UPPS E SEGURANÇA PÚBLICA: Um estudo sobre o discurso midiático

July 14, 2017 | Autor: Pablo Nunes | Categoria: Media Studies, Police, Policiamento
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

UPPS E SEGURANÇA PÚBLICA: Um estudo sobre o discurso midiático

PABLO DE MOURA NUNES DE OLIVEIRA

RIO DE JANEIRO 2012

PABLO DE MOURA NUNES DE OLIVEIRA

UPPS E SEGURANÇA PÚBLICA: Um estudo sobre o discurso midiático

Monografia apresentada como requisito à obtenção da conclusão do Curso de Graduação em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Maria Claudia Coelho Co-Orientador: Doriam Borges

RIO DE JANEIRO 2012

PABLO DE MOURA NUNES DE OLIVEIRA

UPPS E SEGURANÇA PÚBLICA: Um estudo sobre o discurso midiático

Monografia apresentada como requisito à obtenção da conclusão do Curso de Graduação em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Maria Claudia Coelho Co-Orientador: Doriam Borges

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Maria Claudia Coelho

__________________________________________________________ Doriam Borges

__________________________________________________________ João Trajano Sento-Sé

__________________________________________________________ Raquel Brum Fernandes

“A guerra é uma invenção da mente humana; e a mente humana também pode inventar a paz.” Sir Winston Churchill.

RESUMO

O presente trabalho é um esforço para a compreensão do discurso midiático quando o tema é segurança pública. Mais especificamente, a proposta é analisar como as diferentes políticas de segurança pública são veiculadas pela mídia. Tomando como base as teorias sobre os diferentes tipos de policiamento (BAYLEY, 2006; BAYLEY E SKOLNICK, 2006), situa-se a tensão entre os modelos de policiamento profissional e o policiamento comunitário dentro da realidade brasileira. Com o intuito de dar maiores subsídios para o entendimento da questão, alguns trabalhos brasileiros são discutidos na Revisão Bibliográfica, que por fim auxiliam no entendimento da realidade específica da cidade do Rio de Janeiro. Além da delimitação dos modelos de policiamento e seus exemplos no Brasil, a Revisão Bibliográfica ainda traz uma discussão sobre a maneira pela qual Mídia e Violência se relacionam e ainda, como entender a forma pela qual o discurso midiático cria “imagens” do real. Em seguida são feitas considerações com relação a metodologia utilizada na pesquisa e o modo pelo qual a coleta do material foi realizada, bem como o corte histórico e suas justificativas. A seguir a Análise abre com considerações sobre as intervenções estatais dentro dos territórios de pobreza e como essas intervenções estiveram (e estão) intimamente ligadas a “imagem” que esses territórios possuem na sociedade. A análise dos jornais se divide em dois blocos. O primeiro é dedicado a análise da implantação da UPP do Santa Marta, localizando as noticias relacionadas e o modo pelo qual elas se apresentaram dentro do período analisado. Em seguida, os jornais do período em que o Complexo do Alemão foi alvo de diversas ações da policia são analisados, tendo em vista o volume de reportagens, suas localizações e os seus conteúdos. A guisa de conclusão são feitos alguns apontamentos com relação ao material recolhido e analisado, bem como a bibliografia utilizada, apontando para as questões propostas e outras, que serão temas de trabalhos seguintes.

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ABSTRACT

This work is an effort to comprehend the midiatic speech. The theme treated here is the public security. More specifically, the propose is to analyse how different politics of public security are propagated by the media. Using the theory about the different types of policing, there is the tension between the models of professional police and community policing in Brazilian reality. With the propose of giving more information to understand the meaning of the question, many Brazilian works are discussed in the bibliographic review, it auxiliates the comprehension of the specific reality of Rio de Janeiro city. In addition to the delimitation from the police models and your examples in Brazil, the bibliographic review brings a discussion about the manner how media and violence are related, and try to understand the way how midiatic discuss creates "images" from the real. In sequence, some considerations about methodology used in the research are made, as well as the historical cut and their justifications. Next, the analysis begins with the consideration of statal intervention in poor territories and how these investigations were (and are) intimately linked to the image that these territories have in the society. The analysis from the papers is divided into two blocks. The first is dedicated to understand the implementation of the UPP in Santa Marta, localizing the related news and the way how they are presented during the analysed period. In sequence, there is an analysis of the newspapers during the period when Complexo were the center of several police actions are analysed, considering the number of reports, their location

contents. The conclusion has some indications about the

material collected and analysed, about the bibliography utilized, showing the proposals and other questions, subject of the following works.

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SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2.DELIMITAÇÃO DO OBJETO ................................................................................ 11 3.REVISÃO BIBLIOGRÁFICA .................................................................................. 15 3.1 ”Padrões de Policiamento”: Por uma Sistematização do Policiamento Moderno ............................................................................................................................... 15 3.2 O policiamento comunitário na obra de David Bayley e Jerome Skolnick ........ 24 3.3 Notas sobre segurança pública e formação dos policiais cariocas .................. 27 3.4 Policiamento Comunitário no Brasil: duas experiências. .................................. 32 4.METODOLOGIA .................................................................................................... 34 5. ANÁLISE............................................................................................................... 41 5.1. O “Problema” da favela ................................................................................... 41 5.2. Santa Marta..................................................................................................... 44 5.3. Complexo do Alemão ...................................................................................... 51 5. CONCLUSÃO ....................................................................................................... 66 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 71

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1. INTRODUÇÃO

Ao se fazer o percurso histórico das favelas na cidade do Rio de Janeiro, desde sua gênese até a atualidade, podemos notar que sua representação frente a sociedade se modificou diversas vezes. Esses territórios de pobreza já foram vistos como fontes da cultura popular genuína, mas também como o foco da violência, do crime, da “malandragem”, e marcados pela ausência de recursos e/ou comportamentos valorizados pela população em geral (VALLADARES, 2000). Na passagem dos anos 70 para os 80 o Rio de Janeiro passa a ser rota do comércio internacional de drogas, trazendo uma nova variável que implicaria de maneira contundente na configuração do tráfico de drogas na cidade: a cocaína. Os traficantes encontrarão nas favelas as condições favoráveis para se instalarem, pois por se localizarem em morros, terem terreno acidentado, composto por vielas estreitas, elas são de difícil acesso para quem desconhece sua geografia. Com a entrada do traficante, a sociabilidade desses territórios de pobreza é modificada, obrigando os moradores a pautarem suas ações de acordo com a violência que lhes incide, tanto originada dos traficantes, quanto dos policiais. Com o objetivo de desarmar os traficantes em áreas de favela, as Unidades de Polícia Pacificadora surgem, em meio a uma política de segurança que em última instância culpou os moradores de favelas pela violência da cidade1. O verbo mais utilizado para essa política de segurança pública é “pacificar”, ou seja, levar a “paz”. O trabalho a seguir demonstra que a idéia de “paz” vem acompanhada de outras lógicas anteriores. Aqui, dois modelos de policiamento se chocam: O Policiamento Comunitário e o Profissional, se correlacionam com as idéias de “paz” e “guerra”, em um amálgama de representações que demonstram que mesmo quando a tentativa é modificar a lógica do policiamento e da ação policial, as práticas e idéias arraigadas, tanto na subcultura policial, quanto na sociedade em geral, se apresentam, formando um conflito simbólico que de certa forma é a tônica de quase todo o discurso analisado. O presente trabalho é um esforço para o entendimento do discurso midiático e sua ordenação da realidade com relação à segurança pública do Rio de Janeiro. As análises aqui feitas se referem especificamente ao jornal O Globo, em dois momentos distintos: a inauguração da primeira Unidade de Polícia Pacificadora e a operação realizada no

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“Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro”. Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html

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Complexo do Alemão que ficou conhecida como a “tomada do Alemão”. Esses dois momentos foram escolhidos para serem objetos de análise por se tratarem de momentoschave para a segurança pública do Rio de Janeiro nos últimos anos. As UPPs despontaram como o principal braço da política de segurança, oferecidas como alternativa e modificação das antigas práticas policiais, onde a interação entre polícia e favela eram simplesmente as operações bélicas realizadas no território. Com a proposta de se configurar como uma ocupação definitiva, as UPPs, em seu conceito, possuem ideais do modelo de policiamento comunitário. Por outro lado, os eventos ocorridos no Complexo do Alemão ficaram conhecidos como “A Guerra do Rio”, pelo modo como foram realizados (apoio da Marinha, blindados, armamentos pesados) e também pelo modo como foram veiculados pela mídia. O discurso da mídia com relação a esses dois eventos é o objeto desse estudo. O intuito é verificar como se inscreve a tensão entre os modelos de policiamento dentro dos jornais do período estudado. Policiamento profissional e comunitário concorrem dentro de cada matéria, revelando a imagem que a mídia se propõe a veicular em cada caso. Como forma de delimitar os modelos, Bayley e Skolnick (2006) são utilizados, por se tratarem dos grandes teóricos nas formulações sobre a tipificação do policiamento. Sendo assim, suas teorias com relação aos modelos de policiamento são utilizadas como norteadores do presente trabalho. Dessa forma, o trabalho se divide em cinco partes. A primeira é dedicada à delimitação do objeto de estudo, apresentando algumas características para guiar a análise do discurso midiático. A segunda parte se dedica a analisar algumas características do policiamento como um todo. Para isso, utiliza-se o livro “Padrões de Policiamento” de Bayley (2006), que estabelece algumas matrizes para se pensar o policiamento. Em seguida, discute-se a noção de policiamento comunitário à luz de Bayley e Skolnick (2006), no seu trabalho “Policiamento Comunitário”. A intenção é delimitar quais as características desse tipo de policiamento com o intuito de verificar a forma pela qual as UPPs se encaixam ou não no modelo. Em seguida, ainda na revisão bibliográfica, é feita uma análise de alguns estudos brasileiros sobre o policiamento. Primeiramente debruçamo-nos sobre as questões referentes a formação policial e segurança pública de forma geral, para em seguida discutir algumas tentativas de se instalar o policiamento comunitário em alguns lugares do Brasil. A terceira parte aborda a metodologia do trabalho: justificam-se as escolhas e elegem-se

algumas

teorias

para

o

entendimento

do

discurso

midiático

sobre

violência/crime/segurança pública/policiamento. A quarta parte é dedicada à análise do material em si. É dividida em três partes: a primeira realiza um pequeno histórico da

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intervenção estatal nas favelas da cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, o período escolhido para o estudo sobre a implantação da primeira UPP é analisado. Em seguida, os eventos ocorridos no Complexo do Alemão são analisados, usando como fonte de informações o discurso do Jornal O Globo no período. Destacam-se as diferenças qualitativas das duas coberturas e o modo pelo qual o discurso vai sendo construído. Por fim, a conclusão pretende destacar dentro do discurso midiático o local das UPPs dentro da permanente tensão entre os modelos de policiamento.

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2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO

As Unidades de Polícia Pacificadora despontaram como ícone da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2008 com a inauguração da primeira UPP no morro Santa Marta, na Zona Sul da cidade. A partir de então outras unidades foram sendo inauguradas nos anos seguintes, totalizando 22 unidades até a presente data2. O projeto tem como objetivo promover a aproximação entre polícia e população residente em territórios de pobreza3, representando uma mudança de lógica na prática policial dentro desses territórios. O relacionamento entre polícia e favelas sempre foi conflituoso e marcado por incursões violentas, que muitas vezes representavam a morte de inocentes seguidas pelo abandono dos policiais do território. As UPPs nesse sentido pretendem modificar esse cenário através da instalação de postos fixos de policiamento com o objetivo de dar fim a esse tipo de incursão baseada unicamente na repressão. A idéia, segundo o secretário de segurança do estado do Rio de Janeiro, é “recuperar para o Estado territórios empobrecidos e dominados por grupos criminosos armados” 4. Essa “recuperação” significa a retirada do “poder” do tráfico de drogas, mas não a sua eliminação. Em vários momentos diversas instâncias da secretaria de segurança afirmaram que o objetivo das UPPs não é acabar com o tráfico de drogas, mas sim retirar o poderio bélico dos bandos de traficantes, viabilizando ações governamentais. Segundo o Decreto Nº. 42.787 de 06 de Janeiro de 2011, são objetivos das UPPs:

“a. consolidar o controle estatal sobre comunidades sob forte influência da criminalidade ostensivamente armada; b. devolver à população local a paz e a tranqüilidade públicas necessárias ao exercício da cidadania plena que garanta o 5 desenvolvimento tanto social quanto econômico.”

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Fonte: http://upprj.com/wp/. Acesso em 17/05/2012. O Conceito de UPP: A polícia da paz. Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20. 4 José Mariano Beltrame. Secretário de Segurança do Rio de Janeiro. Fonte: http://upprj.com/wp/?p=175 5 DECRETO Nº. 42.787 DE 06 DE JANEIRO DE 2011. DISPÕE SOBRE A IMPLANTAÇÃO, ESTRUTURA, ATUAÇÃO E FUNCIONAMENTO DAS UNIDADES DE POLÍCIA PACIFICADORA (UPP) NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. Fonte: http://solatelie.com/cfap/html32/decreto_42787_06-01-2011.html 3

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Baseando-se na idéia de que o Estado se fez ausente nesses territórios durante o “domínio” do tráfico de drogas, a Pacificação possibilitaria a entrada do Estado, levando a “República às favelas” (Palavras do ex-secretário da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, Ricardo Henriques, no lançamento da UPP Social, ocorrido no dia 19 de agosto de 2010). Reforça-se aqui a velha dicotomia que está presente desde muito tempo no imaginário da cidade do Rio de Janeiro. A idéia de “cidade partida”, que dá nome ao livro célebre de Zuenir Ventura, carrega em si a separação entre “favela” X “asfalto” de forma pungente. Essa polarização é marcada por diferentes qualificações que mantêm entre si uma relação de oposição, tais como “legalidade” X “ilegalidade”; “cultura” X “barbárie” e etc. A instalação da UPP, normalmente, é acompanhada de uma série de ações com o intuito de regularizar alguns serviços como água, luz, telefone, IPTU, significando a impossibilidade de permanecer nesses territórios para aqueles que não tem condição financeira capaz de cobrir esses novos custos, mas esse é um tema para outro trabalho. Seguindo um padrão que lhe é peculiar, a instalação de uma UPP se divide em quatro fases bem circunscritas, de acordo com sua regulamentação6. A primeira fase é chamada de “retomada”, onde as polícias especiais (normalmente o BOPE) são acionadas para fazer incursões que são avisadas, a fim de que haja uma desmobilização do tráfico de drogas dentro do território. Essa “guerra avisada” se coloca como uma estratégia para diminuição da intensidade do combate violento dentro da favela, dando um sinal aos traficantes de que a ocupação e a retomada do território serão feitas. Normalmente a polícia não encontra dificuldades na retomada do território, salvo algumas exceções como no caso da UPP do Morro dos Macacos, quando houve a derrubada de um helicóptero da polícia militar por parte dos traficantes. Após a retomada do território entra-se na fase de estabilização, focalizando especificamente a manutenção do controle e total extermínio dos focos de resistência de traficantes que permaneceram. Depois das duas fases é possível implantar a UPP propriamente dita, com seu posto de comando normalmente situado em locais da favela considerados estratégicos pela polícia, como principais vias de acesso, locais com boa visibilidade do território, etc. A UPP também conta com efetivo próprio e que permanecerá no território por tempo indeterminado. Depois da implantação acompanham-se os resultados que a UPP traz para a comunidade. O objetivo pós-implantação da UPP é levar ao território serviços públicos que antes não eram oferecidos. Desse modo, parceiras são feitas com ONGs, setores do governo, e outras instituições, a fim de ofertar à população esses serviços. Na busca por apresentar as UPPs como uma nova lógica de policiamento que se articula aos interesses da população e suas demandas, os idealizadores do projeto sempre reforçam a necessidade de se construir uma “parceria entre a população e as 6

Decreto Nº 42787 DE 06/01/2011.

