro resultante dos problemas da remoção.” (apud Leeds & Leeds, 1978). O congresso defende que seja feita a urbanização da favela enquanto responsabilidade do governo, descartando as políticas prevalecentes até então de ‘auto-ajuda’, entendendo que isto era uma forma de discriminação contra os favelados, não os considerando com os mesmos direitos dos demais moradores dos bairros. A maior polêmica do congresso foi quanto à propriedade do solo, com o congresso aprovando a posse definitiva por parte dos favelados das áreas ocupadas, baseando-se em algumas premissas: nas favelas havia grande concentração de trabalhadores que contribuíam com a maior parte da mão-de-obra do Estado; ali o favelado teria construído seu patrimônio e fixado sua moradia; a terra precisava ser legalizada para entrada de serviços públicos e a integração social, econômica e política de toda população urbana; assegurar o direito à moradia previsto na Constituição. A polêmica se deve à uma tese mais conservadora, apresentada por favelados que defendiam o levantamento jurídico de cada terreno, a desapropriação deste e o financiamento do BNH aos favelados para compra do terreno por cada morador. Quanto ao controle das associações de moradores, o congresso defendia a autonomia destas, repudiando o Decreto N 870 e também o divisionismo nas favelas feitos pela Comissão 125

Estadual de Energia com as comissões locais, que como vimos devia, por lei, serem separadas das associações (esta crítica já havia sido feita no primeiro congresso). O congresso aprovou resolução defendendo o reconhecimento das associações pelo governo como o único órgão responsável da favela pelas demais atribuições que fossem referentes à ela (favela).58 O II Congresso da Fafeg se diferencia do I Congresso em 1964 também pela ausência de autoridades. No congresso de 1964 isto havia sido buscado pelos organizadores até como forma de dar legitimidade a entidade. A Fafeg, para as lideranças que organizaram o primeiro congresso, deveria se tornar uma intermediária entre as favelas e o Estado, encaminhando suas reivindicações à este. Esta questão já não se apresentava em 1968. Pois, como vimos, na visão dos participantes do segundo congresso, ainda que se pusesse a negociação com o Estado como uma das atribuições da Fafeg, esta era encarada como parte da luta política, e não o papel principal da Fafeg. Na visão dos participantes do segundo congresso da Fafeg, a função principal desta, pelo próprio caráter de ênfase na luta política que defendiam, era a organização das favelas. Esta organização era entendida inclusive como parte da organização dos operários, ressaltando constantemente que a Fafeg era uma organização classista. Na convocatória ao congresso, é explicado porque não foram convidadas autoridades: “As pessoas que vivem em palácios não podem raciocinar como as pessoas que vivem em barracos.” (apud Lima, 1989). Na visão das lideranças, a Fafeg se uniria a outras organizações da sociedade nesta luta política. Estas lideranças contam que nesta época, a Fafeg fazia reuniões com estudantes, sindicatos, entre outros movimentos (Lima, 1989; Nunes, 1980). Os relatos são variados quanto ao número de favelas que a Fafeg organizava, indo de 70 (Lima, 1989) até 100 as associações filiadas à Fafeg (Leeds & Leeds, 1978). Seja qual for o número, a Fafeg conseguiu de fato, atingir uma certa expressão e causar impacto, daí inclusive a pouca duração do período mais combativo da Fafeg, que não seria tolerado no Brasil dos ‘anos de chumbo’. Logo após o II Congresso, a Fafeg teria de encaminhar suas deliberações na prática, no episódio da remoção da Ilha das Dragas. Uma das lideranças da Fafeg na época, conta que as 58

Lima (1989) faz a ressalva que somente em 1981, no I Encontro Estadual de Favelas, a visão das associações

como órgão responsável por diversas atribuições será discutido, quando uma das reivindicações centrais era que a Light atendesse às favelas. 126

assistentes sociais foram para a favela fazer uma reunião com os moradores para convencê-los a aceitarem a remoção para Cidade de Deus, utilizando fotos do conjunto e falando das vantagens de deixar a favela para irem morar num lugar urbanizado. O presidente da associação local e a Fafeg atacaram as políticas de remoção e fizeram pesadas críticas ao programa, e a comunidade decidiu não aceitar a remoção. No dia marcado, a favela foi cercada, o presidente da associação foi preso e na seqüência, a diretoria da Fafeg também, só tendo sido solta após a interferência da ala progressista da Igreja. Logo após o episódio da Ilha das Dragas houve a remoção da Praia do Pinto, quando a associação e a Fafeg não tomaram nenhuma ação oficial, já tendo sido avisadas de que não seriam toleradas manifestações. A resistência dispersa que houve, como vimos, culminou no incêndio da favela. Após estes dois episódios, não houve mais casos de resistência às remoções. Em parte, isso explica o comportamento da associação de moradores da Catacumba diante da remoção desta favela em 1970. As lideranças à frente da associação passaram da antiga posição de resistência à remoção, que contava até com um plano já pronto de urbanização do local, para serem cooptadas pela Secretaria de Serviços Sociais, passando a auxiliar na remoção. O presidente passou a sede da associação para a Secretaria, e a associação virou uma espécie de comitê desta, sendo a diretoria contratada pela Secretaria, passando até a usar uniformes. A Fafeg embora mantivesse praticamente a mesma diretoria, teve de atuar dentro dos limites da ‘legalidade’ imposta naquela época, abandonando o caráter classista e de mobilização que prevaleceu no II Congresso em 1968. Vale dizer que neste ínterim, em novembro de 1969, um novo decreto do governo estadual, o Decreto E 3330, reafirmava o controle das associações de moradores por parte do Estado, reforçando o que havia sido determinado no Decreto N 870. O novo decreto dava maior ênfase no poder de intervenção da Secretaria de Serviços Sociais em designar comissões interventoras, método que foi usado com certa freqüência até o final da ditadura. Em novembro ainda, complementando o Decreto E 3330, houve a Portaria E n.º 12, que determinava que para uma associação funcionar, ela precisaria ser reconhecida pela Secretaria de Serviços Sociais, que lhe expediria uma certificado concedendo a entidade o direito de representar a comunidade (Diniz, 1982). Sinal dos novos tempos, em 1970, a Fafeg realizou o I Encontro de Desenvolvimento, contando com a presença de técnicos da Fundação Leão XIII. O sentido do encontro foi a ‘capacitação’ de lideranças comunitárias para atuarem na associação de moradores. Percebe-se a 127

mudança da atuação da Fafeg neste encontro, quando ao se referir aos decretos do governo que punham as associações de moradores sob controle, buscava-se analisá-los de maneira positiva, como o caso do Decreto N 870 reconhecer a representatividade das associações de moradores. No relatório do encontro, reconhecia-se, em caso de impossibilidade de urbanização, ser necessária a remoção de algumas favelas, devendo então a associação de moradores “ser o intérprete dos problemas físicos daquela área, de busca, com as populações, de soluções humanas de remoção, de programas de preparação para a mudança.” (apud Lima, 1989). A partir das entrevistas feitas por Lima (1989), as lideranças da época falam que não houve cooptação, e sim a necessidade de ‘se adequarem’ à mova realidade, como meio de continuarem a desenvolver algum trabalho nas favelas, já que havia se desencadeado uma forte repressão sobre este movimento, tendo várias lideranças sido perseguidas pelos órgãos de repressão, como o Dops. Aliás, uma das táticas usadas nas disputas internas das associações era a ameaça de denúncia do adversário ao Dops, que caso fosse efetivada, traria sérios problemas ao acusado (Nunes, 1980).

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Em 1972, a Fafeg realiza seu III Congresso, já sem a repercussão e o ânimo do anterior. Ainda que a bandeira contra a remoção continuasse, parece ter sido mais uma forma de ‘marcar posição’ do que uma campanha que a Fafeg implementaria na prática, pelos fatores que vimos acima. As discussões foram centradas na solicitação ao Estado, já é a época do chaguismo, pela instalação de serviços nas favelas, como postos médico. As discussões também se voltam para uma redefinição das relações das associações com os decretos do Estado relacionados ao papel destas e com as comissões de luz, visto que através destes decretos, várias associações estavam sob intervenção, sendo dirigidas por juntas governavas indicadas pela Secretaria de Serviços Sociais (Nunes, 1980). Apenas em 1976 que as favelas voltam a se organizar, desta vez auxiliadas pela Pastoral de Favelas, que começou a promover reuniões com favelados, a exemplo do que ocorriam com diversos outros segmentos que voltavam a se organizar no fim da Ditadura a partir das Comunidades Eclesiais de Base. Uma das reclamações dos favelados, ironicamente, é sobre o controle que a Fundação Leão XIII exercia nas associações, e nas favelas como um todo, pois 128

desde 1975 a Secretaria de Serviços Sociais foi extinta, ficando a Fundação com todas as suas atribuições59. Apesar de não ter tido muitas vitórias, o período correspondente ao II Congresso era lembrado por alguns padres e alguns favelados como um período de lutas e exemplo a ser seguido, pela organização e mobilização que as favelas tinham conseguido. Nestas reuniões promovidas pela Pastoral de Favelas, surgirão algumas das lideranças que irão protagonizar o movimento de favelados durante a década de 1980. Como uma última ameaça, no final de 1977, mais uma vez a remoção voltaria a assustar os favelados, desta vez no Vidigal. A favela, localizada na avenida Niemeyer e contando com uma vista privilegiada para o oceano Atlântico, recebeu a visita de alguns funcionários da Fundação Leão XIII, que avisaram da remoção. Os moradores procuraram os órgãos do Estado para saber exatamente o que se passava, no que souberam informalmente que havia um projeto de construção de prédios no local. Apesar do desânimo de alguns, os moradores se mobilizaram, e contaram com o apoio da Pastoral de Favelas e dos advogados Sobral Pinto e Bento Rubião60. Com a mobilização, os moradores conseguiram fazer com que o caso chegasse à imprensa, quando o secretário de obras do município afirmou que a remoção seria devido aos riscos de 59

Com a fusão dos Estados do Rio e da Guanabara, a Fundação Leão XIII também teve sua área geográfica

ampliada, que passou a ser todo o novo Estado, ao invés de só o município do Rio de Janeiro, como antes. Uma das principais atribuições da Fundação era acompanhar as atividades das associações de moradores e conselhos de moradores (existentes nos conjuntos habitacionais). Por lei, a Fundação tinha o poder de designar comissões eleitorais e intervir quando julgasse necessário. Ela também ficou encarregada de reconhecer ou não a associação de moradores, cadastrando-a e legitimando sua representatividade junto aos órgãos públicos. Como qualquer ação, fosse do governo federal ou estadual, passaria pela Fundação Leão XIII, que participava como órgão de apoio, fornecendo informações, o não reconhecimento de uma diretoria dificultaria muito o funcionamento da associação. De maneira que o órgão exercia um amplo e efetivo controle das associações de moradores, e por conseqüência, das favelas (Diniz, 1982). 60

Bento Rubião foi um advogado que auxiliou a Pastoral de Favelas e também a Federação das Associações de

Moradores de Favelas do Rio de Janeiro – FAFERJ. Elaborou o projeto de Lei sobre "Usucapião Especial Urbano", juntamente com a equipe de advogados da Pastoral de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Tal projeto de lei influenciou positivamente a adoção deste instrumento pela Constituinte de 1988. Em 1986 foi criada, após sua morte, por um grupo de lideranças de favelas e técnicos comprometidos com a melhoria das condições de vida da população pobre da região metropolitana do Rio de Janeiro, a ONG com o nome de Bento Rubião, que em 1996 transformou-se na Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião. 129

desabamento na favela. Como aproximavam-se as festas de fim de ano, os moradores conseguiram adiar a remoção. Soube-se também que os planos era de transferir os favelados para o conjunto Antares, em Santa Cruz, a mais de 30 quilômetros de distância do local. Finalmente, no dia marcado para a remoção, com a Fundação Leão XIII tendo mobilizado o aparato da Comlurb e da polícia de choque, os advogados conseguiram uma liminar para impedir a remoção e depois uma medida cautelar a favor dos favelados. O despacho do juiz afirmava que os favelados já estavam no local há mais de 20 anos e que não havia risco iminente de desabamento. No fim, os favelados conseguiram permanecer no local (Nunes, 1980). A vitória no Vidigal serviu de estímulo à participação de outras associações nas reuniões da Pastoral. Em diversas associações (como Catumbi, Rocinha, etc.) foram organizadas chapas de oposição que exigiam das juntas governativas que estas fizessem uma prestação de contas e convocassem eleições para a associação. A Pastoral de Favelas, que havia começado na Zona Sul, ampliou sua ação, passando a se organizar na área da Tijuca (Zona Norte) e Leopoldina. Nas reuniões da Pastoral, muitas associações, como a do Jacarezinho passaram a discutir o papel da Faferj (novo nome da Fafeg após a fusão) e seu esvaziamento, criticando seu atrelamento à máquina chaguista e à Fundação Leão XIII. Na visão destas lideranças, a Faferj não atendia aos interesses dos favelados, pois havia sido cooptada pelo Estado, chegando até a colaborar em algumas remoções durante a década de 1970. Durante o primeiro semestre de 1979, a partir dos contatos estabelecidos na Pastoral, algumas associações formam a oposição à Faferj e exigem desta a convocação de uma nova eleição para sua diretoria, alegando que o mandato da atual já havia expirado. A oposição convocou uma reunião e elegeu uma junta governativa para convocar uma nova eleição. A reunião não foi reconhecida pela diretoria da Faferj, que convocou uma eleição para outra data. A briga foi parar na Justiça. As diferenças entre as duas diretorias da Faferj seria em torno do posicionamento desta em relação ao governo. A Faferj presidida por Vicente de Souza seria ligada ao governo e a políticos da corrente chaguista. A segunda, presidida por Irineu Guimarães, líder comunitário do Jacarezinho, tinha um caráter mais oposicionista e ideológico, apoiada pelas forças de esquerda e auxiliada juridicamente por Bento Rubião. Embora surgida a partir das reuniões da Pastoral das Favelas, esta não declarava apoio oficial a nenhuma (Diniz, 1982; Lima, 1989; Nunes, 1980). 130

Até 1982, coexistiriam duas diretorias da Faferj. Ambas tendo favelas de peso como parte de suas bases. O governo tomando por base o Decreto E 3330 (que prevê a unicidade das representações locais) reconhecia a Faferj de Vicente de Souza (sucedido por Jonas Rodrigues, funcionário da Fundação Leão XIII, e que já havia sido presidente de 1974 a 1976) como a oficial. A disputa passava pelos grupos políticos do Estado, principalmente entre as correntes do MDB, chegando a ocorrer debates na Assembléia e na Câmara do Rio sobre a atuação da Fundação Leão XIII no processo e na intervenção que esta vinha fazendo nas favelas. O paralelismo de representação também atingiu as organizações locais, pois, conforme a Faferj ‘dissidente’ ia conquistando apoio, principalmente de associações de moradores recémformadas, a diretoria da Faferj oficial e a Fundação Leão XIII iam incentivando a criação de associações paralelas, que era facilitado pelo reconhecimento oficial destas pela Fundação. A Faferj ‘oficial’ acusava a dissidência de querer desvirtuar a finalidade das associações e da Faferj ‘politizando-a’, no sentido destas entidades discutirem questões além das favelas, particularmente as que se referiam a conjuntura nacional, como a volta da democracia, críticas à política econômica e o aumento do custo de vida. Pode-se apreender desta crítica que, na visão da Faferj oficial, a entidade e as associações deveriam se voltar para resolver demandas pontuais e locais das favelas, baseando-se no clientelismo para obter benefícios para suas comunidades. Diniz (1982) cita que de 103 presidentes de associação entrevistados por ele numa pesquisa realizada em 1980/81, 34% emitiram uma opinião favorável a Faferj ‘oficial’, apontando que as formas de colaboração desta com as associações era em questões de administração interna da associação e em atender reivindicações específicas das comunidades, principalmente pequenas obras ou instalação de serviços, encaminhando-as aos órgãos do Estado e intervindo favoravelmente com determinada autoridade para que a reivindicação fosse atendida. Outro dado revelador da pesquisa é que a maior parte dos entrevistado tinham contato sistemático com políticos, principalmente os da máquina chaguista. Os que tinham uma avaliação positiva quanto a Faferj dissidente, destacavam que o auxílio desta às associações era em forma de orientar e assessorar possíveis providências a serem tomadas sobre alguma questão, e quais órgãos deveriam ser procurados para o atendimento de uma determinada reivindicação; na assessoria jurídica quanto às disputas de posse de terrenos ou em caso de remoção; e, prova do lado mais ‘politizado’ da Faferj dissidente, que esta atuava ‘ na 131

conscientização do favelado acerca dos seus direitos.’ (Diniz, 1982). Diniz ressalta ainda que, a partir de entrevistas feitas com integrantes das duas facções, a maneira que cada uma via a outra e se via se assemelhavam. Um integrante da oficial definiria esta como sendo ‘de diálogo’, enquanto a outra seria ‘de pressão’. Uma liderança da dissidente disse que era do interesse desta trabalhar com os órgãos de governo, até por ser obrigação dele resolver questões dos favelados “…porque nós trabalhamos, nós contribuímos com imposto”, mas que a tarefa da Faferj era ‘organizar os favelados’ e trabalhar na sua conscientização. Em 1982, é montada uma diretoria com integrantes das duas Faferjs, através de uma articulação interna do próprio MDB, e Irineu Guimarães é eleito presidente, a té 1985, tendo mais um mandato posteriormente (1988-1991). A Faferj presidida pelo grupo de Irineu Guimarães, que surgiu no combate ao fisiologismo das lideranças seria alvo dos mesmo tipo de crítica no início da década de 1990, quando surge mais uma dissidência, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, a Faf-Rio, restrita ao município do Rio de Janeiro. Mas nem esta nem a Faferj têm hoje a projeção que o movimento organizado de favelados conseguiu um dia, esfacelado pela crise que atingiu a maioria (senão todos) dos movimentos sociais no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Somados à esta crise, outros fatores contribuíram para que as associações de moradores, e principalmente suas entidades gerais, perdessem a visibilidade e o caráter de mobilização que tiveram, particularmente no fim da década de 1960 e no início da década de 1980. Adiante faremos um levantamento dos motivos que levaram as associações de moradores à perderem este caráter de mobilização e se atrelarem cada vez mais ao Estado61.

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Há um episódio que expressa de maneira simbólica tudo que dissemos aqui sobre o que significou o período da Ditadura para as classes pobres e o fracasso da política habitacional do governo com o programa remocionista.

61

No capítulo III também fazemos esta discussão, analisando especificamente o caso da Maré durante as décadas de

1980 e 1990, onde abordamos o novo papel das associações, suas relações com o Estado e a emergência das ONGs como atores relevantes nas favelas. 132

Em setembro de 1983, em meio a longa recessão do início da ‘década perdida’, com a inflação crescente (índices de 99,7% em 1982 e de 211% em 1983_ Joffily, 1998), houve um aumento de 30 a 35% dos preços do arroz e do feijão, componentes básicos na dieta do brasileiro, e em particular, das classes mais pobres, que não têm muitas alternativas alimentares. Este aumento se deu quando estava em discussão um aumento de salários, já tendo sido anunciado que este seria abaixo da inflação. A este quadro, somavam-se às perdas salariais que vinham se acumulando desde fins da década de 1960 fazendo o poder de compra dos trabalhadores cair consideravelmente; e os índices de desemprego, que estavam em crescimento também. Alba Zaluar (1985) que estava nesse época realizando suas pesquisas na Cidade de Deus, conta que ouvia dos moradores que a situação estava ficando além do suportável. Dias após o aumento, uma onda generalizada de saques a supermercados e outros estabelecimentos menores tomou conta do Rio de Janeiro, a exemplo do que havia ocorrido em abril em São Paulo. Os saques ocorreram nos subúrbios cariocas, entre os quais os conjuntos habitacionais construídos pelo programa remocionista, como Vila Kennedy e Cidade de Deus ou nos bairros onde estes existiam, como Cordovil e Santa Cruz (Joffily, 1998). Estes episódio é um exemplo da crise social que atingia as metrópoles brasileiras no início da década de 1980. O número de favelados (e de favelas) crescia, já que as causas que levavam as pessoas a morarem nelas haviam se agravado. O II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975 –1979), elaborado no governo Geisel (1974 –1979), demostrava uma preocupação com o ‘equilíbrio social’ das metrópoles (Souza, 1996). Desta preocupação sairia aquele que seria o último projeto da Ditadura Militar para as habitações populares, o Promorar, executado pelo BNH, que teria um projeto-piloto no Rio de Janeiro, na área da Maré: o Projeto Rio, que iremos abordar no capítulo III. O número de favelas no início dos anos 1980, segundo o IplanRio é de 376 (apud Cavallieri, 1985). O remocionismo já não era uma política possível, pela fracasso da experiência anterior e também por outro fator. No clima de distensão do regime, o voto voltou a ser um importante instrumento para os favelados (Burgos, 1998). E os políticos, terminado o bipartidarismo vigente até então, teriam de guiar suas estratégias para conquistar esta significativa fatia do eleitorado. Na volta da eleição direta para governador, a insatisfação com o regime militar pôde ser expressada no voto em Brizola e em seu partido, o PDT (Partido Democrático Trabalhista), que 133

