Universitários Vão à Escola: Construindo Autonomia. A experiência de democratizar a educação e o direito em Itapoã-DF [2007]

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UNIVERSITÁRIOS VÃO À ESCOLA: CONSTRUINDO AUTONOMIA
A experiência de democratizar a educação e o direito em Itapoã-DF*


João Telésforo **


Resumo: Este artigo objetiva apresentar e refletir sobre o Projeto de
Extensão e Organização Não-Governamental Universitários Vão à Escola (UVE).
Compartilharemos a experiência de educação popular da UVE, que vem sendo
desenvolvida por graduandos da Universidade de Brasília (UnB) com crianças
e adolescentes de Itapoã-DF desde julho de 2005. A UVE, que além de ONG é
Projeto de Extensão de Ação Contínua da Faculdade de Direito e da Faculdade
de Educação da UnB, tem como meta a construção da autonomia de indivíduos e
grupos sociais por meio da democratização da educação. Esta democratização
consiste na mudança dos métodos pedagógicos (que devem passar a fundar-se
na solidariedade e na autonomia dos estudantes, concebidos como sujeitos
produtores de seu conhecimento) e no oferecimento de uma educação de
qualidade a todas as pessoas, com a satisfação concreta de direito
fundamental garantido nos textos da Constituição brasileira e de tratados
internacionais de direitos humanos.

Palavras-chave: Educação Popular; Universidade; Extensão Universitária;
Direito e democracia.


SUMÁRIO

1. Introdução: o nascimento do projeto Itapoã
3
1.1 Objetivos deste artigo 6
2. Universidade, para quê? Universidade, para quem?
7
3. Justificativa e objetivos do projeto
12
3.1 Educação e democracia 13
4. O funcionamento da UVE 16
4.1 Estrutura organizacional do projeto de extensão/ONG
16
4.2 Atividades desenvolvidas
17
4.2.1 O caminho pedagógico da UVE 19
5. Um saldo provisório 24
6. Referências bibliográficas
27



















1. Introdução: o nascimento do Projeto Itapoã[1]

Itapoã é a mais pobre região do Distrito Federal. Seus mais de 45 mil
habitantes têm renda per capita de cento e dois reais, 29,2% deles estão
desempregados e as taxas de emprego sem carteira assinada e de
analfabetismo são as maiores do DF. As ruas não têm asfalto, calçada nem
meio-fio, os sistemas de esgotos e de coleta de lixo são precários, o
policiamento é escasso e a região é conhecida pela violência acentuada. Não
há escola; as crianças estudam no Paranoá, região vizinha. Os direitos
essenciais das pessoas, à saúde, à educação, à segurança, à moradia e ao
lazer, dentre outros, estão longe de ser minimante satisfeitos.
Nenhum dos estudantes de Direito da Universidade de Brasília (UnB)
jamais morou em Itapoã. Normalmente, esses estudantes vivem em regiões de
classe média e alta, suas famílias desfrutam situações financeiras
confortáveis, eles vêm de caras escolas particulares, estudaram e estudam
idiomas estrangeiros, tiveram desde a infância oportunidades para
desenvolver suas habilidades intelectuais, esportivas e artísticas. Cento e
dois reais é menos do que a maioria desses jovens gasta mensalmente com
lazer.
Itapoã tem 45 mil habitantes, o Lago Norte tem metade disso, mas
enquanto nenhum itapoanense estuda Direito na UnB, dezenas – talvez mais de
uma centena – de pessoas que moram no Lago Norte o fazem. A renda per
capita dos moradores do Lago Norte é de mais de 2 mil reais – 20 vezes a
renda média de quem mora em Itapoã, mas ainda assim apenas a terceira maior
renda per capita do DF, atrás do Sudoeste e do Lago Sul (outras regiões
muito bem representadas no alunado de Direito da UnB). Lá, as ruas são
asfaltadas, a taxa de analfabetismo é baixa... O índice de desenvolvimento
humano (IDH) do Lago Norte é de 0,933 – superior ao de países como Suíça,
Finlândia, França e Reino Unido. O Lago Sul tem IDH ainda maior, de 0,945,
superior ao de qualquer país – quem mais se aproxima é a Noruega, seguida
pela Suécia. Deixemos, porém, de lado essa comunidade nórdica encravada no
Distrito Federal, no centro do território brasileiro, e comparemos Itapoã
ao Lago Norte, porque são regiões literalmente vizinhas: a contigüidade
espacial torna ainda mais óbvia a percepção do abismo social que separa as
pessoas das duas regiões.
O Lago Norte é vizinho a Itapoã. No entanto, é provável que, até o
ano de 2005, nenhum estudante de Direito da UnB – muito menos os muitos que
moram no Lago Norte, tão perto e tão longe de Itapoã – jamais tivesse
sequer posto os pés no solo de Itapoã. A maioria provavelmente não sabia
nem mesmo para que lado ficava Itapoã. Em compensação, vários deles já
tinham estado em locais longínquos como Rio de Janeiro, Belém, Porto
Alegre, Recife, Paris, Buenos Aires, Lisboa, Londres, Miami, Sidney,
Moscou...
É extraordinário que vivamos numa sociedade que dá a alguns de seus
membros condições de viajar pelo mundo: isso possibilita a uma pessoa
conhecer outras culturas, aprender outros idiomas e adquirir experiência de
vida. Concordamos com Michel de Montaigne sobre o quão útil pode ser
viajar:
"o viajar me parece uma atividade proveitosa. Através
dela, a alma exercita-se continuamente, a observar coisas
desconhecidas e novas. Não sei de melhor escola (...) para
formar a vida que incessantemente lhe apresentar a
diversidade de tantas outras vidas, fantasias e costumes,
e dar-lhe a provar uma tão perpétua variedade de formas da
nossa natureza" (Ensaios, III, 9). [2]