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instituições da área de segurança pública”7, no intuito de caracterizar a política de segurança nos moldes do policiamento comunitário. Hoje, as UPPs contam com um efetivo de 3.122 policiais, divididos nas 17 unidades da seguinte maneira:

*Fonte dos dados: www.upprj.com.br O efetivo se caracteriza por jovens oficiais recém-formados. Essa é uma grande preocupação dos articuladores do projeto, já que a corrupção policial é algo que permeia o estado do Rio de Janeiro desde muito tempo8. Ou seja, a utilização de efetivo recémformado é uma forma de retirar aqueles policiais que já se corromperam em sua atividade policial, na tentativa de criar uma nova subcultura policial, que estaria aquém da que hoje caracteriza a maior parte do efetivo de policiamento do estado. O presente trabalho procura analisar, ainda que não exaustivamente, o discurso midiático em relação às UPPs. Mais especificamente, procura localizar a permanente tensão 7

Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20 MISSE (2007) atribui a ligação estabelecida entre os jogos ilícitos como fomentadora da corrupção policial na cidade. 8

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que perpassa as políticas públicas de segurança em relação à tipificação da ação policial. Sendo assim, o objetivo principal do trabalho é analisar de que forma a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro (na sua figura mais representativa no momento, as UPPs) é qualificada pela mídia para em seguida analisar esta qualificação à luz das discussões sobre os tipos de policiamento. A análise será feita com base em um jornal de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro (O Globo) em dois períodos distintos: o período de inauguração da UPP do morro Santa Marta e a “retomada” do Complexo do Alemão. Os dois episódios (um por ter sido a inauguração desse projeto e o outro por ter representado a retomada do maior e mais importante território sob o domínio do tráfico) foram extensivamente veiculados nos diferentes meios de comunicação e por isso são boas pistas para esse estudo, tanto pelo volume quanto pela diversidade de informações produzidas a respeito desses episódios fulcrais dentro da nova lógica da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

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3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

3.1 ”Padrões de Policiamento”: Por uma Sistematização do Policiamento Moderno

No campo das reflexões sobre policiamento, David H. Bayley ocupa um papel de suma importância no que se refere à sistematização e generalização de conceitos para o entendimento das questões sobre a polícia a nível mundial. Suas reflexões e conceitos servem de base para a maioria dos estudos que têm como objeto o trabalho policial, como ele se organiza e quais os atores envolvidos. Dentro da sua produção acadêmica, o livro “Padrões de Policiamento” se destaca como base para um amplo número de estudos que se seguiram ao de Bayley. O livro foi escrito em 1985 e teve sua primeira tradução para o português após 16 anos, em 2001. Mesmo após vinte anos de sua publicação original, as questões que Bayley aborda se mostram fundamentais no que tange o entendimento da questão policial. Com o intuito de produzir uma análise comparativa entre diferentes padrões de policiamento, Bayley se debruça sobre alguns elementos centrais das questões sobre as forças policiais, buscando compreender como as mesmas se desenvolveram com o tempo e em diferentes países. O grande objetivo do livro é, nas palavras de Bayley, “definir proposições gerais sobre o funcionamento da polícia baseadas na comparação de informações históricas e contemporâneas.” (2006: 15). Para iniciar sua construção teórica acerca do policiamento, o autor propõe um conceito que pretende que seja instrumental e que abarque os exemplos presentes na realidade social. Uma força policial é definida como um grupo que é autorizado pela comunidade a aplicar a força física como um meio de regular as relações interpessoais dentro da comunidade em questão. Essa definição está baseada em três elementos fundamentais: força física, uso interno e autorização por parte dos membros da comunidade. Conceituar a polícia como um grupo que tem legitimidade para utilizar da força física para atingir seus fins, exclui grupos e/ou pessoas que são incumbidos de gerir as relações interpessoais dentro de uma comunidade, mas não têm a permissão de utilizar a força física, como por exemplo o poder judiciário. A definição também exclui as forças militares, pois seu objetivo não está centrado internamente, mas na defesa do país contra uma ameaça

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externa. E por fim, a autorização da comunidade exclui totalmente os grupos que impõem qualquer tipo de reivindicação por meio da força, mas sem o consentimento da sociedade, como grupos paramilitares, quadrilhas, etc. Dentro da caracterização das forças policiais, Bayley (2006) realiza três divisões dicotômicas para fins de sistematização de sua teoria. Assim, uma força policial pode ser pública ou privada, especializada ou não-especializada e profissional ou não-profissional. No que se refere à natureza da agência policial, ela pode ser dividida em pública ou privada, de acordo com a origem do patrocínio que recebe. Quando o Estado provê os subsídios para a força policial, esta é caracterizada como uma força policial pública. Quando estes subsídios têm origem em uma fonte não estatal, uma fonte particular, esta agência policial é caracterizada como particular. Ter o caráter de particular não interfere na questão de autorização para o uso da força pela comunidade. Uma força policial pode ser caracterizada como tal, recebendo o aval da comunidade para exercer a força sobre os indivíduos e mesmo assim ser uma força de caráter particular. A segunda característica que define uma força policial, segundo Bayley, é o foco em que ela se concentra, ou seja, se há especialização ou não. A atribuição definidora do policiamento é a permissão da comunidade para a aplicação da força. Se uma força policial se concentra nesse atributo, ela é uma força especializada. Mas se a polícia se responsabiliza por outras atividades, tais como controle de tráfego, inspeções sanitárias, emissão de documentação e etc, esta força é considerada como não-especializada. E por fim, uma agência policial também pode ser caracterizada como profissional ou não-profissional, de acordo com a racionalização de sua administração. Uma polícia é considerada profissional quando há recrutamento de seus oficiais pela meritocracia, se houver um plano de carreira para os policiais, uma disciplina sistemática e trabalho em tempo integral. Todos esses elementos se relacionam diretamente com as condições de trabalho do policial em seu meio. Os três grupos de atributos pelos quais uma polícia pode ser descrita são intercambiáveis entre si, ou seja, permitem qualquer tipo de combinação entre as três categorias. Portanto, uma agência pode ser pública, não-especializada e profissional, e outra pode ser privada, especializada e não-profissional. Um dos objetivos do trabalho de Bayley (2006) é tentar reconhecer no desenvolvimento histórico as relações entre os três grupos de atributos, como eles se desenvolveram, do que dependeram para se desenvolver, etc., buscando dessa forma compreender também como se consolidou o modelo majoritário

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de policiamento moderno, aquele que é caracterizado como público, especializado e profissional. A partir de então, durante todo o desenvolvimento de seu livro, Bayley se dedica a encontrar os fundamentos de cada aspecto do policiamento e acompanhar o seu desenvolvimento histórico até o presente. Na busca por compreender como se estrutura o policiamento moderno em diferentes países, o autor realiza outras divisões conceituais com o intuito de melhor caracterizar as forças policiais e suas diferenças. Assim, duas novas dimensões de análise são inseridas: centralização e número de comandos. A centralização diz respeito à fonte das direções operacionais, ou seja, de onde partem os direcionamentos para os policiais. Se as diretrizes partem de um ponto único, a força policial é centralizada. Se partem de múltiplos pontos, ela é descentralizada. A outra dimensão de análise tem por objeto o número de comandos em que a força policial se divide. A polícia pode ser uma força singular, na medida em que não existam diferenciação de forças, ou seja, somente uma força policial é atuante. Quando há mais de uma divisão dentro do policiamento, podese ainda dividir dois grupos em relação à coordenação que existe entre as divisões da polícia. Um sistema pode ser multiplamente coordenado, quando uma força tem jurisdição sobre qualquer parte do território, convivendo assim com outras forças. Ou o sistema pode ser caracterizado como multiplamente descoordenado, quando não há delimitação da jurisdição de cada força, ou seja, não há delimitação da área de atuação. De certa forma, como salienta Bayley, a maior parte dos países que possuem forças múltiplas apresentam o caráter descoordenado, pois normalmente sempre há uma força central que transcende sua jurisdição às das unidades governamentais, ou seja, uma força policial está acima de todas as outras forças, se sobrepondo a jurisdição destas. Por exemplo, a Polícia Federal, no Brasil, transcende a jurisdição de qualquer Polícia Militar estadual.. Um sistema é coordenado quando a autoridade do governo central não é tão importante em relação à polícia, delegando às unidades governamentais responsabilidades do governo central. No caso do Rio de Janeiro, especificamente, podemos notar um sistema multiplamente descoordenado, pois diversas forças convivem na mesma jurisdição, como por exemplo a Polícia Militar, o BOPE, a Guarda Municipal, etc. Para efeitos de análise, Bayley focaliza sua teoria no caráter centralizado da força policial, pois de certa forma há uma relação de implicação entre a centralização e a multiplicidade das policias. A centralização de um sistema policial pode ser explicada por diversos fatores, ente eles a tradição. Para o autor, o caráter centralizado ou descentralizado da força policial pode ser pensado como influencia da escolha feita no momento de fundação desta determinada força. Ou seja, a definição de ser centralizada ou descentralizada, feita no momento em que se estrutura uma força policial, interfere, como

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propõe o autor, em todo o desenvolvimento histórico do policiamento. Em resumo, forças que em seu surgimento eram centralizadas, permanecem centralizadas até o presente, e vice-versa. Deste ponto decorre uma outra questão: a tradição, ou seja, o caráter centralizado ou não, de uma força policial determina o seu estado atual. Mas o que determina a escolha do caráter da força policial como centralizado ou descentralizado? De acordo com os dados obtidos em um número relevante de países que serviram de objeto de estudo ao autor, descobriu-se uma forte associação entre a centralização e o caráter dos regimes desses países. Países com regimes autoritários estão associados com o caráter centralizado da sua força policial. Por outro lado, países não-autoritários possuem em sua grande maioria forças policiais descentralizadas. Este ponto apresenta uma inconsistência quando analisamos o desenvolvimento histórico dos países. Muitos dos países passaram por diferentes tipos de governos, como, por exemplo, o Brasil, que teve por um longo tempo um governo autoritário, mas em grande medida as forças policiais não acompanharam esse desenvolvimento, permanecendo inalterado seu caráter em relação à centralização. No que se refere estritamente aos casos da Europa e da América do Norte, o caráter centralizado das forças possui intima ligação com a resistência violenta à consolidação e afirmação da autoridade estatal. Países que não enfrentaram resistências para afirmar sua soberania têm sistemas policiais descentralizados, pois as forças policiais não foram acionadas para auxiliar na consolidação do país. Já em países em que a consolidação se deu em um processo violento, as forças policiais são centralizadas. Em resumo, a centralização é a resposta de um novo Estado às afirmações periféricas de tipo violento. No quarto capítulo do seu livro, Bayley analisa questões referentes ao poder que a polícia possui em diversos países e em diferentes épocas históricas. Para realizar esse tipo de análise comparativa, o autor definiu “poder da polícia” como sendo expresso pelo número de policiais que a força policial possui, apesar dos problemas que esse tipo de conceituação pode trazer, como obscurecer a capacidade da força policial, que não depende exclusivamente do tamanho do efetivo que a mesma possui. De acordo com os dados comparativos entre diversos países do mundo, com perfis socioeconômicos diferentes, chegou-se à conclusão de que países mais pobres tendem a ter maior número de policiais em suas forças. E mais, países em que há uma grande desigualdade de classe tendem a ter um efetivo policial maior do que nos países onde essa desigualdade é menor. Assim, a inferência que se faz é que países onde há muita desigualdade caracterizam-se por apresentarem problemas sociais na mesma medida e esses problemas podem gerar situações em que a polícia precisa ser acionada para a resolução. O aumento da criminalidade e da população também são indicadores do crescimento da polícia. Mas um

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fator específico parece contribuir para que a polícia tenha um poder maior. As violações da ordem social, especificamente quando há casos de violência coletiva, parecem influenciar diretamente no poder da polícia. E esse ponto está intimamente ligado ao fato de que essas violações da ordem social normalmente são violações aos interesses das elites, uma vez que a habilidade de influenciar o governo não se distribui de forma igual em todas as classes sociais de uma dada sociedade. Há sempre uma inclinação em direção às elites dirigentes do país. Sendo assim, em países onde a dominação das elites é ameaçada o poder da polícia é maior. Apesar do uso da força física ser uma das características definidoras da polícia, há muitas outras atribuições que são impostas às forças policiais e que fazem parte do escopo de suas atividades permanentes. É claro que as atribuições complementares que vão sendo imputadas apresentam distinções em cada país. Mas, em sua grande maioria, o policiamento congrega diferentes atribuições que não mantêm necessariamente uma relação direta ou indireta com o uso da força física. Nesse sentido o trabalho policial pode ser definido utilizando três características: pode se referir ao que a polícia é designada para fazer; as situações com as quais um policial tem que lidar; ou com as ações que são tomadas para responder a essas situações. As atribuições são as atividades que os policiais realizam tais como estão descritas em sua organização (patrulha, controle de tráfego, investigação, etc). Quando o trabalho policial é definido pelas situações com as quais os profissionais dessa área têm de lidar, normalmente se referem à brigas domésticas, crianças perdidas, acidentes de automóveis, etc. A polícia é definida pelas situações com que tem de lidar. E por último há o aspecto de como os policiais lidam com as situações em que se envolvem. Ou seja, o trabalho policial é definido pelas ações que os policiais tomam em determinadas situações. Apesar das propostas conceituais serem distintas, elas guardam entre si uma interdependência, na medida em que as atribuições do policiamento interferem diretamente nas situações em que a polícia se coloca, e essas demandas necessitam de ações específicas para serem sanadas. Ou seja, todas os três modos de entender o trabalho policial acabam se relacionando entre si de maneira estreita. O trabalho policial se altera quando focalizamos diferentes países e/ou diferentes épocas. Assim, o “fazer” policial é totalmente dependente do seu contexto social e histórico. De toda maneira a tarefa do policial como profissional de segurança pode ser melhor entendida se utilizamos como norte as situações em que esses profissionais estão envolvidos. As principais razões para essa escolha conceitual são:

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“Primeiro, elas são o indicador mais direto do que o trabalho policial envolve. Atribuições, bem como resultados , não são, uma vez que seu significado deriva das situações. Em segundo lugar, situações revelam o campo no qual ocorrem os confrontos entre a polícia e o público. Eles são o caldeirão no qual ocorrem as interações. Em terceiro lugar, as situações são relacionadas empiricamente com outros aspectos do trabalho policial. Por exemplo, se uma força policial é administrada racionalmente, informações sobre a natureza e a incidência de situações afetarão a distribuição de atribuições.” (BAYLEY, 2006:143)

Finalizando a quarta parte do seu livro, que se dedica a explorar as funções do policiamento, Bayley propõe uma teoria dos confrontos, a fim de entender melhor o trabalho policial entre diferentes forças, países e momentos históricos. Para esse entendimento é necessário que se focalize o olhar nas situações nas quais a polícia se envolve. Assim, esse capítulo se dedicará especificamente a traçar uma teoria que explique as variações das situações em que a polícia se envolveu no passado e se envolve no presente. O que determina diretamente as situações em que a polícia tem que se envolver são dois fatores: a demanda da população e as prioridades da polícia. A demanda da população é o produto da conjunção de suas necessidades, normalmente frutos de sua condição social, com a sua avaliação quanto ao trabalho da polícia. O que é demandado às forças policiais depende das necessidades individuais, mas também da expectativa que o individuo tem de que seu chamado será atendido. Bayley ainda sustenta que a necessidade da polícia é inversamente proporcional à pessoalidade na sociedade. Ou seja, quando a sociedade é mais individualizada os laços de solidariedade entre os cidadãos são frágeis, e por isso a polícia é mais necessária. Isso ocorre porque quando não há envolvimento suficiente dentro de grupos primários não há tanta sanção coercitiva para os atos dos indivíduos na sociedade. Quando os individuos se individualizam, a maior parte de sua vida é passada fora de grupos onde a sanção é efetiva. Assim, há mais necessidade de que a polícia regule as interações sociais, já que as sanções grupais não têm efeito fora de suas esferas. Nas palavras de Bayley:

“(...) o volume de requisições por intervenção da polícia e a proporção de situações de aplicação e não-aplicação da lei enfrentadas pela polícia pode variar diretamente com a qualidade das relações interpessoais na sociedade.” (2006:146)