teve a maioria dos votos em lugares como a Rocinha e Cidade de Deus. Brizola tinha a imagem de inimigo do regime, e o voto nele seria uma espécie de vingança ao governo que havia prejudicado os trabalhadores, o que Zaluar (1985) definiu como um voto de revolta contra o regime. Uma entrevista de Brizola pouco após sua eleição, é bastante reveladora de sua posição sobre as favelas: “As favelas pagam impostos, não apenas os indiretos, que estão incluídos nos preços de tudo que consomem (…) mas especialmente através de sua força de trabalho. Ocorre que não são repassadores destes impostos, que são recolhidos através de seus patrões. (…) Há uma grande dívida social a ser resgatada em relação aos favelados, estes nossos irmãos modestos e humildes, discriminados, marginalizados, isolados, que vivem aí em verdadeiros guetos. (…) É uma questão importante não subjetiva, porque interfere diretamente com a distribuição dos investimentos. Quando se considera a favela algo de incômodo, algo que tem de terminar, algo que tem que ser removido [ o grifo é meu], algo que é uma ferida no rosto desta linda cidade, pouca importância se dá ao que ela deva merecer, e na hora da distribuição de investimento ninguém se lembra dela.” (entrevista a Cadernos do Terceiro Mundo, janeiro de 1983). Desta fala podemos apreender sinais importantes de como será a relação do brizolismo com as favelas. Brizola critica o remocionismo e destaca a participação do favelado na produção de riquezas, mas ao mesmo tempo, quando se refere aos favelado como vivendo ‘em guetos’, nota-se traços do populismo, que tem em Brizola um de seus herdeiros, entendendo que estas populações precisariam de alguém que olhe por elas. De fato, as mudanças de infra-estrutura e oferta de serviços públicos notadas nas favelas nas décadas de 1980 e 1990, impressionam. E esta mudança é notada na bibliografia referente ao tema; por lideranças comunitárias; pela imprensa; por depoimentos de moradores recolhidos por pesquisadores. No início dos anos 1980, de 364 favelas cadastradas pelo IplanRio apenas 1% das favelas era atendido por rede oficial de esgotos e 6% dispunham parcialmente do serviço; 6% possuíam rede total de água e 13% rede parcial; em 92% delas não havia nenhuma drenagem das águas das chuvas, a não ser a própria drenagem natural do terreno. A coleta de lixo só era considerada satisfatória em 17% das comunidades (Cavallieri, 1985). Ainda pelo neste estudo de Cavallieri (Favelas: Mudanças na infra-estrutura) é apresentado resultado de uma pesquisa feita pelo IplanRio com lideranças comunitárias, que apontou as principais reivindicações destas, que seriam (em ordem crescente): esgoto, água, luz, 134

melhorias nas vias, propriedade das terras. É apresentado, ainda, o diagnóstico de atuação da Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgotos do Rio de Janeiro) como “assistemático”, sem que nunca tivesse havido uma política voltada para as favelas, resolvendo apenas caso-a-caso a partir das pressões das comunidades. Com o Proface (Programa de Favelas da Cedae ), até setembro de 1985, haviam sido feitas obras em 74 comunidades. A comunidade participava com a mão de obra, em esquema de mutirão, e também arcando com os custos da implantação das ‘redes finas’ de água e esgotos nas casas. A coleta de lixo da Comlurb62 teve pela primeira vez um serviço adaptado para as favelas, particularmente a configuração espacial destas, com micro-tratores, campanhas de conscientização da população sobre a coleta de lixo e prevenção. A Comlurb passou a atender 27 comunidades, algumas das maiores, que englobavam 200 mil pessoas, Cavallieri ressalta que nenhuma taxa é cobrada aos moradores. A Light, estatal de âmbito federal, já havia iniciado sua entrada nas favelas em 1981, visando reduzir as perdas causadas pelos ‘gatos’ e normalizar as redes elétricas combatendo panes. Esta experiência é lembrada pelas lideranças comunitárias (Oliveira et alli, 1993)63 como um importante subsídio posterior para o trabalho comunitário, visto que foram feitos cadastramentos e mapeamentos, que permitiram às lideranças comunitárias terem um conhecimento melhor das características das favelas, além de toda mobilização e participação que o programa gerou. Um dos programas de maior repercussão, são os Centros Integrados de Educação Pública (os Cieps), escolas que funcionariam em horário integral, com aulas de manhã e atividades recreativas à tarde, e que também ofereceriam vários benefícios às crianças, como três refeições por dia, atendimento médico, odontológico, etc. Muitos Cieps foram construídos dentro de 62

A Comlurb é um órgão municipal, mas cabe lembrar que o prefeito do município do Rio de Janeiro era escolhido

por indicação do governador do estado, sendo assim vários órgãos da prefeitura passaram a acompanhar esta reorientação do poder público em relação às favelas. 63

O livro “Favelas e organizações comunitária” (Oliveira et alli, 1993) surgiu a partir de um estudo realizado pela

Fundação Bento Rubião, uma ONG organizada por lideranças comunitárias. Estas lideranças saíram a campo, fazendo pesquisas em 10 favelas cariocas, aprofundando-se em 2 destas. Foram analisadas as transformações verificadas na década de 1980 nestas favelas quanto aos aspectos de infra-estrutura, oferta de serviços públicos, organizações comunitárias, e mudanças no cotidiano da favela. 135

favelas ou próximos à estas64. O arquiteto Oscar Niemeyer, responsável pelo projeto dos prédios onde funcionam os Cieps, se refere à eles como o primeiro modelo de prédio que era igual para as favelas como para o resto da cidade. (entrevista ao Opasquim21- n.º 70, 08/07/2003). Outros programas para as favelas foram: a implementação de rede de iluminação pública, que existia em apenas 47 das 364 favelas cadastradas; a regularização de propriedade nas favelas, com o programa “Cada família, um lote.”, que segundo Cavallieri, até setembro de 1985 havia distribuído mais de 13 000 títulos de propriedade entre a população favelada do Rio de Janeiro. Outra importante mudança na atuação do Estado foi à respeito da atuação policial nas favelas do Rio de Janeiro, tema particularmente sensível à população favelada. Diferente das outras reivindicações, a mudança não seria pela presença policial nas favelas em si, já que a polícia foi uma das poucas, quando não a única, das instituições do Estado que sempre se fez presente nas favelas e que é descrita pelos moradores de forma sempre traumática. A mudança ocorrida no aparato de segurança pública seria na maneira deste atuar. Segundo texto escrito pelo falecido Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira (1998), Comandante Geral da Polícia Militar durante o primeiro governo Brizola, o objetivo era desmontar o aparato repressivo herdado dos tempos do Regime Militar, respeitando os direitos humanos de todos os cidadãos, inclusive os favelados. Para o coronel Cerqueira, a diretriz que se impunha à polícia naquele momento “Não impedia que a polícia oferecesse segurança à população favelada, mas sim que fosse arbitrária e violenta com ela; o certo é que a cultura policial acostumada a ver os moradores da favela como cúmplices dos criminosos e a entender que barraco não é domicílio e que, portanto, podia ser arrombado, não entendia outra forma de tratamento senão o das tradicionais ’blitzen’ e muito menos, o diálogo com a comunidade”. Ainda para o coronel, a integração das comunidades no trabalho da polícia, que passa a ser encarada como “administradora de conflitos” e não mais como um aparelho repressor, se torna vital para um bom desempenho da ação policial. O diálogo com a sociedade, e no caso das favelas, com as associações de moradores é parte integrante deste processo, que entre outras ações, implementou o projeto do Posto Policiamento Comunitário (PPC), que consiste em dotar as comunidades de uma unidade 64

Infelizmente, não conseguimos levantar os dados sobre quantos Cieps foram construídos ou quantos se localizam

em favelas. 136

policial que faça a segurança desta. O êxito integral na implementação desta nova política de segurança não foi obtido, conforme atesta o próprio Cel. Cerqueira, mas para as comunidades o governo Brizola marca o fim da polícia do “pé na porta”, em alusão à invasão dos barracos por policiais sem mandado a qualquer hora do dia ou da noite. Por esses motivos, este primeiro período de Brizola à frente do governo estadual é lembrado por muitas lideranças comunitárias como um marco de mudança na relação do Estado com as favelas (Grynszpan & Pandolfi, 2002). Cavallieri (1985) aponta que o Estado trabalhava diretamente com as lideranças comunitárias, sem intermediários. Isto, para Cavallieri, eliminava as relações clientelistas que sempre marcaram as ações do Estado realizadas em favelas. Umas das mudanças nas ações do governo Brizola seria que muitas destas ações, principalmente as que necessitassem obras na comunidade, como rede de água, esgotos ou melhorias físicas, se dariam através do Projeto Mutirão criado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social65. O Projeto Mutirão envolve a contratação da mão-de-obra local em cada comunidade, e a integração dos diversos órgãos e esferas governamentais (secretarias do estado, do município, regiões administrativas) com a Faferj e as associações de moradores. Segundo Cavallieri, a idéia era fortalecer as associações, e principalmente a Faferj “para que se transformem em instrumentos de mobilização comunitária de fato.” Um dos aspectos mais positivos do Projeto, segundo Cavallieri, seria a eliminação do clientelismo da ‘política da bica d’água’ do período Chagas Freitas, que fazia com que os políticos fossem sempre intermediários entre o Estado e as comunidades, com as associações de moradores necessitando do auxílio destes para conseguirem alguma obra em sua comunidade (como vimos acima). Os mutirões são uma antiga prática destas comunidades, que há muito superavam a inexistência de serviços públicos com a auto-construção de suas casas e de obras comuns à comunidade, por exemplo uma escada, uma bica d’água, um campo de futebol, etc. Outra vantagem do mutirão é que ao conhecimento dos técnicos do Estado, somaria-se o conhecimento do local que os moradores possuíam. Por último, o esquema de mutirão desmontava a tese de que 65

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social foi criada no governo Chagas Freitas em 1979 (Decretos 2290

e 2291 de 20/09/1979) seguindo a recomendação do Unicef de criar instituições voltadas especificamente para o combate à pobreza nos municípios. 137

a urbanização de favelas é impossível ou só é possível com altos custos. O mutirão barateava efetivamente os custos das obras por vários motivos, entre os quais estão: o empenho dos moradores para que as obras fossem terminadas com o menor tempo possível; o conhecimento da área por estes; entre outras razões. Vale dizer que numa conjuntura de crise econômica, com conseqüências dramáticas para o mundo do trabalho, como a que o Brasil atravessou por toda a década de 1980 (e também a de 1990, que falaremos adiante), a contratação de mão-de-obra local para trabalhar nas obras era tão ou mais importante que os benefícios que as obras trariam por si só. Assim, as associações de moradores durante o governo Brizola, passaram a desempenhar outras funções além de ‘representar e organizar’ as comunidades. As associações se tornaram ‘agências locais’ do Estado, ou, no dizer de Alvito (2001), como ‘miniprefeituras’, tornando-se órgãos executores das obras do Estado, passando a administrar recursos públicos e a ‘escolher’ quais moradores seriam contratados para trabalhar nas obras. O clientelismo surge então por duas vertentes. De um lado, da associação com os moradores, que por disporem do poder de contratar pessoas da comunidade para trabalhar nas obras, faz com que os diretores das associações tenham uma ‘moeda de troca’ a ser negociada com os beneficiados com o emprego. Em troca do qual ganharão um possível apoio na eleição para associação. E por outro, as próprias associações precisam dispor de algum diferencial em relação às outras para angariar estas obras para sua comunidade. Desta forma, o governo Brizola pode até ter criado novas formas de relação com as comunidades, que inegavelmente trouxeram uma série de melhorias para muitas favelas do Rio. Mas efetivamente, o clientelismo continuou a ser utilizado, se aprimorando em novas formas. A maior ‘participação comunitária’ que Cavallieri se referia foi conduzida de forma que levou a um outro tipo de clientelismo. Por exemplo, Alvito (2001) faz a ressalva que embora muitas ações do governo Brizola tenham sido feitas sem a intermediação de políticos, se referindo ao caso de Acari, nesta, a comunidade que mais conseguiu benefícios foi a que contava com uma associação cujo presidente era filiado ao PDT. Em outro caso, uma liderança comunitária da Rocinha, após atuar anos na associação de moradores, disse que durante o governo Brizola chegou um momento em que “olhou em volta e todo mundo estava empregado.” (apud Grynszpan & Pandolfi, 2002). A participação comunitária, apontada em Oliveira et alli (1993) que consistia no acesso destas lideranças a 138

diversos órgãos e secretarias de Estado, teve como conseqüência a incorporação destas lideranças comunitária aos aparelhos do Estado e ao PDT. Em suma, à máquina brizolista. Uma das diferenças da política clientelista de Brizola era sua liderança carismática e centralizadora, que tinha um projeto de candidatura à presidência. A personalidade de Brizola era o ‘cimento’ que unia esta máquina, reduzindo assim a margem de manobra de parlamentares. Uma evidência do que queremos dizer é que Brizola contava (e conta ainda hoje) com uma militância autodeclarada como ‘brizolista’. Aliás, a disputa entre as lideranças comunitárias ligadas ao PDT e outras ligadas ao PT, Partido dos Trabalhadores, marcariam as eleições em muitas das associações. Ao tipo de liderança carismática que Brizola fez questão de cultivar, soma-se o que Burgos (1998) ressaltou: que Brizola, na falta de uma estrutura política mais consistente, ‘canibalizou’ a máquina chaguista. De fato, vários nomes antes ligados ao chaguismo migraram para o PDT (como Miro Teixeira, Sami Jorge, Jorge Leite e vários outros). Ainda na década de 1980, surgiria um novo elemento que marca a relação do Estado com as favelas do Rio de Janeiro e a partir disto, a atuação das associações de moradores: o crescimento do tráfico de drogas.66 A política de Brizola de uma polícia que atuasse baseada nos direitos humanos, seria responsabilizada pelo crescimento do poder das quadrilhas de traficantes nas favelas. Mesmo sendo uma distorção violenta dos fatos por interesses políticos, entre outros, e é nisso que reside o problema, acabou servindo de base para eleição de Moreira Franco para o governo do Estado, aliada à euforia do Plano Cruzado de Sarney que levou a uma esmagadora vitória do PMDB nas eleições para os governos de estado em todo o Brasil. A responsabilidade de Brizola seria tanta quanto é a de sucessivos governos que basearam suas políticas nas relações clientelistas. O que tráfico fez, da mesma forma que o jogo do bicho anteriormente, foi se apropriar desta rede já existente de relações de trocas de benefícios e favores por ‘apoio’ a consolidação de um grupo no poder. Desta maneira, Brizola pode ser responsabilizado por ter estimulado o clientelismo numa atmosfera de redemocratização do país. 66

Por esta ser uma questão delicada, que necessita um maior aprofundamento do assunto, e também por falta de

espaço escolhemos não tratar sobre o tráfico de drogas aqui neste estudo. 139

Em Oliveira et alli (1993) é apontado que uma das transformações que as favelas viveram na década de 1980, no caso da mudança do papel das associações, é o aumento da ‘personificação’ das associações de moradores. O clientelismo, por ser baseado em relações pessoais, estimula este personalismo nas associações, já que as conquistas passam a se dever mais pelos relacionamentos que determinada liderança possui, ou também como fruto da ação de um político, do que pela luta e mobilização da comunidade. Assim, uma melhoria na comunidade é concebida como tendo sido conseguida graças à ‘fulano’ ou ao político ‘tal’, de modo que ocorre a desmobilização da comunidade, que passa a depender destes ‘salvadores’ ao invés de funcionar como um coletivo. A comunidade não vê nas suas organizações um espaço democrático e nem se sente com poder decisivo nas disputas de projetos dentro do Estado, não o vendo como uma esfera aberta à sua participação integral. Como já dissemos, o que o tráfico fez foi crescer dentro de estruturas que já existiam ou de algumas deficiências, como a dependência de lideranças ou a desmobilização das comunidades. Por isso, achamos que Brizola é tão culpado quanto todos os governantes que tiveram práticas políticas semelhantes.

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Achamos válido uma pausa para traçar um panorama resumido do Brasil das décadas de 1980 e 1990 e como se inserem as políticas públicas voltadas para as favelas . O período que se inicia em meio a luta pela redemocratização do país e as várias campanhas de mobilização nacional que se seguem (Diretas Já, eleição de Tancredo, campanha eleitoral de 1989, Fora Collor) é também um período de profunda crise econômica. Nas cidades impera uma sensação de ‘desordem’ urbana pela visível deterioração social, causada pelo desemprego e pela retração do Estado em suas funções (por exemplo em serviços públicos básicos, como saúde e educação) que já não era tão efetiva. As grandes cidades brasileiras na década de 1980 aparecem como espaços do caos, do crescimento da violência e do crime organizado. Isto é particularmente sentido no caso do Rio de Janeiro, com a ascensão do poder do tráfico devido a uma série de fatores. Da constatação de que existem áreas da cidade dominadas por quadrilhas, onde exercem poder absoluto em recorrentes episódios de violência e com absoluto desprezo a lei e ao Estado, 140

surgiu no imaginário a metáfora de que o Rio seria uma ‘cidade partida’ (discussão que fizemos no capítulo I). A longa crise econômica que o Brasil atravessa na década de 1980, reverteu a tendência dominante até então de crescimento, com a média de crescimento do PIB de 4,96% ao ano de 1900 a 1980 (Joffily, 1998). Este crescimento, ainda que extremamente concentrador de renda, permitia uma expansão do emprego, que mal ou bem pôde gerar expectativas de inclusão nas classes pobres, que deste modo vislumbravam um futuro melhor para si e para seus filhos. Esta expectativa foi alimentada diversas vezes, como na retórica do trabalhismo de Vargas, dos “50 anos em 5” de JK, ou do “milagre econômico” da Ditadura. Até chegar a crise econômica do final da Ditadura, que mergulhou o país numa espiral inflacionária, alcançando pela primeira vez a casa dos três dígitos em 1982 e a de quatro em 1989 (Joffily, 1998). A ‘década perdida’ trouxe desemprego, queda no poder de compra dos salários, corte de investimentos e gastos sociais, enfim, uma quadro que gerou conseqüências sociais gravíssimas, sem a perspectiva de que a situação se revertesse. No imaginário popular, a espera de um ‘salvador da pátria’ é frustrada repetidas vezes, com a morte de Tancredo Neves, o fracasso da Nova República e seus planos econômicos (Cruzado 1, 2, Plano Bresser, Verão…) e finalmente, a frustração com a eleição do ‘caçador de marajás’ Collor de Mello e a maneira como este conduziu seu mandato, que culminou em seu impeachment em 1992. A crise econômica da década de 1980 foi atenuada na década seguinte, ou melhor dizendo, ocorreu a estagnação econômica do país, alternando leves melhoras e leves pioras no quadro econômico e social. As transformações que o mundo assistiu após a queda da União Soviética e o triunfo do modelo neoliberal chegam a América Latina na forma do Consenso de Washington, receituário neoliberal que, resumidamente, defende uma redefinição do papel do Estado, que na prática quer dizer seu esvaziamento em funções básicas: como motor de desenvolvimento, o que vinha sendo no Brasil desde Vargas, e com cortes no orçamento que atingiam principalmente as áreas sociais, agravando ainda mais a situação. A reestruturação produtiva transformou o desemprego no Brasil (e no mundo também) em desemprego estrutural, com fechamento de postos de trabalho sem a perspectiva que sejam reabertos mesmo numa conjuntura de crescimento. Sob o governo de Fernando Henrique, o Brasil adere ao neoliberalismo. Segundo o economista José Reinaldo de Gonçalves (2002), fazendo um rápido balanço do que significou os anos FHC: “O retrocesso dos direitos sociais tem sido evidente nos 141

últimos anos. A flexibilização do mercado de trabalho e o aumento da violência são indicadores desse retrocesso. Ao mesmo tempo, no governo FHC constatamos uma brutal concentração funcional da renda, visto que a participação dos salários na renda reduziu-se de 32% em 1994 para 26% em 1999. E, conforme assinala José Murilo de Carvalho (Cidadania no Brasil, Ed. Civilização Brasileira, 2001), o Brasil deixa o século XX com uma herança de direitos civis retardatários. FHC é o lanterninha, o pior presidente da história do Brasil. Além do desempenho medíocre da economia brasileira, conforme mostramos em livro recente (Vagão descarrilhado, Editora Record, 2002) FHC deixa uma herança trágica: desestabilização macroeconômica, desmonte do aparelho produtivo, esbarramento do tecido social, crescente tensão política, degradação institucional e perda de governança. FHC deixa, ainda, fortes desequilíbrios de estoque como o exército de desempregados, o passivo externo e a dívida interna. A herança trágica de FHC é o desempenho econômico medíocre (…) as bombas de efeito retardado (e.g., passivo externo e dívida interna), a brutal concentração funcional da renda, os direitos civis retardatários e o retrocesso dos direitos sociais”. No balanço das duas décadas, a concentração de renda se agravou drasticamente, mergulhando as cidades num clima de caos social, com imensas filas de desemprego, aumento dos índices de criminalidade e episódios de violência urbana.