Viajar é cada vez mais fácil. Os avanços tecnológicos têm permitido
que distâncias sejam encurtadas e virtualmente anuladas, em decorrência do
desenvolvimento cada vez mais acelerado dos meios de transporte e de
comunicação: não apenas pode-se ir a qualquer parte do mundo em algumas
horas, como é possível comunicar-se instantaneamente com pessoas que
estejam do outro lado do globo terrestre. Isso facilitou enormemente o
acesso à informação, possibilitou a constituição de um mercado mundial cada
vez mais complexamente interdependente e a articulação embrionária de uma
sociedade civil internacional. As trocas de capitais são desiguais e o
acesso aos fluxos de informações tem restrições econômicas, mas ainda assim
assiste-se a uma integração espacial, econômica, política, jurídica e
social nunca antes experimentada em escala global com tamanha intensidade.
Porém, Itapoã está à margem desse processo integrativo. Os
itapoanenses participam dele apenas passivamente. Vêem na televisão
(aparelho presente em 86,3% das casas de Itapoã) flashes do que acontece
pelo mundo e assistem à produção da indústria cultural do Brasil e do
exterior, mas não têm acesso, por exemplo, à internet (computador é um bem
presente em apenas 0,2% dos domicílios itapoanenses), meio mais interativo,
potencialmente mais democrático e que possibilita acesso a fluxos de
informação infinitamente mais ricos. Itapoã não existe nas milhares de
pesquisas científicas disponíveis na internet. Aliás, mal há menção a
itapoanenses em quaisquer sites da world wide web; neste caso, nem sequer
passivamente eles tomam parte.
Decisões políticas que são tomadas perto dali, nos suntuosos palácios
de Brasília, e bem longe, por governos de outros países, empresas
multinacionais, organizações internacionais, etc., afetam as vidas dos
moradores de Itapoã de maneiras cruciais sem que eles exerçam adequado
controle sobre esses poderes decisórios. A única prerrogativa política que
parecem exercer é votar periodicamente, em eleições dominadas pelo poderio
econômico, em representantes cada vez mais destituídos de poder efetivo,
num Estado crescentemente tecnoburocratizado. São escassos os meios
institucionais de que dispõem para reivindicar a satisfação concreta dos
direitos que lhes são formalmente garantidos no texto da Constituição e de
pactos internacionais.
Esta estrutura social e esta globalização que marginalizam pessoas e
coletividades, relegando-as à condição de objetos e não as reconhecendo
como sujeitos de direitos, implicam, "assim, a gradativa anulação de
lugares e, conseqüentemente, de pessoas" [3]. Trata-se de uma globalização
que integra, mas também fragmenta; o espaço é compartimentado, o que se
observa claramente na realidade cotidiana das cidades brasileiras. Vide
Itapoã, apartado do Lago Norte, do restante do Distrito Federal e do mundo,
o que se percebe não apenas pelas berrantes diferenças socioeconômicas
claramente territorializadas, mas pela falta de contato da população da
região vizinha (do Lago Norte, por exemplo) com a realidade dos
itapoanenses. Conforme explica José Borzacchiello da Silva, "o sentido de
globalização, aqui, se entrelaça com o conceito de apartação e complementa
o conceito de segregação"[4].
Os viajados alunos da UnB a que nos referimos estão crescentemente
integrados a esse mundo globalizado: conhecem-no pessoalmente, por livros e
sites, consomem produtos provenientes de toda parte, têm acesso a outras
culturas... Mas, perdiam a chance de conhecer as "coisas desconhecidas e
novas", "a diversidade de tantas outras vidas, fantasias e costumes" de
Itapoã, região de realidade tão distinta e que fica logo ali do lado,
distante apenas alguns minutos. Os hábitos de um morador do Lago Sul
provavelmente diferem mais dos de um itapoanense do que dos de um europeu;
talvez Montaigne, se fosse vivo, aconselhasse-nos a "viajar" o quanto antes
para Itapoã.
O que levava, então, esses estudantes a desconhecerem Itapoã? É que,
se o distante tem se tornado mais próximo, o próximo vai ficando distante,
em casos como este[5]. Sabe-se o que se passa com a bolsa de valores de
Xangai, mas não queremos saber como andam as ruas de Itapoã ou o lixão da
Estrutural. O mundo, assim, "cada vez mais, torna-se uno, mas torna-se, ao
mesmo tempo, cada vez mais dividido"[6]; enquanto alguns participam de
redes mundiais de prosperidade, outros são destinados ao "circuito
planetário de miséria"[7].
Em julho de 2005, estudantes de Direito da UnB conheceram moradores
de Itapoã e visitaram a região. Os sentimentos de tristeza e indignação que
dominaram aqueles estudantes os levaram à decisão de agir imediatamente
para transformar aquela situação. Ali se iniciou a história do projeto de
educação popular que apresentaremos e sobre o qual refletiremos brevemente
neste artigo.

1. Objetivos deste artigo

"Não é o conhecimento, por mais consistente que seja, que
pode viabilizar uma extensão de qualidade. O embate entre
teoria e prática na complexidade da formação acadêmica dos
estudantes nos leva a admitir que 'a prática deve ser
inventada pelos práticos'. Quer dizer, a extensão não pode
ser concebida pela teoria, a extensão é inventada por quem
está imerso em determinada realidade, reagindo com ela,
interagindo com os atores sociais."[8]

Não sabemos exatamente qual será a utilidade deste artigo. Um dos
impulsos motivadores da ação em Itapoã foi a recusa de abstrações teóricas
desligadas da prática. Concordamos inteiramente com a epígrafe deste
tópico: a prática é insubordinável pela teoria. Não queremos, portanto,
fundamentar numa teoria a nossa experiência em Itapoã, nem dar aqui
orientações ao projeto sobre como ele deverá atuar. Que os práticos
continuem inventando a prática.
Também não pretendemos explicar os quase dois anos de vida do projeto;
não podem ser explicados neste artigo, nem em qualquer outro. Só há uma
maneira de compreender o que é o projeto: vivenciá-lo. O objetivo central
deste artigo é simplesmente apresentar, em linhas gerais, o que tem sido o
projeto Universitários Vão à Escola, ao longo de sua existência. Queremos
compartilhar nossa experiência, na medida em que isso for possível num
artigo, e tentar gerar curiosidade nas pessoas sobre o projeto. Que fiquem
curiosas e o conheçam adequadamente, participando dele.
Pretendemos, ainda, trazer algumas das reflexões que temos feito ao
longo de nossa prática. Não para construir qualquer teoria generalizante e
simplificadora, mas para mostrar como temos enxergado e problematizado
nossa ação – isso, afinal, é parte importante do que é o projeto, devendo,
portanto, estar incluso numa apresentação dele. Além disso, tencionamos
problematizá-la aqui uma vez mais, buscando compreender os princípios e
fins que nos têm movido e os objetivos que temos alcançado e aspiramos a
alcançar.
Refletiremos, assim, na próxima seção, sobre o papel da universidade e
da extensão universitária, e sobre que tipo de sonho buscamos realizar em
Itapoã. o pensamos estar realizando em Itapoa extensdizado
democrrgumentado, das regras necessprincop microfocos de desvios. cipaçNa
seção seguinte, especificaremos essa reflexão, expondo a justificativa e os
objetivos do projeto Universitários Vão à Escola, enfocando a relação entre
educação e democracia. Em seguida, passaremos a expor o funcionamento
prático da UVE, apresentando a nossa estrutura organizativa, as atividades
e o processo pedagógico que temos desenvolvido.

2. Universidade, para quê? Universidade, para quem?

"[Este] é o país dos diplomas universitários honoríficos,
é o país que deu às suas escolas uma organização tão
fechada e tão limitada, que substituiu a cultura por duas
ou três profissões práticas, é o país em que a educação,
por isso mesmo, se transformou em título para obter um
emprego"[9].
Anísio Teixeira, em texto de 1935