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Outro fator que influencia no caráter das demandas à polícia é o grau de riqueza pessoal. Indivíduos que possuem situação financeira melhor podem comprar no mercado os serviços que precisam, inclusive policiamento, recorrendo à segurança particular (ver TONRY & MORRIS, 2006:135). Assim, a maior parte das solicitações por policiamento emana das esferas mais pobres da sociedade, aquelas que não podem

contratar um

serviço de segurança particular. A demanda pelos serviços da polícia é influenciada pelo caráter do relacionamento interpessoal dos individuos, pelo nível e pela distribuição da riqueza na sociedade, e pelos valores culturais da sociedade em questão, fatores esses que podem ser explicados sob o titulo de “modernização” (BAYLEY, 2006:151). Por outro lado, não são somente as solicitações da população que caracterizam a natureza das situações em que a polícia se envolve. A polícia realiza uma seleção das chamadas que serão atendidas e que não serão. Os critérios pelos quais essa seleção é feita influenciam diretamente nas situações enfrentadas pela polícia. Essa seleção é afetada por dois fatores: o volume das demandas e as prioridades organizacionais. Em relação ao primeiro, fica claro que, dependendo do volume de chamados, a polícia deverá escolher aqueles que poderá atender, pois se o volume for grande demais não haverá meios para que todas as chamadas sejam atendidas. Havendo um número grande de chamados, a polícia tenderá a selecionar a partir das suas prioridades. Assim, crimes mais graves são atendidos primeiro e os outros serão ou não atendidos de acordo com a especialização da polícia. Sendo assim, uma força policial que não tem a competência de solucionar problemas ligados ao trânsito não selecionará chamadas desse tipo. Traçando um perfil sobre as situações com as quais a polícia tende a se envolver, podemos notar, como já foi dito anteriormente, que paises mais desenvolvidos em termos econômicos tendem a requisitar mais os serviços da polícia, visto que a facilidade de acesso aumenta e não há a sanção dos grupos primários como um mediador das relações interpessoais. O perfil da polícia depende também da demanda que a população faz e, na mesma medida, da resposta que se dá aos chamados recebidos. Ao ponto que o desenvolvimento facilita o acesso a polícia, é natural que o volume de chamados aumente, levando em alguns casos a uma maior especialização da polícia em novas áreas. Essa prestação de serviços é maior para os menos favorecidos, pois, como dito acima, a parcela mais pobre da população não pode pagar por alguns serviços que a polícia oferece, diferentemente daqueles que possuem condições materiais para fazê-lo. O último âmbito que Bayley(2006) destrincha é a Política. O autor diz:

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“As interações deliberadas entre a polícia e sociedade pertencem ao domínio da política e ocorrem primariamente através do governo. Elas consistem, de um lado, nas tentativas da comunidade em direcionar e controlar a polícia e, do outro, na pressão policial sobre a vida política. (...)” (2006:173)

Nesse relacionamento existem mecanismos de controle, que têm por objetivo controlar os procedimentos das forças policiais. Eles são divididos pelo autor em mecanismos de controle internos e externos. Dentre os externos, há a divisão entre mecanismos de controle externo inclusivos ou exclusivos. Uma segunda divisão também é feita em relação aos mecanismos de controle internos, que são divididos em implícitos ou explícitos. Na teoria proposta pelo autor, são mais relevantes os mecanismos exclusivos e explícitos, mas no presente trabalho os mecanismos de controle externo inclusivos também possuem um papel importante, e por isso serão abordados. Mecanismos de controle externo exclusivos são divididos, primeiramente, entre mecanismos governamentais e não-governamentais. O próprio governo pode ter agências encarregadas de fiscalizar as ações de suas forças policiais, ou mesmo grupos de civis podem fazê-lo. E os mecanismos muitas vezes não se localizam apenas em um ponto. Em alguns países os mecanismos de controle são multiplos, podendo conjugar mecanismos governamentais e não-governamentais. Ambos os mecanismos podem ser coordenados por políticos, burocratas ou uma mistura de ambos, servirem como avaliadores ou consultores do trabalho policial, e até mesmo podem possuir total autoridade sobre as operações policiais. A outra classificação de mecanismo de controle externo que Bayley (2006) análise em seu trabalho, aborda aqueles mecanismos que controlam o trabalho policial, mas não mantêm essa tarefa unicamente. O exemplo mais óbvio são os tribunais, que julgam as ações policiais (quando acionados), mas não o fazem exclusivamente. Dentro da discussão do presente trabalho, a mídia possui um lugar central, sendo classificada como um mecanismo de controle externo inclusivo, pois não mantém o controle da ação policial como única preocupação. A mídia de massa, pelo seu alcance, é um dos mecanismos de controle mais importantes, dependendo da abertura que possui nos países de atuação. Se possuir total liberdade para investigar e divulgar as ações oficiais, a mídia pode ser um ator privilegiado no controle do policiamento. Dentro da discussão sobre as UPPs e sua atuação no Rio de Janeiro, podemos destacar a mídia como fator determinante para o apoio da população a essa política. Mais do que divulgação das ações policiais, a não divulgação também é um fator crucial, pois a falta de divulgação midiática normalmente motiva o desconhecimento dos fatos. Assim, a falta de divulgação de ações que não correspondam

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ao ideal ou a caracterização pretendida de uma UPP colabora para que uma imagem seja construída. A não divulgação, na maior parte das vezes, é mais efetiva do que a divulgação em si. Os mecanismos de controle podem estar localizados dentro das forças policiais, dependendo primeiramente da abertura que lhe é dada para fazê-lo. Ou seja, um mecanismo de controle interno explícito depende em grande medida da autorização que lhe é dada para controlar as ações policiais. Mesmo quando lhe é permitido o controle, muitas vezes a polícia prefere não fazê-lo. Isso pode ocorrer quando o controle fica a cargo de supervisores que mantêm outras atribuições, e que por isso preferem não perder o seu tempo fazendo a supervisão da ação policial. Ou também pode haver um clima organizacional que inviabilize uma avaliação eficiente. Em outras palavras, os policiais podem não estar comprometidos com uma avaliação eficaz, tratando com desdém a supervisão. Os arranjos entre os diferentes mecanismos de controle dependem em grande medida de características nacionais. Nos EUA, onde as comunidades locais são politicamente fortes, os comandos são descentralizados, e os mecanismos de controle também. A tradição mantém um peso grande em relação aos mecanismos de controle, assim como o caráter da centralização das forças, como dito anteriormente. Em relação a eficiência dos controles, os internos parecem ser mais eficazes por três razões: por estarem dentro dos processos, o controle interno pode ser mais completo do que o externo; por ser mais completo, pode ser mais intensivo, na medida em que consegue localizar melhor os problemas e defasagens; e por fim a regulação interna pode ser mais variada, sutil e diferenciada do que a externa. Mas em se tratando de efetividade, o controle interno só terá eficácia se a força policial estiver disposta a enquadrar seu comportamento e ações dentro dos padrões da comunidade. Se não houver o comprometimento da polícia em se espelhar no ideal de polícia da comunidade, os controles internos não serão tão eficazes. Se o controle interno se mostra ineficiente, o controle externo tende a se intensificar. Para explicar a escolha pelos mecanismos de controle, Bayley (2006) divide os países em duas categorias: os contratuais e os estatistas. Países contratuais são mais desconfiados quanto as ações do governo, pois em sua maioria não acreditam que o governo toma decisões que são melhores para todos. Desta forma, esses países mantêm diversos modos de controlar as ações governamentais com o intuito de garantir que não haja prejuízo para a população como um todo. Essa preocupação se enquadra no trabalho policial também, havendo nesses países um acréscimo do controle externo do policiamento. Em países estatistas a desconfiança em relação ao governo é menor, garantindo com isso

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que o principal controle seja interno. Países contratuais possuem uma tradição mais individualista do que os países estatistas. Assim, países mais comunitários possuem uma maior sanção grupal do que os países individualistas, provocando um controle natural da ação policial. Ou seja, a sanção grupal já trata de avaliar e agir sobre o trabalho policial, não havendo a necessidade de mecanismos externos de controle. Finalizando a parte dedicada a ação da polícia dentro da esfera da política, citam-se seis modos pelos quais a força policial pode agir diretamente na política: determinar quem pode participar da política por meio de detenções e exílio; em diversos países a força policial tem a autoridade para agir diretamente nos processos políticos; quando há oposição violenta ao governo a polícia pode agir, e decidir o vencedor da disputa politica; atividades clandestinas como espionagem; quando se torna protagonista da criação de diretrizes dentro dos governos; e, finalmente, a polícia tem um poder latente no que tange a execução da lei. Indiretamente, a polícia pode influenciar na política quando: é encarada como a imagem do governo e dos valores cívicos; está em posição de influenciar a legitimidade do governo e dos processos políticos; encarna, devido a sua visibilidade, os principais problemas e potenciais da nação; contribui para o desenvolvimento econômico do pais. Em suma, “Padrões de Policiamento” é um esforço no sentido de sistematizar o trabalho policial em seus diversos âmbitos, com o intuito de melhor entender os sentidos e processos ligados ao policiamento para melhor entender o fazer/ser policial. Apesar de ser uma sistematização minuciosa, algumas questões não são abordadas neste trabalho, sendo complementadas por outras obras do autor.

3.2 O policiamento comunitário na obra de David Bayley e Jerome Skolnick

Para o estudo proposto aqui, a obra “Policiamento Comunitário”, de autoria de David H. Bayley em conjunto com Jerome H. Skolnick, é relevante, uma vez que as UPPs, em diversos veículos e momentos, se caracterizam como portadoras de ideais do policiamento comunitário. Desta maneira, alguns pontos importantes desta obra são indispensáveis. Apesar de haver uma grande quantidade de discussões acerca do policiamento comunitário, o consenso sobre o conceito propriamente dito está longe de ser alcançado. O policiamento comunitário tem seu início e seu fim localizados na comunidade, ou seja, é a comunidade

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que determina os programas a serem adotados em relação ao policiamento de seu território, na busca de sanar as necessidades da população local como um todo, tendo em vista as possibilidades institucionais da polícia. No fim, o objetivo último do policiamento voltado para a comunidade é prevenir o crime, tendo como base as dinâmicas da comunidade em questão. Diversas tentativas de implementar programas pautados pelos principios do policiamento comunitário foram executadas em diversos países e uma grande questão que se coloca, em relação ao policiamento comunitário como um todo, é se há eficácia do programa em relação a prevenção do crime ou se no fim das contas o policiamento comunitário só contribuiria para a diminuição da sensação de medo em relação ao crime. Nesse sentido, retomando os pressupostos do policiamento profissional, podemos constatar que o monopólio sobre a tentativa de ser um veículo de prevenção do crime não pertence ao policiamento comunitário. Em sua gênese, o policiamento profissional tinha como principal objetivo produzir mecanismos que viessem a prevenir o crime, como as patrulhas motorizadas, as respostas rápidas e etc., mas em certa medida essas tentativas não foram eficientes. Assim, a manutenção da ordem e a prevenção do crime podem ser encontradas na mesma medida nas bases do policiamento profissional. O que difere o policiamento voltado para a comunidade do policiamento profissional é a forma como cada um procede. Se o policiamento for caracterizado como autoritário e sem responsabilização em relação a comunidade local, não podemos nomeá-lo como comunitário, mas sim como uma reorganização de qualquer outro tipo de policiamento. Os autores salientam que o relacionamento com a comunidade em que o policiamento comunitário se instala é um dos pilares fundamentais para que o projeto seja caracterizado como comunitário e consiga alcançar os objetivos desta lógica de policiamento. Sobre o relacionamento entre a polícia e a comunidade os autores dizem:

“Se a polícia não se propuser, no mínimo, a tolerar o que o público tem a dizer sobre as operações, o policiamento comunitário será visto apenas como ‘relações públicas’, e o distanciamento entre polícia e público, mais uma vez, aumentar mais ainda.” (SKOLNICK & BAYLEY, 2006, pág. 29)

Nesse sentido, há um aumento do número de esquadrões especiais dentro das policias em diferentes países que tem por objetivo melhorar as relações com grupos que

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mantêm um histórico turbulento em seu relacionamento com a polícia. Em grande parte, esses grupos de policiais se encarregam de evitar confrontos mais acirrados junto a essa parcela da população, criando assim uma experiência de policiamento comunitário que de certa forma se assemelha com algumas características das UPPs. Tendo por objetivo norteador a eliminação do controle armado dentro dos territórios de pobreza, as UPPs se focam nos grupos de traficantes que utilizam armas de fogo para manter o controle do território. Como salientado pelo decreto que estrutura as Unidades de Polícia Pacificadora9 como um programa do governo, não é objetivo desta política a eliminação do tráfico nas favelas e territórios de pobreza da cidade do Rio de Janeiro, mas a retirada do poderio bélico desses atores. Em relação a centralização do comando, o policiamento comunitário necessita que haja uma maior descentralização, dando ao policial de linha oportunidades maiores de flexibilizar o seu trabalho. Essa necessidade se dá especificamente porque a premissa fundamental do policiamento comunitário é o ajustamento das necessidades e demandas da comunidades com o trabalho policial. Tendo em vista que cada comunidade possui suas especificidades e anseios diversos, medidas centralizadas não agregariam as necessidades de cada local, perdendo assim o caráter comunitário do policiamento. A necessidade de compatibilizar o trabalho policial com o perfil da comunidade só é possível mantendo e respeitando as especificidades do local. Além disso, uma das chaves importantes desse tipo de policiamento é a aproximação com a comunidade, relacionamento esse que ajuda a construir uma base de conhecimentos mais sólidos da localidade em questão. Assim, o policial em sua ronda diária, enquanto mantém um relacionamento mais estreito com os locais, adquire também conhecimentos sobre o território, sobre as dinâmicas de sociabilidade, perfis dos moradores, etc.. Essas informações são interessantes para a formulação de diretrizes para melhor agir dentro de cada território. A descentralização do comando não implica em uma menor responsabilização da polícia. Muito pelo contrário. Forças policiais que se dedicam ao policiamento comunitário devem estar dispostas ao aumento da responsabilização. Agir de maneira educada e cordial com os moradores do local, por exemplo, é importante para que o relacionamento construído seja o mais saudável possível, possibilitando o estreitamento do relacionamento entre as partes. Skolnick e Bayley salientam:

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GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.Decreto Nº 42787 DE 06/01/2011. Disponível em: http://www.legisweb.com.br/legislacao/?legislacao=574060. (Acesso em 07 dez. 2011)

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“Tais deveres requerem novas atitudes. Os policiais devem ter a capacidade de pensar por si só e de traduzir as ordens gerais em palavras e ações apropriadas. É necessária uma nova espécie de policial, bem como um novo tipo de comando. O policiamnto comunitário transforma as responsabilidades em todos os níveis: no nível dos subordinados, aumenta a autogestão; no dos superiores, encorajam-se as iniciativas disciplinadas, ao mesmo tempo em que se desenvolvem planos coerentes que correspondam às condições locais.” (2006:34)

Os quatro pilares fundamentais para classificar uma política pública de segurança como policiamento comunitário são a prevenção comunitária da violência e do crime; modificação do patrulhamento feito pelos policiais, incentivando o patrulhamento a pé; aumento da responsabilização da polícia em relação à comunidade; e a descentralização do comando. Esses pilares são essenciais para que se possa afirmar que o policiamento tem o caráter comunitário em sua essência e prática. Os elementos abordados aqui estão incluídos no esforço de se caracterizar as diferenças qualitativas entre os tipos de policiamento. O policiamento comunitário mantém uma posição privilegiada, pois é sinalizado como inspirador de algumas práticas conduzidas pelos que idealizaram o programa das Unidades de Polícia Pacificadora. Como visto, as quatro características fundamentais do policiamento comunitário se chocam com o que caracteriza o policiamento profissional vivenciado no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro. A caracterização do policiamento comunitário contém em sua essência a diferenciação fundamental em relação ao modelo profissional. A idéia de trazer a comunidade para o centro dos processos de policiamento é uma resposta ao modelo de polícia que se consolidou, deixando a comunidade fora de todo o processo, não contribuindo para a prevenção do crime, do medo e da insegurança.