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Se a década de 1980 trouxe melhorias consideráveis para as favelas, o certo também que o quadro ainda era de deficiência em vários aspectos. Mesmo na oferta de serviços públicos, o esgoto só chegava a 20% dos domicílios em favelas; a água atingia 60% destes e a luz, 85% (apud Burgos, 1998). O correto seria dizer que em algumas favelas a situação mudou, ou mesmo em partes destas. Em Oliveira et alli (1993) é feita a crítica de que estes serviços foram concentrados nas favelas mais próximas ao centro do Rio, e que mesmo nestas favelas a distribuição destes serviços se deu de maneira desigual, muitas vezes não atingindo toda comunidade. Em 1991, o número de favelas, segundo o IplanRio, era de 570, e o de moradores destas era de 963 000 (apud Souza, 1996). Tendo passado a corresponder de 14% da população em 1980 para 17% em 1991 (Joffily, 1998). 142

Alguns avanços podem ser detectados no quadro institucional com a redemocratização do país. Em 1985, a possibilidade da população carioca eleger seu prefeito, que até então era escolhido pelo governador, trouxe a necessidade das questões eleitorais se voltarem para temas mais locais, que somada as mudanças ocorridas na Constituição de 1988, que concedia maior autonomia aos município, fez com que o tema ‘favela’ fosse uma atribuição municipal, com a qual a prefeitura teria que lidar. Com Saturnino Braga à frente da prefeitura, a SMDS implementou uma série de serviços comunitários nas favelas, como creches e postos de saúde. Só que novamente, como é lembrado em Oliveira et alli (1993) o próprio fato de serviços como educação e saúde passarem pela secretaria de ‘desenvolvimento social’ dava um aspecto muito mais de assistencialismo do que de ser uma obrigação mínima do Estado a oferta destes serviços. Outro organismo criado em sua gestão foram os Conselhos Governo Comunidade (CGC), que consistiriam em fóruns que reuniriam por área geográfica os órgãos de Estado e demais organizações da sociedade civil. Uma das críticas aos CGCs é sobre o caráter meramente consultivo destes, que apenas expressavam recomendações sem interferir de fato nas decisões do governo (Souza, 2000). Com Saturnino também é lançado o Programa Qüinqüenal de Urbanização de Favelas e Loteamentos Irregulares do Município do Rio de Janeiro, que tratava as favelas não mais com objetivo de removê-las, mas de “integrá-las à cidade transformando-as em bairros populares” (apud Burgos, 1998). Já na prefeitura de Marcello Alencar, com o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, exigência da Constituição de 1988, a via urbanizadora das favelas é consolidada como função do poder público. Nos artigos do Plano, a favela é definida como “…área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação de terra por população de baixa renda, precariedade da infra-estrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de alinhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregulares e construções não licenciadas, em desconformidade com os padrões legais.” (Plano Diretor, artigo 147 apud Burgos, 1998). Não há nenhuma referência à qualidade moral ou de âmbito cultural dos favelados, diferente dos vários documentos do Estado anteriores, alguns dos quais vimos aqui. O Plano define a responsabilidade da Prefeitura quanto à questão das favelas, expressando ainda a orientação de integrar as favelas aos bairros com uma urbanização que preserve a “tipicidade da ocupação.” Em consonância com os princípio do Plano Diretor, surge em 1993 o Programa Favela Bairro. O programa foi um entre outros propostos pelo Grupo Executivo de Assentamentos 143

Populares67, mas foi sem dúvida o de maior repercussão, inclusive internacional. Ainda em dezembro de 1993 é criada, em caráter extraordinário, a Secretaria de Habitação, a partir de recomendação do Geap. O Programa Favela-Bairro teria por objetivo: “construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento ou democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade”68. Em janeiro de 1994 a Secretaria Extraordinária de Habitação começa a tomar as iniciativas para realizar o programa. Nesta primeira fase, selecionam-se as favelas de médio porte (entre 500 e 2500 domicílios com população de 2000 a 10 000 moradores), as grandes são preteridas pelo alto custo e as pequenas pela dispersão, nesta fase inicial. As favelas de médio porte correspondem à 40% do total existente. Outro critério é o grau de dificuldade para implementação das obras. Quanto menor o grau maior seria a possibilidade de realizar as obras, maximizando a intervenção pública nestas favelas, completando um quadro de introdução de melhorias e de um processo de urbanização. 40 favelas se encaixam nesses critérios. O critério técnico dá então lugar ao político na escolha das 16 primeiras favelas, levando-se em conta ainda a dispersão regional pelas 5 Áreas de Planejamento do município69. A escolha do projeto urbanístico que vai orientar o Favela-Bairro é feita por concurso público, dentro de proposta delineada pela prefeitura. Outra inovação do programa é a participação da comunidade no planejamento, execução e monitoramento das obras. A comunidade assume o projeto, quais obras que serão feitas, quais as melhorias. O projeto conta com financiamento do BID de 300 milhões, com contrapartida local da prefeitura de 120 milhões. O Favela-Bairro na verdade se insere no PROAP, Programa de Urbanização e Assentamento Popular. 67

O Favela-Bairro na verdade se insere no PROAP, Programa de Urbanização e Assentamento Popular. O PROAP

consiste, além da urbanização das favelas (o Favela-Bairro, que consome 192 milhões deste financiamento); a regularização dos lotes e; monitoramento, educação sanitária e ambiental e desenvolvimento institucional nas comunidades de baixa renda. 68

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Ver sítio eletrônico da Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro: www.rio.rj.gov.br/habitacao/. As 16 primeiras comunidades beneficiadas pelo Favela-Bairro são: Parque Royal; Canal das Tachas/Vila

Amizade; Grotão; Serrinha; Ladeira dos Funcionário/Parque São Sebastião; Caminho do Job; Escondidinho; Morro da Fé; Vila Cândido/Guararapes/Cerro-Corá; Chácara69 Del Castilho; Mata Machado; Morro dos Prazeres; Morro União; Três Pontes; Fernão Cardim, e Andaraí. 144

O Proap até 2001, havia alcançado 111 comunidades médias; 39 pequenas (de 100 a 500 domicílios) através do Programa Bairrinho, com financiamento de 28 milhões, parte deste recurso vindo da União Européia a “fundo perdido”; e 5 grandes (acima de 2.500 domicílios) que são: Jacarezinho; Rio das Pedras; Fazenda Coqueiros (Santíssimo); Bairro Rollas (Campo Grande); e Rocinha. Os recursos das obras das grandes favelas vêm em parceria dos Governos Federais e Estaduais. Em março de 2000 foi assinado novo convênio com o BID, um financiamento também de 300 milhões e nas mesmas condições do anterior para tocar a segunda fase do projeto, mantendo os mesmos objetivos do primeiro, porém, segundo materiais de divulgação da Prefeitura do Rio de Janeiro, com ênfase nas ações de desenvolvimento social e geração de emprego e renda. O programa Favela Bairro se insere assim numa nova abordagem das políticas públicas para as favelas, definida pela ‘reformulação institucional’ associada a uma preocupação com o crescimento da violência urbana, que é relacionada diretamente a ‘ausência’ secular do Estado nas favelas. A repercussão que adquiriu, e o seu retorno em ‘dividendos’ políticos para César Maia, explicam também a dimensão que o programa teve, já que diversas lideranças comunitárias passaram a lutar para que o programa fosse implementado em sua comunidade, incorporando-se assim a máquina política de César Maia. Alvito (2001) estava fazendo sua pesquisa em Acari no momento da eleição para prefeito em 1996, e conta que das quatro associações existentes no local, os presidentes de três delas se aliaram a políticos ligados a César Maia, que baseavam suas promessas de campanha principalmente em levar o Favela Bairro a essas comunidades. A máquina de César Maia ampliou sua estrutura, tornando ‘responsáveis’ pela implantação do Favela Bairro numa determinada comunidade não só o prefeito, mas também parlamentares e os subprefeitos, estrutura criada por César Maia que coordena as ações da Prefeitura em cada região. De maneira que vários políticos foram eleitos após a passagem pelas subprefeituras, diga-se de passagem, com um número considerável de votos. Assim, uma obra rendia dividendos eleitorais a toda uma máquina bem-montada, rendendo votos em várias instâncias (Câmara de Vereadores, Assembléia Legislativa, Prefeitura, etc.). Algumas dúvidas são levantadas a respeito da possibilidade do Favela Bairro alterar de fato o status ‘marginal’ das áreas faveladas. Para Souza (2000), uma mudança qualitativa da posição que a favela ocupa no espaço urbano só é possível “ desde que não se restrinja a idéia de urbanização de uma favela a uma simples remodelação urbanística do espaço, vendo-a, isso 145

sim, como um processo de propiciamente das bases materiais e institucionais para eliminação da barreira de preconceitos que separam as cidades ‘legal’ (bairros comuns) e ‘ilegal’ (favelas). percebe-se que não é suficiente para um processo de urbanização estar ela tecnicamente bem concebida na prancheta de desenho de um arquiteto. Urbanizar uma favela precisa significar melhorar a auto-estima dos favelados, integrá-los o mais possível à economia formal e melhorar sua renda_ além, evidentemente da realização das obras de infra-estrutura.” Souza alerta que sem uma efetiva melhoria na renda das populações que forem beneficiadas pelo programa, o Favela Bairro pode se transformar numa espécie de ‘remoção branca’. Sendo estes imóveis, devido ao valor que adquirem, vendidos a pessoas com maior poder aquisitivo, indo os antigos moradores para outra área. É um processo que tem características parecidas com o que ocorreu nos conjuntos construídos pela Cohab, com a venda das unidades por parte dos ‘removidos’ para pessoas de classe média. Ou seja, por algum motivo, uma pessoa passa adiante um bem de capital que possui, no caso do Favela Bairro uma moradia que foi valorizada pelas obras de urbanização no local, e procura outro lugar, provavelmente uma outra favela, mais precária que o local que deixou, onde possa fazer algum uso do capital adquirido com a venda. Como isso ainda carece de maiores estudos, não podemos saber em que medida ocorre, apenas que este processo já é detectado em algumas das comunidades beneficiadas pelo Programa Favela Bairro. Souza ressalta ainda que o programa não valoriza a representação ‘livre’ dos moradores nas tomadas de decisão, não encarando portanto o estímulo à cidadania como um elemento básico para a transformação em que um programa que visa ‘integrar as favelas’ deveria ter. De fato, como vimos, à semelhança da época da Operação Mutirão de Rios e Lacerda, os recursos do Estado são limitados, e ao não poder chegar a todas as favelas de uma só vez, o critério para definir quais serão as beneficiadas é o critério político. Monta-se assim, uma bem estruturada máquina que envolve desde o chefe no executivo, no caso César Maia, até o presidente da associação de moradores, que garante à comunidade que com seus contatos trará a obra e os empregos que ela vai gerar. Aliás, este é outro aspecto particularmente dramático da questão. Como estamos lidando com áreas de baixa renda, que mesmo com todas as mudanças que ocorreram nas décadas de 1980 e 1990, eram (e são ainda) áreas com um grande número de desempregados ou sub-empregados. A possibilidade de uma obra na comunidade faz com que estes moradores vislumbrem a chance de serem contratados para trabalharem nela. Isto, para Alvito (2001), causa um retrocesso ainda maior que as antigas práticas clientelistas que trocavam 146

o voto por obras para a comunidade. Ao passar a ser o ‘emprego’ a moeda de troca, até porque em muitas comunidades, alguns dos problemas foram minimamente resolvidos nas últimas duas décadas, o favor passa a ser a resolução individual (ou no máximo familiar) de um problema, diferente das obras para a comunidade, que mal ou bem reforçavam os laços horizontais dos favelados, que agiam como um coletivo frente ao ‘provedor’ da obra.70

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As décadas de 1980 e 1990 também redefiniram o papel das associações de moradores. Uma constatação que fazem vários dos antigos líderes comunitários é de que estas já não cumprem mais o papel que um dia desempenharam, havendo mesmo um ‘esvaziamento’ das associações de moradores. Pode causar estranheza que tal constatação se dê justamente num momento que as associações passaram a ser reconhecidas pelo Estado como legítimas representantes das favelas; que passaram a gerir obras e programas do Estado, associando o conhecimento do local com os recursos financeiros do Estado; que a relação das associações com o Estado tornou-se tão institucionalizada que vários de seus líderes se tornaram quadros deste último. Vamos tentar analisar a trajetória das associações de moradores nas duas últimas décadas e descobrir se há um esvaziamento e o que ele significa. O que se pode notar, a partir de depoimento de várias lideranças em toda bibliografia sobre o tema favela mais recente, é que a queixa quanto ao esvaziamento das associações parte principalmente de antigas lideranças, que estiveram à frente das associações numa época em que a favela lutava para permanecer no local, para terem na favela uma infra-estrutura e contarem com serviços que garantissem um mínimo de condições dignas de vida para seus moradores. Alvito (2001) relata que em Acari muitos dos antigos líderes comunitários assistem “afastados, silenciosos e melancólicos ” as associações de hoje. Em Rio das Pedras ocorre algo parecido, com antigas lideranças criticando o caráter assistencialista que a associação assumiu nos últimos tempos (Burgos, 2002). E também na Maré existem críticas semelhantes (ver capítulo III). A crítica mais freqüente é quanto a cooptação das associações (e de seus dirigentes) pelo Estado, 70

Alba Zaluar (1985) faz a ressalva de que o clientelismo pode ser uma relação que reforça vínculos horizontais, ao

menos no nível local, já que existe uma hierarquia entre a comunidade e o político beneficiário. 147

em contraste com outros tempos quando ela ‘representaria’ verdadeiramente os moradores, organizando-os para lutar por suas reivindicações. Tomando o caso de Acari como exemplo. Cada uma das quatro associações, que foram fundadas nas décadas de 1960 e 1970, teve à sua frente uma liderança apropriada para uma determinada questão que se apresentava no momento. Uma foi fundada para organizar a comunidade a fim de garantir sua permanência no local; outra para realizar melhorias nele; e outra ainda, para organizar a ocupação do terreno. Assim, quando à questão era de permanência no terreno, caso de duas comunidades de Acari, uma associação teve como presidente alguém com bastante ‘desembaraço’ para tratar com as várias instâncias burocráticas, enquanto outra foi dirigida por um advogado com bastante conhecimentos no asfalto. Numa terceira comunidade, já garantida a posse do terreno, a questão premente era a urbanização do local, e sua líder era uma mulher que ‘metia o pé na vala’ para fazer as obras junto com a comunidade (Alvito, 2001). O que pode se depreender das trajetórias destas lideranças é que o carisma, poder de mobilizar a comunidade para uma luta, era um traço importante. Não à toa muitas destas lideranças de Acari se destacavam em outras esferas da comunidade, organizando ‘quadrilhas caipiras’(de São Soão) ou blocos carnavalescos. Nos final dos anos 1980, como já dissemos, muitos dos problemas que existiam até o começo da década já haviam sido resolvidos. Problemas como a permanência no local (ainda que a propriedade do terreno não), algumas obras de infra-estrutura e oferta de serviços. Pode se falar que houve um certo deslocamento das reivindicações coletivas, ações que atenderiam a favela como um todo de maneira impessoal, por ações que, ainda que sejam benéficas à favela como um todo (programas como o Favela Bairro, Garis Comunitários, ou mesmo um posto médico) o mais importante para a favela, na conjuntura de ‘crise permanente’ e desemprego que o país vive há duas décadas, são os empregos que elas geram, que em última instância, são um benefício pessoal. O emprego, como já dissemos, passa a ser a principal moeda de troca entre o líder comunitário e a comunidade. Sendo ele um benefício restrito, cria a possibilidade dos diretores da associação de moradores basearem suas trajetórias políticas em relações pessoais com os contratados e suas famílias, tornando o clientelismo uma prática comum nas associações. A ascensão do tráfico é outro fator, um dos principais aliás, que ‘esvaziou’ as associações, se assim compreendemos que o grau de participação da comunidade em sua vida institucional foi muito reduzido. O espaço para uma atuação autônoma dos moradores, 148

principalmente para resolver possíveis conflitos naturais em qualquer disputa, passou a ter as quadrilhas como um elemento significativo, que restringe esta autonomia. Por exemplo, o tráfico impõe diretores na associação, controla as atividades desta, e ‘afasta’ elementos com os quais não simpatize. Enfim, quando o tráfico passou a ser um poder de fato na favela, e por isso paradoxalmente, muitas vezes tornou necessário ser menos visível a possíveis inimigos, muitas associações passaram a desempenhar a função de serem meras ‘porta-vozes’ do poder de fato e intermediárias deste com os demais atores, como o Estado por exemplo. Entre tantos exemplos, no livro Cidade Partida, Zuenir Ventura apresenta o depoimento de um morador que por ocasião de um projeto que a prefeitura queria implantar em Vigário Geral, o líder comunitário teria dito que iria “consultar o ‘homem’ e depois dar a resposta.” (Ventura, 1994). Na bibliografia referente ao tema favela, são comuns os depoimento de lideranças que possuem a visão da associação ser algo como uma ‘mini-prefeitura’. Este caráter foi reforçado com o repasse de recursos do Estado para que as associações assumissem algumas atribuições deste. Hoje diversos programas da prefeitura e do governo do Estado têm a associação como gestor. As lideranças comunitárias passaram também a utilizar sua relação com o Estado, ou seja, o acesso a determinados canais como um cacife político a ser usado localmente. Isto é agravado pelo fato de diversas lideranças comunitárias terem sido incorporadas ao aparelho de Estado sendo nomeadas para diversos cargos. Os defensores desta estratégia (Garrison, 2000) argumentam que quando o Estado passa a lidar com realidades distintas, como a da favela; e também fruto de uma nova orientação de que é necessário combater a pobreza na esfera ‘local’, os representantes vindos da comunidade passam a ser fundamentais para que projetos implementados pelo Estado possam realmente se concretizar, sendo mediadores de conflitos; e por terem o conhecimento do local onde o Estado está atuando, e legitimidade perante a comunidade, estes agentes fazem com que os projetos sejam ‘otimizados’. Isto criou uma ambigüidade na representação destas lideranças, confundindo quem elas representam, se a comunidade no Estado ou o Estado na comunidade. Estas lideranças, anteriormente ‘mobilizadoras’ da comunidade, acabam virando alvo de queixas e reclamações por parte da comunidade. Um exemplo típico disto é o caso narrado por Burgos (2002) que ocorreu em Rio das Pedras. O presidente da associação de moradores foi nomeado por César Maia administrador regional de Rio das Pedras “tornando estatal a autoridade local até então desempenhada em nível associativo”. O novo administrador não permaneceu muito tempo no cargo por vontade 149

própria, pois viu que como presidente teria mais autonomia e maior conforto para exercer ‘pressão’, do que como “homem de confiança do prefeito”, portanto alguém do Estado a ser ‘pressionado’. O exemplo é uma mostra da complexidade que envolve a questão. Nem todas as lideranças que atuam ‘para o Estado’ perdem sua independência em relação à atuação deste, continuando a fiscalizar e criticar quando necessário. Embora existam as lideranças que deixam de falar em nome da comunidade para se tornarem defensores das políticas do Estado, que é quem paga seu salário. O repasse de atribuições do Estado às associações também é um dos motivos que explicam porque mesmo com a ‘entrada do Estado’ nas favelas nas últimas décadas, a condição subordinada destas não foi revertida. Enquanto uma ação do Estado em tese deveria beneficiar o cidadão como uma categoria impessoal e abstrata, as associações não têm o mesmo compromisso, sendo os benefícios (como um emprego num programa) muito mais baseados na reciprocidade entre alguns moradores e os dirigentes da associação, que num compromisso universalista com todos os moradores da favela. Mesmo que no caso do Estado a coisa não ocorra exatamente assim, ainda há mecanismos que permitem um certo grau de fiscalização para que ocorra da maneira ‘correta’. A nível local, na associação de moradores, estes mecanismos são muito menos consistentes (quando existem). As queixas sobre associações que não convocam assembléia, deixam de fazer prestação de contas, ou há tempos que não realizam eleições são inúmeras. Tal cultura foi agravada com o crescimento do poder do tráfico, que interferiu dramaticamente na vida associativa de muitas favelas, e se manifestar contra tal cultura passou a significar risco de vida. Assim, ironicamente, o ‘crescimento’ do poder das associações dentro das favelas com novas atribuições e contando com recursos financeiros é justamente um dos motivos para que elas tenham se esvaziado, ao menos para o papel que desempenharam um dia. De qualquer forma, elas vivem hoje uma crise de representatividade dentro das comunidades que dizem representar. Este vínculo das associações com o Estado também geraram um novo tipo de ator: o agente comunitário. O surgimento dos agentes comunitários foi um dos fatores que contribuíram para o esvaziamento das associações de moradores (Grynszpan & Pandolfi, 2002). Diversos programas e secretarias da prefeitura e do estado utilizam os agentes comunitários, e mesmo algumas ONGs de origem externa à favela têm sua entrada e atividade facilitada pela contratação 150

destes agentes. O agente geralmente é uma liderança reconhecida na comunidade, que é remunerada para que possa desempenhar o papel de mediador e facilitador de algum programa ou ação. É o agente, por exemplo, que escolhe as pessoas para um determinado trabalho, ou que faz as articulações com a comunidade para algum programa. Para exemplificar melhor o papel que um agente comunitário tem e sua importância, vamos usar o exemplo do Balcão de Direitos71, um projeto do Viva Rio. Seu coordenador, Pedro Strozemberg72, enfatiza a importância dos agentes comunitário para o funcionamento do projeto: “O Balcão de Direitos, apesar do nome, tem mais identidade com os agentes do que com os advogados. Substituir advogados é mole hoje em dia, fácil, fácil. Agora, substituir agente é um trauma. Porque o agente é aquele personagem que dá o tom do Balcão (…). Se ele é uma pessoa que tem aceitação da comunidade, se ele tem liderança, movimento, o Balcão vai estar cheio. Se ele não tem, o Balcão vai estar vazio, mingua. A gente no início usou a credibilidade do agente para poder divulgar o Balcão (…). Raro eram as pessoas que iam direto para o Balcão. Grande parte passava primeiro pelo agente. (…) ele é a pessoa que conhece e não deixa a gente embarcar em furadas.” No caso do Estado, que nas últimas décadas contratou centenas ou mesmo até milhares de agentes comunitários (pela dispersão em secretarias é difícil precisar o número), e como entre estes muitos estavam à frente das organizações das favelas (como associações de moradores), vemos que novamente a relação que poderia ser uma ‘via de mão dupla’, funcionando como um canal de mediação entre o Estado e a comunidade, cria na verdade uma relação ambígua. Quem estes agentes representam? O Estado ou a comunidade? Embora contratados em última instância, pelo papel de liderança que tinham em suas comunidades, os agentes, por serem remunerados pelo Estado, têm de dar satisfações e mostrar resultados a seus superiores, e, diga-se de passagem, resultados que agradem a estes.