O que fazer para que os moradores de Itapoã tenham seus direitos
fundamentais assegurados concretamente? É a pergunta que nos angustia desde
a primeira vez que pusemos os pés lá.
Angústia não é desespero. O desespero paralisa, a angústia pode ser
estimulante, se for motivada pela percepção da complexidade de um problema
e pela ânsia de achar formas de resolvê-lo. A angústia pode estar ligada
àquela inquietação que nos move na busca da solução de uma complicada
equação matemática ou de uma intrincada questão jurídica; a angústia do
desafio, oposta à lassidão despreocupada da preguiça mental. No caso de
Itapoã, a angústia é maior que a desses exemplos, porque movida não apenas
pelo desejo de pensar formas de resolver um problema, mas pela vontade de
agir na prática para transformar uma situação considerada injusta; é a
angústia da escolha entre a ação ou a passividade.
A situação social é percebida por muitos como a tal ponto imutável que
se generaliza o pensamento de que é inócuo tentar modificá-la; as pessoas
desesperam, optando pela inação frustrada ou agarrando-se a um amor fati
superficial. Boaventura de Sousa Santos explica que a manutenção do status
quo apóia-se hoje na resignação, e não mais no consenso: "o que existe não
tem de ser aceite por ser bom. Bom ou mau, é inevitável, e é nessa base que
tem de se aceitar"[10].
Essa resignação alcança também a universidade. A ordem é conformar-se
ao mercado, produzir conhecimentos e profissionais para atender às
necessidades dele. Nos cursos jurídicos, isso significa marginalizar o
pensamento sobre o que é o direito (ou, melhor dizendo, o que está sendo o
direito), para que e para quem é (está sendo) o direito, quais alternativas
há ao direito existente na teoria e na prática. Estimula-se, por meio tanto
de conteúdos como de métodos, o pior dogmatismo, embotador do pensamento
crítico e autocrítico. Proliferam cursos jurídicos de nível superior que
não são mais do que fábricas de concurseiros formadoras de advogados e
funcionários públicos alienados da função que exercerão, do direito que
aplicarão.
A universidade não deve desprezar o mercado, mas tampouco deve existir
em função dele. Deve relacionar-se de modo independente com todos os
setores da sociedade, mantendo sua autonomia sem se isolar. Para que forme
profissionais aptos a utilizarem seus conhecimentos de modo útil à
sociedade, é preciso que a universidade esteja atenta às múltiplas demandas
sociais. Essas demandas não podem deixar de ter papel central no ensino, na
pesquisa e extensão, as três indissociáveis facetas da universidade.
O que ocorre muitas vezes, no entanto, é o oposto: a universidade se
isola da sociedade e ao mesmo tempo perde autonomia. Isso vai desde a
pesquisa, que pode encontrar na dependência excessiva com relação ao
mercado um obstáculo ao seu livre desenvolvimento, até o movimento
estudantil, que é, no Brasil, um apêndice sem autonomia de alguns partidos
políticos. Aqui, vale o mesmo que se aplica sobre a relação com o mercado:
não é ontologicamente ruim que estudantes sejam filiados a partidos
políticos, contudo, é nociva a forma como isso ocorre atualmente. Essa
partidarização, do modo como ocorre predominantemente, gera falsas
polarizações, desmobiliza a maioria dos estudantes, cerceia o debate e
tolhe a autonomia do movimento estudantil, que se descaracteriza e se
deslegitima.
A universidade relaciona-se com o meio social de maneira inadequada,
nesse caso. Outro exemplo de resposta distorcida a uma demanda social (no
caso, por funcionários públicos qualificados) é o que acontece em vários
cursos jurídicos reconhecidos como de nível superior, mas que não são mais
que cursinhos preparatórios para concursos. Que conhecimento uma Faculdade
de Direito desse tipo está produzindo? Provavelmente, nenhum. E o
(des)conhecimento que reproduz é acrítico, portanto não científico, e
inconsciente de sua potencial (in)utilidade. Não pode haver espaço para
esse "conhecimento" numa universidade, em especial na Universidade de
Brasília. Concordamos com Darcy Ribeiro: "o saber ou a técnica, por
competentes que sejam, nada significam, se não se perguntam para que e para
quem existem e operam"[11].
A universidade tem de questionar constantemente a si mesma, examinando
com independência e lucidez o saber que produz ou deixa de produzir, o
papel que ocupa na sociedade, os condicionantes e efeitos de sua atuação.
Sempre cabe pensar sobre as perguntas que Darcy Ribeiro fez em discurso
proferido há mais de vinte anos aqui na UnB: "Universidade de Brasília,
para quê? Universidade Brasília, para quem?"[12].
Para Darcy, a universidade, além de ter de ser crítica e autocrítica,
teria que ser um espaço privilegiado para pensar o Brasil e formular e
perseguir utopias. Mais uma vez, concordamos com ele: a universidade deve
ser o lugar da utopia. Eis uma frase que soa paradoxal: como um lugar
poderia ser o lugar do não-lugar?[13] A contradição, no entanto, é apenas
aparente, porque "a universidade é o lugar de todos os lugares; a
universidade é o lugar do não-lugar"[14]. A idéia de universidade funda-se
no compromisso com a diversidade de pontos de vista, de pensamentos, de
saberes, de modos de ser e de agir. Nela, não pode haver espaço para a
intolerância e para o pensamento único; devem proliferar perspectivas
diferentes e opostas, que permitam o conhecimento do mundo em sua
inesgotável complexidade. Por isso, a universidade é o lugar de todos os
lugares, inclusive daqueles que não existem.
Trata-se de um local que aspira "a inventar um outro lugar, uma
heterotopia, se não mesmo uma utopia"[15]: a universidade tem a função de
imaginar, de pensar o que não existe, o não-lugar, o outro, o novo. Os
grandes fins da universidade são reproduzir e criar conhecimentos; não há
criação sem imaginação, por isso a universidade é local privilegiado para a
formulação de utopias e para a reflexão sobre elas.
Universidade não pode ser, portanto, lugar para conformismo acrítico
– freqüentemente escondido sob a capa de pretensa neutralidade ou de
suposto realismo. Se a ciência tem a função de compreender a realidade, não
pode se limitar a conhecer o que existe, porque a realidade abrange as
possibilidades e alternativas potencialmente existentes. Caso reduzamos a
realidade ao que existe, teremos uma visão já de antemão parcial, ficando
desprezada uma parte importante do objeto de estudo. Edgar Morin adverte
que "importa não ser realista no sentido trivial (adaptar-se ao imediato),
nem irrealista no sentido trivial (subtrair-se às limitações da realidade);
importa ser realista no sentido complexo: compreender a incerteza do real,
saber que há algo possível ainda invisível no real"[16]. No mesmo sentido,
Boaventura de Sousa Santos explica que
"[a] realidade qualquer que seja o modo como é concebida é
considerada pela teoria crítica como um campo de
possibilidades (...) A análise crítica do que existe
assenta no pressuposto de que a existência não esgota as
possibilidades da existência e que portanto há
alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no
que existe. O desconforto o inconformismo ou a indignação
perante o que existe suscita impulso para teorizar a sua
superação".


O desconforto, o inconformismo e a indignação perante a situação de
Itapoã suscitaram em estudantes de Direito da UnB o impulso imediato não
para a teorização, mas para a ação. Moveu-os um anseio utópico de
transformação social e uma concomitante repulsa a discursos pretensamente
transformadores, porém descolados da realidade e de ações realizadoras de
mudanças concretas. Francis Bacon disse que "os filósofos elaboram leis
imaginárias para comunidades imaginárias e seus discursos são como estrelas
que dão pouca luz por estarem muito altas"[17]; utopias como essas não são
as nossas.
A utopia que inspira o projeto Universitários Vão à Escola é de outro
tipo. Encaixa-se na definição de Boaventura de Sousa Santos, segundo a qual
a "utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite
lutar pelo conteúdo da espera, não em geral mas no exacto lugar e tempo em
que se encontra"[18]. A nossa utopia não está junto às estrelas altas e
distantes criticadas por Bacon. Não estamos distantes de Itapoã, nem
produzimos discursos superiores à realidade; não sobrepomos a ela a camisa-
de-força de quaisquer teorias absolutas. Tampouco nos pretendemos a luz
daquela comunidade. A UVE nasceu do chão da realidade, do chão não
pavimentado que pisamos em Itapoã; a partir dele pensamos, sobre ele
agimos. O projeto se faz pelo contato com essa realidade, pela relação
entre os estudantes da UnB e as pessoas de Itapoã.
Esta é a importância da extensão para a universidade. Discursos,
teorias e profissionais passam a se formar a partir da relação estreita com
outros segmentos da sociedade. Isso não significa que na universidade não
se devam desenvolver pesquisas desprovidas de aplicação prática
perceptível, ou que não possam ser compartilhadas com a comunidade externa.
Não se deve exigir, por exemplo, que um pesquisador deixe de estudar um
assunto extremamente abstrato, de alta complexidade técnica, apenas porque
não há aplicação aparente daquele conhecimento no momento, ou porque ele
não pode ser compartilhado com a comunidade externa (devido à sua extrema
tecnicalidade, que o torna compreensível apenas num meio acadêmico
restrito). Uma exigência de tal modo absurda poria fim à autonomia da
universidade, à sua singular função social de pesquisar livremente todos os
campos do saber humano. A questão é outra: a centralidade da extensão
decorre do fato de ela ser meio para que a universidade aplique seus
conhecimentos de modo criativo para transformar a realidade social em
conjunto com a comunidade externa; para que se produza novo conhecimento
sobre essa intervenção; para que o estudante, o professor e o pesquisador
incorporem ao seu trabalho a permanente consciência crítica sobre a função
desempenhada pelo seu conhecimento na sociedade, sobre as formas como esse
conhecimento é e deve ser apropriado e utilizado.
Assim, a relação entre universidade e comunidade externa deve ser
estreita, porém, não promíscua ou anuladora de sua singularidade, como
aquela existente de modo geral entre partidos políticos e movimento
estudantil, ou como a que ocorre em alguns casos entre empresas e pesquisa
científica. A universidade não deve em nenhum caso abrir mão de sua
autonomia nem de sua atitude crítica e imaginativa.
Essa é a postura que a UVE busca adotar. A nossa utopia é uma
sociedade democrática em que todas as pessoas sejam plenamente cidadãs,
tenham concretamente assegurados os seus direitos fundamentais. Decidimos
lutar em Itapoã por essa utopia, e a arma que escolhemos foi a educação de
crianças e adolescentes.