3.3 Notas sobre segurança pública e formação dos policiais cariocas

Esta segunda parte da seção de revisão bibliográfica pretende realizar uma análise de algumas discussões acerca do policiamento feitas por autores brasileiros. Essa análise se mostra fundamental para o estudo pretendido, pois há um acúmulo de reflexões

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interessantes na bibliografia brasileira no que se refere às questões do policiamento comunitário e do policiamento de proximidade, bem como, em contra ponto, do policiamento profissional. Para cumprir o intuito, foram selecionados alguns textos e um filme. A escolha dos textos foi feita levando em conta sua pertinência para os assuntos que são tratados neste trabalho. O filme “Tropa de Elite” foi inserido por fazer parte de uma produção que, de certa forma, atingiu e ainda atinge um maior número de espectadores do que os textos acadêmicos, servindo para a construção de uma imagem de policiamento que se infiltra no pensamento coletivo. A película foi inspirada no livro “A Elite da Tropa”, escrito pelos policiais do BOPE, André Batista e Rodrigo Pimentel, em parceria com o antropólogo Luiz Eduardo Soares. O filme, apesar de ser uma obra de ficção, é interessante para pensar a questão policial dentro da realidade do Rio de Janeiro, pois traz um recorte interessante, tanto da polícia militar em seus mais baixos postos, quanto nos batalhões especializados e nos cargos mais altos do nível hierárquico da segurança pública do estado. “Tropa de Elite 2” obteve a maior bilheteria já registrada de um filme nacional no país, com a marca de mais de 10 milhões de espectadores10, podendo ser considerado como uma duologia que possuiu, e ainda possui de certa forma, um papel importante nas questões referentes a como a população encara a polícia e a segurança pública de uma maneira mais ampla. Por tratar de questões fundamentais, o filme é encarado como um discurso que possui interseções com a temática trabalhada pelos textos teóricos aqui abordados. Por essa razão, “Tropa de Elite” será utilizado como forma de reforçar e exemplificar as questões propostas pelos autores. Alguns pontos são importantes para o entendimento das questões simbólicas que estão envolvidas na polícia militar brasileira. O artigo “Sob o signo de Marte” com autoria de Carlos Albuquerque e Eduardo Machado (2001), focaliza algumas questões pertinentes à construção da “autoimagem” do policial militar. O objetivo principal do artigo é evidenciar a grande tensão que existe dentro da polícia militar. De certa maneira, a polícia militar carrega em si alguns signos pertencentes ao militarismo (seu próprio nome inclusive), mas sua principal função é lidar com os cidadãos do seu país, diferentemente do exército. Assim, o vínculo militar e a democracia estão em dois polos opostos dentro da percepção da polícia militar. O texto apresenta o exemplo da polícia militar do estado da Bahia, mostrando o “rito de passagem” por que os policiais têm de passar para conseguirem se formar. O autor realiza algumas entrevistas com policiais que passaram por essa “prova” e os mesmos apontam que não vêem utilidade em um teste que envolve força física, sobrevivência na

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Fonte: http://www.cultura.gov.br/site/2010/12/09/%C2%B4tropa-de-elite-2%C2%B4-e-filme-maisvisto/ (Acesso em 12 dez. 2011)

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selva e noções de guerrilha, para policiais que tratarão estritamente com a realidade urbana e com cidadãos. Podemos neste ponto retomar uma parte do filme “Tropa de Elite” onde se mostra o curso de formação dos policiais do BOPE: eles recebem tratamento como se estivessem em um ambiente de guerra, comem restos de comida no chão e a todo momento são testados quanto ao seu estado psicológico, para que no final somente os melhores permaneçam, definidos como aqueles que não “pedem pra sair” por possuírem um caráter mais integro e “guerreiro”, necessários para a atuação enquanto “caveiras”. “Tropa de Elite” a todo momento demonstra as distinções entre a polícia militar e o Batalhão de Operações Especiais, exaltando este último em detrimento da PM. A Polícia Militar é caracterizada como portadora de todas as características nocivas ao exercício da profissão de policial e o BOPE seria o grupo seleto que se sobrepõe aos policiais militares em caráter, bravura e inteligência. O padrão de policiamento que vigora majoritariamente no Brasil é o modelo profissional, aos moldes da teoria de Bayley. Batitucci (2011) em seu artigo “A polícia em transição” se propõe a analisar a evolução desse modelo e ampliá-lo: o autor denomina o modelo policial vigente na atualidade, de forma geral, como “profissional burocrático”. Segundo Batitucci(2011), a profissionalização da polícia se dá após algumas reformas estruturais que permitiram uma maior organização do corpo policial. Essa reforma teve alguns pontos centrais: o serviço à sociedade como a missão da polícia; serviço público neutro; qualificação profissional; inserção de princípios de administração na instituição; e a manutenção da disciplina militar. Essa reforma definiu, segundo o autor, o rumo do modelo profissional burocrático, pois contribuiu para que houvesse a estruturação de mecanismos necessários para que a profissionalização e a burocratização se consolidassem. A burocratização da polícia se deu por meio de pequenas mudanças estruturais que ao fim promoveram uma mudança no status do policiamento. As principais mudanças que este processo engendrou na polícia foram: centralização do comando em um ponto abstrato; contato com a população

permitido somente quando necessário; alto grau de

especialização; e desenvolvimento do sistema de informações. Todas essas modificações contribuíram para que houvesse o isolamento do policial de linha em relação à população em geral. Dessa forma, cria-se uma subcultura policial muito forte, voltada para os ideais militares e o desenvolvimento do ideal de “guerra contra o crime”. Dessa forma perdem-se de vista as necessidades da comunidade, construindo uma polícia descolada das necessidades locais, com o objetivo último de aplicar a lei e lutar contra o crime. Levando em consideração o ideal de aplicação da lei com imparcialidade, não poderia haver dentro da polícia discricionariedade, pois a lei deve ser cumprida,

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independentemente de quem for sofrer as consequências legais. Mas de certa forma há espaço para a discricionariedade dentro da estrutura policial, pois as leis muitas vezes são nebulosas e necessitam de interpretação para serem aplicadas. Assim, o policial de linha que lida pessoalmente com a infração pode interpretar a ação de uma maneira diferente e enquadrar o crime em uma lei que outro policial não enquadraria, por exemplo. O aumento da discricionariedade dentro da instituição policial se dá de maneira inversamente proporcional ao aumento do nível hierárquico. Ou seja, os policiais de linha possuem maior discricionariedade nas suas ações do que seus superiores. Em suma, a alta discricionariedade do policial de linha o afasta dos burocratas puros, seus superiores por quem a discricionariedade não pode ser utilizada. Mas por outro lado, a falta e até mesmo a ausência de conhecimentos específicos o exclui do corpo de profissionais especializados. Este dilema em relação à discricionariedade é um dos maiores problemas do modelo profissional-burocrata de policiamento. Batitucci cita a conclusão do estudo de Wilson:

“(...) o policial de linha não podia ser visto nem como burocrata, nem como um profissional: ele era um artesão (craft) e, como em qualquer atividade artesanal, não possuía um corpo de conhecimento formal em que basear sua atividade. O aprendizado acontece no exercício da própria atividade.” (WILSON apud BATITUCCI, 2011:84)

Estreitando o olhar para a realidade complexa do Rio de Janeiro, Poncioni (2005) traz uma análise interessante a respeito da forma como

o modelo profissional de

policiamento se configurou na cidade. Sua análise inicia na década de 70, pois nessa década há um incremento da violência e da criminalidade na cidade, sendo amplamente explicado pela entrada do Rio de Janeiro na rota do tráfico internacional de cocaína (LEITE, 2000). Mais especificamente, o texto procura compreender o modelo de polícia que se passa nas academias de formação de praças da cidade e como esse ensino age na formação de um caráter único de policiamento. A realidade do Rio de Janeiro é única e interessante para pensar as questões de segurança pública por diversos fatores, diz a autora:

“Particularmente, no Estado do Rio de Janeiro, constata-se que a urgência de respostas imediatas às demandas e pressões para maior segurança tem sido o fio condutor para a implementação de propostas variadas, muitas vezes divergentes entre si, para a área de segurança pública, em particular para a formação profissional, em ambas organizações policiais, sem que, até o momento, tenham sido alcançadas mudanças mais efetivas, de longo e duradouro espectro no

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manejo das questões relativas ao controle do crime mais eficaz e responsável.” (2005: 587)

Localizando sua discussão dentro da tipologia de policiamento, a autora defende que o modelo de policiamento praticado no século XX de maneira ampla era um amálgama entre o modelo “burocrático-militar” e o modelo de “aplicação da lei”. A burocratização da polícia possibilitou um número grande de mudanças estruturais no policiamento, como explanado por Batitucci. O ideal de “aplicar a lei” de maneira imparcial produz uma polícia voltada para o combate ao crime, pois para aplicar a lei coercitiva deve ter havido uma infração primeiramente. É um modelo de policiamento reativo, que só age quando o crime ou a infração já aconteceu. Com o aumento da violência e do crime no Rio de Janeiro, o ideal de combate ao crime é modificado pelo ideal de “guerra contra o crime”, fortalecendo nos cidadãos um crescente e contínuo sentimento de medo e insegurança. Essa lógica chegou ao ápice com a instauração da “gratificação faroeste”, que premiava os policiais que matassem mais, exatamente nesses termos. Todas essas mortes eram legitimadas por essa política, utilizando os “autos de resistência” (FARIAS, 2008) como instrumento para que a morte da vítima inocente fosse “necessária”, pois a mesma teria resistido a ação policial, sendo sua morte fruto de sua “resistência”. Dentro da realidade das academias do Rio de Janeiro, não há uma seleção criteriosa daqueles que irão fazer parte do quadro de policiais do estado. A falta de critérios de seleção e de uma maior estruturação dos cursos de formação acarreta, de certa forma, colaboram para fragilizar o processo de socialização do futuro policial (PONCIONI, 2005: 594). Por mais que haja um programa de educação desses policiais, o mesmo se mostra ineficiente, incompleto e desestruturado, colaborando para o quadro final da realidade da polícia militar do Rio de Janeiro. No currículo, é enfatizada a exigência de bom porte físico e virilidade na prática do policial. Dessa forma é construída a imagem do policial ideal: aquele que tem força física, bravura e coragem para fazer a “guerra contra o crime”, depreciando as matérias de humanidades, que têm por objetivo oferecer elementos para que o policial entenda a realidade social em que está inserido e saiba se relacionar com a população, buscando suprir outras necessidades que não sejam restritas ao cumprimento da lei. A manutenção da ordem pública é outra atribuição da polícia que é pouco explorada dentro dos currículos de formação, ocasionando um despreparo do policial em ações preventivas, como a negociação de conflitos. Em suma, as disciplinas ministradas nos cursos de formação demonstram que o que se espera dos policiais é que sejam “combatentes” na busca da ordem e da repressão do crime a qualquer custo.

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Levando-se em conta a “missão” que é construída para os policiais (combate/guerra ao crime), as exigências físicas que lhes são impostas e a forma de agir que é exigida (virilidade, coragem, bravura), estrutura-se um ideal de um ethos guerreiro, muito baseado no militarismo (PONCIONI, 2005). Essa ligação com as forças armadas é mais estreita principalmente nos batalhões de elite como o BOPE. “Tropa de Elite” exemplifica essa realidade de maneira primorosa, salientando o agir agressivo dos policiais nas favelas, a utilização de métodos de tortura de maneira desregrada, seu treinamento voltado para a execução de bandidos (ou possíveis bandidos), etc. Apesar de se dar de maneira mais frouxa fora dos batalhões especiais, esses ideais permeiam toda a corporação, criando um corpo de policiais identificados com os ideais e maneira de agir dos militares, promovendo um descompasso com a realidade com que precisam trabalhar e lidar.

3.4 Policiamento Comunitário no Brasil: duas experiências.

As questões referentes à formação dos praças são axiomáticas quando nos propomos a discutir policiamento comunitário ou qualquer tipo de alteração nas estruturas do policiamento vigente. As necessidades, o tipo de trabalho e o modo de execução do policiamento comunitário é totalmente divergente das práticas de um policiamento profissional-burocrático. Nesta visão de policiamento se valoriza muito mais a capacidade de lidar com diferentes públicos e situações sem o uso da força física, algo totalmente oposto ao ethos guerreiro que é exigido para se fazer a “guerra ao crime”. Baseada na prevenção do crime, a formação para policiais que agirão sob a lógica do policiamento comunitário procura valorizar muito mais as disciplinas humanistas, que levem o policial a uma reflexão sobre as diferentes realidades e situações que ele terá de enfrentar, em detrimento da exaltação da força física, tática, bravura e comportamento guerreiro. Dentro da discussão sobre o policiamento comunitário no Brasil, Paulo de Mesquita Neto (2004) traz a visão dos coronéis da polícia militar de São Paulo que participaram da Comissão Estadual de Polícia Comunitária. De certa forma, todos os coronéis entrevistados imputaram ao policiamento comunitário a função de melhorar a segurança pública como um todo, em razão de algumas características como: foco na prevenção do crime; integração dos esforços da polícia e da comunidade; adequação do trabalho da polícia aos anseios da comunidade; melhor resolução de conflitos; e aumento do sentimento de segurança. De

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alguma forma, todas as características têm ligação direta com a questão de se estreitar os laços entre comunidade e polícia. No ideal de policiamento comunitário (trabalhado na segunda parte da revisão bibliográfica deste trabalho) a comunidade deve sair da posição de passividade na relação com a polícia e se tornar o ator principal da política de segurança pública, revelando as suas demandas à polícia, de forma a moldar a ação policial dentro do território. O artigo (NETO, 2004) se baseia na opinião de sete coronéis que participaram do programa. Muitos dos outros envolvidos não puderam ser contatados ou não quiseram participar da pesquisa. Os sete coronéis concordam e divergem em determinados pontos e aspectos do policiamento comunitário. As divergências estão centradas normalmente na questão da verdadeira caracterização do policiamento comunitário: seria ele uma mudança profunda nas estruturas do policiamento ou apenas uma fachada para perpetuar as práticas do policiamento profissional? Embasados em suas experiências, os coronéis em sua maioria acreditam que, devido às dificuldades encontradas para a implantação de um programa de policiamento comunitário eficiente, a mudança de status não é profunda e eficaz. No artigo escrito por Jaqueline Muniz, Sean Patrick Larvie, Leonarda Musumeci e Bianca Freire (1997) são apontados os principais problemas para a implementação real do policiamento comunitário: a dificuldade de acesso às comunidades, pelo fato de algumas ainda guardarem receios em relação à polícia; a falta de colaboração de outras agências com o intuito de fortalecer o projeto em outras frentes; e o ambiente institucional da PM, que de certa forma complica a execução de uma reforma profunda nos sistemas policiais, necessária para a consolidação do policiamento comunitário. Os autores explanam o caso da tentativa de implantação de policiamento comunitário em Copacabana e Leme, bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Em Copacabana, os autores constataram o primeiro problema enfrentado pelo programa: o acesso aos moradores. Em sua maior parte, os moradores de Copacabana não estavam dispostos a receber os policiais em suas casas, demandar ações e serviços, prejudicando a execução do programa. A base do exercício de policiamento comunitário está no contínuo e intenso diálogo com a população local. Além disso, a prevenção do crime é a principal missão, sendo necessária a articulação de outras agências de governo, setores da sociedade civil organizada, ONGs e etc., para que a prevenção seja eficaz. O programa executado em Copacabana não recebeu esse apoio, sendo descontinuado em 1995 pelo secretário de segurança da época, que levantava a bandeira de um “endurecimento policial” (MUNIZ et al, 1997).

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Dentro da Polícia Militar a situação se complicava. Havia o que podemos chamar de “embate” entre as duas lógicas de policiamento. O modelo profissional ainda estava muito arraigado na mentalidade dos policiais e da sociedade como um todo, provocando chacotas e retaliações aos policiais designados para o policiamento comunitário de Copacabana. Estes eram vistos como “menos policiais” do que aqueles que continuavam na velha lógica de policiamento, mais militarizada e voltada para a “guerra contra o crime”. Além disso, velhos problemas como a falta de infraestrutura, de equipamentos e etc., colaboravam para aumentar a dificuldade de se manter o programa. Retomando o ponto discutido na seção sobre as teses de Bayley e Skolnick sobre o policiamento comunitário, na experiência vivida em Copacabana a tensão entre centralização e descentralização foi um dos fatores de maior relevância para a descontinuação do projeto. No contexto do policiamento comunitário, o policial de linha deve ter total autonomia para conduzir suas ações de acordo com os anseios da comunidade. Se não houver essa flexibilização, a adequação do policiamento à realidade e aos anseios da comunidade fica prejudicada, pois é necessário que haja alguns ajustes que se dão de diferentes formas e intensidades dependendo de cada realidade. Essa descentralização muitas vezes esbarra nos princípios centralizadores do modelo profissional de policiamento, o que contribuiu para que muitos problemas ocorressem na experiência vivida em Copacabana.

3.5 Mídia e Violência: Possibilidades de Análise

Nos países democráticos a mídia está intimamente relacionada com as mudanças mais importantes acontecidas após sua consolidação como meio de comunicação de massa. O caso brasileiro não é diferente. Mudanças substanciais, ocorridas especificamente nos jornais, alteraram as estratégias e o modo de cobrir os fatos, abandonando algumas práticas que prejudicavam a transmissão da informação de modo menos enviesado (troca de favores com policiais, etc.)