71

Criado pelo Viva Rio em 1996, o Balcão de Direitos possui núcleos em diversas favelas do Rio de Janeiro,

fornecendo assessoria jurídica gratuita aos moradores, enfatizando a orientação legal e a mediação de conflitos, já tendo atendido milhares de casos. Ver www.balcaodedireitosvivario.org.br 72

Depoimento ao projeto Um Estudo dos Efeitos das Ações de Organizações Governamentais e Não

Governamentais em Comunidades de Baixa Renda dos pesquisadores Dulce Pandolfi e Mario Grynszpan Cpdoc/ FGV, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 2000. 151

A emergência das ONGs como atores relevantes nas favelas também é outro fator que contribuiu para uma redefinição do papel das associações. No começo dos anos 1990, algumas lideranças comunitárias (Oliveira et alli, 1993) já vislumbravam que, embora existissem outras organizações nas favelas, a associação de moradores ainda era encarada como ‘a organização’ desta. No entanto, passado 10 anos, o mesmo já não pode ser afirmado com tanta certeza. Algumas ONGs foram formadas justamente por pessoas que passaram pelas associações, mas acabaram vendo nestas uma série de limitações, algumas das quais falamos aqui, para uma atuação mais ‘transformadora’. São ONGs como a Rocinha XXI, surgida de uma chapa que concorreria a eleição para uma das associações da Rocinha, ou ainda o Ceasm na Maré, que, como já dissemos, foi formada por ex-dirigentes de algumas das associações de moradores da área.73 O maior destaque à atuação das ONGs se deve também a uma série de reformas institucionais que possibilitou que a atuação do Estado se realizasse em parceiras ou mesmo que o Estado repassasse algumas de suas atribuições a organizações da sociedade. Não devemos desconsiderar que as idéias neoliberais que avançaram no Brasil durante a década de 1990 se apropriaram deste mecanismo, levando-o ao extremo. Por exemplo, o repasse de recursos financeiros deixa de ficar a cargo do Estado e passa a ser oriundo de empresas ou fundações. Muitos projetos feitos por ONGs em favelas do Rio têm este caráter. Esta modificação se iniciou na Constituição de 1988, que prevê a descentralização em algumas políticas públicas, através: de uma redistribuição das atribuições de União, estados e municípios; e da criação de conselhos de políticas públicas (Tutelar, Saúde, entre outros) que incorporem segmentos da sociedade civil. Esta descentralização abriu espaço para uma maior participação da sociedade na formulação e execução desta políticas, levando à colaboração entre órgão estatais e ONGs (bem como associações comunitárias). Segundo Garrison (2000), o Banco Mundial calcula que entre 1997 e 2002, tenha destinado 806 milhões de dólares, através de financiamentos a governos, à projetos que envolvam este tipo de parceria entre Estado, ONGs e comunidade. Em 1998 o Governo Federal regulamentou, através de algumas leis (9608/98; 9637/98), o funcionamento de ONGs, com um novo sistema de classificação destas como 73

No capítulo III analisamos particularmente a trajetória de algumas desta lideranças das associações de moradores

para a ONGs 152

‘organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)’, além de estimular parcerias, permitindo desta forma que as ONGs recebessem um volume maior de financiamentos do governo. Outra grande fonte de financiamento das ONGs são as agências de cooperação internacional, como as holandesas Novib ou Solidaridad, que segundo estudo do Pnud (organismo da ONU para desenvolvimento humano), anualmente deslocam do hemisfério norte 5,5 bilhões de dólares em fundos privados e 2,2 bilhões de dólares em fundos públicos para 50 000 ONGs do hemisfério sul, a maioria em projetos combate à pobreza. Os índices crescentes de violência nos grandes centros urbanos, que levou a um maior investimento do Estado nas áreas carentes das cidades, também deu maior impulso à atuação das ONGs, que passam a desempenhar importante papel na luta pela superação da pobreza, principalmente a partir de fins da década de 198074, contando com recursos públicos com base no mesmo raciocínio de existir uma maior ‘capilaridade’ na atuação do Estado, mais legitimidade em suas ações e de que entre os quadros destas ONGs existem pessoas com legitimidade política e/ou capacidade técnica para implementar estes projetos. No Brasil, segundo dados da Abong, a população urbana de baixa renda é a maior beneficiária da ação das ONGs. Pode-se dizer que o principal objetivo destas é a superação da pobreza e o combate a violência, entendido como fruto desta pobreza. Na década de 1990 as ONGs passaram de meras ‘fiscais’ do Estado à serem elas mesmas executoras de políticas públicas. Isto não se dá sem embates por parte das lideranças das ONGs sobre as responsabilidades do Estado e o papel das ONGs. Sobre isso, o falecido Hebert de Souza, o Betinho, talvez a mais popular liderança de ONG no Brasil declarou: “As velhas barreiras ideológicas, resquícios da Guerra Fria, precisam ser substituídas por uma busca mais pragmática de soluções efetivas para problemas humanos urgentes” (apud Garrison, 2000). A Abong elaborou uma proposição que não desconsiderava os ‘princípios’ nos quais estas ONGs se estruturaram: “A mudança de papel, substituindo o trabalho de cunho mais político dos anos 70 pela prestação de serviços mais especializados dos anos 90, não significa, por outro lado, um distanciamento das ONGs de suas antigas atividades de mobilização popular. O que parece radicalmente novo é o conteúdo dos serviços sociais oferecidos pelas ONGs, agora estruturado 74

Segundos os dados da Abong de 1996, 60 % das 143 maiores ONGs brasileiras foram fundadas entre 1985 e

1994. 153

no âmbito de um espaço institucional capaz de influenciar a formulação e a implementação de políticas públicas.” (apud Garrison, 2000). Por esta declaração, pode entender que uma outra vantagem que as ONGs teriam em relação à ação estatal é a que ao mesmo tempo que atuam diretamente no nível local, por legitimidade e capacidade técnica, prestando serviços; as ONGs atuam em cima de um objetivo geral, que é a superação da pobreza. O combate à pobreza pode se traduzir em: alfabetização, combate à violência, ampliação da cidadania, desenvolvimento local, etc. Por outro lado, ressalta também que o papel que as ONGs passam a desempenhar é de cooperação com o Estado, aproveitando os espaços criados, para atingirem suas metas. A questão financeira também não deve ser desconsiderada. Segundo dados do último levantamento da Abong, de 1998, mostra que 47,2% das ONGs recebem algum recurso do Estado. A própria Abong assinala que: “Muitos começaram a colaborar com o Estado, freqüentemente por razões de ordem financeira. Mesmo o trabalho realizado pode produzir sinergias em termos de alcançar objetivos comuns, alterar a colaboração entre os setores público e privado ou promover uma melhoria da atuação governamental.” O Banco Mundial ressalta também a importância das ONGs como agentes importantes na luta contra a pobreza, nos quais vale a pena investir: “Ao oferecer uma perspectiva que se distingue daquela dada pelo governo ou pelo setor privado, as ONGs podem ajudar a compor um quadro mais completo e equilibrado do contexto. As ONGs têm sido particularmente efetivas em chamar a atenção para preocupações ambientais e trazer a público a perspectiva daqueles cuja expressão política é mais frágil”. O balanço disto tudo é que as ONGs assumiram muitas das funções que anteriormente eram das associações de moradores. Mais ainda, muitas destas ONGs são dirigidas por pessoas que tiveram como experiência anterior o trabalho em associação de moradores, o que ajudou numa redefinição de papéis das demais organizações comunitárias.

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*

*

De tudo que dissemos até aqui, podemos afirmar que há um esvaziamento das associações de moradores quanto à uma participação comunitária efetiva (em que esta tenha um mínimo grau de decisão nos fóruns das organizações, o que já não existe em muitas delas, e mesmo quando existe, parecem ser mais formais que um processo democrático de fato), por uma 154

série de restrições que a população das favelas encontram hoje às suas organizações comunitárias. As associações também transformaram seu antigo caráter de enfrentamento. As novas formas de intervenção do Estado das décadas de 1980 e 1990, paralelas às melhorias na comunidade, criaram novas formas de relação com a comunidade, com as associações assumindo o papel de executoras de ações e programas do Estado. O melhor exemplo do que queremos dizer vem de uma publicação do Banco Mundial utilizada aqui neste estudo, com o sugestivo título “Do Confronto à Colaboração – Relações entre a Sociedade Civil, o governo e o Banco Mundial no Brasil”. Nesta publicação, o autor diz que o ‘confronto’ foi se transformando em negociações, com o governo e sociedade “aprendendo a colaborar de forma construtiva” (Garrison, 2000). Como já dissemos, as favelas para serem beneficiadas com obras tinham, muitas das vezes, de construir relações com políticos e com a autoridade executiva do momento. Sendo então do interesse das lideranças em cujas comunidades conseguiram a realização de obras (e os recursos financeiros, e os empregos) que permaneça à frente do executivo aquele com o qual a relação já está construída.75 Vale dizer que quando a atuação das associações, para utilizar o termo de Garrison, dispensa o ‘confronto’, ou melhor dizendo, a organização dos moradores, e passa a atuar exclusivamente através dos canais do Estado, automaticamente torna-se desnecessário envolver uma grande número de moradores nas atividades da associação, a não ser como clientela cativa de suas ações. A participação ativa dos moradores na vida organizativa da associação (em assembléias, por exemplo) se tornou dispensável para o seu funcionamento. Até porque pelas relações clientelistas desta com políticos e autoridades do Estado, se tornou mais importante o tamanho da clientela a ser atendida pela associação, pelo que representará em votos posteriormente, do que o número de pessoas que esta organiza. As associações se burocratizaram: recebem verbas, atendem moradores, remuneram seus diretores e funcionários… 75

Com a implementação do programa Favela Bairro em seu primeiro mandato em 1992-1996, César Maia construiu

uma grande base de apoio nas favelas, a qual faziam parte muitos dirigentes de associações de moradores. Estes dirigentes foram entusiásticos cabos eleitorais do candidato de César Maia, Luiz Paulo Conde, à sua sucessão. Quando houve uma ruptura entre os dois, que se enfrentaram na eleição para prefeitura em 2000, estes dirigentes se dividiram no apoio a um dos candidatos. Com a vitória de César Maia, muitos do que tinham apoiado o outro lado voltaram à base de César Maia. 155

um dos efeitos imediatos disso é o ‘personalismo’ e ‘caciquismo’ que existem em várias associações, com o presidente desta encarnando em si tudo que se refere à associação, e também centralizando em si todas as decisões, não abrindo espaço para que outras pessoas atuem na associação, a não ser que reconheçam a autoridade deste. Quando o presidente personaliza em si a associação, faz com que os moradores passem a depender desta liderança, sem que se desenvolva na favela uma participação coletiva, pois estes não se sentem com poder de decisão sobre a associação e conseqüentemente, se sentem menos ligados à ela. Daí a decepção registrada por muitas lideranças, que durante o período que estiveram à frente das associações viam sua atuação com um caráter mais militante, no sentido de atuar não só em reivindicações locais, pontuais, específicas, mas de organizar suas comunidades, no entendimento de que a resolução de seus problemas só se daria através de uma luta política mais ampla, que ultrapassasse as ‘fronteiras’ das favelas. Pode-se dizer que a ‘crise’ das associações seria na verdade uma crise do ‘ativismo’ que marcou estas em épocas anteriores, como nos tempos da CTF, da Fafeg após seu II Congresso em 1968, e no início dos anos 1980, com a disputa pela Faferj. Em Souza (2000) é feito um interessante levantamento da crise do ativismo nas associações de moradores, causada por diversos fatores que apresentaremos brevemente. O primeiro é de que o contexto de crise econômica contínua, como se viu nas últimas duas décadas, dificultou a participação efetiva de uma militância voluntária, que não se importasse em agir sem remuneração, militando apenas por um propósito mais altruísta. As práticas clientelistas de algumas autoridades, sendo desnecessário repetir aqui o que já foi dito, também foi prejudicial pelo fato de realizarem algumas ações atribuindo-lhes o caráter de favor. Isso por um lado não modifica a condição subordinada desta população, e por outro, atenua (se muito) os efeitos da pobreza sem combater as causas. Pior, ao dar o caráter de favor à uma ação, e não de ser um direito ou uma conquista, não se estimula a cidadania. A partidarização também foi um fator que levou a crise do ativismo por alguns fatores. Um é entrada de diversas lideranças com um viés de esquerda no aparelho de Estado. A passagem de um dirigente de associação para se transformar num quadro do Estado, ainda que os motivos sejam altruístas (não pretendemos nos alongar nesta discussão) acabou por ‘naturalizar’ tal processo, já que fosse à esquerda ou à direita, todos faziam isso, não dando margem a nenhuma crítica, a não ser por aqueles que quisessem atuar no movimento comunitário numa 156

esfera local, que acabaram desenvolvendo uma rejeição aos partidos de maneira geral, dificultando um desenvolvimento de luta comunitária que tenha um horizonte maior. Ainda sobre a partidarização, esta também causou bastante estragos na imagem das associações como uma organização dos moradores, visto que muitas delas se transformaram em comitês eleitorais em várias ocasiões. Parodiando o que falamos aqui sobre o tráfico utilizar práticas já arraigadas nas favelas, os candidatos conservadores que aumentaram sua influência na década de 1990 também se apropriaram de uma prática já feita pelos candidatos ditos de esquerda, notadamente os do PDT. Quando o próprio dirigente da associação se candidata, o quadro se agrava ainda mais, por tudo que já descrevemos nestes dois últimos parágrafos. A burocratização das associações que nos referimos acima, tem como uma de suas causas o próprio momento político pós-ditadura, com a institucionalidade que as associações passaram a contar, sendo reconhecidas como representações legítimas da favela. O processo posterior mostrou, no entanto, que desta conquista não derivou um aprendizado político para a população favelada, pois esta institucionalidade além ter contribuído para manutenção do status quo (pelos fatores que demostramos acima), a associação (e seus dirigentes) passaram a ser vistos como os únicos encarregados ou capazes de fazer alguma coisa. A institucionalização das associações acabou sendo um fator de desmobilização da comunidade.76 As decepções com os novos tempos que várias lutas na década de 1980 deveriam trazer é outro fator que contribuiu para desanimar os militantes dos movimentos comunitários. Já apresentamos aqui os eventos que alimentaram esperanças de transformações na sociedade brasileira e acabaram levando a frustrações. Aqueles líderes que só militavam motivados pelo sentido de estarem contribuindo com esta transformação, acabaram desanimando, já que as expectativas de mudança nunca eram satisfeitas. Isto somado às motivações econômicas que já listamos, acabou fazendo com que estes líderes fossem cooptados ou abandonassem a militância, abrindo espaço para lideranças com outros interesses.

76

Ainda que de maneiras diferentes, Burgos (2002) e Oliveira et alli (1993) descrevem este mesmo processo. Em

Rio das Pedras esta desmobilização é sentida por alguns moradores em Rio das Pedras; e também a análise da Fundação Bento Rubião (Oliveira et alli, 1993), sobre a relação dos moradores com suas associações, aponta no mesmo sentido 157

Por último, aqueles militantes mais ideológicos das associações de moradores tiveram grande dificuldade de adequar a atuação destas organizações à conjuntura democrática. Pouco se mobilizou para lutas mais amplas, particularmente aquelas que tinham a ver com questões relativas à localidade, mas que teriam de ser encaminhadas num nível mais amplo, como o Estatuto das Cidades ou a Lei Orgânica do Município. Enfim, os diversos mecanismos que regulam o espaço urbano e que seriam importantes instrumentos de luta pela reforma urbana. Estes militantes não conseguiram conjugar lutas locais com lutas mais gerais. Os militantes caíam então em dois extremos: ou subestimavam as lutas por melhorias locais em detrimento de bandeiras mais gerais; ou lutavam apenas por reformas pontuais, locais, que beneficiavam uma comunidade específica. Após a democratização do país, os dirigentes das associações de moradores não conseguiram (e depois não quiseram) passar das lutas de bairro para lutas a partir do bairro (Souza, 2000).

158

CAPÍTULO III:

AS DÉCADAS DE 1980 E 1990 NA MARÉ *

UM ESTUDO DE CASO

.

“Todo dia O sol da manhã Vem e lhes desafia Traz do sonho pro mundo Quem já não queria Palafitas, trapiches, farrapos Filhos da mesma agonia E a cidade Que tem braços abertos Num cartão postal Com os punhos fechados na vida real Lhes nega oportunidades Mostra a face dura do mal Alagados 'Trenchtown', Favela da Maré A esperança não vem do mar Nem das antenas de TV A arte de viver da fé Só não se sabe fé em que…” Alagados (Herbert Vianna) * Este capítulo é uma versão modificada do relatório Um Estudo dos Efeitos das Ações de Organizações Governamentais e Não Governamentais em Comunidades de Baixa Renda – Relações entre Estado e Comunidade na Favela da Maré nas Décadas de 1980 e 1990 apresentado por mim ao 6º Encontro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic/ CNPq) da Fundação Getulio Vargas em julho de 2002. 159

A música ‘Alagados’ da banda Paralamas do Sucesso, uma das mais tocadas na década de 1980, é ilustrativa de como a Maré figurava no imaginário do Rio de Janeiro como um cenário de pobreza e miséria, em suas “palafitas, trapiches, farrapos” em contraste com a cidade de “braços abertos no cartão-postal”. A Maré é limitada por duas importantes vias da cidade: a avenida Brasil e a Linha Vermelha, rotas de acesso ao Rio para quem vem de outros estados ou desembarca no Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim (Galeão). Assim, a chegada à ‘cidade maravilhosa’ tem como uma de suas primeiras paisagens a pobreza da Maré, erguida nas margens da Baía de Guanabara. Para os que moram na cidade, associada à imagem da pobreza existe ainda a imagem da violência, com as notícias recorrentes nos jornais de conflitos entre traficantes e polícia ou entre facções do tráfico que interrompem o tráfego nestas vias expressas77. Dezessete comunidades78 fazem parte da Maré, que são, por ordem demográfica: Parque União, Vila Pinheiros, Parque Maré, Baixa do Sapateiro, Nova Holanda, Vila do João, Rubens Vaz, Marcílio Dias, Timbáu, Conjunto Esperança, Salsa e Merengue, Praia de Ramos, Conjunto Pinheiros, Nova Maré, Roquete Pinto, Bento Ribeiro Dantas, e Mandacarú. O conjunto destas comunidades é considerado pela Censo IBGE 2000 a maior favela do Rio de Janeiro, contabilizando 113.817 habitantes, número este que aumenta para 132.176 habitantes segundo o censo realizado pelo Ceasm. Valer dizer que outras comunidades reivindicam para si o título de maior favela, como a Rocinha e o Complexo do Alemão. O próprio IBGE, ao declarar que em 1996 o número de habitantes da Maré era de 68.817, mostra a complexidade que existe ao trabalharmos com os dados sobre a Maré. A disparidade dos números é explicada pela

77

As notícias que falam sobre tiroteios na área da Maré são constantes, como demonstram algumas que nós

apresentamos aqui:. “Tiroteio fecha a Linha Vermelha por 4 h no Rio” (O Estado de São Paulo, 21/02/1999); “Uma zona em eterno conflito” (Jornal do Brasil, 30/08/2001); “Novo tiroteio fecha a Linha Amarela” (O Estado de São Paulo, 12/07/2002); “Terror de novo na Avenida Brasil” (O Globo 07/05/2003). 78

Adotamos a contagem do Ceasm utilizada no censo feito por esta ONG, de 17 comunidades, considerando como

comunidades à parte os conjuntos Salsa e Merengue (Novo Pinheiro) e Mandacarú, por serem de ocupação mais recente e terem distinções sócio-espacias em relação às comunidades onde estão localizados (respectivamente Vila Pinheiro e Marcílio Dias). 160

metodologia aplicada aos dados de 1996, que excluíam alguns conjuntos79 localizados na área da Maré, que não foram considerados como ‘parte’ desta. Já no último Censo, estes conjuntos passaram a constar no cômputo geral de habitantes. De fato, as diversas comunidades que formam a Maré estão longe de ser um conjunto homogêneo. As diferenças entre si são muitas: em indicadores sócio-econômicos; história de ocupação; tipo de ocupação; características espaciais… Vamos apresentar alguns exemplos. Enquanto a maior parte da Maré é plana, o Timbáu se localiza num morro. Outras diferenças espaciais também podem ser notadas no traçado das ruas de algumas comunidades, que variam a partir da forma como se deu a ocupação (mais ‘ordenado’, mais linear como o Parque União). Este pode ser mais alinhado ou não (ver mapa anexo). As diferenças também se dão nas formas de moradia, com comunidades compostas por prédios, como o conjunto Esperança e um outro conjunto menor, o Manuel da Nóbrega, construído em 1969 pela Cohab. O pertencimento do Manuel da Nóbrega à Maré é tema de controvérsia entre os moradores do conjunto e até pelos seus vizinhos do morro do Timbáu e da Baixa do Sapateiro80. Existem moradores do conjunto que se referem à este como sendo localizado em Bonsucesso, um dos bairros no entorno da Maré, ao qual a Maré fez parte. Isso nos leva à uma questão que abordamos no capítulo I: como às vezes os próprios moradores internalizam os estigmas sobre favelados e, também pelos preconceitos que sofrem (ao procurar emprego por exemplo), não é tão raro alguém que more na Maré se referir ao seu endereço como pertencente à Bonsucesso. As lideranças comunitárias também podem variar seu discurso em nome da Maré ou de sua comunidade dependendo dos interesses em jogo. Uma mesma liderança pode falar apenas em nome da sua comunidade, no caso de uma obra ou projeto que não irá abranger toda a área da Maré, se restringindo a uma comunidade apenas, fazendo com que estas lideranças disputem entre si o possível benefício. Mas igualmente pode falar em nome da Maré como um conjunto, pelo caso de um projeto que envolva a área como um todo (o que ocorreu em algumas ocasiões,

79

Não foram computados no Censo 1996 as comunidades Vila Pinheiros, Vila do João, Marcílio Dias, Conjunto

Esperança, Salsa e Merengue, Conjunto Pinheiros, Nova Maré, Bento Ribeiro Dantas, e Mandacarú. 80