3. Justificativa e objetivos do projeto


"Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma
criança."

Carlos Drummond de Andrade


Na seção anterior, quisemos mostrar que a UVE existe em função da
indignação com a falta de satisfação dos direitos dos moradores de Itapoã
e, ao mesmo tempo, da insatisfação com o ensino universitário descolado da
realidade social. Procuramos refletir sobre a forma como a universidade
deve inserir-se na sociedade, enfatizando a importância da extensão
universitária para a construção de um saber que nasce da relação com o meio
social e para ele se volta, e para a formação de profissionais sensíveis às
demandas plurais da sociedade e, ao mesmo tempo, intérpretes críticos
delas. A extensão ajuda a impedir que a pesquisa e o ensino pendam para a
constelação de inutilidades criticada por Bacon, ou então descambem para o
lado oposto, do fatalismo acrítico, alienado e não criativo. Concordamos,
por isso, com Boaventura de Sousa Santos, segundo quem "a legitimidade da
universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão,
se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte
integrante das atividades de investigação [pesquisa] e de ensino"[19].
Explicitamos, assim, o que cremos justificar, de modo geral, a
importância da extensão universitária. Buscaremos, agora, expor o que
especificamente justifica o nosso projeto, ou seja, diremos por que
escolhemos a educação de crianças e adolescentes de Itapoã-DF, e qual
importância atribuímos a ela. Ao mesmo tempo, apresentaremos os objetivos
da UVE: para que ela existe, quais metas e sonhos ela persegue.

3.1 Educação e democracia

"A democracia quase não existe entre nós, senão
nominalmente; porque as forças populares, pela
incapacidade relativa em que as coloca a ausência de um
sistema de educação nacional, estão de fato mais ou menos
excluídas do governo."


Rui Barbosa, em discurso pronunciado em 1882[20].

Em 1853, Nísia Floresta Brasileira Augusta publicou o Opúsculo
Humanitário, livro em que criticou severamente os métodos pedagógicos
usuais em sua época, defendeu a emancipação da mulher e a escola pública de
qualidade para todos. Nele, essa extraordinária pensadora do Brasil,
ilustre desconhecida da maioria de seus conterrâneos, alertou que sem uma
"educação esclarecida", "mais facilmente os homens se submetem ao
absolutismo de seus governantes" [21].
Nísia tinha excelentes motivos para criticar as deficiências do
sistema educacional elitista de sua época. José Murilo de Carvalho afirma
que o Brasil tinha, no século XIX, "uma ilha de letrados em um mar de
analfabetos"[22]: de fato, o recenseamento de 1872 mostrou que 84% da
população era analfabeta – e esse índice chegava a 99,9% entre os
escravos[23]. Nísia Floresta compreendia o papel que o descaso com a
educação das massas exercia no sistema de dominação oligárquico,
coronelista e patrimonialista daquele Brasil que ela queria mudar.
Um século e meio depois, a situação continua trágica. É perversamente
irônico constatar que a cidade que leva o nome de Nísia Floresta, no Rio
Grande do Norte, tenha IDH de 0,666 e mais de um quarto da sua população
seja analfabeta – isso, sem levar em conta o analfabetismo funcional[24].
Situação parecida com a de Itapoã, que descrevemos na introdução deste
artigo. Os problemas de desigualdade e exclusão na sociedade brasileira não
são nada recentes: existem desde a formação do país, têm raízes históricas
profundas, conforme percebemos pela leitura do que Nísia Floresta e Rui
Barbosa escreveram no século XIX. O Brasil modernizou-se seletiva e
excludentemente, de modo que permaneceram as injustiças sociais. Como mudar
isso?
A Brasileira Augusta, por meio dos seus livros e da sua vida, nos
recomendou um caminho: a educação. Muitos outros augustos brasileiros
falaram, escreveram e agiram no mesmo sentido: Anísio Teixeira, Paulo
Freire, Pedro Demo, Rubem Alves... Todos eles destacaram o papel
fundamental da educação para a transformação social.
A educação não é um emplastro milagroso apto a solucionar todos os
problemas sociais; porém, é condição indispensável para que eles sejam
solucionados. Como dizia repetidamente Paulo Freire, a educação não é a
alavanca das transformações sociais, mas, estas não se fazem sem ela.
Por isso é que a UVE optou pela educação. Rui Barbosa, no século XIX,
já percebia que a inexistência de um sistema educacional público de
qualidade era impeditivo à realização da democracia. Anísio Teixeira, no
mesmo sentido, explicou que
"a estranha simpatia das democracias pela escola pública
provém de terem as massas antevisto nesta instituição a
possibilidade de uma profunda correção das injustiças
sociais, com a redistribuição dos homens na sociedade,
independentemente das condições em que tenham nascido, e
de acordo com os méritos desenvolvidos de cada um"[25].
Não há democracia sem compromisso com a real igualdade de
oportunidades entre todas as pessoas, a que a educação é meio
imprescindível. Por isso, Anísio Teixeira dizia que só haveria democracia
no Brasil no dia em que se montasse aqui "a máquina que prepara as
democracias. Essa máquina é a da escola pública"[26].
A UVE crê firmemente nisso. Pensamos que é preciso universalizar a
escola pública de qualidade. Por isso, um de nossos objetivos centrais,
expresso em nosso estatuto, é o de "auxiliar a escola pública na formação
de alunos". Além disso, objetivamos também "promover ensino de crianças e
adolescentes carentes do Distrito Federal", buscando "despertar nos alunos
o interesse pelo estudo e pela busca do crescimento mediante o
conhecimento". Esses são alguns dos objetivos estatutários da ONG
Universitários Vão à Escola.
Acreditamos na educação como condição para a transformação social,
como forma de reduzir a desigualdade de oportunidades gerada pelas
diferenças de renda, como meio de democratizar a sociedade. Por isso, outro
de nossos objetivos, conforme explicaremos melhor mais adiante (4.3), é não
apenas democratizar por meio da educação, mas democratizar a própria
educação, pela utilização e construção de métodos pedagógicos fundados no
incentivo à autonomia dos alunos.
A UVE é (esforça-se para ser, pelo menos) mais do que um projeto
meramente assistencial. Evitamos o assistencialismo intelectual, em que
alguém, possuidor do conhecimento, os passa para a outra parte, ignorante e
passiva. Concebemos os alunos como sujeitos de seu próprio conhecimento: o
nosso método pedagógico forma-se em contato com as demandas apresentadas
pelas crianças e por outras pessoas da comunidade itapoanense. Um projeto
de extensão, como o nosso, funda-se no intercâmbio entre a universidade e a
sociedade, no compartilhamento de saberes e experiências, no
estabelecimento de influência recíproca. A nossa ação não é para Itapoã, é
com Itapoã.
Assim, somos também educados nesse processo: aprendemos com os alunos
e com a realidade de Itapoã, somos educados enquanto ensinamos. Essa é
outra dimensão democratizante do projeto: os estudantes universitários
extensionistas são sensibilizados para os problemas sociais de Itapoã. Além
disso, participam de um processo pedagógico diferente daquele que
normalmente conheciam na escola ou na universidade. A busca por uma prática
diferenciada e a constante reflexão sobre ela, características do projeto,
levam à reflexão sobre a educação praticada e pensada de um modo geral na
universidade, nas escolas e em outros lugares.
A inserção cidadã e socialmente responsável da universidade não é
benéfica apenas para a sociedade; é extremamente benéfica, indispensável
mesmo, para a própria universidade. É isto que fundamenta nosso projeto: a
construção de uma sociedade mais democrática, por meio da difusão e troca
de conhecimentos, pela formação de subjetividades (tanto dos alunos da UVE,
moradores de Itapoã, como dos professores, estudantes universitários) mais
autônomas, pelo estímulo à participação cidadã, pela construção de uma
educação dialógica, (auto)crítica e criativa.