11

. Em relação à formação daqueles que cobrem a área de

segurança nos jornais, podemos notar uma gradual e contínua mudança de perfil desses profissionais. Atualmente, os jornalistas dedicados ao caderno policial estão mais

11

RAMOS, Silvia & PAIVA, Anabela (coords). “Mídia e violência: como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil”. Rio de Janeiro. CESEC. 2005

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especializados, se dedicando a cursos de formação na área, diferentemente do que ocorria no passado. Enfim, nos últimos tempos os jornais têm sofrido modificações estruturais que afetaram diretamente o modo pelo qual a noticia chega aos leitores. Essas mudanças são fundamentais, já que a mídia desempenha papel importante dentro do debate público sobre a segurança pública, influenciando a opinião da sociedade em geral e as ações governamentais. Sobre esse caráter da mídia, Porto diz que:

“Os media constituem, nas modernas democracias contemporâneas, um dos principais produtores de representações sociais as quais, para além de seu conteúdo de falsas ou verdadeiras, tem função pragmática enquanto orientadoras de condutas dos atores sociais. Sendo assim, faz sentido argumentar em favor da relevância do tema como subsídio para a formulação de políticas para a área, não por serem as representações sinônimo de verdade, mas por se constituírem em veículos privilegiados de crenças, valores e anseios de distintos setores da sociedade.” ( 2010:160)

Coelho (2004) analisa os acontecimentos que se desdobraram do episódio de conflitos na Rocinha ocorrido no Rio de Janeiro na madrugada da sexta-feira Santa do ano de 2004. A autora se debruça especificamente sobre o tema da alteridade dentro do discurso midiático produzido no âmbito desse episódio, focalizando sua análise na sugestão feita pelo então vice-governador do estado de se construir um muro para conter o crescimento da favela da Rocinha, representando o que a autora denominou de “estratégiasíntese de segregação” (2004:76). Para realizar sua análise, a autora esquematiza três modelos teóricos que se propõem a analisar o discurso midiático em relação a sua interface com a violência, especificamente nesse caso, a violência urbana. Tais modelos teóricos são importantes para o estudo pretendido, pois evidenciam a relação íntima entre violência, mídia e sociedade, ao ponto que delimitam, de acordo com cada especificidade teórica, a forma de interação entre esses atores, seus papeis e o modo pelo qual interagem. Os três modelos de análise da interação entre mídia-violência-sociedade são interessantes para o presente estudo, pois cada um se concentra em determinado aspecto da interação que colabora para a análise pretendida. O primeiro modelo teórico é abstraído da obra de Rondelli (1997), “Mídia e violência: ação testemunhal, práticas discursivas, sentidos sociais e alteridade”. Segundo Rondelli (1997), o discurso midiático produz “imagens sobre o Outro” que orientam algumas práticas sociais em relação a estes. Essas imagens são concebidas em relação à idéia de “ordem” que se queira construir e\ou manter. Assim, a diferença (tudo aquilo que foge à idéia de

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“ordem”) deve ser eliminada para que o “ideal de ordem” possa ser consolidado. O “Outro” é construído de forma antagônica a tudo que se considera “aceitável” dentro da ordem social, ou seja, é o avesso do pretendido pela sociedade, servindo como contraponto, receptáculo de toda característica “nociva”, etc.. Esta imagem construída do “Outro” também produz medo e insegurança, na medida em que esta relação constrói um tipo de sociabilidade que exclui a possibilidade de respeito e aceitação do “outro”, em favor de uma atitude de negação e afastamento. Nesse processo a mídia se coloca como ator ativo, pois promove a construção de imagens por meio da tematização da violência, produzindo atitudes sociais em relação a esse fenômeno. Sua ação dentro desse processo se dá de duas maneiras principais: por ser um meio de informação, a mídia torna visíveis os conflitos violentos que se dão em qualquer parte da cidade, estado, país e até mesmo no mundo; de acordo com essa cobertura, a mídia colabora para a construção de representações sociais da violência e de seus atores que são capazes de orientar as práticas sociais em relação aos personagens da violência, bem como a maneira pela qual os indivíduos irão se posicionar em relação ao fenômeno como um todo. O segundo modelo teórico analisado por Coelho é extraído da obra de Sento-Sé (2003) sobre as relações entre mídia e violência e a produção de medo e insegurança. O autor usa como base de sua argumentação a idéia de “comunidades imaginadas” proposta por Anderson12, localizando a mídia como uma das produtoras dessas “comunidades”. Na medida em que a mídia traz para perto acontecimentos longínquos, uma nova maneira de ver o que está distante é fundada. A possibilidade de se colocar em relação com pessoas, fatos e acontecimentos distantes, promove a criação de “comunidades imaginadas” que nunca se fundariam sem essa intermediação, que “remove” as distâncias espaciais. Especificamente em relação à violência, a mídia promove o contato com este fenômeno localizado fora do “raio de contato” individual (locais por onde circula o indivíduo, grupos com os quais mantém contato pessoalmente, etc.). Assim, a violência não é somente aquela com a qual mantenho contato pessoal de alguma forma, mas também aquela que ocorre longe de mim, com outro com o qual nunca tive contato. O grau de sensibilização do indivíduo em relação a essa violência que lhe é distante depende do perfil da vítima e do tipo de violência. Quanto mais próxima essa configuração for do indivíduo, maior será o nível de sensibilização em relação ao acontecido. A sensibilização depende exclusivamente do quanto nos sentimos próximos das vítimas da violência. Nesse processo, o “Outro”, que é construído em relação de oposição com tudo que é “socialmente aceito”, não sensibilizará a população quando o mesmo for vítima da violência. Podemos exemplificar essa questão 12

Para maiores esclarecimentos sobre a noção de “Comunidades Imaginadas”, ver ANDERSON, Benedict. “Imagined Communities”. London, Verso Editions. 1983.

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com a recorrente falta de identificação em relação a indivíduos que cometeram crimes, pobres, população carcerária, etc.. Nesse sentido, o que se vê normalmente na cidade do Rio de Janeiro é uma falta de sensibilidade com relação aos indivíduos que são rotulados como os “Outros”, aqueles que estão fora da “ordem”, especificamente nesse trabalho, os moradores de áreas de pobreza. O terceiro e último modelo teórico analisado por Coelho (2004) é tratado por Caldeira em seu trabalho denominado “Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo”, e é baseado na concepção de “fala do crime”. Segundo Caldeira (2000), as narrativas são uma forma de ação social, pois produzem uma ordenação de mundo, ou seja, uma forma de organizar o mundo e assim conferir lógica e sentido a ele. Nesse sentido, a “fala do crime”, segundo a autora, passa ser a “fala da cidade”, na medida em que o crime é a temática recorrente pela qual grande parte dessa ordenação do mundo é feita. O sentimento de insegurança e medo passa a ser naturalizado, pois a violência é massificada e tratada como banal, natural e imprevisível. Grande parte desse sentimento é causada pelo discurso midiático que acaba por incorporar essa “fala do crime”, massificando a violência ocorrida em toda a cidade. A mídia, assim como as narrativas, cria uma imagem da violência e dos atores envolvidos, criando para seus espectadores uma ordenação de mundo, que na maioria das vezes caracteriza o “Outro” como fonte da violência retratada. Os três modelos, apesar de diferentes, guardam em sua essência duas características em comum: todos eles salientam que a relação da mídia com a violência transcende a simples referência, sendo esse um ator ativo no processo de criação e manutenção do sentimento de medo e insegurança na sociedade; Sendo assim, a mídia, ao selecionar, julgar e hierarquizar as informações produz uma visão de mundo que irá ser apreendida por seus espectadores e, em maior ou menor grau, utilizada como orientação para o seu agir no mundo; Além disso, o modo como a mídia divulga os acontecimentos violentos influencia diretamente no sentimento de medo e insegurança, na medida em que sensacionaliza e espetaculariza os eventos violentos, dando contornos de “caos” que muitas vezes superestimam os acontecimentos reais. As três perspectivas analisadas por Coelho são interessantes para a análise aqui pretendida, pois colocam a mídia em uma posição privilegiada na análise, por ter papel fundamental dentro dos projetos de segurança pública em geral, não sendo diferente no caso do Estado do Rio de Janeiro especificamente. Ultimamente a mídia tem mantido um papel privilegiado no sucesso ou fracasso de políticas públicas de segurança. Desde a consolidação das Unidades de Polícia Pacificadora como principal projeto de segurança pública do Estado, a mídia tem tomado, na maioria das vezes, o posicionamento a favor

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desta nova proposta, colaborando para que uma imagem das UPPs seja criada e massificada para a população. A aceitação ou não de determinada política pela sociedade tem ligação direta com o modo pelo qual a mídia constrói os atores e as situações envolvidas no processo, pois é principalmente pelos meios de comunicação que os indivíduos modernos podem “compartilhar com o longínquo” (COELHO, 2004:80). Finalizando as reflexões acerca da metodologia, as representações sociais, em uma certa dialética, são produzidas pela sociedade e de certa forma produzem a sociedade. No momento em que tais representações são geradas, os indivíduos passam a se valer delas para agirem e se localizarem no mundo, como dito anteriormente a propósito do trabalho de Caldeira. Em suas reflexões sobre o material recolhido em pesquisa realizada no Distrito Federal, Porto sinaliza:

“Assim, a violência representada como modus operandi da sociedade é invocada como justificativa para a violência policial, como transparece em vários dos depoimentos colhidos. Da mesma forma, poder-se-ia dizer, a mídia ‘constrói’ o Rio de Janeiro como necessariamente violento, antro de banditismo. A partir daí, existiria alguma forma de o Rio não ser representado por amplos segmentos da população como violento? São as representações como clichês, referentes estereotipados da sociedade.” (2010:77)

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4. METODOLOGIA

Para cumprir os objetivos do presente trabalho, foi selecionado o jornal O Globo como objeto de analise. A escolha se deu por ser o referido jornal um dos mais antigos e influentes no caso carioca. O jornal O Globo hoje tem a tiragem média de 262.435 exemplares por ano na cidade do Rio de Janeiro13, possui um público majoritariamente localizado na classe A e B e mantém uma forte legitimidade e credibilidade frente à população. Foram selecionados dois eventos-chave para a análise do discurso midiático sobre a segurança pública do estado. Os dois momentos são interessantes e complementares por guardarem diferenças e também similaridades. A análise não se fixou apenas na data do acontecimento. Com o intuito de capturar o processo de construção do discurso e a ressonância desses acontecimentos, foi escolhido o período de cinco dias, situando a data do evento no terceiro dia do recorte temporal. Sendo assim, dois dias antes do episódio, o dia do acontecimento e dois dias depois formam o período analisado. Os episódios escolhidos foram a implantação da primeira Unidade de Polícia Pacificadora, no morro Santa Marta, em Botafogo, e a “tomada” do Complexo do Alemão. As duas operações são interessantes para discutir o tema proposto neste trabalho, pois, de certa forma, foram duas operações comandadas de maneiras diferentes, mas com o mesmo intuito. Por serem diferentes, os discursos midiáticos com relação a essas operações também apresentam diferenças substanciais. Assim, seguindo o esquema explanado acima, o primeiro período analisado vai de 17 a 21 de dezembro de 2008 (Santa Marta) e de 26 a 30 de novembro de 2010 (Complexo do Alemão). Nos jornais, foram retiradas as matérias da área de segurança e qualquer matéria, nota ou editorial que discutisse os assuntos de segurança pública, UPPs, pacificação, polícia, favela e/ou tráfico de drogas. Foi frisada a localização de cada matéria dentro do jornal, pois a hierarquização da informação também é um dado importante para a pesquisa. Além disso, a falta de informação se configurou como um dado interessante, colaborando para a confirmação de algumas hipóteses formuladas. Respeitando a ordem temporal do

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Fonte: Associação Nacional de Jornais. http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-nobrasil/maiores-jornais-do-brasil. Acesso em 10 fev. 2012.

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recorte, a análise foi feita seguindo os dias selecionados de cada período analisado, pois se procurou capturar também o processo de acúmulo e formação dos discursos. A coleta dos jornais foi feita integralmente na Fundação Biblioteca Nacional, tanto exemplares originais quanto microfilmados. Em um primeiro momento houve alguns problemas em acessar o acervo no original, pois a consulta normalmente é feita nos microfilmes por questões de proteção ao arquivo original. Mas após algumas visitas, o acervo foi finalmente liberado para consulta e reprodução de algumas de suas partes. Por esse motivo, o período de coleta se estendeu, totalizando dois meses, desde o começo até o encerramento da coleta, que foi precedido de inúmeras visitas a instituição que não resultaram em nenhum material recolhido, pelos problemas burocráticos citados acima.

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5. ANÁLISE

A análise do material recolhido se dará de maneira cronológica, ou seja, primeiramente serão analisados os cinco dias escolhidos para a implantação da UPP no Morro Santa Marta, em ordem, e depois os cinco dias referentes à ocupação do Complexo do Alemão (para detalhes e justificativa da escolha dos dias, ver metodologia). Na primeira seção é feito um pequeno histórico das intervenções estatais nas favelas cariocas, como uma forma de localizar as discussões dentro de um processo histórico que oscila entre as políticas de remoção e as de urbanização e integração. Após a análise discorre-se sobre o período referente à instalação da UPP no Morro Santa Marta e por fim, os episódios violentos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro e a ocupação do Complexo do Alemão, resultante desses conflitos.

5.1. O “Problema” da favela

Durante mais de um século de favela, esse território sofreu diversas intervenções, tanto no plano físico, com todas as políticas estatais que ora defendiam as remoções, ora defendiam a urbanização, quanto no plano simbólico, tendo sua imagem modificada ao decorrer do tempo. Os dois planos se alimentam em um processo contínuo, produzindo uma imagem da favela que fomenta determinadas ações estatais nesses territórios, configurando uma relação intima entre o plano simbólico e o físico, produzindo diversas imagens e intervenções, sendo a urbanização de um lado e as remoções de outro, os dois meios de se resolver o “problema” da favela mais recorrentes. Marcelo Burgos (2006) se propõe a fazer o percurso histórico dessa dinâmica entre as imagens das favelas e as atuações do poder público carioca. De acordo com o autor, o primeiro documento oficial da cidade que cita as favelas como um problema a ser resolvido é o Código de Obras de 1937. Nesse documento fica claro que as favelas são consideradas como uma aberração e que por isso não podem permanecer no mapa da cidade. Desta forma a proposta do Código de Obras é a sua total erradicação do cenário da cidade,

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proibindo também a construção de novas moradias e a melhoria das existentes. Para solucionar o problema dos moradores desabrigados, é proposta a alternativa dos Parques Proletários, a primeira solução dada ao “problema”. A questão não foi formulada tendo em vista os moradores e suas necessidades. Na realidade o “problema da favela” implicava mais na questão da ordem urbana da cidade do que em relação a seus moradores. O que se pretende com os Parques Proletários é retirar as favelas do cenário, desocupando esses espaços para a expansão urbana. Mas os Parques Proletários, além de ser uma alternativa para o problema urbano, também se caracterizaram por uma intervenção do ponto de vista moral e civilizatórios dos moradores de favela. Dentro dos Parques havia uma forte campanha de reeducação social para que se corrigissem hábitos e fosse incentivada a escolha de melhores moradias. Desta forma fica clara a visão negativa e inferior com que eram vistos os favelados. Na condição de “pré-cidadãos”, os habitantes de favelas não são vistos como possuidores de direitos, mas como alvos de uma pedagogia civilizatória (BURGOS, 2006). Um dos processos que não foi previsto na experiência dos parques Proletários foi um embrião de organização de moradores das favelas preocupados com a generalização da politica dos parques. O autoritarismo e as péssimas instalações foram a razão para se criarem em 1945 as comissões de moradores, inicialmente no morro Pavão/Pavãozinho. Esse processo foi uma resposta à intervenção do poder público, que ameaçava suas casas e suas redes de sociabilidade pelo deslocamento forçado. Para combater esse processo os moradores de favela se constituíram em atores políticos através das comissões de moradores. Desde então, podemos notar um crescente envolvimento político dos favelados, culminando em suas práticas associativas, e na criação da Federação de Favelas da Guanabara. Após essas primeiras “soluções” ao “problema da favela” terem sido executadas, muitas outras vieram. Algumas com a intenção de urbanizar as favelas, outras com a intenção de remover, sempre seguindo uma das duas lógicas. Podemos citar tantos outros programas que foram criados tendo em vista a resolução deste impasse: Leão XIII, Serfha, Cohab, Codesco, Chisan, Favela-bairro, entre outras. Durante todo esse século, várias tentativas foram feitas para a resolução da problemática das favelas, mas o tipo de intervenção que mais marcou a história das favelas foram as remoções. Durante a época da ditadura a prática das remoções foi muito utilizada. Durante essa época, volta à tona a polarização entre o “mundo da ordem” e o “lugar da desordem”, devolvendo à favela a imagem criada na década de 40, como o lugar dos indivíduos não civilizados e carentes de intervenção estatal. Dentro do contexto do AI5, o Decreto E, nº