“Fronteiras na vizinhança” (sítio eletrônico Viva Favela: www.vivafavela.org.br, 28/03/2002) 161

como no caso do Projeto Rio) ou ainda, se vir que o status de maior favela (só possível considerando todas como um único conjunto) é um trunfo que estas comunidades possuem. Há também distinções por parte de seis comunidades, as primeiras da Maré, que são o morro do Timbáu, Baixa do Sapateiro, Parque Maré, Rubens Vaz, Parque União, e Nova Holanda. Embora esta distinção seja mais sentida por moradores mais antigos, particularmente aqueles que participaram do movimento comunitário e que acabaram gerando uma ‘memória comum’ de luta destas comunidades, chamando-as de ‘Éramos Seis’. Estas seis enfrentaram décadas de luta e surgiram pelo esforço de seus próprios moradores, à exceção da Nova Holanda, que surgiu a partir do Estado mas que mesmo assim, compartilhou com as outras o abandono deste e a precariedade da oferta de serviços públicos. As outras 11 comunidades que compõem a Maré surgiram ou a partir de intervenções do governo na década de 1980 e 1990, que construíram algumas delas, ou foram incorporadas (administrativamente) à Maré quando da criação da XXX Região Administrativa. No caso das comunidades surgidas pela intervenção do Estado, ainda que estas tenham enfrentado muitos obstáculos, não passaram pelas mesma lutas que as ‘seis históricas’ travaram como, no mínimo, pelo direito de existir resistindo às remoções. São percebidas ainda distinções econômicas por parte dos moradores do morro do Timbáu e principalmente do Parque União, que se consideram, segundo um morador de outra comunidade, a “Zona Sul da Maré”. Há também distinções entre comunidades que reúnem um maior número de moradores negros (principalmente aquelas oriundas de assentamentos feitos pelo Estado) e outras com maior número de nordestinos. Também entre o tamanho das populações de cada comunidade, algumas possuindo mais de 15 000 moradores, outras não passam de 2000, ou a Mandacarú que não chega a 500 (Censo Maré 2000 ) Este pertencimento à Maré também vem sendo abalado pela guerra de facções do tráfico, que controlam diferentes comunidades da Maré, motivo ao qual ocorrem constantes tiroteios nas vias expressas (Linha Vermelha e Linha Amarela), e que constituem um sério obstáculo ao relacionamento entre moradores de comunidades diferentes81, já que moradores de comunidades ‘rivais’ não podem cruzar as fronteiras impostas pelo tráfico. Estas ‘fronteiras’ chegam mesmo a dificultar o alcance de algumas ações, como a Vila Olímpica. Vale-se registrar que algumas

81

“Famílias são separadas pelo tráfico na Maré” (O Globo, 18/05/2003). 162

ações conseguem transpor estas barreiras, como o Ceasm, que construiu sedes em comunidades dominadas por facções rivais. Enfim, por tudo isso à que nos referimos, o que queremos deixar claro é que quando falamos sobre a Maré, estamos falando de realidades bem distintas. Embora a Maré seja considerada uma unidade pela imprensa; administrativamente; no discurso de políticos e autoridades; e mesmo por parte de algumas lideranças comunitárias e ONGs, esta sentimento de unidade ainda não é compartilhado igualmente por todos os moradores.82 Um dos motivos que nos levou a escolher a Maré como um estudo de caso é pelo fato de suas comunidades serem um registro ‘vivo’ dos diversos programas voltados para a favela executados por sucessivos governos. Vamos apresentar alguns exemplo: o período remocionista de Lacerda, construiu a Nova Holanda como centro de habitação provisória para triagem de removidos de outras favelas; a Vila do João foi construída pelo governo militar no início dos anos 1980 como parte de um grande programa habitacional que o governo quis promover; os conjuntos construídos mais recentemente pelo poder público, absorvendo populações vindas das palafitas ou mesmo de outras comunidades fora da área da Maré. Cada uma destas comunidades possui traços que revelam um determinado momento da relação do Estado com as favelas; da expansão da cidade e a partir desta, da trajetória da população favelada do Rio a partir da década de 1940. Assim, temos na Maré desde comunidades que se formaram com a instalação de diversas indústrias na Zona Norte do Rio, ainda nos anos 1940, e pelo desenvolvimento que isto trouxe à região; até as últimas, que foram construídas pela Prefeitura do Rio para abrigar removidos de outras favelas (estas inclusive são as mais pobres da Maré, como veremos adiante). Assim, estudar a história da Maré é compreender a história das favelas do Rio a partir de meados do século XX, e particularmente as mudanças das décadas de 1980 e 1990, com uma maior entrada do Estado nas favelas e a redefinição dos movimentos comunitários (temas que vimos no capítulo II). As mudanças nas relações do Estado com as favelas ocorridas nas décadas 82

Muito utilizado também é o termo ‘complexo’ para se referir à áreas que englobam várias favelas, como é o caso

da Maré, Alemão entre outros. Segundo Alvito (2001), isto deriva diretamente de uma linguagem policial, acostumada aos complexos penitenciários (Complexo Penitenciário de Bangu ou da Frei Caneca), que transferiram diretamente esta linguagem às favelas. De fato, ela raramente é utilizada pelos moradores ou pelos líderes comunitários, motivo ao qual decidimos não utilizarmos o termo ‘complexo’ aqui, referindo-se apenas à ‘Maré’. 163

de 1980 e 1990 foram muita intensas na Maré. Uma das maiores provas disto é a erradicação das palafitas, tão simbólicas de sua miséria, com suas populações transferidas para construções com melhores condições de vida e que se localizavam próximas às suas antigas moradias. O medo da erradicação da favela foi reduzido com a criação da XXX Região Administrativa da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, em 1988, que reconhece a Maré como ‘bairro’ e parte integrante da cidade. Diversos programas e ações do Estado (prefeitura, governo estadual, e governo federal) trouxeram melhorias significativas à sua população. No entanto, estas melhorias não atingiram igualmente todas as comunidades, (ou mesmo determinadas partes destas), como demostram as grandes diferenças sócio-econômicas que existe entre as comunidades da Maré Como dissemos, o caso da Maré também nos permite uma investigação mais apurada das redefinições dos papéis do movimento comunitário a partir das últimas duas décadas do século XX (como vimos no capítulo II), quando o Estado, antes tido como ausente, aumenta sua atuação na Maré e redimensiona a atuação de antigos atores sociais. Os governos passaram a absorver entre seus quadros pessoas da comunidade para realizar a mediação entre Estado e comunidade; as associações de moradores, que no passado assumiam uma postura mais ‘combativas’ modificaram sua postura para colaboração, se encarregando de diversas atribuições do Estado e como executora local em diversas ações deste; as associações também assistem a emergência de novos atores na favela, como as ONGs. Em meio a todo este processo, muitas das lideranças que no passado estiveram à frente das associações de moradores estão hoje à frente de algumas destas ONGs, como é o caso do Ceasm. Estas lideranças acham que militar numa ONG é uma forma de ter uma atuação autônoma em relação ao Estado, por julgarem que as associações estão presas à demandas muito específicas. Outras formam ONGs para obter recursos do Estado ou de outras ONGs, visando implementar projetos para a Maré. Dividimos este capítulo em duas partes. Na primeira, apresentaremos uma breve história da Maré em meio a um contexto mais geral da história das intervenções do Estado em favelas. Tentaremos não repetir o que já foi dito no capítulo anterior, só fazendo referências mais gerais quando for indispensável para compreensão do texto. Este histórico servirá para mostrar o contraste entre a Maré dos primeiros anos de sua existência e a Maré do início do século XXI, e

164

quais foram as mudanças ocorridas e que lutas foram travadas por estas populações para terem direito a se fixarem no local.83 Na segunda parte nos deteremos especificamente sobre as transformações que sofreu o movimento comunitário a partir de todas estas mudanças ocorridas. Para isso, entre outras fontes, priorizamos a utilização de depoimentos de lideranças comunitárias da Maré que participaram das associações de moradores e hoje estão à frente de algumas das principais ONGs e projetos da Maré. Entendemos que é fundamental dar voz aos protagonistas destas mudanças e sabermos como eles vêem este processo.

*

*

*

A industrialização do Brasil na segunda metade do século XX, e a urbanização vinda disto, teve como conseqüência um intenso fluxo migratório, principalmente de nordestinos, para o Sudeste durante as décadas de 1940 à 1960. Datam desta época os primeiros barracos na área onde hoje se localiza a Maré. Os terrenos eram morros, encostas, pântanos e mangues, portanto, sem interesse à especulação imobiliária. A propriedade destes terrenos ou era de origem duvidosa ou pertencentes à União e demais órgãos do Estado. A localização próxima do Centro do Rio, de várias áreas industriais e ao lado de uma grande via, a avenida Brasil, tornou a área da Maré ideal para que estes migrantes erguessem suas moradias. O grande volume de obras em torno da região foi outro atrativo devido a grande oferta de emprego. Consta na memória local que primeira ocupante foi dona Orosina, que após descobrir o local em um passeio, construiu uma casa próxima à praia, utilizando materiais trazidos pela maré. Outras pessoas viram o barraco e construíram suas casas também. Formava-se, a partir destes pioneiros, a primeira comunidade da Maré, o morro do Timbáu84 em meados da década de 1940. 83

As informações referentes à história da Maré que apresentaremos a seguir foram retiradas de Nunes (1980),

particularmente algumas informações referentes ao Projeto Rio; de Vaz (1994) e do sítio eletrônico do Ceasm (www.ceasm.org.br). 84

Fizemos o sublinhado para destacar o contexto histórico do surgimento de cada uma das 17 comunidades da Maré,

ordenando-as cronologicamente. 165

Ainda no ano de 1946, ocorreu a inauguração da avenida Brasil, cuja construção foi feita pela Prefeitura do Distrito Federal (iniciada por Henrique Dodsworth), ligando o Centro às áreas mais remotas da cidade e às rodovias para outros estados. A construção da avenida foi um grande atrativo para área por três motivos: muitos dos que trabalhavam em sua construção acabaram se instalando no local; o crescimento das indústrias em seu eixo, que tinham seu acesso facilitado pela nova via, atraía muitos trabalhadores, que assim se localizariam próximos aos seus empregos; e por último, a via também serviu para facilitar o próprio acesso às áreas da Maré por novos moradores e para os materiais necessários à construção de barracos. A falta d’água nas comunidades demostra a forma como a ocupação se deu de maneira desordenada e ‘irregular’. E que desde o começo era notado e combatido pelas autoridades: “Cerca de 2000 pessoas ficarão desabrigadas (…) Prefeitura ameaça demolir 800 barracões. Há quase dois anos construídos por operários, em terrenos existentes no lugar denominado ‘Favelinha do Mangue de Bonsucesso’ (…) Comissão85 faz veemente apelo ao prefeito Ângelo Mendes de Moraes.”(O Globo, 26/11/1947 apud Vaz, 1994). A matéria trata da comunidade da Baixa do Sapateiro, construída em continuação aos loteamentos de Bonsucesso e à ocupação do morro do Timbáu. É na Baixa do Sapateiro que na década de 1950, devido à sua expansão sobre o mangue e a baía, surgirão as famosas palafitas. Como forma de resistir à persistente idéia de remoção, e também para lutar por melhorias na comunidade, em 1957 surgia a União de Defesa e Melhoramentos do Parque Proletário da Baixa do Sapateiro, uma das primeiras associações de moradores de favelas do Rio de Janeiro. Outra obra que atraiu pessoas para se fixarem na região foi a construção da Cidade Universitária, de 1949 a 1952, cuja obra consistia no aterro de diversas ilhas nas margens em frente à área da Maré. As desapropriações dos pescadores destas ilhas fizeram com que estes se juntassem aos muitos dos trabalhadores desta obras se instalando nas comunidades da Baixa do Sapateiro e Timbáu. A Baixa do Sapateiro prosseguia sua expansão e dava origem à comunidade do Parque Maré, que também avançou sobre a Baía de Guanabara com suas palafitas. Elas eram a forma de moradia predominante no Parque Maré, que expandia-se através de aterros feitos por seus moradores e que deu nome (e fama) à região. 85

Esta comissão é a Comissão Interministerial que vimos no capítulo II. 166

Em 1951, surgia mais uma comunidade, o Parque Rubens Vaz, inicialmente chamada de Areal. Nesta comunidade surgiu uma liderança, João Araújo, que passou a organizar a ocupação, e a dar o nome ao local. Em 1958, com o crescimento da comunidade e as constantes ameaças da polícia, o advogado Magarinos Torres Filho passou a defender o local, que mais tarde iria se chamar Bairro Desembargador Magarinos Torres (como vimos no capítulo II). Em 1965, tentando conquistar simpatia junto ao governo Lacerda, o local é rebatizado com o nome de Parque Rubens Vaz, em homenagem ao militar morto no atentado feito contra Lacerda na rua Toneleros em 1954.86 A partir do seu escritório no Bairro Magarinos Torres, em 1959, Magarinos coordena a invasão do local onde se construirá o Parque União, loteando os terrenos e cobrando uma taxa dos moradores que serviria para seus honorários e para investir em benfeitorias na comunidade. O Parque União se diferencia das outras comunidades, pois conta com um sistema de arruamento mais planejado, por Magarinos coordenar firmemente o traçado das ruas e as áreas das casas. Magarinos, que administrou a área até o início da década de 1960, lutava ao mesmo tempo contra as tentativas de remoção e para manter a comunidade livre de “maus elementos”, proibindo jogos e prostituição no local. Embora o Parque União registre diferenças na maneira como foi construído (que gera até hoje um sentimento de distinção em relação ao resto da Maré), esta comunidade sofreu como as outras as tentativas de remoção e o mesmo abandono por parte do Estado. No governo Lacerda, diversos aterros foram feitos para abrigar novas áreas industriais à beira da avenida Brasil, bem como o Mercado São Sebastião na Penha, tendo sido removidas algumas favelas para isso. Mesmo assim, a oferta de emprego daí surgida acabou servindo para impulsionar a vinda de novos moradores para a Maré. A marca das primeiras décadas da Maré é a auto-construção por parte dos moradores não só de suas casas, mas de suas próprias comunidades, realizando obras em esquema de mutirão nos espaços comuns destas. As dificuldades com o terreno também eram superadas 86

O acréscimo do nome ‘parque’ que existe em muitas favelas parece ser uma tentativa destas em dar um caráter

oficial ao lugar, derivando direto da experiência dos parques proletários. Segundo Alvito (2001), aparentemente foi o que aconteceu em Parque Acari. No caso da Rubens Vaz, vale notar que estamos em meio a ‘era do remocionismo’ (que tratamos no capítulo II), que deve ter pesado na escolha da homenagem por parte dos moradores como meio de evitar a remoção. 167

coletivamente, com estes moradores aterrando as áreas alagadiças, buscando entulho em construções (em que muitos destes moradores trabalhavam) ou utilizando carvão buscado no Gasômetro da Companhia Estadual de Gás, no início da avenida Brasil, poucos quilômetros em direção ao Centro da cidade. Além dos aterros, os moradores destas comunidades tomaram outras iniciativas para obter condições mínimas de moradia, como os ‘gatos’, a água buscada em barris do outro lado da Av. Brasil ou através de pequenas bicas clandestinas, que eram puxadas de ramais paralelos à avenida. O esgoto foi sendo construído pelos próprios moradores e despejados por ligações clandestinas nas poucas galerias construídas pelo governador Carlos Lacerda. A maré, quando enchia, trazia cobras para dentro das casas e cobria de lama a superfície das comunidades, nas áreas próximas à baía. A política de remoção de favelas no governo Carlos Lacerda deu origem a mais uma comunidade na Maré, a Nova Holanda, construída em 1961, inicialmente como um Centro de Habitação Provisória, para triagem das populações vindas de favelas removidas. O controle desta transferência e a administração da comunidade ficaram à cargo da Fundação Leão XIII. Caberia à esta ‘preparar’ os moradores para morarem nos novos locais urbanizados, sendo para isso necessário ensiná-los noções de higiene e educação. Por se tratar de uma ‘habitação provisória’, não se permitiam intervenções físicas nas casas ou na comunidade, mesmo com a precariedade das construções (que afinal eram provisórias). A chegada de mais removidos na década de 1970, o desgaste natural das casas, a queda no abastecimento de água (que foi utilizado também pelo vizinho Parque Maré que não contava com rede própria) tornaram a Nova Holanda, que já não era ‘provisória’, semelhante às demais comunidades da Maré, enfrentando as mesmas dificuldades e abandono que estas. A ocupação desordenada da região, com os problemas sociais que isto acarreta; e a crescente poluição da Baía de Guanabara, em grande parte atribuída às insalubres condições das comunidades nas margens da Baía, (como a Maré) deram origem à diversos projetos de intervenção estatal na região, muitos dos quais não chegaram a se concretizar. Um destes projetos foi o Cais de Saneamento, de Carlos Lacerda, dentro do conjunto de obras de embelezamento e viárias que este realizou na Guanabara. O projeto consistia num cais de pedra em toda orla do Caju até o Rio Meriti, na Penha, incluindo também a construção de uma via paralela à avenida Brasil, para desafogar o trânsito saturado desta última, sendo necessário para esta obra a remoção de grande parte das comunidade da área. 168

Outro projeto foi do governador Chagas Freitas, prevendo igualmente a construção da nova via, e também o alargamento do canal entre a área e a Ilha do Fundão. O projeto de Chagas Freitas também incluía a remoção das palafitas, mas em menor número que o projeto anterior de Lacerda. Este projeto chegava mesmo a propor a manutenção de algumas comunidades e sua urbanização, dando ênfase na instalação de indústrias e de um terminal pesqueiro, apenas impondo ‘limites’ físicos à expansão das favelas da Maré. Em 1979, o governo federal anunciou a intenção de urbanizar a área entre o Caju e Ramos. No entanto, algumas matérias em jornais anunciavam planos do governo federal de duplicar a avenida Brasil, que envolveria planos de remoção de algumas favelas da área da Maré. Os temores por parte dos moradores eram agravados por sair na imprensa com certa freqüência, durante o primeiro semestre de 1979, matérias dando ênfase à pobreza da Maré, e da intenção do governo em urbanizar a área, no caso com a remoção das favelas da Maré (Nunes, 1980), que seria o Projeto Rio. O projeto fazia parte do Programa de Erradicação da Sub-habitação (Promorar), o último programa do governo militar em relação às favelas, implementado em âmbito nacional pelo BNH. O Projeto Rio consistiria na intervenção da margem da Baía de Guanabara do Caju até o município de Duque de Caxias, fazendo a recuperação ecológica e paisagística da região e o ordenamento dos espaços de moradia das populações de baixa renda. Como forma de organizar a resistência à remoção, as associações de moradores se reuniram e formaram a Codefam (Comissão de Defesa das Favelas da Maré). A Codefam se articulava com à Faferj ‘oficial’, com relações com os políticos chaguista (como vimos no capítulo II), e prova maior disso, foi o convite para a cerimônia de posse da Codefam da ex-secretária de serviços sociais de Negrão de Lima e diretora da Codesco no governo Chagas Freitas, Hortênsia Dunshee de Abranches, que acabou por se tornar assessora da Codefam. As informações sobre os planos do Estado era de que este manteria apenas as casas que fossem de alvenaria, urbanizando estes locais e aterrando as áreas das palafitas, cujos moradores seriam transferidos para outros conjuntos, transformando estas áreas em parques. As palafitas da área da Maré se concentravam principalmente na Baixa do Sapateiro e no Parque Maré. Pelo levantamento feito pelo Projeto Rio, um terço dos habitantes das comunidades da Maré viviam nelas. 169

As palafitas eram em geral barracos com um cômodo apenas, sem condições mínimas de higiene, erguidos no mangue e na lama. O trânsitos entre elas era em cima de tábuas, sendo comum a queda de pessoas das pontes, principalmente crianças. As doenças derivadas destas condições, como hanseníase, hepatite e tuberculose, e a proliferação de ratos resultavam num terrível quadro epidemiológico. Os chiqueiros mantidos por alguns moradores e a poluição da área tornavam o ar irrespirável, principalmente em dias quentes. Todo este quadro tornava a vida nas palafitas um inferno, que foi tão bem retratado na música Alagados, do conjunto Paralamas do Sucesso. A Codefam reivindicavam a permanência de todos os moradores. Deve se considerar que havia uma certa desconfiança (justificada) por parte dos moradores a qualquer plano que envolvesse a transferência das pessoas de suas casas, ainda mais uma transferência que envolvia uma grande número de pessoas. A remoção gerou temor não só nos moradores das palafitas, mas aos demais moradores da Maré. A organização dos moradores foi fundamental como maneira de garantir a transferências dos removidos das palafitas para novas casas, no que desempenhou papel importante a Associação de Moradores do Parque Maré, uma das comunidades com mais removidos (Vaz, 1994). Após uma grande mobilização, que envolveu diversas reuniões com órgãos do governo federal, a Maré recebeu a visita de Mario Andreazza, ministro do Interior (ao qual se vinculavam o BNH e o Departamento Nacional de Obras Sociais, órgãos responsáveis pelo Projeto Rio) que garantiu que as reivindicações dos moradores da Maré seriam atendidas: que nenhum morador seria transferido da área da Maré, todas as comunidades teriam instaladas escolas e postos médicos; e que seriam concedidos títulos de posse à todos os moradores da área. Num último ato, demostrando suas boas intenções em relação à Maré, Mario Andreazza pediu e assinou sua filiação à Codefam (Nunes, 1980). Um dos motivos para o atendimento das reivindicações dos moradores por parte do Estado, particularmente por Andreazza, é a campanha deste à sucessão de Figueiredo, que contava com uma imagem de ‘tocador de obras’ à frente do ministério, tendo feito a Ponte RioNiterói e Transamazônica, entre outras grandes obras. O Projeto Rio também foi uma forma da Ditadura minimizar o desgaste de sua imagem, abalada pelos fatores que falamos no capítulo II. O episódio demostrou que o remocionismo só poderia ser implementado com um grande 170

desgaste (e tensão) por parte do governo, tornando-se algo arriscado para um regime que já não contava com amplo apoio por parte da população. Enfim houve a remoção das palafitas, sendo seus moradores transferidos para os novos conjuntos construídos pelo projeto (entre parênteses a data de inauguração de cada conjunto): o Conjunto Esperança (1982), com 35 edifícios (1400 unidades habitacionais); a Vila do João (1982), batizada em homenagem ao Presidente João Figueiredo, conjunto de 2600 casas; e a Vila do Pinheiro (1983), com 2300 casas Outras realizações do Projeto Rio seriam: a regularização da propriedade dos terrenos (nunca concluída); a urbanização da área seca do Timbáu até o Parque União, alinhando ruas, instalando rede de água e esgoto, e ampliando a rede elétrica; a instalação de creches e escolas; facilidades para reforma nas unidade habitacionais. Ainda em 1989, seria entregue o último dos conjuntos feito pelo Projeto Rio: o Conjunto Pinheiros. Num momento posterior, a principal reivindicação da Codefam, passou a ser o término das obras, pois os moradores já temiam ver frustrados os planos de melhorias da área. O temor tinha fundamento: em 1985, o ministério do Interior tinha dado por encerrado a urbanização (aquém do planejado) e dos 12 000 títulos de posse prometidos, apenas 4889 foram entregues. A Codefam organizou diversas manifestações, na sede da Caixa Econômica Federal por exemplo, e conseguiu dar continuidade às obras de saneamento, que acabaram ficando à cargo da Cedae. Em 1990, a Cedae deu as obras por encerradas, tendo implantado 98% do abastecimento de água, 99% do sistema de esgotos, 98% do sistema de drenagem, e 84% de pavimentação e urbanização previstos no projeto inicial. Outra conquista dos moradores da Maré para verem garantida sua permanência no local foi a criação da XXX Região Administrativa, em agosto de 1988, abrangendo as seis comunidades originais da Maré, mais as criadas no Projeto Rio, e também incorporando comunidades já existentes há algumas décadas, mas que não faziam parte da Maré, que são (com a data de surgimento destas entre parênteses): Marcílio Dias (1948); Roquete Pinto (1955); e Praia de Ramos (ex-Maria Angu, em 1962). Com a criação da XXX Região Administrativa, a Maré passou a ser considerada o maior conjunto de favelas da América Latina e/ou reconhecida como uma área de bairros populares. A construção da via paralela à avenida Brasil, idéia presente em todos os projetos de intervenção na área da Maré e prevista também no Plano Doxiadis (ver capítulo II), foi 171