4. O funcionamento da UVE

Passaremos agora, finalmente, a apresentar a atuação concreta do
Projeto de Extensão de Ação Contínua e ONG Universitários Vão à Escola.

4.1 Estrutura organizacional do projeto de extensão / ONG

O projeto nasceu informalmente, por iniciativa de estudantes de
Direito da Universidade de Brasília, que na época cursavam o segundo
semestre do curso de graduação. Em julho de 2005, esses estudantes alugaram
uma casa em Itapoã e contataram professores de uma escola pública do
Paranoá (região vizinha onde estudavam as crianças de Itapoã, já que nesta
região não havia escola), para divulgar a intenção de dar aulas de reforço
escolar para crianças e adolescentes de Itapoã.
Os próprios membros financiavam integralmente os custos com o aluguel
da casa, com o transporte para Itapoã, com os materiais necessários às
aulas e com quaisquer outras necessidades. Não havia vínculo formal com
nenhuma instituição, nem uma estruturação bem definida da organização
administrativa do projeto. Isso possibilitou que o projeto nascesse com
independência, mas, por outro lado, gerou algumas limitações.
Naquela época, as decisões administrativas eram tomadas conjuntamente
por todos os membros. Esse processo de tomada de decisão em tese era o mais
democrático, por possibilitar continuamente a máxima participação de todos
na escolha daquilo que o projeto seria e faria. No entanto, gerava lentidão
na tomada de decisões que por vezes necessitavam ser rapidamente feitas.
Além disso, e mais importante, os membros eram todos demasiadamente
absorvidos pelas questões administrativas, em detrimento da discussão e da
reflexão sobre o processo pedagógico. Com isso em mente, os membros
decidiram criar uma diretoria formalmente responsável pela condução
administrativa do projeto. Para isso, era preciso que fossem bem
delimitadas as responsabilidades e atribuições de todos os membros,
inclusive da diretoria.
Com esse fim, imaginando que a formalização do projeto poderia definir
melhor seus contornos, facilitar a feitura de parcerias e tornar mais
célere o processo de tomada de decisão, decidiu-se criar uma Organização
Não-Governamental. O "Projeto Itapoã", como até então era informalmente
chamado, transformou-se na ONG Universitários Vão à Escola, a UVE. O
estatuto da ONG foi elaborado com o auxílio da Advocatta, empresa júnior de
Direito da UnB, amplamente discutido entre todos os membros do projeto, e
finalmente aprovado por unanimidade em novembro de 2005. Os vinte membros
formalmente fundadores da UVE elegeram no mesmo dia a primeira diretoria da
ONG. Estamos hoje às vésperas da eleição da quarta gestão diretora. Ela
deverá ocorrer em Assembléia-Geral Ordinária ainda neste mês de maio de
2007.
No início de 2006, as atividades da UVE passaram a ser registradas
também como Projeto de Extensão de Ação Contínua da Faculdade de Direito e
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Ao passarmos a ser
formalmente reconhecidos como projeto de extensão da UnB, passamos a
contar, em alguns dias da semana, com veículos da UnB para nos transportar
para Itapoã (o que reduziu parcialmente os gastos com locomoção) e ganhamos
mais formas de incentivar a participação dos estudantes da UnB no projeto
(eles poderiam ganhar créditos e até bolsas de extensão, além de poderem
registrar em seu histórico a participação em um projeto de extensão da
UnB). Ademais, as nossas discussões pedagógicas passaram a ser feitas
também com o professor Renato Hilário dos Reis e outros participantes do
Projeto Paranoá, da Faculdade de Educação. O professor Renato Hilário dos
Reis e o professor Alexandre Bernardino Costa são coordenadores do nosso
projeto de extensão na Faculdade de Educação e na Faculdade de Direito,
respectivamente, e têm colaborado significativamente com a UVE.
A diretoria é a principal responsável pela condução administrativa da
ONG, mas não a única. Há na UVE várias comissões, formadas por quaisquer
membros interessados, que agem em diversas frentes de trabalho específicas.
Como exemplos das mais de 10 comissões, podem-se citar a do Dia Alternativo
(no próximo tópico, explicaremos do que se trata esse projeto), a da
Biblioteca (a quem cabe organizar nossa biblioteca em Itapoã) e a de Vendas
(responsável pelo planejamento e pela execução da venda de camisetas e de
outros produtos). Apesar do auxílio da UnB com transporte e da renda
advinda da venda de camisetas, a ONG UVE continua se sustentando quase que
inteiramente por meio da contribuição social dos seus membros.

4.2 Atividades desenvolvidas

Na segunda metade de 2005, primeiro semestre de atuação do projeto,
nossa atividade consistia em dar aulas de reforço de matemática e português
para os alunos inscritos. Além das turmas regulares que foram formadas,
havia sempre um professor disponível (o "apoio", conforme o chamávamos e o
chamamos) para atendimento individual a alunos que apresentassem demandas
mais imediatas e específicas.
No primeiro semestre de 2006, além de terem ocorrido as intensas
transformações pedagógicas que exporemos no próximo tópico (4.2.1), a UVE
passou a desenvolver uma nova atividade: o Dia Alternativo. Realizado no
sábado ou no domingo, o Dia Alternativo consiste na realização de
atividades diversas abertas a toda a comunidade de Itapoã, com foco nos
alunos e nos seus pais. Oficinas, feiras, palestras, e atividades
recreativas têm sido realizadas com sucesso no Dia Alternativo.
Um desafio a ser enfrentado quanto ao Dia Alternativo é conseguir
atrair mais pessoas de Itapoã para participarem dele, de modo que seja
propiciada a integração da comunidade. Normalmente, apenas crianças alunas
do projeto costumam ir aos Dias Alternativos. Por outro lado, um outro
objetivo almejado com essa atividade vem sendo alcançado e necessita ser
aprofundado: a integração com outros projetos (sobretudo os de extensão da
UnB), que têm sido convidados a realizar atividades em Itapoã.
No segundo semestre de 2006, o Dia Alternativo se consolidou e o
método pedagógico continuou em permanente discussão e busca de
aperfeiçoamento. Depois de um ano utilizando uma casa alugada, mudamos a
sede de nossas atividades em Itapoã para a Capela Nossa Senhora de Lourdes,
espaço cedido gratuitamente pela comunidade. Nesse semestre, a UVE passou a
confeccionar e vender camisetas que têm estampados como temas principais a
UnB, seu cotidiano e imaginário. As camisas têm feito sucesso, atingindo
seu público alvo, os estudantes da UnB. Por meio delas, angariam-se fundos
para financiar a UVE e, secundariamente, ainda se presta um serviço de
valorização da Universidade de Brasília, sobretudo no seu corpo discente.
Em 2006, a UVE participou da Semana de Extensão da UnB, ocasião em
que os alunos do projeto em Itapoã foram trazidos para conhecer a
universidade. Antes disso, alguns deles já tinham sido levados por membros
da UVE para jogar futebol numa quadra da UnB. Cremos que passeios como
esses, e como outros que têm sido feitos com as crianças, são fundamentais
para o rompimento da verdadeira segregação sofrida por Itapoã, apartação
inclusive física a que nos referimos na introdução deste artigo. O
compartilhamento dos mesmos territórios é fundamental a tal ruptura, e à
formação do sentimento de participação de uma mesma comunidade.
Neste primeiro semestre de 2007, a UVE está dando continuidade às
suas atividades em Itapoã, e voltando-se agora para outras regiões do
Distrito Federal. No ano passado, a UVE começou a se organizar para
participar de projetos de inclusão digital em Santa Maria e em Samambaia,
regiões do DF que também contam com péssimos índices de desenvolvimento
humano. A UVE deverá começar a atuar nessas comunidades em breve, buscando
concretizar também neles o ideal de construir a autonomia de indivíduos e
grupos sociais por meio da educação.