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3.330 é assinado, estabelecendo as competências e finalidades das associações de moradores. Ao fixar as obrigações das associações o decreto subverte o papel destas, passando a serem agentes do poder público dentro das favelas, e não mais representantes dos interesses dos moradores. Em todo esse contexto de repressão da ditadura, a Fafeg também foi expurgada, depois de realizar alguns congressos de favelados nos anos de 67 e 68 que conseguiram representar mais da metade dos moradores destes territórios. Toda a diretoria da Fafeg foi cassada e seu presidente foi preso e morto. Logo depois houve nova eleição sob a supervisão do Estado, tornando a Fafeg uma assessora do governo. Desta forma a Federação não representava mais os moradores de favelas, mas os interesses do Estado dentro das favelas (BURGOS, 2006). No período de sete anos mais de 100 mil pessoas foram removidas das suas moradias, e mais de 60 favelas foram destruídas. Toda essa política só fez crescer o ressentimento dos moradores que tiveram suas habitações e suas redes de sociabilidades destruídas pelas remoções. Esse sentimento se mostrou no campo político. Com a redemocratização, há a eleição para governador do Estado do Rio de Janeiro, disputada pelos candidatos Miro Teixeira, Sandra Cavalcanti, Moreira Franco, Lisâneas Maciel e Leonel Brizola. Os três primeiros, de uma forma ou de outra, estavam ligados diretamente ao passado de remoções (Moreira Franco era do partido do governo militar). Já Lisâneas Maciel, do Partido dos Trabalhadores, falava mais para o operariado, sendo seu discurso muito direcionado para esse setor. Desta forma, Leonel Brizola ganhou surpreendentemente as eleições estaduais, capturando o voto “super-revoltado” (ZALUAR, 1985: 255) dos excluídos do Estado. A eleição de Brizola demonstra o peso político dos favelados, fazendo com que os moradores de favela, a partir de então, sempre estejam de alguma forma incluídos em uma agenda social, mesmo que apenas nas promessas de campanha (BURGOS, 2006). No final da década de 70 e início dos anos 80, as favelas são inseridas em uma nova problemática que chega ao Rio de Janeiro: o tráfico internacional de drogas. Longe de ser um problema local, esses grupos escolhem as favelas como sede de seu comércio por um conjunto de fatores: difícil acesso a algumas áreas, ruas estreitas, por serem situadas em sua maioria em morros e terem por isso uma vista privilegiada e a falta de aparelhos estatais nesses territórios. A chegada dos traficantes a cena do Rio de Janeiro irá modificar o status das favelas. A partir de então, os moradores têm que pautar seu comportamento e sua circulação no território levando em consideração toda a complexa configuração que o tráfico impõe. Ao mesmo tempo, os favelados têm que lidar com as ações policiais dentro do território, sendo alvo de interrogatórios frequentes, por apenas serem moradores de territórios de pobreza. Por ser um estigma muito forte, apesar da maioria dos moradores de

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favelas nunca terem participado ou terem sido coniventes com o tráfico, a ideia de que os moradores são cumplices com o crime que incide sobre a cidade é frequentemente acionada como suporte às operações truculentas feitas nestes territórios. Recentemente, a “Pacificação” passou a ser a política de segurança pública para os territórios de favelas (apesar de seguirem uma lógica que procurou atingir primeiramente as favelas da Zona Sul). Apesar da imagem que se pretende passar, a política de “pacificação” desses territórios não abandona alguns ideais e procedimentos sustentados pela política de “guerra ao crime”. Neste sentido, busco, a partir de análise feita no Jornal O Globo, localizar a permanente tensão entre os ideais de “guerra ao crime” e “pacificação”. Sustento que de certa forma ambas as lógicas se fazem presentes no material coletado, e, de maneira mais contundente, o ideal da “guerra” se mostra mais forte no discurso midiático. Os temas da “favela” e do policiamento se entrecruzam assim, com as representações da favela integrando, no plano simbólico, o estilo de policiamento privilegiado pelas políticas de segurança pública. Além de fomentar intervenções em relação às questões de urbanização e estética da cidade, o policiamento também se orientou pelas imagens que a favela apresentou em decorrer de mais de um século, oscilando entre as orientações voltadas à “guerra” ao crime, tendo a favela como principal foco da criminalidade (LEITE, 2000) e voltadas a modelos de policiamento que diferem da lógica do policiamento profissional, que possuem a intenção de promover um policiamento que tenha uma relação mais próxima com a comunidade em que se sedia. Projetos como esses se somam no decorrer da história, e as UPPs são atualmente a tentativa de promover uma modificação da lógica do policiamento tradicional no Rio de Janeiro.

5.2. Santa Marta

A favela Santa Marta se localiza no morro Dona Marta, em Botafogo, Zona Sul da cidade do Rio. A origem do seu nome remonta ao início do século XX, quando uma devota de Santa Marta teria avistado a imagem da santa no morro. Na década de 30 foi construída uma capela no local para homenagear a santa. A ocupação do morro teve início a partir do consentimento do Colégio Santo Ignácio, dono do terreno, para que seus funcionários pudessem se estabelecer e construir moradias nas encostas do morro. A partir de então a ocupação se intensificou, devido à oferta de trabalho crescente na região, e consequentemente a migração da população de outras áreas da zona sul para o morro. Por ser um terreno privado, a favela Santa Marta nunca foi ameaçada de remoção pelo Estado,

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não tendo sofrido com as politicas severas empregadas pelos aparelhos estatais, principalmente no período da ditadura militar14. Na mesma época da implantação da UPP do Santa Marta, o Jornal O Globo abriu espaço para noticiar um problema enfrentado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Dentro da PM os policiais recebiam alimentação que vinha diretamente do quartel. A refeição era preparada por policiais que se deslocaram de suas obrigações devidas para cozinhar a alimentação dos outros policiais. Esse problema recebeu maior cobertura do jornal do que as questões sobre a UPP do Santa Marta (processo que já estava em andamento, com a implantação da UPP em si já com data marcada), merecendo reportagem própria na página 14 do jornal do dia 17 de dezembro de 2008. Assim, neste mesmo jornal, não houve espaço reservado à UPP ou ao tema do policiamento comunitário, nem ao morro Santa Marta, diretamente. A única menção a Segurança Pública foi feita em uma matéria sobre uma operação realizada na favela da Rocinha. Na página 12 do jornal, há a reportagem sobre essa operação, apontando os erros que a polícia teria cometido na ação. Em um espaço destacado, o autor da reportagem dá sua opinião, criticando a posição da polícia, revelando seu posicionamento a favor do modelo de ocupação policial realizada no Santa Marta, construindo uma oposição em relação à ação truculenta na Rocinha. Aqui, timidamente pelo espaço dedicado, pode-se enxergar a tensão entre os tipos de policiamento realizados no Rio de Janeiro. De um lado, a truculência policial, ações descoordenadas e com pouco uso dos setores de inteligência. Por outro, o “protótipo” de Unidade de Polícia Pacificadora realizado no Santa Marta, que pela oposição feita, pode ser considerado como um modelo de policiamento que se diferencia qualitativamente do anterior, segundo o autor da reportagem:

As cenas da operação policial ontem na Rocinha são enfadonho e aterrorizante repeteco de tantas outras ações: tiroteio, granadas, trânsito obstruído em vias importantes da Zona Sul, risco de balas perdidas, etc. O combate ao crime é necessário e desejado. A questão é romper o círculo vicioso das escaramuçadas sem fim e de parcos resultados. Por isso, cada vez mais consolida-se como modelo indicado o da ocupação definitiva dessas favelas. Como ocorre na Dona Marta. (O Globo. 17/12/2008. Caderno Opinião, p. 12).

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Fonte: Associação de Moradores e Amigos de Botafogo http://www.amabotafogo.org.br/historia/santa_marta.asp (Acesso em 14 fev. 2012)

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No dia 18 de dezembro de 2008, a capa do Globo recebe a manchete: “Ex favela de milícia terá nova polícia”. Nota-se que o policiamento prometido para a favela do Batan é considerado “novo” e no corpo do texto o jornalista diz: “(...) a favela do Batan vai ganhar um batalhão de policiamento comunitário nos mesmos moldes do que está sendo criado no morro Dona Marta (...)”. Esse é o primeiro registro, dentre a amostra desta pesquisa, que trata o policiamento realizado no morro Santa Marta como “comunitário”. Na página 17 do mesmo jornal, há uma reportagem de meia página com o título: “Batam também terá policiamento comunitário”. No meio da matéria há uma fotografia mostrando um treinamento de tiro. Nesta matéria fica clara a tensão entre “Guerra” e “Paz” nos discursos midiáticos quando o objeto é a segurança pública, sintetizada pelo “antagonismo” simbólico entre um texto que fala sobre policiamento comunitário e uma imagem de treinamento de tiro, opondo assim as imagens da “guerra” e da “paz”. A matéria diz:

Exercício. BOPE treina recrutas que vão atuar no Dona Marta. Recrutas que vão participar do novo policiamento comunitário no Morro Dona Marta, em Botafogo, a partir de amanhã, participam de um treinamento no BOPE, para conhecer de perto o relacionamento entre os integrantes dessa unidade de elite e os moradores da favela Tavares Bastos, no Catete. A comunidade está há dez anos livre do tráfico e convive com o grupamento policial no alto do morro. - “Mostramos que é possível fazer um patrulhamento eficaz e, com o auxílio e a cumplicidade dos moradores, deixar a comunidade livre do tráfico de drogas’ disse o comandante do BOPE, tenentecoronel Alberto Pinheiro Neto”. (O Globo, 18/12/2008, Caderno Rio, p. 17).

Interessante notar que o treinamento que buscou mostrar aos recrutas como os policiais do BOPE se relacionam com a comunidade Tavares Bastos foi ilustrado por um treinamento de tiro. Fica clara a permanente alusão a um ethos guerreiro impregnado nos currículos de formação dos policiais cariocas, discutido e analisado na revisão bibliográfica com o trabalho de Poncioni (2005). A preparação dos policiais para enfrentar situações de guerra é evidente, e não foge a essa lógica a imagem que ilustra a matéria sobre policiamento comunitário. Mesmo sugerindo novas lógicas do “fazer policial” o paradigma da “guerra” se faz presente de forma contundente.

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(Fonte: O Globo. 18/12/2008. Caderno Rio, p. 17).

No dia 19 de dezembro, dia da inauguração da UPP no Morro Santa Marta, não houve nenhuma informação sobre o evento. Aqui cabe uma constatação: como ficará claro até o final da exposição sobre a UPP do Morro Santa Marta, não houve uma cobertura jornalística ampla sobre o episódio. Em sua maioria, as matérias tratam tangencialmente sobre a UPP (como no caso da matéria acima) ou comentam outros aspectos da “Pacificação” do território (como a especulação imobiliária). Minha hipótese é de que a pauta sobre segurança pública não ganha espaço se não houver algum tipo de evento violento, que aflore o sentimento de insegurança na população, ou algum tipo de escândalo (como no caso dos dias 17, 18 e 19 de dezembro de 2008, onde o ponto central da pauta de segurança era o problema dos policiais sendo deslocados para dentro dos quarteis para cozinharem para o batalhão). Colaborando com a ideia de que a área de segurança não é tão valorizada dentro das redações, cito o comentário, colhido do livro de Ramos e Paiva (2007), de Marcelo Beraba, ombudsman da folha de São Paulo:

“Eu comecei em 71, no Globo, e a prioridade era polícia; a gente fazia polícia o tempo todo. É nítida a evolução de lá para cá.

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Agora, se você comparar com as atenções que recebem, nas redações, áreas como economia, ciência e meio ambiente, essa evolução fica aquém do que aconteceu ou vem acontecendo nestas áreas. A área policial continua sendo um primo pobre, não só dentro da imprensa, mas também na sociedade e na Academia” (2007:18)

No dia 20 de dezembro de 2008, não há nenhuma menção a polícia, segurança pública e/ou favela na capa do jornal. A primeira matéria sobre a temática aparece na página 21, discorrendo sobre o caso de tiroteio ocorrido na favela da Maré. Nessa mesma página há um pequeno espaço reservado para falar sobre a inauguração do Posto de Policiamento Comunitário (PPC):

Com bom humor, o governador Sérgio Cabral inaugurou ontem o novo Posto de Policiamento Comunitário do Morro dona Marta, em Botafogo, ocupado pela PM desde 19 de novembro e, segundo a polícia, livre do tráfico (...) - “A maioria das pessoas quer que este projeto dê certo. E estejam certos de que esta experiência não vai parar aqui. Não podemos aceitar o domínio de comunidades. É como se isso fizesse parte da paisagem carioca. Isso é uma vergonha, inaceitável, não podemos achar normal. O Batam já está sendo preparado. Outras comunidades também”. Disse o Governador Sérgio Cabral. (O Globo, 20/12/2008, Caderno Rio, p. 21).

O espaço concedido para a divulgação da implantação da UPP do Santa Marta foi um pequeno retângulo localizado na parte inferior da página, tendo acima uma reportagem de meia página sobre o caso de violência ocorrido na favela da Maré. Novamente vemos a tensão entre “Paz” e “guerra”, e como os acontecimentos violentos ganham maior visibilidade dentro do jornal do que os que noticiam, no caso, a UPP do Santa Marta. O que parece sustentar essa lógica é a associação direta que se faz entre segurança pública e violência, como se o objeto principal de análise quando a pauta é segurança pública fosse estritamente os eventos violentos, colaborando para a sobreposição da “fala do crime” com a “fala da cidade” (CALDEIRA, 2000). Diferentemente dos outros dias, o 5º dia do período escolhido para análise agregou diversas reportagens sobre a implantação da UPP no Santa Marta e seus efeitos, sentidos e esperados. Na capa do O Globo do dia 21 de dezembro de 2008 encontra-se uma foto grande, no meio da página, retratando uma mulher com sua filha em frente a um barraco. A legenda diz: “apesar de desempregada, Antônia Aparecida Nascimento, de 43 anos, ao lado da filha, está feliz: ‘agora só falta arrumar um trabalho’”. Ao lado desta fotografia, a

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manchete: “Esperança e medo no Dona Marta: procura de imóveis cresce; comunidade teme a volta do tráfico”. Apesar do processo de “pacificação” da comunidade ter “livrado o território do domínio do tráfico”, como dito pela PM, o medo e a insegurança continuam sendo recorrentes na vida dos moradores, como explicita a manchete. A “esperança” acompanhada do “medo” forma uma dualidade que vai ser trabalhada extensivamente nas reportagens desse jornal, especificamente. Na página 16, abrindo o espaço dedicado às noticias do Rio, a reportagem intitulada “Vidas Blindadas” conta como os moradores do Santa Marta se protegem dos tiroteios. Mais uma vez há o desvio da atenção jornalística da “pacificação” para o cenário de “guerra”. A reportagem e as autoridades dizem que não há mais tráfico armado no território, mas mesmo assim o espaço é dado para falar sobre a violência. A tensão entre “paz” e “guerra” no discurso midiático sobre segurança pública permanece, mas sempre a fala pende para a ilustração de uma situação de violência, que incite o medo, mesmo que seja um medo referente a uma situação no passado, como no caso dos moradores do Santa Marta que mesmo com a ocupação e o policiamento comunitário sendo feito no território, têm medo da volta do tráfico e contam como se defendem de tiroteios. Na página 17 do mesmo jornal o assunto é o crescimento da especulação imobiliária. A matéria de autoria de Vera Araújo reflete a “positividade” da “pacificação”, que está colaborando para que a procura por imóveis na região suba (chegando a 30%) e também para que o bairro diminua sua “visão negativada”, causada pela favela, como disse em entrevista o tenente-coronel Gileade Albuquerque, comandante do 2º BPM:

Ação no Dona Marta aquece mercado imobiliário: segundo corretora, com o fim do tráfico de drogas na favela, procura por imóveis em Botafogo cresceu 30%. (...) Na primeira semana de ocupação, nenhum delito. A pedido do Globo, o comandante do 2º BPM, tenente-coronel Gileade Albuquerque, fez um levantamento e constatou que, na primeira semana de ocupação do Dona Marta, iniciada em 19 de novembro, não ouve qualquer delito na rua São Clemente. Para o oficial, a estratégia de acabar com o tráfico e reprimir as irregularidades na favela – como interditar uma central de internet clandestina e recolher caça-níqueis – está afastando os bandidos. - “(...) O Dona Marta servia como um referencial negativo em Botafogo. Isso, felizmente, acabou.” Disse o oficial. (O Globo, 21/12/2008, Caderno Rio, p. 17).