concretizada na Linha Vermelha, construída em 1992. A via expressa impôs os limites físicos da Maré, com a avenida Brasil de um lado e a Linha Vermelha do outro. O projeto também causou forte impacto ambiental na área, reduzindo o Canal do Cunha (entre a Maré e o Fundão) a uma estreita faixa de 100 metros extremamente poluída. O medo da remoção, sempre presente nos projetos anteriores de construção da via, causou nova mobilização por parte dos moradores, mas já em novos moldes. A relação entre o governo do estado (Leonel Brizola, na época), e as associações já não eram de enfrentamento (o que tratamos no capítulo II). De qualquer maneira, entre outros ‘favorecimentos’ obtidos pelas associações, foi construída uma área de lazer, o Parque Burle Marx, para a população da Maré. Não pode ser desconsiderado uma conquista indireta que foi a maior visibilidade que a via expressa deu a Maré, sendo vista de perto pelos que passam por ela. Uma conseqüência indireta se deve aos conflitos causados pelo tráfico que interrompem o trânsito na Linha Vermelha, deixando a sensação de que é preciso ‘fazer alguma coisa’ em relação à estas comunidades, para o bem ou para o mal87. Em 1992 seria inaugurado o grande conjunto de edifícios chamado Bento Ribeiro Dantas Em 1996, a prefeitura adquire da Caixa Econômica Federal as áreas não utilizadas no Projeto Rio, que passam a ser destinadas à novos assentamentos para populações removidas de outras favelas da área da Maré (como algumas palafitas da Roquete Pinto) além de outras favelas no município do Rio de Janeiro. Foram construídos dois novos conjuntos, o Nova Maré, inaugurado em 1996, e o Novo Pinheiro (ou Salsa e Merengue, como passou a ser chamado) inaugurado em 2000, extinguindo finalmente as palafitas na área da Maré. Por tudo que vimos até aqui, podemos afirmar que a história da Maré se relaciona a história da expansão do Rio de Janeiro e da relação do Estado com suas classes pobres. Podemos notar nesta história um paradoxo: mesmo nas décadas que o Estado se fez ausente dentro destas comunidades, estas surgiram ou cresceram justamente a partir das ações deste mesmo Estado, como a avenida Brasil; a Cidade Universitária; e os aterros industriais de Lacerda. Por causa dos 87

No dia 18/12/2002, o Editorial do Jornal do Brasil, intitulado “Vergonha”, exigia providências às autoridades

quanto aos sucessivos episódios de interrupção do trânsito na Linha Vermelha. O Editorial apresenta algumas generalizações, como por exemplo, logo no início do texto diz: “Já ultrapassa todos os limites da compreensão o atrevimento da população marginalizada, que ontem, mais uma vez, fechou a Linha Vermelha a pretexto da realização de um protesto de moradores.”. É contra este tipo de generalização, como vimos, é o que os favelados, sobre os quais recaem sempre os estigmas de ‘classes perigosas’, têm de lutar constantemente. 172

empregos que estas obras geravam, atraindo assim novos moradores; ou ainda, como conseqüência das remoções que causavam, sendo a Maré uma alternativa de se instalarem próximo ao local onde moravam (como os removidos de algumas favelas dos aterros feitos na Penha ou da Ilha do Fundão. A última grande intervenção do Estado na Maré no século XX (e bem significativa desta nova forma de atuação do Estado, pois envolve também as ONGs) é a Vila Olímpica da Maré. A construção da Vila Olímpica da Maré é um antigo desejo dos moradores, já existindo quando, durante a campanha para a cidade do Rio de Janeiro sediar as Olimpíadas em 2004, uma das preocupações do Comitê Rio 2004 à respeito da visita dos membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) ao Rio, era que estes teriam que, ao saírem do Aeroporto, passar pela Linha Vermelha e pela Maré. A passagem por uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, com recorrentes notícias sobre tiroteios que por vezes interrompem o tráfego na via expressa, deixou os organizadores da visita do COI receosos com a possibilidade de algum incidente. Refutando isto, o Viva Rio88 procurou as associações de moradores da Maré e sugeriu como resposta que os moradores fizessem uma manifestação de apoio à campanha Rio 2004. Então, durante a passagem da comitiva na Linha Vermelha em novembro de 1996, ocorreu a Pré-Olimpiáda da Maré, e centenas de crianças saudaram o COI com bandeiras às margens da via. A partir daí, cresceu a idéia da construção da Vila Olímpica da Maré. Ainda em novembro de 1996, foi firmado um protocolo de intenções entre a Prefeitura do Rio de Janeiro, a ONG Viva Rio e a Unimar (União das Associações de Moradores da Maré) para criação de uma sociedade civil sem fins lucrativos que iria administrar a vila: a União Esportiva Vila Olímpica da Maré, que tem em seu conselho a presença de diversos segmentos da sociedade (prefeitura, comunidade, empresas). A construção da vila ficou a cargo da Prefeitura, do Instituto Nacional do Desporto (Indesp) do Ministério do Turismo e dos Esportes e foi inaugurada em 2000. A União Esportiva Vila Olímpica da Maré é presidida por Amaro Domingues, ex-presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda e da Unimar, e recebe financiamento de diversas empresas, como a

88

Fundado em 1993, o Viva Rio é uma ONG coordenada pelo antropólogo Rubem César Fernandes, com atuação

em mais de 350 comunidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, buscando parcerias locais com diversos setores da sociedade para campanhas e projetos sociais voltados sobretudo para os jovens destas comunidades. Ver www.vivario.org.br 173

Petrobrás, por exemplo. Segundo dados da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer89, a Vila Olímpica da Maré ocupa uma área de 80.000 m2, possuindo 12.000 alunos inscritos em 18 atividades educacionais e esportivas A Vila Olímpica da Maré se insere nas atuais prerrogativas que orientam a intervenção do Estado visando combater ao tráfico de drogas através de ações de caráter mais social, com projetos que auxiliem os jovens da ‘área de risco’ (jovens com risco de entrar no tráfico), sendo necessário que o Estado ofereça alguma alternativa à estes jovens. Não à toa que o maior alvo das ações de ONGs são jovens de comunidade carentes, segundo dados da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong)90, gerando grande volume de projetos em comunidades, como a Maré, o que vamos tratar mais especificamente na próxima parte. Infelizmente, da parte do Estado estes projetos ainda são raros, ou não são priorizados, como demostra a construção do Batalhão da Polícia Militar da Maré em área aonde estava planejada a expansão da Vila Olímpica, que causou grande polêmica e muitos protestos da comunidade. A maior intervenção do Estado nas décadas de 1980 e 1990 deu origem às novas comunidades, os conjuntos, inicialmente para abrigar removidos da própria área da Maré, que viviam nas palafitas, e posteriormente, os que também serviram como área de assentamento da prefeitura para removidos de áreas de risco das diversas favelas da cidade. Esta intervenção tornou a Maré do começo do século XXI uma região composta por diversas realidades, conforme mostra o Censo Maré 2000. A diversidade dos dados entre as comunidades nos mostra que a Maré hoje é bastante complexa: o índice de habitantes por domicílio (tabela 1) varia dos (2,90) da Roquete Pinto aos (4,50) da Nova Maré. Quando se verifica a porcentagem entre crianças de 7 a 14 anos fora da escola (tabela 2), se vê novamente a disparidade entre os números da Roquete Pinto, que possui apenas (1,7%) de crianças nesta condição, e a Nova Maré (16,5%). Nos dados em relação ao trabalho infantil (porcentagem de crianças de 7 a 14 anos envolvidas em atividades de trabalho - tabela 3), o posto de pior índice novamente cabe à Nova Maré (3,08%) e o melhor à Roquete Pinto (0,4%). 89

Ver sítio eletrônico da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer do Rio de Janeiro: www.rio.rj.gov.br/smel/

90

52% das ONGs são voltadas para as populações urbanas, sendo que das populações beneficiárias de suas ações,

(admitindo-se múltiplas respostas, ou seja, o atendimento à mais de uma dessas faixas etárias) 60% são crianças e adolescentes. 174

Os dados demostram a complexidade existente ao falarmos da Maré, com grandes disparidades entre uma e outra comunidade. Devemos lembrar que a Nova Maré foi construída recentemente, e através de ação estatal (no caso a prefeitura). O que se pode concluir destes dados, é que se muito já foi feito na Maré nos últimos anos, os indicadores da Nova Maré mostram que há muito o que fazer ainda para a superar a pobreza destas comunidades.

175

Tabela 1: Média de hab / domicílio por Comunidade

Comunidade

Hab/ domicílios

% da pop. Da Maré

01

Nova Maré

4,5

2,4

02

Salsa e Merengue

3,94

4,0

03

Bento R. Dantas

3,9

1,7

04

Nova Holanda

3,81

8,6

05

Marcílo Dias

3,8

5,4

06

Vila Pinheiros

3,6

11,7

07

Conjunto Pinheiros

3,58

3,6

08

Vila do João

3,55

8,0

09

Praia de Ramos

3,52

3,62

10

Baixa do Sapateiro

3,47

8,7

11

Mandacaru

3.44

0,32

12

Conjunto Esperança

3,4

4,3

13

Parque Maré

3,35

11,65

14

Morro do Timbáu

3,2

4,6

15

Rubens Vaz

3,1

6,0

16

Parque União

3,0

13,5

17

Roquete Pinto

2,9

1,9

Total

100,0

Fonte: Censo CEASM – 2000

176

Tabela 2 – Crianças de 7 a 14 anos fora da Escola nas 17 Comunidades da Maré – 2000

Ranking

Comunidade

% na comunidade

01

Nova Maré

16,5

02

Salsa e Merengue

11,4

03

Vila do João

9,2

04

Mandacaru

8,8

05

Vila Pinheiros

7,2

06

Parque Maré

7,1

07

Nova Holanda

6,4

08

Morro do Timbáu

5,7

09

Bento Ribeiro Dantas

5,5

10

Conjunto Esperança

5,0

11

Baixa do Sapateiro

4,5

12

Parque União

4,5

13

Marcílio Dias

4,2

14

Rubens Vaz

3,7

15

Conjunto Pinheiros

3,6

16

Praia de Ramos

2,5

17

Roquete Pinto

1,7

Média Bairro da Maré Fonte: Censo CEASM – 2000

6,4

177

Tabela 3: Crianças de 7 a 14 anos em atividades de trabalho na Maré

Ranking

Comunidade

% na comunidade

01

Nova Maré

3,08

02

Salsa e Merengue

2,96

03

Vila do João

2,66

04

Marcílio Dias

2.2

05

Conjunto Pinheiros

2,09

06

Bento Ribeiro Dantas

2,08

07

Vila Pinheiros

1,94

09

Nova Holanda

1,86

10

Parque Maré

1,77

11

Parque União

1,1

12

Morro do Timbáu

1,04

13

Rubens Vaz

1,4

14

Mandacaru

1,2

15

Parque União

1,1

16

Conjunto Esperança

1,0

17

Roquete Pinto

0,4

Bairro da Maré Fonte: Censo CEASM – 2000

2,0

178

*

*

*

O que se pode constatar sobre a presença do Estado na Maré, dos primeiros barracos na década de 1940 até os anos 1980-1990, décadas de enorme inversão de recursos nas comunidades da Maré, é que esta maior presença transformou a comunidade em diversos aspectos. Tais como a vida de seus moradores, a paisagem do local (e da cidade) e as relações entre o Estado e a comunidade. Nos primeiros anos, a luta da comunidade era por uma maior presença do Estado, reivindicando benfeitorias já estendidas às outras partes da cidade. Enquanto que a política do Estado se limitava à projetos que levassem à remoção dos moradores. Em maior ou menor grau, todos os projetos até a década de 1980 traziam o remocionismo anexo às demais políticas. As associações de moradores muitas vezes entravam em conflito com o Estado, que queria remover suas comunidades ou deixava de realizar as melhorias prometidas. A marca da fundação de muitas destas associações é baseada na luta para suprir esta ausência do Estado ou para garantir a permanência da comunidade no local. Como vimos no capítulo II, as mudanças das relações do Estado com as comunidades, e com as associações de moradores redefiniram o papel que cabia à cada um anteriormente. Antes, as associações assumiam um caráter mais ‘combativo’. Eram elas que mobilizavam e organizavam os moradores para se fixarem no local, seja organizando as ocupações, ou à frente das obras de urbanização do local, ou ainda organizando a resistência à remoção. Ainda que este caráter militante não possa ser tomado como regra, visto que as relações clientelistas com o Estado por parte de algumas associações são de longa data, como no caso do Parque Maré com políticos chaguistas (Nunes, 1980), não sendo portanto este caráter ‘militante’ comum à todas as associações das comunidades que compõem a Maré, ou que tenha sido constante no decorrer do tempo, afinal, as associações são um espaço de disputa política, houve de fato uma mudança, principalmente no grau em que o clientelismo ocorre. Nas décadas de 1980 e 1990 parece não existir mais espaço para uma atuação mais militante à frente de qualquer associação. Por tudo que tratamos no capítulo II, fica de fato difícil para alguma liderança ter outro tipo de atuação à frente das associações que não envolva participação do Estado, e os recursos e as atribuições que disso decorrem. Mesmo supondo que uma associação tentasse desenvolver um outro tipo de atuação, à margem do clientelismo e da cooptação por parte do Estado, a comparação com as realizações de outras associações (próximas), como a instalação de 179

um posto médico ou uma obra qualquer que traga empregos, dificulta a possibilidade que esta associação desenvolva uma política em outros moldes. Não custa repetir, estamos lidando com comunidades que mesmo com todas as mudanças ocorridas, ainda são marcadas pela pobreza. Como forma de compreender melhor este processo, utilizamos o depoimento de quatro pessoas que têm atuação na Maré

91

, tendo sido três produzidos pelo projeto Um Estudo dos

Efeitos das Ações de Organizações Governamentais e Não Governamentais em Comunidades de Baixa Renda desenvolvido pelos pesquisadores Mario Grynszpan e Dulce Pandolfi do Cpdoc/ FGV, e o quarto é um depoimento à uma revista, obtido via Internet. Os depoentes participaram das associações de moradores da Maré em diferentes momentos. A atuação em ONGs é outra característica comum à todos os depoentes, que deixaram as associações e passaram a dedicar sua atuação comunitária através destas ONGs. A Associação de Moradores da Nova Holanda foi fundada em fins da década de 1960. Em 1984 foi construída a chamada ‘associação livre’, na qual participaram antigas lideranças do local e alguns seminaristas ligados à ala progressista da Igreja católica. Foi eleita presidente Eliana Souza Silva e, segundo Pedro, que ocupou vários cargos na associação durante a década de 1980, as pessoas que estavam à frente da associação naquela época achavam “…que a associação de moradores devia ser um instrumento de luta da população, da comunidade organizada.” Em outro ponto, Pedro fala que a associação na época em que ele participou se caracterizava por uma intensa representatividade na comunidade, reunindo em assembléias de 200 a 300 moradores: “Fazíamos esse trabalho de rua em rua e éramos instrumento de luta dos moradores (…) cada rua tinha seu representante. Assim a associação era mais ‘orgânica’, porque era informada de tudo que acontecia na comunidade. Quando havia assembléia dos moradores, todos iam, porque as questões colocadas eram aquelas que os representantes de rua levantavam. Depois construíamos as estratégias de enfrentamento, e ela envolvia a comissão executiva, os diretores da associação, e as comissões eram abertas, para que os moradores pudessem se integrar também ao processo”. Na fala de Pedro podemos ver o caráter ‘militante’ que as associações assumiam, envolvendo a comunidade, trazendo-a para participar do

91

Escolhemos aqui modificar os nomes dos depoentes para evitar maiores transtornos, apenas mantendo o de Eliana,

que deu sua entrevista à um veículo de imprensa. 180

‘enfrentamento’. À isto soma-se a idéia de construir a mobilização da comunidade de maneira constante. Para exemplificar esta mobilização constante, Pedro cita um episódio quando um jovem morador o questionou sobre o fato de uma praça na Maré ter o nome ‘Praça do Valão’. No que Pedro respondeu que o nome era devido a ter sido construída onde antes existia uma vala de esgoto, urbanizada após luta dos moradores. A preocupação que Pedro coloca é que já não existia uma memória da comunidade sobre as lutas e conquistas na Maré, algo que sempre tentou se implementar na associação de moradores. Mostrar como era o antes e como ficou depois, numa forma de convencer a população de que a mobilização é válida para a comunidade conquistar seus objetivos. O Projeto Rio, apresentado na parte anterior, pode servir como exemplo desta estratégia de ‘enfrentamento’. Quando as obras de construção das unidades habitacionais que serviriam para abrigar as populações removidas das palafitas foram interrompidas, a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (Codefam), composta pelos presidentes das associações de moradores da Maré, mobilizou a comunidade de várias formas para pressionar pelo término das obras. Uma destas formas foi a montagem de uma comissão para negociar com a Caixa Econômica Federal. O longo trecho da fala de Pedro é válido porque elucida várias questões colocadas aqui: “O presidente do setor de habitação da Caixa era o doutor Hélio Machado, que estava em Brasília. E decidimos em assembléia que íamos ocupar o setor de habitação da Caixa Econômica Federal, que fica no Centro do Rio, e que só sairíamos de lá quando as verbas fossem liberadas e repassadas para a Cedae, que administrava a obra dentro da Maré. _ Pedro conta que enquanto a associação ia '“criando o clima” na Nova Holanda para invadir a Caixa, o doutor Hélio Machado chamou a Codefam para ir à Brasília _ Quando essa comissão chegou à Caixa (…) lá estava o doutor Hélio Machado, naquela mesa grande de madeira, todo mundo sentado de um lado e de outro, ele sentado na cabeceira. Obviamente todo mundo ali já tinha algum ‘favorecimento’ como poder, com ele ou com outra pessoa. Falo favorecimento do tipo (…) uma obra, uma pintura de associação de moradores. E o Hélio Machado começou a falar: ‘Vocês precisam confiar em mim, eu sempre fui generoso com vocês. Alguma vez faltei a confiança com vocês? Deixei a desejar? Preciso de mais 15 dias para resolver este problema e preciso da confiança de vocês’. Quando ele falou isso, a ‘direita’ toda falou: ‘Vamos dar mais 15 dias para eles’. A maioria decidiu que tínhamos de dar mais uma oportunidade (…) e foi o 181

que aconteceu. Quase morri quando soube disso, porque o processo já estava pronto para ser ‘detonado’, para invadirmos a Caixa (…). Eu sabia que o Hélio Machado não ia cumprir, porque o Estado sempre foi assim [o grifo é meu]. Eu já estava acostumado com essa relação com o poder. Passaram-se 20 dias, nada da obra ser liberada. Passou-se um mês, três meses, e tivemos de reconstruir o processo todo de novo, desde o início, até ocupar a caixa Econômica e conseguir a liberação dos recursos para dar continuidade às obras (…). Ficamos um dia inteiro lá dentro, enquanto não abriram os canais de negociação.” O trecho de Pedro demostra a postura de enfrentamento com o Estado, utilizando da mobilização, no caso a invasão do prédio da Caixa Econômica Federal, como forma de pressionar o Estado a cumprir promessas, no caso a continuidade das obras do Projeto Rio. Pedro também demostra a desconfiança em relação ao Estado não cumprir acordos. Por último, quando Pedro se refere à ‘direita’, no caso, os representantes que concordaram em dar o prazo à Caixa, fica evidente que esta postura de enfrentamento por parte dos dirigentes das associações de moradores deve ser relativizada, não sendo comum à todas, como Pedro relata em outros trechos da entrevista. Mais à frente procuraremos explorar mais os ditos “favorecimentos” conseguidos pelas associações e/ou suas lideranças. Estas partes do depoimento de Pedro mostram ainda como as associações de moradores desempenharam papel importante para transformar a Maré, para que o Estado estivesse presente na Maré. É inegável que muitas das melhorias da Maré foram fruto de mobilizações nas quais estiveram à frente as associações de moradores. No entanto, nos últimos anos estas associações vem assistindo um declínio da sua representatividade nestas comunidades. Se antes as assembléias, conforme disse Pedro, mobilizavam centenas de moradores, porque hoje não ocorre o mesmo? Segundo Pedro, a Associação de Moradores da Nova Holanda sofreu um esvaziamento, com o próprio grupo político no qual Pedro fazia parte tendo sido deslocada da direção da Associação, após doze anos à frente. Para Sebastião, que sucedeu o grupo de Pedro na da Associação, e atualmente atuando numa ONG, o que explica este esvaziamento das associações é que “…enquanto as pessoas estão dentro da água, elas vão pular e chiar; na hora em que estiverem em lugar firme, acomodam-se. O que acontecia antes? Não havia saneamento básico, não havia água, era a palafita, escorregava-se de uma tábua e caía-se dentro da água; lá não podia entrar ônibus, caminhão, nem de bicicleta se podia andar. Então, havia um 182