4.2.1 O caminho pedagógico da UVE

"Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo; se é
triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los
sentados enfileirados em salas sem ar, com exercícios
estéreis, sem valor para a formação do homem".


Carlos Drummond de Andrade

A intenção inicial do projeto era dar aulas de reforço escolar de
português e de matemática, duas matérias fundamentais em todas as séries e
para toda a vida, e com as quais os alunos costumam ter dificuldades. No
primeiro semestre de funcionamento, os alunos que se inscreveram para ter
aula no projeto foram divididos em quatro níveis, de acordo com a
competência lingüística demonstrada em prova classificadora que aplicamos.
Havia, assim, quatro turmas no turno matutino e quatro no vespertino. Cada
turma tinha aulas em quatro dias da semana, sendo duas aulas de português e
duas de matemática. Além disso, havia o "apoio" a que já nos referimos, o
membro do projeto que ficava disponível para atendimento individual a
alunos que apresentassem demandas mais imediatas e específicas de qualquer
matéria.
As dificuldades enfrentadas na época eram inúmeras: nossa falta de
experiência em dar aulas, a dificuldade de estimular os alunos a prestarem
atenção na aula e a fazerem as atividades pedidas por nós, a alta evasão, a
sujeira da casa e a imundície do banheiro... Todos esses problemas têm sido
debatidos desde o início do projeto, em reuniões pedagógicas nas quais
trocamos impressões, experiências, frustrações e conquistas, fazemos
críticas e sugestões de mudanças. Essas reuniões, na época, eram feitas
ainda de maneira irregular, e as discussões pedagógicas dividiam espaço com
as administrativas (não existia formalmente uma diretoria, não tínhamos
ainda nos registrado como ONG), mas ainda assim eram muitíssimo importantes
para que pensássemos e discutíssemos a nossa prática.
Nessa época, a grande discussão era sobre como conseguir que as aulas
fossem eficazes, que os conteúdos fossem passados adequadamente para os
alunos. Havia também, no entanto, uma outra inquietação, derivada da nossa
insatisfação não apenas com os resultados do método que empregávamos, mas
com o método em si. Desde o início do projeto, nos propúnhamos a
desenvolver o pensamento crítico, a criatividade e a auto-estima dos
alunos. Sabíamos que grande parte das dificuldades que enfrentávamos
decorria de nossas deficiências de formação (não somos profissionais e
éramos inexperientes) e da falta de infra-estrutura adequada. Intuíamos,
contudo, que o problema ia além; o próprio método, baseado em aulas
expositivas de português e de matemática, não favorecia a concretização dos
nossos objetivos pedagógicos.
Os métodos pedagógicos que utilizávamos eram os mesmos que vêm sendo
praticados hegemonicamente no Brasil há séculos. No discurso de Rui Barbosa
que citamos neste trabalho, ele criticou duramente a educação de sua época,
livresca e preocupada apenas com a memorização. Clamou por "reforma dos
métodos e reforma do mestre"[27], pela introdução expressiva da ciência em
todos os níveis de instrução, pelo estímulo ao raciocínio e não à
memorização. Seus clamores não foram atendidos. Vemos hoje que o sistema
educacional do Brasil continuava padecendo dos mesmos males daquela época.
Nós não estávamos sendo agentes competentes de transformação social neste
caso, o que nos inquietava a procurar maneiras de mudar nossa metodologia.
Foi nesse momento, nas férias entre o fim das aulas de 2005 e o
reinício em 2006, que conhecemos a Escola da Ponte, por meio de uma série
de belas crônicas de Rubem Alves. A Escola da Ponte é apresentada por Rubem
Alves como a escola dos seus sonhos. Era também a escola dos nossos sonhos.
Uma escola pública de Portugal que tem se pautado, desde 1976, pela busca
da realização prática de dois valores fundamentais: a autonomia e a
solidariedade.
O relato de Rubem Alves nos fascinou. Achamos o que procurávamos: um
método pedagógico que fugia do autoritarismo e se baseava na autonomia dos
alunos e na solidariedade entre todos os partícipes do processo de
aprendizado. Buscamos conhecer melhor o Projeto da Escola da Ponte; lemos o
Projeto Educativo "Fazer a Ponte", disponível no site da Escola, o seu
regulamento interno, crônicas sobre ela, visitamos o blog da Escola e o da
Associação de Pais... Fascinamo-nos mais ainda.
A Escola da Ponte não trata os alunos uniformemente, considerando-os
iguais; ocultar e apagar as diferenças entre as pessoas é algo tipicamente
totalitário. A Escola da Ponte assume e valoriza a singularidade de cada
indivíduo, estimulando sua responsabilidade, iniciativa e criatividade.
Propõe-se a "tentar descobrir e valorizar a cultura de que é portador" e
"ajudá-lo a descobrir a ser ele próprio em equilibrada interacção com os
outros"[28].
Encontramos, na Escola da Ponte, a consubstanciação dos nossos valores
e ideais pedagógicos: a centralidade, no processo educativo, da autonomia
do aluno, concebido como sujeito produtor de seu próprio conhecimento; a
valorização do saber e da cultura de que o aluno é portador, pontos de
partida da construção do conhecimento a partir da experiência; a
compreensão holística, interdisciplinar do conhecimento, compreendido como
objeto histórico e complexo; o compromisso com a formação de cidadãos
participativos e solidários.
Para realizar esses princípios, a Escola da Ponte adota a organização
do trabalho escolar em torno do aluno, a pedagogia de projetos e a educação
tutorial. A pedagogia de projetos permite que o aluno desenvolva
habilidades e competências buscando soluções para problemas concretos; o
foco da educação deixa de ser tornar o aluno apto a memorizar informações
estanques, passando a ser torná-lo capaz de mobilizar conhecimentos que já
possui e adquirir informações interdisciplinares para lidar com situações
da vida. A pedagogia de projetos, ainda mais da forma como é feita na
Escola da Ponte, onde os alunos escolhem os projetos que desenvolverão,
leva ainda ao estímulo à iniciativa e à responsabilidade e tornam a
educação uma experiência mais próxima dos interesses e da realidade do
aluno.
A educação tutorial permite que cada aluno seja acompanhado de perto e
continuamente por um orientador pedagógico. Deixa de existir a figura do
docente que instrui o aluno, passando-lhe informações; passa a haver o
tutor que mediatiza e supervisiona o processo de aprendizagem do aluno,