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Ainda na página 17, a primeira matéria dedicada exclusivamente a falar sobre o policiamento comunitário. Da mesma forma como as demais, a matéria recebe pouco espaço, localizada em um retângulo na parte inferior da página:

Conversa no lugar da força: trabalho do Bope na Tavares Bastos foi o pioneiro no policiamento comunitário. O projeto de policiamento comunitário do Dona Marta na verdade começou há 10 anos numa outra favela: a Tavares Bastos, no Catete. Desde que o Bope se instalou por lá, a política de boa vizinhança foi adotada e deu lugar as operações bélicas. Hoje o local se transformou num grande centro de treinamento da tropa de elite, por onde passaram, na semana passada, os 125 novos soldados da PM que patrulharão o Dona Marta. De acordo com o comandante do Bope, tenente-coronel Alberto Pinheiro Neto, mais do que o uso da força, a principal orientação é ouvir os moradores: - “O policial tem que conversar com os moradores. Fazer com que suas necessidades sejam atendidas, dar atenção sempre”. Durante os dois dias de treinamento dos 125 soldados na Tavares Bastos, o Bope mostrou táticas de confronto, caso haja alguma tentativa de invasão. (ibid., p. 17)

Apesar do comandante do Bope colocar a “conversa” como algo primordial e central para que as necessidades da população sejam sanadas, o treinamento dos 125 soldados que foram deslocados para o Santa Marta contemplou somente treinamento de confrontos. Não foi citada nenhuma instrução no que tange à busca por conhecer as demandas da população, resolução de conflitos ou qualquer tipo de técnica para lidar com os moradores do morro como atores do processo de “pacificação”. Analisando pela ótica dos conceitos propostos por Skolnick e Bayley (2006), a proposta flagrada no discurso do comandante do Bope se enquadra nos ideais de policiamento comunitário, colocando a população como fomentadora das ações dos policiais, com vias do bem estar da comunidade como um todo. Mas mesmo que a proposta esteja enquadrada, pelo que se observou na matéria, não houve treinamento adequado para esse fim, mas sim um treinamento que reproduz o ethos guerreiro, voltado para as situações de conflito e não para as situações cotidianas de mediação com a comunidade, apontando assim para o tipo de policiamento definido, na tipologia dos autores, como profissional, com o ideal de “guerra ao crime” como o norteador. Esse tipo de policiamento, como visto anteriormente, busca por meio da profissionalização e burocratização da polícia, promover a rapidez da resposta policial, tendo os meios de comunicação e locomoção como um foco de investimento. Mas esse tipo de policiamento é

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falho na medida em que age depois que o crime ocorreu, não focalizando na origem para sanar o problema, mas contendo os seus efeitos. Sendo assim, operações táticas, armamento pesado e veículos blindados são acionados pela polícia como um modo de responder a criminalidade que já ocorreu, dando importância primeira ao combate, deixando a mediação e o foco na prevenção da violência no plano secundário, ou muitas vezes nem levado em conta. Como se pode notar, a cobertura jornalística da inauguração da UPP do morro Santa Marta foi tímida. Não foi dada atenção ao caso, e quando o assunto foi pauta de reportagens, a “pacificação” aparece tangenciando outro assunto, e sempre localizada em pequenos espaços na parte inferior das páginas do jornal. Poucas são as matérias dedicadas a tratar do policiamento comunitário, e mesmo as que tratam, conjugam a lógica da “guerra” com a da “Paz”, em certo paradoxo que, de diferentes maneiras, se faz presente em todo o discurso midiático sobre segurança pública estudado.

5.3. Complexo do Alemão

O Complexo do Alemão é um conjunto de 13 favelas situadas na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Seu núcleo principal se situa no Morro do Alemão, que integra a Serra da Misericórdia, formação geológica da região. A origem da ocupação remonta aos anos 1920, quando um imigrante polonês, Leonard Kaczmarkiewicz, adquiriu algumas terras na Serra da Misericórdia. Com o advento da industrialização na região e a abertura da Avenida Brasil em 1946, Leonard, em 1951, dividiu o seu terreno em pequenos lotes que foram vendidos pouco a pouco, aproveitando o intenso processo de industrialização do local, que nesta época já representava um importante polo industrial da cidade. A intensificação da ocupação ocorreu no governo de Leonel Brizola, tendo o local experimentado grande crescimento demográfico15. A cobertura do jornal O Globo do dia 26 ao dia 30 de novembro de 2010, guarda diferenciações significativas no que toca estritamente à comparação com o período analisado na seção anterior, referente à cobertura da inauguração da UPP do Santa Marta. E essa diferenciação sustenta e potencializa as questões discutidas anteriormente sobre o 15

Fonte: Voz das Comunidades - http://www.vozdascomunidades.com.br/complexo-do-alemao/historia-docomplexo-do-alemao/ (Acesso em 14 fev. 2012)

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“paradoxo simbólico” entre as lógicas de “guerra” e “paz” flagradas no discurso do jornal estudado, bem como o “choque” entre os modelos de policiamento, que de certa forma se correlacionam com as lógicas de “guerra” e “paz”. Como um prefácio de toda a narrativa sobre os fatos ocorridos no período estudado, a edição de 26 de novembro traz em sua capa:

O dia D de Guerra ao Tráfico. Com inédito apoio da Marinha, tropas do BOPE desembarcaram na Penha e ocupam o bunker do tráfico. (...) o comboio foi aplaudido pelas pessoas nas ruas. Numa semelhança simbólica com o desembarque das tropas aliadas na Normândia – que abriu as portas para a derrota da Alemanha nazista -, a ação na cidade foi o dia D do combate ao tráfico que, desde domingo, realiza ataques em vários locais. (O Globo, 26/11/2010, Capa, p. 1).

Pelo discurso, constrói-se um cenário de guerra e, consequentemente, violência que se espalha por toda a cobertura jornalística. Nesses pequenos fragmentos podemos localizar elementos semânticos que por si só falam e constroem a ideia de guerra: “dia D”, “desembarcaram” e “bunker”. Todas essas palavras aludem à guerra, mais especificamente à Segunda Guerra Mundial, que será comparada à ação na Penha em outro fragmento da mesma capa. Destaca-se também o apoio da Marinha na ação, que emprestou à Polícia Militar veículos blindados de guerra, contribuindo ainda mais para que o “cenário de guerra” fosse instaurado. Ao criar um clima de tensão gera-se no público atingido um sentimento de insegurança e ausência das garantias individuais, como fica expresso na fala de dois leitores do jornal, veiculadas no espaço reservado para a opinião dos mesmos:

Sendo uma guerra, o que é, sem dúvida, é fundamental que o inimigo morra pelos seus ideais. Só podemos torcer para que tudo termine com o menor nível de baixas civis. (O Globo, 26/11/2010, Caderno Opinião, p. 8).

Envoltos no sentimento e no cenário de “guerra”, os próprios leitores se apropriam dessa lógica e estruturam seu discurso, e também (podemos cogitar) seu cotidiano, levando em conta o cenário de violência instaurado como modificador de alguns de seus hábitos, ou

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mesmo modificador da geografia da cidade, localizando pontos onde o perigo é iminente e que são por isso evitados. Como contextualização dos fatos expostos e localização dos que virão a ser analisados, cabe salientar os acontecimentos ocorridos no Rio de Janeiro no período que começou no dia 20 de novembro e se estendeu até as operações na favela da Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão. Vários pontos da cidade estavam sendo alvos de ações violentas de traficantes, como incêndio a veículos e arrastões. O que se sustentou no discurso da mídia na época é de que a onda violenta que a cidade estava sofrendo se devia à instalação das UPPs, que estariam desestruturando o tráfico armado na cidade. Então, de certa forma, a onda de violência representou uma marca importante da “ação das UPPs”. Com a popularidade das UPPs em alta, o governo deu início às operações que ficaram marcadas no imaginário coletivo como a principal guerra contra o tráfico, que possibilitaria de uma vez por todas desarticular o chamado “bunker” ou “fortaleza” do tráfico. Diferentemente do que aconteceu com a cobertura acerca da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora do Morro Santa Marta, os eventos que culminaram na operação no Complexo do Alemão receberam papel central da cobertura jornalística do O Globo, que criou um caderno especial para os eventos. Como não poderia ser diferente, o caderno foi intitulado “A Guerra do Rio” e trazia todas as informações sobre os ataques em toda a cidade e as operações realizadas pela polícia. No caderno do dia 26 de novembro (o primeiro analisado) destaca-se a manchete “A fortaleza era de papel” se referindo ao tráfico instalado na Vila Cruzeiro, que tinha sido invadida pelos policiais em uma operação que prenunciou a “tomada do Alemão”. Em relação a esse caderno, especificamente, destaca-se também o intenso uso de imagens e infográficos, que ilustram praticamente todo o material. Fotos da fuga dos traficantes para o Complexo do Alemão, ônibus incendiados, militares armados com fuzis, população da favela correndo para se proteger, blindados da Marinha, todas essas imagens colaboram para que o cenário de guerra ganhe forma, volume e cor, ao passo que destacam exatamente elementos que por si só dão o sentido de que uma “guerra” está em andamento. Além das fotografias, os infográficos aparecem em praticamente todos os jornais desse período. No caso da operação da Vila Cruzeiro, o infográfico ilustrava a rota usada pelo efetivo policial para entrar na favela, quais as armas utilizadas, o tamanho do efetivo, etc.. No mesmo jornal, uma matéria especificamente sobre as UPPs aparece na página 11:

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UPPs reduzem ataques na Zona Sul do Rio Com favelas ainda dominadas por traficantes, Zona Norte tem mais casos. O mapa dos ataques de bandidos que vêm aterrorizando o Rio nos últimos dias mostra uma geografia diferente de outros atentados do passado. Região que concentra projetos de UPPs consolidadas como o do morro Dona Marta e do Complexo PavãoPavãozinho/Cantagalo, a Zona Sul está agora entre as áreas do estado que menos sofreram com a onda de violência. (O Globo, 26/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 11).

A matéria destaca que a causa da ausência de atos de violência na Zona Sul seria a instalação e consolidação de UPPs na região, fato que dificultou, segundo o jornal, a fuga dos traficantes, pois com as áreas pacificadas os mesmos não encontrariam refúgio nesses territórios. Assim, as UPPs não poderiam mais ser utilizadas como rota de fuga, já que o “domínio do tráfico” teria sido desarticulado dentro dessas favelas. Na página seguinte veiculou-se uma entrevista do secretário de segurança José Mariano Beltrame em que discorre sobre a política de segurança que executa e dá detalhes sobre a lógica utilizada para as ações ocorridas na época:

- O senhor acha que os policiais conseguiram dar o recado aos bandidos de que vão partir para o enfrentamento? - Há 2 anos estamos mostrando que queremos a pacificação. O nosso objetivo principal é retomar os territórios. (...) - Como será o policiamento na Vila Cruzeiro? - A partir de agora, o BOPE vai andar pelas ruas da comunidade e perguntar o que as pessoas precisam. (...) - No geral, o resultado das UPPs é positivo? - Hoje temos 200 mil pessoas livres do fuzil (...) o Rio tem esse inimigo que é o fuzil. (O Globo, 26/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 12).

A edição do dia 27 de novembro traz em sua capa o anúncio: “Começa a batalha no Alemão”. A frase vem acompanhada de várias fotografias, que mais uma vez colaboram para a construção de um cenário de guerra (militares no chão com fuzis empunhados, um morador alvejado esperando socorro, “bandidos armados” para usar o termo que descreve a fotografia, etc.). A partir da página 19 começam as matérias referentes aos casos de violência e operações da polícia no Rio. Depois da operação na Vila Cruzeiro e o início da

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“tomada” do Alemão, segundo o jornal, os incidentes de violência na cidade diminuíram consideravelmente, fato atribuído ao policiamento ostensivo e às operações ocorridas nas favelas citadas. Na página 26, o Globo diz: “Tensão deixa vielas da Rocinha quase desertas. Em panfletos distribuídos na favela, traficantes ameaçam com represálias à ofensiva da polícia na Zona Norte”. Mostra-se, com isso, que o clima de tensão após as operações não se restringe ao entorno dos territórios, mas também atinge a comunidade da Rocinha, na Zona Sul da cidade, que na época não possuía UPP instalada. Após, na página 31, uma matéria destaca o uso do blindado da Marinha como um fator determinante para o sucesso das operações. A matéria tem como título “Blindado se torna estrela da operação”, enfatizando o papel imprescindível do veículo para que as operações pudessem transcorrer da maneira como se deram. O blindado por si só já possui uma carga simbólica muito forte, pois adveio de uma força militar, sua utilização se dá em ambientes e em situações de guerra e sua presença é por si só contundente, pelas suas dimensões e armamentos que carrega. Na página seguinte, localiza-se a “Logo: a página móvel” que traz uma discussão sobre a natureza dos ataques ocorridos no Rio de Janeiro em novembro de 2010. A discussão girou em torno da possibilidade de enquadrar os acontecimentos como atos terroristas. A página é ilustrada por uma foto que cobre a sua totalidade: um veiculo incendiado. Em cima dessa foto, as opiniões dos entrevistados, que de forma unânime defenderam que os ataques não podem ser classificados como terrorismo. Não há sequer uma pessoa que defenda tal teoria, mas se instaura um debate para discutir o assunto. Agora, mais um fator gerador de medo é colocado em questão, contribuindo para que o estado de insegurança possa se intensificar, com a possibilidade de elevarmos os ataques à categoria de ataques terroristas, tão massificados e divulgados pela mídia mundial. Não há dúvidas de que a nomeação da onda de ataques como “terrorismo” agrega a eles elementos simbólicos que vão se agregar aos outros elementos no imaginário coletivo. Em uma pequena matéria na página 34 veiculou-se as vozes de oposição às ações tomadas pelo governo do estado em relação aos complexos da Penha e do Alemão. Na matéria o ex-governador Garotinho, Fernando Gabeira e a Anistia Internacional se colocaram contra as operações. Garotinho disse em entrevista: “a mídia está fazendo uma lavagem cerebral na população, para fazer acreditar que se conseguiu a maior vitória da história policial do Rio”. Em nota, a Anistia Internacional critica os eventos: “Essa violência é totalmente inaceitável (referindo-se aos veículos queimados), mas a resposta policial levou risco às comunidades”. É o único espaço dedicado à reflexão sobre os acontecimentos,

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trazendo uma visão alternativa da situação. Mesmo assim, o espaço dedicado a isto foi restringido a uma pequena matéria localizada na parte inferior da página. No dia 28 de novembro de 2010 aconteceu o que se nomeou de “Tomada do Alemão”, evento que por suas especificidades ficou/foi marcado no imaginário coletivo. A cobertura jornalística foi intensa, tendo modificado toda a grade de programas das principais emissoras. Em relação ao jornal O Globo, sua capa anuncia:

Bandidos não aceitam ultimato e polícia decide invadir Alemão hoje. Numa tentativa de evitar um banho de sangue, a PM deu ontem um ultimato para que 600 bandidos refugiados no Complexo do Alemão depusessem as armas e se rendessem. Até o início da noite, apenas um criminoso havia se entregado. A polícia decidiu, então, que invadirá hoje a região considerada o maior bunker do tráfico no Rio. O sinal de que está próximo o contraataque dos policiais – com apoio de 800 homens do Exército – foi a proibição de acesso de qualquer pessoa ao morro, por volta das 19:30. (O Globo, 28/11/2010, Capa, p. 1).

Destacam-se novamente signos que trazem à tona a imagem de guerra, com o cerco ao “maior bunker do tráfico” em uma operação que foi extensivamente coberta pelos diversos meios de comunicação. A respeito da operação, Beltrame em entrevista disse: “A polícia está muito consciente daquilo que ela deve fazer. Estava consciente de que é um caminho sem volta. Chega de por a poeira para baixo do tapete”. Segundo o secretário, a operação era inevitável, pois a polícia tinha entrado em “um caminho sem volta”. Diferentemente dos jornais anteriores, este não traz tantas informações referentes aos eventos de violência no Rio, até porque a operação no Alemão não havia começado quando a impressão dos jornais foi finalizada, só tendo uma cobertura dos detalhes da operação no dia seguinte. Assim, diferentemente dos dois dias anteriores, a área reservada à opinião dos leitores não contém nenhum tipo de comentário sobre violência e/ou as operações nas favelas, e o caderno especial (A Guerra do Rio) veiculou reportagens voltadas para o fracasso das negociações com os traficantes e sobre outras questões, como a limpeza das áreas onde os veículos foram incendiados, a prisão da esposa de Polegar (Chefe do tráfico no Alemão), quantidade de drogas apreendidas, etc.. Em nota, o governador Sérgio Cabral defende as operações:

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As operações são essenciais para garantir o ir e vir das pessoas. O momento é de retomada de territórios, de afirmação de ordem e do estado de direito democrático – dizia a nota – Estamos todos unidos. Todos com o mesmo propósito: seguir em frente, sem qualquer recuo, na busca da libertação das pessoas do poder de bandidos nas comunidades. (O Globo, 28/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 1).