interesse da população em melhorar aquilo (…). No momento em que foi feito o saneamento e que as coisas foram se desenvolvendo, esse interesse fugiu da população”. Para Pedro, as novas formas que o Estado desenvolveu para se relacionar com as comunidades também explica o declínio das associações. Na fala a seguir, Pedro segue a mesma linha do raciocínio anterior de Sebastião, de que houve também uma certa acomodação por parte dos moradores: “Nessa época [referindo-se a saída de seu grupo da associação], alguns problemas do início da década de 1980 não existiam mais…”. Mais à frente Pedro diz que mesmo com a urbanização e uma série de benfeitorias feitas, alguns problemas persistem pela oferta de serviços públicos na comunidade inadaptados à realidade destas comunidades: “Começamos a reviver o debate sobre a oferta dos serviços públicos na Maré. Era difícil debater com a comunidade, pois agora Cedae e a Comlurb já tinham na associação de moradores certos aliados que amorteciam a tensão com a comunidade (…) o Estado foi desenvolvendo formas de cooptação, as pessoas foram tendo cada vez menos tempo para se dedicar ao trabalho comunitário, e não dava mais para fazer aquele trabalho ativista, com aquela gratuidade. As pessoas têm que trabalhar para viver. Isso provocou um refluxo dentro do movimento.”_ Em outro trecho da entrevista, Pedro se remete também aos políticos que vão às comunidades construírem um ‘curral eleitoral’ baseando-se no clientelismo (“em cima de favores”), e que numa comunidade cheia de desempregados é fácil achar quem precisa destes ‘favores’. Como vimos anteriormente, algumas lideranças à frente das associações também desenvolveram formas ‘clientelistas’ de se relacionar com o poder, como Pedro citou no caso da Codefam / Caixa Econômica Federal no Projeto Rio. Sebastião também diz que as melhorias foram fruto da organização dos moradores, mas que ocorreu um movimento de duplo sentido: “Do lado do movimento do povo dentro das áreas de baixa renda, dos menos favorecidos, que não tinham onde morar e organizavam-se mais, para construir habitações dignas. O Estado, por interesse próprio, em campanhas eleitorais, foi buscar dinheiro no exterior, procurou se organizar para atender a isso.” Ou seja, para Sebastião, havia um interesse das autoridades em ganhar os votos destas comunidades. Já discutimos no capítulo II e também neste, que o maior aporte de investimentos do Estado nas comunidades das últimas décadas, em programas como Favela-Bairro (da Prefeitura do Rio de Janeiro), Gari Comunitário (da Comlurb), entre outros, além dos benefícios em si que 183

estes projetos trazem à comunidade, são projetos que, em sua maioria, empregam mão-de-obra local. Numa comunidade que tende a ter um grande número de pessoas desempregadas, subempregadas ou em atividades informais, cresce o poder de barganha de uma associação. Esta muitas vezes é faz a contratação de quem irá trabalhar nestes projetos. Isso gera novas formas da comunidade se relacionar com a associação, e à esta cabe garantir que receba os projetos e os recursos que estes trarão para a comunidade. O chamado ‘enfrentamento’ com o Estado que marcou as associações anteriormente, é abandonado em prol de um melhor relacionamento com este e as autoridades à sua frente, sendo vital para a associação ter condições de atrair os projetos. Para Pedro, o que passou a acontecer nas associações de moradores, quando estas passaram a contratar moradores para ações do Estado na Maré, é que o critério que determinava que pessoas seriam contratadas “…começou a ser o da amizade.” Pedro se refere ainda que várias pessoas foram trabalhar em órgãos locais do governo do estado e da prefeitura desta maneira, por indicação de uma liderança comunitária. Outro episódio ilustra bem como se tornou próxima a relação entre um líder comunitário e as instâncias do poder, quando da instalação de um estabelecimento social da prefeitura numa comunidade da Maré. Sebastião relata ter ido à casa de um vereador para pressionar pela implementação deste estabelecimento, e o vereador telefonou para um secretário do município, que orientou o vereador a ligar para o prefeito, o que foi feito. Sebastião saiu da casa do vereador com a promessa (que foi cumprida) de que a prefeitura faria o posto funcionar. A trajetória da Codefam para a Unimar, em tese dois órgãos que se assemelham em suas função, congregar todas as associações de moradores da área da Maré, seria uma demonstração de como se modificaram as relações do poder público com estas, com as associações tornando-se muito próximas do Estado. Segundo Pedro, a Unimar tem sua formação em moldes diferentes do que foi a Codefam. Surgida por ocasião da construção da Vila Olímpica da Maré, Pedro relata que a Unimar foi criada para ser o canal de interlocução da comunidade com a prefeitura sobre a construção da Vila. Mas, para Pedro, a Vila Olímpica não satisfaz muitas pessoas das comunidades da Maré por diversos motivos, entre estes (como vimos) que ela foi construída passando por várias comunidades, algumas dominadas por facções rivais do tráfico, sendo impedido o acesso de uma das comunidades à maior parte das instalações como vimos. Para Pedro, a prefeitura não ouviu a população das comunidades, mesmo existindo a Unimar: “O processo de construção da Unimar 184

não foi um processo de discussão com os moradores, ela foi criada por cima (…). Tem sido usada como uma espécie de instância legitimadora de certas ações. O governos justifica-se dizendo que discutiu com as lideranças e está legitimado. Este é o grande problema.” Ou seja, diferente de épocas quando as favelas lutavam para terem suas organizações reconhecidas pelo Estado como suas representantes legítimas, vemos que no processo de formação da Unimar, o próprio Estado estimulou a organização comunitária, segundo alguns (como Pedro), para legitimar suas ações. Estas mudanças não se restringiram à integração somente de lideranças comunitárias entre seus quadros ou de colaboração entre associações e governo. As mudanças que vimos até aqui incluem também a possibilidade de novas parcerias entre Estado e sociedade civil através das ONGs. Como o Ceasm, por exemplo, que nasceu da iniciativa de vários moradores em 15 de agosto de 1997. Fundado e dirigido por moradores e ex-moradores locais que participaram de movimento comunitário e são conhecidos pela população local, segundo seus coordenadores, porque também conhecem de perto a vida e o cotidiano do lugar. Outra característica comum da maioria destes fundadores do Ceasm foi o fato de pertencerem a um reduzido grupo de moradores que conseguiram chegar às universidades. Vale dizer ainda que muitos dos que estiveram à frente do Ceasm participaram de um núcleo do PT na Maré, reforçando nosso argumento de que líderes comunitários que tinham uma militância mais altruísta migraram das associações para as ONGs O Ceasm, em seus documentos define como seu “…objetivo fundamental e sentido maior de seu projeto (…) o estabelecimento de uma instituição que tenha possibilidades de contribuir para a criação de ações relacionais e abrangentes na totalidade das demandas educacionais, culturais e sócio-econômicas do Bairro Maré. Para isso, seu eixo de atuação tem sido a criação e/ou o fortalecimento de redes sociais comprometidas com a inserção-cidadã dos moradores das comunidades locais no espaço urbano. A fim de materializar suas metas, o Centro vem estabelecendo parcerias de variadas ordens: associações de moradores e escolas da Maré, sindicatos de trabalhadores, órgãos públicos, empresas estatais e privadas.” (Censo Maré 2000). Os projetos desenvolvidos pelo Ceasm visam superar as condições de pobreza e exclusão existentes na Maré, apontado como o terceiro bairro de pior Índice de Desenvolvimento Humano da cidade, segundo dados do Pnud divulgados em 1998. 185

Hoje, a ONG ocupa um prédio de 3 andares no morro do Timbáu. Na sede, reformada, existem 4 grandes salas, laboratório de informática, biblioteca, salas de redes, núcleos, secretaria, administração – enfim, a estrutura necessária para o bom andamento e gerência dos programas sociais promovidos pelo Centro. A primeira iniciativa do Ceasm foi mobilizar professores e universitários para oferecer um Curso Pré Vestibular aberto à estudantes de toda a comunidade. Segundo o sítio eletrônico da ONG: “…o pré-vestibular, implantado no início de 1998, marca um momento de transição nas lutas sociais no bairro. Até então, o foco das reivindicações era geralmente dado à conquista de infra-estrutura básica: esgoto, luz e água encanada. Com a presença do Ceasm no cenário social da Maré, criou-se uma nova perspectiva de reivindicação comunitária: a aquisição de bens culturais como caminho para conquista definitiva da cidadania.”. Os professores foram recrutados nas comunidades do bairro entre aqueles que cursavam ou já tinham completado o ensino superior. Tendo iniciado suas atividades em 1998, até o primeiro semestre de 2002 o curso aprovou 175 moradores para universidades públicas ou “comunitárias” (Sousa Silva, 2002). A partir destes aprovados surgiu o Observatório Social da Maré, visando aproveitar os conhecimentos que os moradores universitários adquirem para aplicar em benefícios para a comunidade, multiplicando assim o efeito da ação inicial (o curso). O Ceasm atualmente, atinge milhares de moradores com 14 projetos diferenciados, que funcionam através de núcleos, que são os seguintes: línguas; informática; alfabetização; ensino fundamental e médio; Pré-vestibular; biblioteca; jornal comunitário; formação em vídeo; fotografia; produção gráfica; guia de museus; teatro, música; capoeira; observatório social das favelas; e centro de memória do bairro. A fim de atuar com eficiência em áreas diferentes, o Ceasm foi organizado em redes temáticas. A estrutura facilita o desenvolvimento de projetos distintos e articulados, favorece a construção coletiva e participativa ao mesmo tempo em que valoriza a formação pessoal nos campos de interesse. Por isso o Ceasm se define como uma grande rede, com várias ações que, integradas, ajudam a construir a cidadania na Maré. As redes são as seguintes: Educação; Trabalho e Educação; Cultura; Comunicação; Memória; Observatório Social. Enfim, o Ceasm define como seu “objetivo fundamental, e razão de sua fundação, contribuir para materialização de ações integradoras e abrangentes na Maré, voltadas para ampliação dos campos de possibilidades sociais de seus moradores.” (Sousa e Silva, 2002) 186

O Ceasm também pode ser entendido como uma maneira daqueles que encaravam limites à atuação das associações de moradores, pelos fatores que apresentamos aqui, terem uma atuação mais transformadora, e encontraram nas ONGs uma maneira de terem uma atuação que não era mais possível de se ter na associação. Como dissemos antes, vários dos fundadores do Ceasm estiveram à frente das associações de moradores, onde acumularam experiência e criaram relações (ambas seriam muito úteis para atuarem nas ONGs). Eliana diz: “A nossa idéia inicial era fazer um trabalho a partir da experiência comunitária acumulada, do envolvimento que tínhamos com a comunidade porém, era nosso desejo que fosse um trabalho diferente do realizado por uma associação de moradores, que, normalmente, atua num processo de forma imediatista e muito em cima de demandas. A transformação física que a Maré passou foi fruto da luta destas associações de moradores. Porém, a gente vê que apenas a mudança física, decorrente da urbanização, não traz a transformação que nós acreditávamos —e acreditamos— que a Maré necessita.”. Para Luís, outra liderança que atuou numa associação de moradores, e hoje está à frente do Ceasm, as pessoas que formaram o Ceasm conjugam duas características vitais para que esta ONG se legitimasse como representante da Maré:“… historicamente, estiveram envolvidas em vários tipos de militância, em vários tipos de movimentos coletivos; e a questão da competência técnica. (…) Então, essa articulação entre a origem popular e o claro compromisso com a origem popular e mais a discussão, o domínio das normas acadêmicas, do discurso, da forma acadêmica, faz com que a gente tenha um impacto muito forte dentro da Maré e, enquanto referência, no Rio de Janeiro. (…) A gente define a questão de construir um projeto de cidade, de discutir isso de novo, e a questão da favela. A gente sempre achou essa coisa muito abandonada, na esquerda. A esquerda sempre discutiu muito pouco essa questão da favela. A idéia era construir um núcleo que tentasse ser referência para a discussão da favela. E aí pensasse na intervenção aqui.” Já Pedro tem uma visão um pouco mais crítica sobre este processo de emergência das ONGs como ator político relevante: “Estamos vivendo numa época diferente. O processo neoliberal está bem avançado, estão encolhendo o Estado, e a responsabilidade deve ir para alguém. As ONGs emergem dentro deste contexto. Nesse sentido, considerando a forma como o Estado brasileiro está organizado e como ele está se relacionando com a sociedade civil, eu diria que ele aperfeiçoou seus instrumentos. A relação que as pessoas estão tendo com a 187

associação de moradores é similar à que elas têm com o parlamentar que elas elegeram na última eleição (…). Se você perguntar o nome do deputado, elas não vão nem saber. Esse é o maior problema que temos. O Estado e o capital organizaram-se de um jeito, aperfeiçoaram suas formas de cooptação.” A crítica de Eliana é diretamente dirigida à transformação das associações de moradores como meras agências executoras de políticas do Estado, conforme a discussão que fizemos no capítulo II. Resumidamente, seria uma crítica à visão, compartilhada pela maioria das autoridades, dos líderes comunitários e mesmo de muitos moradores, de encarar a associação de moradores como uma mini-prefeitura. Pedro é mais enfático nesta crítica ao dizer que houve um processo deliberado por parte do Estado e do capital, que propositadamente cooptaram as associações. Para Luís, coordenador do Ceasm que participou também na associação de moradores, uma outra característica do Ceasm é o projeto coletivo que este tem: “A característica do Ceasm dentro da Maré e o que o torna tão inovador (…) [é que] ele tem uma cultura, ele tem uma prática muito diferenciada das associações tradicionais de favela. São formadas normalmente [as associações] por pessoas, que tem o lado bom, porque elas passam a dedicar-se profissionalmente a suas atuações, mas termina tendo um projeto muito imediato, muito centrado na figura de determinadas pessoas. Essa personificação das instituições é justamente o que o Ceasm tenta evitar. Então, se você pega, em geral, as gestões das associações de moradores ou determinadas instituições que tem aqui, é muito centrada na figura de uma pessoa ou outra, que estabelece os vínculos. O que a gente tenta evitar é isso.”. A fala de Luís aborda duas questões que tratamos no capítulo II. Uma, também levantada por Pedro, é a dificuldade dos líderes comunitários manterem um militância mais altruísta pelas dificuldades econômicas das décadas de 1980 e 1990, que levou a necessidade de ‘profissionalizar’ alguns quadros para que possam continuar esta militância. Outra é o personalismo detectado em muitas associações, que acabou afastando muitos militantes e até mesmo impedindo uma renovação de seus quadros. Luís ressalta o caráter local do Ceasm, ainda que pensando ser uma experiência válida para ser levada ao resto da cidade. O Pré-vestibular do Ceasm, por exemplo, serviu como modelo para similares nas comunidades do Jacarezinho e Mangueira. Ou seja, é uma ONG com atuação local, porém não abandona um objetivo geral (a transformação das comunidades, que no caso do Ceasm, passa pela extensão da Educação a todos). Conta Luís: “É uma entidade comunitária. 188

Ela atua num espaço específico. Só que é uma imensa cidade, é uma cidade com mais de 130 mil habitantes, então é como uma cidade média. Isso favorece muito o nosso trabalho, porque, enquanto a maioria das ONGs atua em terreno diluído e com público muito pequeno, nós não temos interesse em atuar na cidade como um todo, no plano do espaço. Nós temos interesse em que a nossa experiência atinja a cidade inteira, mas nós não somos entidade do Rio de Janeiro, nós somos entidade da Maré. Com isso, nosso poder de inserção, de legitimidade, de representatividade é maior do que a grande maioria das entidades que entram numa comunidade (…) Nós queremos mudar a cara da Maré, então nós queremos ter um plano de desenvolvimento local da Maré. Nós queremos a Maré como referência para outras áreas do Rio, e sob possibilidade de estar atuando ali. Isso é uma diferença. Ao mesmo tempo, nós conseguimos formular, de forma abrangente, uma intervenção na Maré. Então nós conseguimos ter uma inserção espacial, tendo um projeto de longo prazo e numa perspectiva de atuação, de construção de um projeto mais abrangente. E temos articulações para isso. Então nós somos entidade – nem somos entidade comunitária típica, como uma associação de moradores ou uma ONG de favela, mas também não somos uma ONG que circula e está muito mais interessada numa temática. A nossa temática é a Maré. E dentro disso, educação e cultura; mas, se possível, também, geração de renda, memória, e assim vai. Então é diferente o campo, o universo temático que a gente atua. Enquanto a ONG está preocupada com jovens, crianças, nós estamos preocupados com o espaço e com a mudança dentro daquele espaço. Isso nos diferencia muito”. A fala de Luís traz à tona várias questões referentes às ONGs. Por exemplo, quando ele fala da representatividade que o Ceasm possui por ser uma ONG “da Maré”, que lida com determinado tema, sendo este “a Maré”. Segundo artigo dos pesquisadores Dulce Pandolfi e Mario Grynszpan: “ONGs de dentro e ONGs de fora: notas sobre duas experiências em favelas no Rio de Janeiro” (2000), que aborda exatamente a experiência do Ceasm como exemplo de uma ONG de dentro, e por isso mais autorizada a captar recursos pela comunidade92 e definir 92

O Ceasm serve como exemplo do potencial e também da legitimidade de uma ONG para adquirir financiamentos.

Em diversos projetos desde a sua fundação em 1997, como o Pré-vestibular, o Censo Maré 2000, entre outros, o Ceasm recebe ou recebeu recursos dos seguintes órgãos, empresas ou instituições: Light; Secretaria Municipal do Trabalho; SMDS (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social); Secretaria Municipal de Cultura; Secretaria Municipal de Fazenda; Secretaria Municipal de Saúde; Petrobrás; Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES); Embaixada do Canadá; Consulado Britânico; Comunidade Solidária; e Fiocruz. 189

melhor onde estes recursos se aplicam. O fato de ser uma ONG da Maré faz parte inclusive da essência do Ceasm, que busca superar a imagem de pobreza e violência da Maré, tentando em todas as ações demostrar capacidade técnica e poder de intervenção na comunidade. Embora esta oposição ONG de dentro X ONG de fora precise ser relativizada, visto que o Ceasm teve auxílio da ONG de fora Fase para se estruturar, a oposição existe. O Viva Rio por exemplo, ONG com atuação em favelas que tem como temática o combate a violência e a superação da pobreza, e que auxiliou na construção da Vila Olímpica da Maré, seria uma ONG “de fora” bastante criticada por Luís, que não vê sentido em existir uma ONG, que segundo ele, apenas faz a mediação entre o Estado e as comunidades, inclusive repassando recursos do Estado para elas, sem que se estimule a autonomia das organizações comunitárias, já que o Viva Rio na prática dirige todo o processo: “Acho um horror, ter um Estado e ter uma ONG quase do tamanho do Estado, que ocupa as funções do Estado e vai fazendo coisas que o Estado deve fazer ou que as associações... Qual é o sentido disso? Tem aqui o Estado, aí tem aqui uma coisa quase do tamanho do Estado, que só capilariza. Qual o sentido? (…) Era melhor o Estado fazer direto. Por que o Estado não faz direto? Você diminui o Estado, fica uma estrutura paralela ao Estado e auxiliar do Estado, para botar as entidades comunitárias para fazerem as coisas? Isso, para mim, cheira muito ao satanás do neoliberalismo, (ri) como o pessoal fala. Acho que não é essa coisa assim, tão... Mas, que essa coisa admite o esvaziamento do Estado e também o esvaziamento das instituições comunitárias, eu acho que sim. Nem as ONGs passam a ter mais poder, nem as associações comunitárias passam a ter mais capacidade de gestão, de autonomia e nem o Estado cumpre o seu papel efetivamente. Qual é o sentido de uma entidade dessas? Eu não sei. Não tenho problema nenhum com eles, pelo contrário. Quanto mais as pessoas se articularem para ajudar... Só que eu acho que o Viva Rio termina sendo perverso na sua prática. Tem uma pessoa específica lá, que é terrível. Mas aí é um problema localizado, da pessoa. Tem muita gente ótima no Viva Rio, bem intencionada, dedicada, apaixonada, crente, seguramente, democrata, agora tem outras pessoas que eu não diria a mesma coisa.” Sobre a relação das ONGs com o Estado, Luís diz: “A gente não tem problema nenhum em lidar com o Estado.(…) Nós podemos ser exemplo, mas é o Estado que tem o papel de mudar, construir políticas públicas. ONG não faz políticas públicas. A ONG pode contribuir para as políticas públicas, pode trabalhar com exemplos, mas não faz políticas públicas. O 190