orientado a partir de seus príprios interesses e motivações. A educação
tutorial possibilita maior proximidade entre orientador e aluno, o que
viabiliza a concretização do princípio de tratar cada aluno como pessoa
singular que demanda acompanhamento educativo diferenciado e
individualizado.
A organização do trabalho escolar em torno do aluno está ligada ainda
a outras práticas da Escola da Ponte, como a votação pelos próprios alunos
dos seus direitos e deveres na escola. Os alunos aprendem na prática o que
significa cidadania. O funcionamento da Escola da Ponte tem uma série de
outras peculiaridades, como por exemplo a não existência de séries ou salas
de aula: os alunos são divididos apenas em três níveis de autonomia, e
executam as atividades no mesmo ambiente, compartilhando saberes e pondo em
prática o princípio da solidariedade.
A UVE nunca pretendeu transplantar para Itapoã a metodologia da Escola
da Ponte; isso seria impossível e, até certo ponto, indesejável. A
realidade em que agimos é outra, e o caminho pedagógico percorrido por nós
é singular. Não existe "modelo da Ponte" a ser transplantado para outros
lugares – quem o diz é o próprio José Pacheco, que coordenou a Escola
durante três décadas e foi o líder das inovações que lá ocorreram.
Buscamos, no entanto, a partir da convergência entre os nossos princípios e
os da Escola da Ponte, nos inspirar em sua experiência bem-sucedida para
mudar nosso método pedagógico em Itapoã. Não tínhamos muito a perder:
estávamos insatisfeitos com os resultados alcançados com o método anterior
e, por não sermos uma escola, que necessita cumprir um programa rígido,
temos liberdade para tentar implantar metodologias cujos frutos possam ser
auferidos no longo prazo.
Adotamos, assim, no primeiro semestre de 2006, método bastante diverso
daquele que até então utilizávamos. Passamos a enfocar não mais o repasse
de informações por meio de aulas expositivas de português e de matemática,
mas o desenvolvimento de competências e habilidades por meio de projetos
escolhidos e desenvolvidos pelos alunos a partir de sua vivência cotidiana.
As disciplinas deixaram de ser ministradas de modo compartimentado: os
conteúdos do currículo escolar eram estudados conforme as necessidades dos
projetos. O professor deixou de ser o expositor que deposita conhecimentos
nos alunos (objetos vazios que se devem encher), passando a atuar como
orientador pedagógico, responsável por orientar a pesquisa autônoma das
crianças. Passamos a contar, nessa época, com uma pequena biblioteca em
Itapoã, o que já possibilitava condições mínimas para os alunos fazerem as
pesquisas.
Os alunos passaram a ser estimulados a problematizarem situações e
exporem seus pontos de vista; o orientador passou a ouvir mais, explorando
as experiências das crianças. Extinguimos os quatro níveis segundo os quais
os alunos eram divididos em turmas. Seguindo o exemplo da Escola da Ponte e
tendo em mente que todos podem aprender com todos (o que não significa que
todos estejam no mesmo nível de aprendizado), tentamos estimular os alunos
a dividirem solidariamente seus conhecimentos e incentivamos as atividades
em grupo, que passaram a ser a regra dos trabalhos.
Obtivemos, com esse método de orientação construtivista inspirado na
Escola da Ponte, alguns avanços. As crianças aprenderam muito mais: não
memorizaram mais (nem menos) conteúdos, mas cremos que desenvolveram sua
autonomia, pela participação numa experiência pedagógica centrada nelas
como sujeitos produtores do próprio conhecimento, e sua auto-estima, por
terem suas experiências e seus saberes valorizados (como pontos de partida,
e não de chegada, ressalte-se[29]). A experiência de terem elaborado e
votado seus próprios direitos e deveres – o que ocorreu na primeira semana
de aula de 2006 – é talvez o melhor exemplo que podemos citar de atividade
muito bem-sucedida sob este novo método e esta nova filosofia pedagógica.
Alguns problemas, contudo, persistiram: a evasão, por exemplo. Trata-
se de uma dificuldade crônica em vários projetos de extensão, e conosco não
é diferente, o que muito nos frustra. Pelo menos, ela nunca foi tamanha a
ponto de impedir a realização satisfatória de nossas atividades, o que
demonstra o interesse dos moradores de Itapoã em tomar parte no projeto
(temos tido normalmente uma freqüência de pelo menos 10 alunos por turno,
desde o início do projeto).
Outra dificuldade que tivemos foi fazer com que alguns alunos não
confundissem autonomia com licenciosidade para fazer o que bem entendessem.
A idéia não é disciplinar os alunos para que façam o que nós queremos;
nossa intenção é basear os trabalhos nos interesses deles – mas, para isso,
eles têm de se mostrar interessados em aprender, o que às vezes não ocorre.
Não é fácil lidar com crianças. Seria bom se tivéssemos acompanhamento de
psicólogos para tal, mas até o momento não dispomos disso ainda.
Não temos um método fixo. O método que expomos, implantado no 1º
semestre de 2006, começou a mudar já no momento em que foi implementado.
Logo fizemos uma separação entre as crianças que sabiam ler (mesmo que
precariamente) e as que não sabiam; não conseguíamos trabalhar
satisfatoriamente com os dois grupos ao mesmo tempo, segundo o modelo da
Ponte, em que todos os orientadores pedagógicos e todos os alunos estão em
permanente contato, embora realizando atividades diversas.
Método significa "caminho pelo qual se atinge um objetivo", segundo o
dicionário Aurélio e pela análise etimológica da palavra. Não faz sentido
fetichizar um método, qualquer que seja ele. Temos claros, hoje, quais são
os princípios e fins de nossa proposta pedagógica, já exposta aqui. Para
realizá-los da melhor maneira possível, discutimos incessantemente a nossa
prática, em reuniões pedagógicas quinzenais (que contavam inclusive, em
2006, com a participação do prof. Renato Hilário dos Reis e de outros
membros do Projeto Paranoá, numa interessante troca de experiências entre
projetos de extensão).
No momento, a orientação metodológica básica que adotamos baseia-se
na realização diária de atividades lúdicas, de pesquisa e produção de
trabalhos pelos alunos, que são estimulados a compartilhar com todos o seu
trabalho e a se auto-avaliarem. Neste primeiro semestre de 2007, alguns
projetos que estão sendo realizados são o Projeto Pintura, o Projeto Livro
e o Projeto Fotografia. Em breve, os produtos desses projetos deverão ser
expostos em Itapoã, na UnB e em espaços externos.

5. Um saldo provisório

"A democracia é um sistema complexo de organização e de
civilização políticas que nutre e se nutre da autonomia de
espírito dos indivíduos"[30].

Edgar Morin

Expusemos de modo extremamente sintético, na seção anterior, a
história da UVE. A narração talvez tenha ficado um pouco confusa, não muito
cartesiana, mas é que assim tem sido a história do nosso projeto, assim é
qualquer ação deste mundo. Edgar Morin, grande teórico da complexidade,
afirma que as pessoas se enganam ao pensar que a escolha, a decisão e a
ação implicam simplificação. Na verdade, qualquer ação que empreendamos
escapa inevitavelmente de nossas intenções, entrando em um universo de
interações ambientais complexas, que pode mudar o sentido da ação e até
torná-lo contrário à intenção inicial. É preciso compreender, praticando o
que Morin chama de ecologia da ação, a complexidade suposta pela ação, "ou
seja, o aleatório, acaso, iniciativa, decisão, inesperado, imprevisto,
consciência de derivas transformações"[31].
Esse conselho de Morin tem sido praticado constantemente pelos
membros da UVE. O improviso acaba tendo um espaço privilegiado no dia-a-dia
do projeto. Esse artigo tentou ser autêntico e sincero; não tentou
falsificar nossa história, imprimindo nela uma falsa racionalização. As
coisas acontecem, em grande medida, por acaso... Ou, pelo menos, por efeito
de variáveis incontroláveis. Isso não significa, no entanto, que sejamos,
na UVE, espontaneístas; sabemos quais são nossos objetivos e nossos
princípios. Ocorre que a concretização deles é mediada por boas doses de
acontecimentos imprevisíveis, com os quais só se pode lidar improvisando;
não há modelos nem manuais que nos digam o que fazer.
Aliás, é para isso que a educação tem de preparar as pessoas: para
lidarem com as situações complexas da vida, cheias de imprevisibilidades.
Para que tenham consciência dos riscos de sua ação, sabendo que, como diz
Morin, ela pode "voltar como um bumerangue sobre as suas cabeças"[32], mas,
mesmo assim, ajam – assumindo a responsabilidade pelos riscos que correm.
Para desafiarem a naturalização do cotidiano injusto, a banalização da
condição humana, o totalitarismo que permeia, silencioso ou gritante,
instituições e práticas sociais. Para desenvolverem continuamente sua
autonomia, sua capacidade de independência que não implica isolamento, mas
solidariedade e abertura com relação ao outro, e capacidade de agir em
conjunto. Para que saibam pensar de forma crítica e autocrítica, buscando
conhecer a si mesmas e ao mundo. Para não apenas tolerarem, mas aceitarem e
valorizarem a diferença. A educação tem de preparar as pessoas, em síntese,
para a democracia.
A UVE nasceu da iniciativa de estudantes da UnB que souberam
interpretar a realidade, aceitar os riscos de sua ação e agir em conjunto
para transformar a sociedade. Provavelmente, não pensavam, naquele momento,
em transformar a si mesmos; mas, esta é parte fundamental do saldo do
projeto. Não é apenas retórica dizer que ensinar significa sempre aprender.
Mencionamos, neste artigo, a pedagogia de projetos, em que o aluno aprende
realizando projetos. Ora, a UVE é um projeto, e por meio dele os estudantes
da UnB têm crescido muitíssimo em vários dos objetivos que mencionamos que
a educação deve perseguir. Enfrentando uma situação-problema, os associados
da UVE utilizam suas experiências e conhecimentos e criam na prática novos
conhecimentos, ao se verem forçados – por sua própria ação – a fazer o
novo. Aquilo que tentamos fazer valer para os alunos do Projeto, vale para
nós, os orientadores pedagógicos.A UVE contribui, assim, para a formação de
subjetividades democráticas. Esperamos que todos levemos para a nossa
futura prática de profissionais do Direito (curso que a maioria de nós, da
UVE, faz) as lições de democracia, autonomia e cidadania que aprendemos com
nossos colegas da UVE e com nossos alunos em Itapoã.
Além desse aspecto de formação dos orientadores, é claro que o saldo é
também positivo quanto aos alunos do projeto. Fizemos muito juntos,
aprendemos muito juntos. Dissolvemos um pouco a fronteira entre "nós" e
"eles", rompemos, a cada vez que vamos a Itapoã ou trazemos as crianças
para a UnB, a bolha que os mantém apartados do mundo e a outra, que mantém
a nós separados deles. "O principal bem que distribuímos uns aos outros é a
filiação em alguma comunidade humana"[33], diz Michael Walzer. Esse é um
bem que os estudantes da UnB e os moradores de Itapoã têm distribuído uns
aos outros, reconhecendo-se reciprocamente como membros de uma mesma
comunidade humana.
Outro saldo positivo do projeto é aquele que constituía sua intenção
imediata: o reforço escolar a crianças e adolescentes de Itapoã.
Infelizmente, o Estado não garante uma educação de qualidade para elas. A
UVE dá uma pequena contribuição, no curto prazo, para que essas crianças
tenham uma educação de melhor qualidade. Se o modelo pedagógico que
adotamos estiver conseguindo, em alguma medida, ter êxito, estamos dando
também a contribuição a médio e longo prazo, pela democratização a que já
nos referimos, e pela formação de pessoas autônomas, mais capazes para o
exercício da cidadania, da assunção da responsabilidade social e da
solidariedade.
John Dewey, no livro Democracia e Educação, afirmou "que o
desenvolvimento de bons hábitos de pensar é a função mais importante da
escola"[34]. Edgar Morin expressou pensamento parecido com outras palavras,
ao dizer que "o dever principal da educação é de armar cada um para o
combate vital para a lucidez"[35]. Esse é outro saldo positivo que temos
alcançado, embora com as brutais limitações de sempre, impostas pelos
condicionamentos do mundo. Desenvolvemos, em conjunto com as crianças de
Itapoã, hábitos de pensar lucidamente, submetendo idéias ao crivo rigoroso
da prática e da reflexão sobre ela, superando ingenuidades, combatendo
mistificações nossas e dos outros. Desenvolvemos uma "epistemologia da
mente curiosa"[36], como diz Paulo Freire: uma atitude inquieta de
questionamento permanente do mundo.
A pedagogia que tentamos praticar propõe que avaliações baseiem-se
muito mais no processo do que no produto, muito mais qualitativa do que
quantitativamente. É assim que cabe, portanto, avaliar a nós mesmos. É
assim que estamos nos avaliando, aqui: observando o processo, que está em
marcha. É difícil concluir este artigo – como poderíamos concluir algo que
não está concluso?
A nossa conclusão, portanto, é que "o caminho é sempre melhor que a
pousada", como disse Miguel de Cervantes Saavedra, pela boca de Dom Quixote
de La Mancha.

6. Referências bibliográficas

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-----------------------
* Partes deste artigo, produzido no início de 2007, compuseram capítulo
homônimo publicado em co-autoria com colegas da UVE no livro A experiência
da extensão universitária na Faculdade de Direito da UnB, Coleção O que se
pensa na Colina, v. 3. Brasília: UnB, 2007.
** Graduando em Direito na Universidade de Brasília (UnB), bolsista do
Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da UnB (PET-REL /
UnB).
[1] Todos os dados que serão citados nesta seção sobre regiões do Distrito
Federal constam na "Coletânea de informações socioeconômicas" de 2006,
feita pela Companhia do Desenvolvimento do Planalto Central (Codeplan).
[2] "Outre ces raisons, le voyager me semble un exercice profitable. L'ame
y a une continuelle exercitation, à remarquer des choses incogneuës et
nouvelles. Et je ne sçache point meilleure escole, comme j'ay dict souvent,
à façonner la vie, que de luy proposer incessamment la diversité de tant
d'autres vies, fantasies, et usances : et luy faire gouster une si
perpetuelle varieté de formes de nostre nature". Disponível na internet no
endereço: http://www.bribes.org/trismegiste/es3ch09.htm
[3] SILVA (2002: p. 144).
[4] SILVA (2002: pp. 139, 140).
[5] SILVA (2002: p. 141).
[6] MORIN (2002, p. 69).
[7] MORIN (2002, p. 68).
[8] "Proposta de reestruturação da arquitetura acadêmica da Universidade de
Brasília" (2007; p. 12).
[9] TEIXEIRA (1997, p. 125).
[10] SANTOS (2005, p. 35).
[11] RIBEIRO (1986, p. 10).
[12] RIBEIRO (1986, p. 9).
[13] Utopia, etimologicamente, significa não-lugar, conforme explica o
Dicionário Aurélio. "Utopia: Do lat. mod. utopia < gr. o oÏ, 'não', + gr.
tópos, 'lugar', + gr. -ía, (v. -ia1)".
[14] A frase é do professor Carlos Newton Júnior.
[15] SANTOS (2005).
[16] MORIN (2002, p. 85).
[17] BACON apud CARR.
[18] SANTOS (2005, p. 36).
[19] SANTOS apud Plano Nacional de Extensão Universitária (1998, p. 1).
[20] BARBOSA apud MORAES FILHO (1987, p. 100).
[21] Nísia Floresta Brasileira Augusta (disponível em
http://www.memoriaviva.com.br/nisia/ ).
[22] CARVALHO apud SCHWARCZ (1998, p. 118).
[23] SCHWARCZ (1998, p. 118).
[24] Dados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística.
[25] TEIXEIRA (1997, p. 234).
[26] TEIXEIRA (1997, p. 230).
[27] BARBOSA apud MORAES FILHO (1987, p. 100).
[28] Projeto Educativo "Fazer a Ponte" (2003, p. 3).
[29] FREIRE (2001, p. 143).
[30] MORIN (2002, p. 108).
[31] MORIN (2002, p. 86).
[32] MORIN (2002, p.87).
[33] WALZER (2003, p. 39).
[34] DEWEY (1997,
http://www.worldwideschool.org/library/books/socl/education/DemocracyandEduc
ation/chap12.html )
[35] MORIN (2002, p. 33)
[36] FREIRE (2001, p. 118).
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