Estado é que faz. Por isso nós temos que ter uma ponte com o Estado, e tentar contribuir na construção dessas políticas públicas. Então nós temos muito mais tolerância e muito menos desconfiança nessa relação com o Estado; mesmo sendo um governo do PFL.”. Eliana segue a mesma linha de Luís, e diz não ver problemas na relação entre o Ceasm e o Estado: “Desde a fundação do Ceasm há uma discussão sobre o papel de uma ONG. Sobre o fato de muitas vezes estar atuando num campo em que o Estado deveria agir. Muitas vezes nos acusam de sermos neoliberais. O que considero um rótulo e uma visão parcial e estreita da questão. No nosso caso, acreditamos estar cumprindo o papel de agente/cidadão inconformado com o estado em que se encontra a população brasileira. Uma desigualdade social enorme em que uma parcela ínfima da sociedade concentra boa parte da riqueza do país e a outra parte significativa não tem acesso sequer, muitas vezes, ao que comer. Na verdade, acreditamos na possibilidade de transformar essa situação e queremos com o que somos e sabemos estar agindo, sendo sujeito ativo e, não esperando que apenas o governo resolva. Afinal, o governo deveria ser um executor dos desejos da população. É uma forma de vermos esse problema. Uma questão é clara, contudo, não queremos substituir o estado nem, tão pouco, contribuirmos com o nosso trabalho para a manutenção do que está aí. Embora façamos o Pré-vestibular, nós gostaríamos que o Vestibular não existisse. Na verdade, o acesso à universidade deveria ser mais democrático e que a população pudesse ter uma educação de qualidade. Nós acreditamos estar lutando por isso. Nós achamos que o que nós estamos fazendo é transformador, que não é uma coisa que se acomoda ao neoliberalismo, porque nós trabalhamos para desenvolver uma consciência crítica sobre isso. Portanto, o que nós estamos fazendo não é assistência, filantropia. Só você pode mudar a sua vida. E aqui você tem um espaço, que é o espaço dessa comunidade. Desta forma, quando nós procuramos a Light e a Petrobrás, nós acreditamos que estas empresas deveriam ter, um compromisso com a transformação desta sociedade. Este compromisso se realiza sob a forma de apoio financeiro a um determinado projeto que se propõe como, por exemplo, o de colocar alunos na Universidade. Nós acreditamos que esta é uma dívida que as empresas têm com a sociedade e que, desta forma, elas assumem a falada responsabilidade social. Porém, esta é também uma questão mais ampla, pois a responsabilidade social inclui os compromissos com os direitos dos funcionários, além da questão ética sobre a qualidade do produto que elas estão vendendo, etc. Nós não temos nenhum problema em ter uma parceria com a Light, que é uma empresa privada, não temos problema 191

nenhum com a Petrobrás, que derrama óleo. Por que? Porque achamos que estas empresas devem estar buscando formas de diminuir este problema social que vive o nosso país, e isso inclui ações pequenas como esta e outros compromissos, e que é um dever da sociedade exigir. Se a Petrobrás é nossa, se o petróleo é nosso, nós devemos exigir que esta empresa se preocupe com este déficit social que existe aí. Isso é o que nós acreditamos. Para isto, nós não precisamos nos vender, nos violentar, não precisamos ferir princípios que nós tenhamos aqui. Tanto no caso da Petrobrás, quanto no caso da Light e, também, da Infraero, que hoje é também uma das nossas patrocinadoras, nós apresentamos um projeto e eles definem se apoiam o projeto. Estas empresas não interferem no cotidiano e na dinâmica do projeto. Muitas vezes, há uma parceria no sentido de superar as dificuldades que nós temos para estar desenvolvendo estes projetos. Desta forma, eu não vejo problemas éticos, pois, no nosso caso, nós procuramos parcerias que não venham a ferir os princípios nos quais nós acreditamos. Se não há interferência, se há liberdade para trabalhar a questão pedagógica, a questão política, etc., então não há problema. E nós já rejeitamos parcerias por esta razão”. Na montagem do curso pré-vestibular, o Ceasm contou com apoio de empresas privadas, Luís conta: “Nós prestamos um serviço para a Light que era de orientação sobre o uso de energia ali e que passava inclusive pela tentativa de diminuir a inadimplência e o número de ‘gatos’. Isso para a gente não é nenhuma questão neoliberal. A gente tinha como princípio que os moradores têm obrigação de pagar a energia, ao mesmo tempo que tem que batalhar para se criar tarifa social, tem que se criar condições de criar associação de consumidores e uma série de coisa. E a gente prestou esse serviço para a Light, e ao mesmo tempo a Light financiou o nosso pré-vestibular.”. A Light, recém privatizada elaborou um programa para combater os desvios na rede elétrica nas favelas, chamado Pronai (Programa de Normalização de Áreas Informais), que consistiria na instalação do medidor regularizando a instalação. Em algumas favelas, isto pode significar o primeiro comprovante de moradia para seus moradores, argumento utilizado pela Light para demostrar o ‘lado social’ do programa. Para facilitar sua ‘entrada’ nas favelas, a Light procurou parcerias com associações de moradores ou ONGs locais, o Ceasm foi uma destas. Eliana, que havia construído relação com diretores da Light durante suas duas gestões na presidência da Associação de Moradores da Nova Holanda, utilizou estas articulações para arrecadar os recursos para o pré-vestibular, é Luís ainda que diz: “Nós escrevemos o projeto e 192

apresentamos para a Light. (…) A Light tinha o seguinte problema: eles precisam entrar nas favelas, estavam criando para isso um programa de redução de perdas. Não sabiam como fazer. Tentaram fazer isso ali no Caju, botaram um cara, o cara terminou ficando assim: cuidando das contas, cuidando de inadimplência – só que a lógica era ainda a da repressão, da coerção. O que aconteceu? Daqui a pouco o cara estava sendo ameaçado de morte, desistiu. O que a gente apresentou então para a Light foi um conceito de trabalho. A Light só vai resolver o problema histórico se ela se inserir nas favelas, e em cima de alguns princípios. A Light tem como princípio a noção de cliente; nós temos como princípio a noção de cidadania. O que nós propomos é que a Light se insira nas favelas a partir da perspectiva onde o cliente seja vista como cidadão. E aí os objetivos desse trabalho seriam: melhorar a qualidade do atendimento da Light, melhorar a qualidade técnica da Light, dos serviços oferecidos pela Light também, tanto no plano do atendimento, da relação comercial como no plano técnico, reduzir os níveis de inadimplência e de ‘gato’, e melhorar o grau de satisfação dos moradores da Maré com a Light. Esse projeto, a gente desenvolveu, conversou muito. E a Light estava criando um programa, que era o Pronai, que não tinha nada escrito, então, o Pronai se sustentou (…) muito em cima do projeto que a gente tinha entregue. A Uerj tinha entregue um trabalho também, um projeto, mas muito incipiente, a PUC também tinha entregue, e a Light preferiu a nossa proposta – que garantia a questão da inserção, trabalhava com a questão do trabalho de orientação mas tinha claro que a inevitabilidade do pagamento ia ter que ir sendo construída gradativamente. Então, a idéia, a forma como foi construído o projeto foi nossa. Nós apresentamos o conceito de rede e atendimento local. E de trabalhar com agentes comunitários, agentes locais, que pudessem estar estreitando laços. Foi essa a intenção. Então, nós apresentamos o projeto para a Light. (…) fomos procurar a Light – para financiar o pré-vestibular, o gerente comercial falou: ‘a gente financia o pré-vestibular e vocês prestam serviço’. (…) A Light meteu mais de três milhões de reais lá, na parte técnica. Foi uma imensa experiência. Botou um posto de atendimento dentro da Maré, contratou quinze pessoas e começou um trabalho de orientação e de investimento em articulação com as próprias associações; então era um projeto bastante abrangente. Que atendia os interesses da Light... Tanto que a inadimplência caiu muito lá (…) Revolta nunca houve, pelo contrário. A Light na casa dela, a pessoa se sentia respeitada. Porque ela era maltratada no posto. Os técnicos, que tinham medo de tomar tiro, nunca tiveram problema nesse aspecto. Porque as pessoas sabem que tem que pagar a luz. Elas não pagam porque não podem, 193

não é porque não queiram. Só dois por cento, dois vírgula três, por aí, acham, dizem que não podem pagar a luz. A imensa maioria (a gente fez o levantamento em todas as casas) declara que podem pagar, querem pagar, desde que haja condições para isso. (…) Agora, eu acho errado o cara não pagar. Em termos de concepção. Não podemos exigir cidadania se o cara acha natural ter cidadania só quando interessa. Se o morador da favela não precisa paga luz, não precisa pagar água, não precisa pagar IPTU, ele não precisa respeitar o espaço público, ele vai continuar sendo um excluído. Dentro da lógica da cidade, ele vai continuar tendo direito a tratamentos diferenciados. Tem que saber, por exemplo, quem não tem condições de pagar energia, quem não tem condições de pagar água? Na Maré, por exemplo, ninguém paga água. Isso é complicado. Porque o atendimento é péssimo.(…) O esgoto é péssimo na Maré, porque o Estado não investe. Não se investe nada em esgoto e água na Maré. Isso é complicado. E eu não acho justo, pessoalmente. Você tem que reconhecer, no espaço urbano, a inclusão passa pela garantia – os moradores da Maré têm que ter melhores salários, têm que ter melhores condições de vida; não é simplesmente a oportunidade de não pagar a água, a luz, o esgoto, o IPTU, de não ter espaço público. Isso é paternalismo.”. A fala de Luís aborda vários aspectos sobre o papel das ONGs nas comunidades, inclusive o papel da ONG como prestadora de serviços, e que através destes serviços prestados à comunidade, amplie-se a noção de cidadania. Luís acha que muitas vezes os projetos levados (inclusive por algumas ONGs ‘de fora’) às favelas pecam pela falta de seriedade: “As pessoas acham que, para a favela, tudo que puder levar é bom, mesmo ‘mambembe’. Não tem nada – é como as pessoas sustentam no discurso da ausência – tudo que puder colocar, ótimo. O que vier é lucro. Nós começamos a discussão do pré-vestibular em maio, junho; tinha gente que achava que devia começar em agosto. A gente começou em fevereiro [do ano seguinte]. Levamos seis, sete meses discutindo sobre a proposta, como é que ia ser o trabalho. (…) Essa cultura de que tudo pode ser mambembe, tudo pode ser improvisado, tudo pode ser já, é muito complicado.” O Ceasm faz questão de se apresentar como uma ONG com capacidade técnica, e formada por pessoas da comunidade. Por isso combate políticas “mambembes” e “paternalistas” que sejam levadas à favela. Em cima desta concepção de que os moradores da comunidade possam conquistar espaços, tendo as oportunidades, sem abandonar sua identidade de “Maré” é que o Ceasm atua. Eliana esclarece esta questão: “Por serem 16 [sem contar a comunidade Mandacarú] comunidades e as pessoas não circularem, muitas vezes, internamente, estas pessoas não se 194

conhecem. Quando o aluno chega ao Ceasm o nosso primeiro trabalho é mostrar o que é o Bairro Maré, pelo lado afirmativo e positivo. Todos conhecem a imagem da favela como um lugar que tem bandido, um lugar que tem traficantes, um lugar que tem gente pobre, suja e que não tem nada. É sempre o discurso da ausência.”

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As relações entre Estado e comunidade, que hoje em dia têm as ONGs como atores relevantes nesta mediação, fora bastante alteradas no percurso das décadas de 1980 e 1990. Período em que o Estado destinou uma soma maior de investimentos à estas áreas, antes esquecidas e alvos de remoções. Antes a postura era de ‘enfrentamento’, através das associações de moradores, era marca da mobilização destas comunidade, para impedir as remoções, para conquistar ou elas próprias implementarem melhorias em suas comunidades. A crise das associações, apontada em alguns depoimentos, em parte se deve sobre esta ‘perda de combatividade’, com as associações tendo interesse em manter determinado governo, no qual vem conquistando benefício para a comunidade ou até para os quadros que compõe a diretoria da associação. O Censo Maré 2000, utilizado neste relatório, é um ótimo exemplo sobre como a ONG possibilita a junção da intervenção do Estado, que entra com a macro-política, inclusive com recursos (no caso a Prefeitura do Rio de Janeiro e o BNDES) enquanto a ONG composta por membros da comunidade entra com a micro-política, pelo enraizamento e conhecimento do local. O documento que apresenta o Censo, fornecido pelo Ceasm, demostra esta junção: “O Censo Maré ocupa um lugar importante nesse tipo de estratégia. Com efeito, a compreensão de que o desenvolvimento de territórios localizados passa pela integração das ações vem se disseminando no Brasil. A perspectiva de intervenção global em espaço particular, em especial naqueles marcados pela estagnação econômica e social, tem como pressuposto um conhecimento mais profundo das particularidades do território, o desvelamento das práticas sociais e demandas dos diversos atores locais: a população, os pequenos empresários, os órgão públicos e comunitários e outros. A materialização de um censo profundo e abrangente na Maré foi obra de diversos parceiros. A iniciativa começou com o CEASM que buscava viabilizar o empreendimento desde 1998. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – 195

BNDES e a Prefeitura do Rio também consideraram que uma iniciativa como essa poderia, além de fornecer informações inéditas sobre as comunidades populares, servir de referência para a produção de diagnósticos mais precisos a respeito dos investimentos que se propõem a realizar.” (Censo Maré 2000) A década de 1990, com a emergência das ONGs como atores políticos relevantes, também trouxe mudanças nestas relações, redimensionando o papel do Estado nestas comunidades. As ONGs deixam de ser meras fiscalizadoras que representam segmentos e/ou temas de interesse da sociedade para se tornarem prestadoras de serviço, em redes com agências internacionais; organizações estatais ou até supra-estatais (como o Banco Mundial); ONGs com atuação em âmbito maior que o local; empresas; e demais associações comunitárias. Estas redes garantem o financiamento que estas ONGs necessitam para seus projetos, motivo ao qual muitas lideranças comunitárias passaram a participar das ONGs por verem nestas uma maior possibilidade de atuação em suas comunidades, além das pautas reivindicatórias com que as associações de moradores costumam trabalhar. Estes financiamentos, é certo, mantém certos limites à atuação das ONGs em ‘tocar’ projetos que não atraiam recursos. Para Luís: “São formas que a gente está vendo de auto-sustentação, que a gente quer caminhar. Botar um outdoor, por exemplo, na Avenida Brasil, pedindo apoio às pessoas. Abrir uma conta. A gente quer ter um fluxo que não dependa de projetos para garantir a estrutura. Esse é um dos nossos projetos imediatos.” Para demostrar a complexidade nas relações entre os atores nas comunidades (Estado, associação de moradores, ONGs) vamos apresentar um exemplo numa ação do Estado na Maré, que repassou a gestão destes órgãos para ONGs e associações de moradores. Tal ação era uma reivindicação antiga da Maré. A gestão destes órgãos é cercada de várias polêmicas. A primeira é a transparência na aplicação da verba destinada pelo poder público. Pedro questiona a capacidade de uma ONG gerir recursos públicos: “Na associação de moradores, a questão de discutir com a base tem sentido. Já na ONG não. (…) Não se discute prestação de conta, não há transparência na aplicação dos recursos. (…) Acho que deve haver mecanismo de controle e transparência. Como a população vai saber onde o dinheiro está sendo aplicado? (…) Numa associação de moradores, bem o mal, alguma prestação deve ser feita, já que você é sócio. No caso de uma ONG é mais complicado.” Outra crítica levantada por Pedro é a o líder comunitário à frente da 196

ONG utilizou algumas práticas que o poder público utilizava, e que criticava quando estava no movimento comunitário, como por exemplo a defesa da participação da comunidade na gestão dos órgãos: “Ele abandonou o discurso do movimento e assumiu o discurso do gestor, já que agora é gestor. É ele quem assina carteira, contrata e despede pessoas. Administra o projeto.” Em outro trecho da entrevista, Pedro diz que se posicionou contra a ONG assumir o órgão porque ela “…iria ficar no meio do confronto entre movimento organizado e governo.” E questiona o fato de certa vez, quando os funcionários destes órgãos ficaram sem receber salário “…muitos deles foram lutadores históricos da Maré, nunca foram para a rua questionar e pressionar o prefeito?” Mais à frente Pedro explica que o coordenador da ONG os orientava a não fazerem isso. Mas do que oferecer respostas, levantamos diversas questões que envolvem as novas relações entre o Estado e comunidade atualmente. Vemos que é um processo ainda em construção, com seus protagonistas ainda analisando o espaço e as atribuições de cada um na arena. Em Oliveira (1993) é feito o alerta de que não basta uma ação estar sob a gestão de uma organização comunitária para que a comunidade tenha realmente poder de interferir em seus rumos. O que se aplica perfeitamente à este último exemplo que apresentamos. O que se pode concluir é que a luta pela superação da pobreza e pela dignidade faz parte da trajetória da Maré, está marcado na consciência daquelas comunidades como conseqüência de suas lutas. A frase a seguir, de Pedro, é um resumo de todo este capítulo: “Os investimentos foram conseqüência da luta dos moradores.”

197

CONCLUSÃO: As críticas aqui apresentadas não significam uma negação ao enorme avanço que o Estado fez em suas políticas voltadas para as favelas durante as décadas de 1980 e 1990. As favelas passaram a constar na agenda de qualquer política pública, seja pela volta da democracia no Brasil, com os favelados constando como uma parcela significativa e crescente do eleitorado; seja porque a violência urbana, com suas causas atribuídas diretamente à pobreza e ao abandono de áreas da cidade pelo Estado, exigia uma resposta deste. Dificilmente pode se criticar programas que urbanizem e dotem com serviços públicos as favelas da cidade, resgatando assim parte da dívida histórica que o Estado tem com essas comunidades. Mas o problema reside exatamente que só ‘parte’ está sendo paga. Como vimos, sem uma real mudança no padrão de vida, principalmente no poder aquisitivo e acesso a bens e serviços (como educação por exemplo) o alcance destas medidas é muito limitado, quando não inócuo, como no exemplo acima do Programa Favela Bairro quando ocorre a venda de casas na favela. A despeito de todos os esforços listados acima, o número de favelas na década de 1990 cresceu assustadoramente. Em 2003, o número de favelas, segundo levantamento do Instituto Pereira Passos (antigo IplanRio) atingiu a cifra de 75293. E mesmo pelo último Censo do IBGE, que só considera localidades acima de 50 habitantes, o número de favelas do Rio é de 503. A crise da década perdida e a estagnação dos anos 1990 agravam ainda mais a concentração de renda no Brasil. Segundo dados do Pnud, em 1998 os 10% mais pobres da população têm 0,7% da renda do país, enquanto os 10% mais ricos têm 48%. Tal disparidade coloca o Brasil na quarta posição mundial em concentração de renda94. Assim, analisando o caso do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que o acesso a bens e serviços, como luz, água e telefone cresceu consideravelmente, o número de indigentes (pessoas cuja renda mensal não ultrapassa 73 reais) na região metropolitana atingiu a marca de 837 000

93

“Estudo aponta mais 49 favelas na cidade” (O Globo, 20/04/2003)

94

“O 73o país em qualidade de vida” (Jornal do Brasil, 24/07/2002) 198

pessoas (8% da população). No mesmo período, o 1% mais rico da população da região passou a deter de 12,7% da renda (em 1992) para 13,1% em 2001.95 Outra crítica é de que a maior parte destas ações do Estado não estimulou a organização comunitária e a participação destas populações na vida política de maneira autônoma. Ao contrário, estimulou-se através das práticas clientelistas (de Brizola em 1982 a Garotinho em 1998 no governo do Estado e nas administrações ‘pedetistas’ na prefeitura e na década de 1990 as gestões de César Maia e Luís Paulo Conde) a dependência do político ‘benfeitor’, que estando no governo não leva a ação do Estado à comunidade como uma obrigação deste, mas como um favorecimento, só conseguido por esta graças ao prestígio de alguma liderança, que com os ‘canais certos’ conseguiu incluir sua comunidade no Proface ou no Favela Bairro, e que em troca garantirá o apoio da comunidade ao político ou alguém indicado por este na próxima eleição. Estas ações do Estado raramente tiveram a construção da cidadania como um pressuposto para modificar a condição dos favelados. Nestas duas últimas décadas do século XX podemos caracterizar as ações do Estado para alterar a condição de marginalidade das favelas, e a partir de um determinado momento tendo a questão da segurança como um fator a ser levado em conta, como uma inclusão subordinada, sem que os beneficiados destas ações saíssem das raias de controle dos projetos políticos que seus executores tinham em mente, e de sua posição igualmente subordinada na economia. Também nestas últimas décadas outro fenômeno que se verifica (Oliveira et alli, 1993) é que as diferenciações econômicas que surgiram nas favelas têm minado os laços de solidariedade entre os favelados. Fruto das melhorias nas condições de vida dos favelados, as modificações de suas casas podem ser outro fator que tem contribuído para isso. A construção de um andar a mais na casa pode gerar conflitos com o vizinho que perde sua janela, e o fato dos filhos continuarem nas casas dos pais, mesmo casados (e montando sua família) faz com que as os núcleos familiares se bastem em si mesmos. As melhorias das casas somadas a entrada do poder público na favela (ainda que muitas vezes através das associações de moradores), executando obras ou assumindo a manutenção de espaços comuns da favela (anteriormente construído e mantido pelos moradores em esquema de mutirão) cria diferenciações entre os espaços ‘públicos’ e ‘privados’ da favela. A famosa ‘porta aberta’ que existia nos barracos da favela passa a ficar 95

“Região Metropolitana tem 837 mil indigentes.” (O Globo, 13/04/2003) 199

fechada. Enfim, as mudanças nas relações comunitárias são sentidas pelos moradores, que vivem estas modificações simultâneas ao crescimento do poder do tráfico e as alterações no cotidiano da favela que este traz, num clima de permanente insegurança.96 A subestimação da cidadania como um elemento incorporador destas comunidades se deu num momento particularmente delicado da história do país. O fim da Ditadura, que havia reprimido e posto sob controle qualquer atividade política na favela, ocorreu simultaneamente à ascensão do poder do tráfico, fazendo com que a maior parte das favelas começassem o século XXI com todas as suas atividades controladas, vigiadas, ou no mínimo, toleradas pelas quadrilhas de traficantes do local. O mais trágico é que isso está longe de ser um ‘poder paralelo’ como querem fazer crer alguns, pois além dos entrecruzamentos que existem de diversas formas entre as quadrilhas e os poderes legalmente constituídos (policiais ou juízes corruptos, políticos eleitos com apoio do tráfico, etc.) o crescimento da influência do tráfico foi justamente utilizando práticas já existentes nas relações do Estado com as favelas. O que quisemos com este estudo, como falamos na introdução, foi demostrar que não somos uma cidade partida, mas pelo contrário, uma única cidade repleta de desigualdades, que começam no acesso de todos os seus moradores à ela. Aqueles que, em tese estariam no outro lado da cidade, na verdade, apenas se incorporam nesta de maneira subordinada. E é justamente este mecanismo que permite que poucos habitem luxuosamente, embora cada vez mais cercado por muros e grades, enquanto muitos sobrevivem em condições precárias. O preço disto é a deterioração da cidade como um todo. Esperamos que este estudo seja uma ajuda para um dia podermos cantar os versos finais da música que usamos na epígrafe, Sebastian:

“Que

na cidade tranqüila, Sarada cada ferida

Tudo se transforme em vida, Canteiro cheio de flores, pra que só chorem, querido… Tu e a cidade, de amores.”

96

Este parágrafo inteiro se deve ao livro Favelas e Organizações Comunitárias. Nele, um capítulo é dedicado a um

interessante levantamento das alterações no cotidiano das favelas verificadas no decorrer da década de 1980, algumas das quais apresentamos aqui resumidamente. 200

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