Está veiculado na fala do governador o tom de necessidade das operações, que trariam para esses territórios a “ordem” e o “estado de direito democrático”, garantindo às populações o direito de ir e vir e retomando esses territórios do “domínio do tráfico”. O objetivo é expresso: libertar as “pessoas do poder de bandidos nas comunidades”. Sobre as UPPs, o espaço reservado nessa edição se encontra na página 10 do caderno, e última página dedicada a discutir segurança pública no jornal. A matéria anuncia a reserva de um espaço dedicado à construção de uma Unidade de Polícia Pacificadora na Penha e o início de projetos sociais. O secretário de habitação na época, Jorge Bittar, diz:

O trabalho de pacificação da polícia só se consolida se você tiver investimentos sociais importantes nessas comunidades, com equipamentos de infra-estrutura, saúde, lazer e educação. A nossa ideia é uma ocupação social que caminhe ao lado da política de segurança. (O Globo, 28/10/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 10).

Mais uma vez o espaço dedicado a informações sobre as UPPs e/ou policiamento comunitário foi restringido a uma pequena matéria de fim de página. A violência, a lógica da “guerra”, no material estudado, possui mais espaço no jornal analisado, contribuindo para que o sentimento de insegurança e medo se espalhe e se fundamente na sociedade como um todo, uma vez que as matérias que tem como o foco a violência são privilegiadas dentro do jornal O Globo no período estudado em detrimento daquelas que tem como foco o policiamento comunitário, ou outras ações que fujam da dinâmica violenta dessas ações policiais. Rondelli em relação a essa dinâmica da mídia diz:

[A mídia] "quando se apropria, divulga, espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violência está atribuindo-lhes um sentido que, ao circularem socialmente, induzem práticas referidas à violência. Se a violência é linguagem - forma de comunicar algo -, a mídia ao reportar os atos de violência surge como ação amplificadora desta linguagem primeira, a da violência". (RONDELLI, 1998).

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O dia 29 de novembro, um dia após a operação no Complexo do Alemão, traz em sua capa:

O Rio mostrou que é possível. Cidade comemora a libertação do Alemão e a maior vitória sobre o tráfico. Após três dias de tensão e medo de que ocorresse um banho de sangue no Complexo do Alemão, o Rio respirou aliviado e comemorou a maior vitória das forças de segurança sobre o crime organizado. (O Globo, 29/11/2010, Capa, p.1).

A capa, além do tom de esperança e comemoração, é ilustrada por uma fotografia da foto que foi amplamente divulgada, da bandeira do Brasil sendo hasteada. Assim como quando um exército invade um território inimigo e o vence, as forças de segurança hastearam sua bandeira, demonstrando que os inimigos que tinham sua sede naquele território foram derrotados e retirados de seu poder sobre aquele lugar. Analisando de outro ângulo, podemos verificar que a ideia de que de certa forma o Estado não estava presente naquele território é veiculada, tangencialmente, pois a marca da entrada do Estado naquele território foi o hasteamento do símbolo nacional, e até mesmo palavras utilizadas como “retomada” dão a esse evento o tom de que o Estado agora estava se fazendo presente naquele território, uma vez que o outro “poder” foi desarticulado. Na página seis do jornal mais uma vez abre-se o espaço para a discussão de opiniões, apresentando ao leitor a opinião do jornal em relação aos acontecimentos que vinham ocorrendo desde o dia 20 de novembro daquele ano. Alguns trechos são interessantes para flagrar a lógica desse jornal:

O terrorismo que antecedeu o dia D (... ). (...) isso porque as UPPs cumprem um papel tático de asfixiar economicamente as quadrilhas, ao mesmo tempo que permitem à polícia criar laços com os moradores. E, estrategicamente, batalhões avançados abrem espaço para o poder público realizar programas de inclusão social, através de serviços de infra-estrutura, educação, saneamento, saúde, lazer, etc. (...) (...) Mas também é fora de questão que as UPPs não são uma panaceia. É ilusão imaginar que a instalação de unidades policiais permanentes por si só livrará a cidade do flagelo da violência decorrente da ação do crime organizado. Ela é apenas um pilar de um projeto bem mais amplo, que pressupõe a intervenção do Estado em

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demandas sociais crônicas (...) (O Globo, 29/11/2010, Caderno Opinião, p. 6).

Apesar da discussão feita no dia 27, o jornal faz questão de utilizar a palavra “terrorismo” como forma de nomear os eventos violentos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro. Por si só a escolha de palavras para se transmitir uma notícia já implica em uma imagem que pode ser construída de maneira sensacionalista, como no caso aqui citado. Na discussão feita no dia, nenhum dos especialistas que foram ouvidos apoiou o enquadramento dos acontecimentos como terrorismo, mas mesmo assim o jornal O Globo mantém a alcunha. Como em outros dias, a edição do dia 29 também traz o caderno especial “A Guerra do Rio”, aberto com a manchete:

A senhora liberdade abriu as asas sobre nós. População comemora libertação histórica em operação exemplar, sem sequer um inocente ferido. (O Globo, 29/11/2010, Caderno A Guerra do Rio, p. 1).

Para colaborar com a imagem de libertação e paz “trazida” pela operação, a capa do caderno especial é ilustrada pela fotografia que estampou diversos jornais, sites e outros meios de comunicação:

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Nessa imagem podem-se observar alguns policiais militares com seus armamentos em punho e uma pomba branca em primeiro plano, desfocada. A imagem vem colaborar com o tom de “libertação” que foi dada a toda a cobertura no dia pós-operação, unindo a imagem do policial com a “imagem” da paz. Além desta matéria, na página 12 a temática da “paz” que foi levada ao complexo é novamente tratada: “Na comunidade, alívio e esperança: moradores do Alemão assistiram à ação policial confiantes da chegada de dias de paz”. O caderno especial segue dando ênfase à ausência de civis feridos, à alta tecnologia utilizada na operação, à tática utilizada pelas forças de segurança, etc.. Na página 9 o governador Sérgio Cabral dá entrevista onde diz: “a reação do carioca me emocionou”, salientando que o que estava em jogo era o sucesso de toda a política de segurança que estava sendo desenvolvida pela sua gestão. Em nenhum momento da entrevista há a menção sobre UPP ou policiamento comunitário, há somente perguntas pessoais, sobre como o governador reagiu quando soube que a operação tinha sido bem-sucedida. Nas página 10 e 11 mais uma vez o infográfico se faz presente, e dessa vez tomando o espaço de duas páginas. O infográfico dessa edição vem mostrando os detalhes das operações realizadas, como tipos de armamentos empregados, rotas de entrada das forças de segurança, blindados utilizados e ainda os índices sociais de cada complexo, como IDH, renda média, saneamento, etc.

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Mais uma vez colaborando para que o cenário de “guerra” fosse construído, as páginas 14 a 16 mostram detalhes da operação, como o depoimento dos repórteres que estiveram envolvidos com a cobertura em todos os momentos, entrevistas com policiais envolvidos, que foram chamados de “guerreiros do Alemão” e ainda com alguns moradores. Até o fim do caderno “A Guerra do Rio” mais algumas reportagens falam sobre como a ação policial pode ser tomada como um aviso para outras quadrilhas que se espalham pelo estado, matérias sobre as apreensões de drogas e armamentos, missa no Corcovado em nome da Paz, como a cobertura modificou a grade da emissora Globo - que cobriu as ações ao vivo -, e ao final do caderno, uma página inteira dedicada a agradecimentos de algumas pessoas aos policiais: “Não aguentava mais criar meus filhos no meio de tantos bandidos circulando fortemente armados pelas ruas” diz Joana, moradora do Complexo do Alemão. O jornal do dia 30 de novembro, ultimo do período analisado para as ações no Complexo do Alemão, traz em sua capa a preocupação com o futuro do complexo de favelas: “Exército pode ficar 7 meses no Alemão até a nova UPP: militares vão usar a experiência de paz no Haiti para manter cerco e patrulhamento. De certa forma, ao destacar o uso da experiência obtida através da experiência no Haiti, o jornal O Globo mais uma vez traz para o discurso a simbologia e a carga semântica da guerra, demonstrando que de certa forma as experiências vividas no Haiti e no Rio de Janeiro podem ser semelhantes. A partir desse dia, o caderno especial “A Guerra do Rio” é encerrado, e as matérias que concernem à segurança pública da cidade do Rio de Janeiro passam a serem veiculadas no caderno intitulado “Rio”. Em entrevista, o então presidente Lula diz: “Eu já ia visitar o Complexo do Alemão. Eu agora vou com muito mais prazer”. As matérias seguem relatando os planos e repercussões pós-operações. Divulgam os planos para a reconstrução de algumas áreas e o aumento de infraestrutura nesses territórios, enumeram os prejuízos do tráfico de drogas e mostram moradores saqueando o que anteriormente era patrimônio dos traficantes. Na página 21 o sentimento de esperança e satisfação com as operações e o futuro desse complexo de favelas é mais uma vez o tema:

Cenário de destruição mas clima de esperança Vielas do Alemão têm lixo, veículos destruídos e casas abandonadas, mas moradores acreditam em dias melhores. (O Globo, 30/11/2010, Caderno Rio, p 21).

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Essa matéria é ilustrada com duas fotos: policiais da PM ajudando uma senhora a se locomover pelas ruas da favela e outros policiais beijando crianças de colo.

De certa forma, monta-se mais uma vez a imagem heroica desses atores, que ficará marcada, levando a diversas manifestações de apoio e exaltação dos ideais desses policiais (nos carnavais de 2011 e 2012 diversas lojas de fantasias para crianças vendendo uniformes de “polícia pacificadora”). No jornal estudado, fica claro o apoio dos seus leitores para as operações e o modo como o Estado as conduziu. A cobertura das ações tomadas pelas forças de segurança no período analisado nesta seção foi emblemática, no sentido de que foi amplamente assistida pela população (ao vivo, pelas redes televisivas, internet, redes sociais, etc.). Em relação ao jornal O Globo, a cobertura ganhou um espaço privilegiado (caderno especial), praticamente todas as capas do período estudado foram dedicadas a veicular as manchetes referente às operações, houve grande número de fotografias e infográficos ilustrando as matérias e agregando outros signos à matéria, etc. O tom de que uma “guerra” estava sendo travada é evidente em todo o discurso, e mesmo quando o cenário não era “tão alarmante”, o jornal fazia questão de trazer o sentimento de insegurança e medo à tona (quando da discussão sobre se os incidentes violentos podiam ser encarados como terrorismo e dias depois o editor os nomeia como tal, mesmo ficando claro na discussão que de modo algum estes eventos poderiam ser nomeados assim).

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Os primeiros anos do governo de Sérgio Cabral no estado do Rio de Janeiro foram marcados pela truculência policial e uma declarada “guerra às facções criminosas” Em entrevista emblemática em que defende o controle de natalidade nas áreas de pobreza como forma de diminuir a violência no Rio de Janeiro (chamando as mesmas de “fábrica de marginais”), o governador diz:

Na hora que a gente vai pra uma comunidade e é recebido a tiros, o que essas instituições querem que o governo faça? Se acomode? Na Coréia, não havia uma operação policial há três anos e meio desse tipo, com 350 policiais. Marginais estavam indo para a pista sem aquele temor de ir apenas na madrugada. Iam de dia, parando os carros, com fuzil, mandando parar, matando as pessoas. O estado não pode aceitar isso. Essa é uma questão que não é ideológica. Não adianta me chamar de truculento. Ordem publica está 16 dentro dos valores democráticos .

O agir policial de forma truculenta é legitimado pelo governador, sendo o modo pelo qual a política de segurança pública se deu, em geral, no inicio de seu mandato, transformando a metáfora de “guerra ao crime” em política pública. Assim, a pacificação parece ser uma forma de resposta às críticas ao tipo de política de segurança que se executava no Rio de Janeiro. As Unidades de Polícia Pacificadora anunciam em seu próprio nome a intenção de modificar a imagem das ações do governo com relação à atuação policial. Aqui se localiza a tensão entre os modelos profissional e comunitário de policiamento, que a partir da implantação da UPP do Santa Marta passa a espraiar-se por toda a política de segurança pública do governo. Nos textos e imagens retratados aqui das reportagens pertencentes à amostra, fica evidente a constante disputa entre os dois modelos de policiamento. É óbvio que a modificação da lógica de repressão, truculência, e outras características do policiamento profissional não se modificarão rapidamente, visto que estão arraigados dentro da cultura policial, sendo reproduzidos pelos currículos de formação17 e no proceder policial diariamente. Devido à idéia de que a violência está intrinsecamente ligada à pobreza, as favelas são diretamente apontadas como fonte da violência que ocorre no Rio de Janeiro, sendo esses territórios os focos principais das políticas de segurança pública. A idéia de “classes 16

Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html. Acesso em: 09 abr. 2012. 17 Ver ponto 2.3 Notas sobre segurança pública e formação dos policiais cariocas.

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perigosas” atravessa o século e se instaura no Brasil como signo das populações moradoras de territórios de pobreza:

“No início do século XX, a partir dos ideais eugênicos, muitas dessas teorias ganham peso no Brasil, e cresce no imaginário social a crença nas “classes perigosas”, termo utilizado já em 1857, por Morel, em seu trabalho “Tratado das Degenerescências”, para designar aqueles que não possuiriam “nem a inteligência do dever, nem o sentimento da moralidade dos atos, e cujo espírito não é suscetível de ser esclarecido ou mesmo consolado por qualquer ideia de ordem religiosa.” (COIMBRA apud OLIVEIRA, 2010, p. 38-39).

Esses “perigosos” são alvos de políticas que têm como intuito “higienizar”, “civilizar”, “controlar”, para que a ordem social não seja ameaçada. As mudanças da imagem das favelas no cenário social se imbricam com as políticas públicas como meio de responder a essas imagens. Hoje, pelo visto nas reportagens analisadas, há a permanência de dois modelos de policiamento totalmente distintos na proposta governamental. Pelas teorias analisadas, os ideais de cada tipo de policiamento envolvido nessa tensão são totalmente díspares e por isso configura-se uma disputa entre os dois modelos. No discurso do jornal O Globo essa tensão é visível e se apresenta de formas distintas dentro de cada período estudado. Oscilando entre a pequena divulgação da UPP do Santa Marta e a ampla cobertura dos eventos ocorridos no Complexo do Alemão, o discurso do jornal O Globo se configura como um objeto importante para a compreensão das políticas de segurança pública e sua imagem frente à população do estado.

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5. CONCLUSÃO

Na página 8 do dia 30 de novembro de 2010, dedicada à opinião dos leitores, o título seguinte abre as falas: “Uma nova história para o Rio”, e em certa medida todas as opiniões desse espaço seguem essa lógica de esperança e da possibilidade de que uma “nova história” possa ser feita a partir da “bem sucedida” operação no Complexo do Alemão: “por muito tempo não me sentia tão orgulhoso! Parabéns a todos, é assim que se constrói uma nação”, palavras do leitor José Carlos Soares de Azevedo. Interessante notar o tom de orgulho, esperança e satisfação com uma operação que teve ares de guerra, enquanto a instalação da UPP no Santa Marta sem nenhum tipo de conflito não despertou tal sentimento nos leitores do O Globo.

Isso já tinha que ter sido feito. Mas é um trabalho que precisa continuar. Eles não podem amolecer agora. A vontade de resolver essa questão tem que seguir. Helena Ranaldi, atriz. (O Globo. 30/11/2010. Caderno Opinião, p. 26)

As ações desencadeadas no Complexo do Alemão são vistas pelos leitores de maneira geral como necessárias para o estabelecimento de uma “paz”, uma “ordem”, e para a construção de uma cidadania, ou a implantação de um ideal nacional que de certa forma não se observava dentro daquele território. Definir os territórios de pobreza pela falta é um discurso recorrente historicamente. O projeto dos Parques Proletários tinha em sua essência a necessidade de se transportar aos favelados ideais cívicos, de cidadania e higiene, características que lhes faltavam para que pudessem integrar a sociedade organizada (BURGOS, 2006). No percurso histórico, como analisado brevemente nesse trabalho, a favela possuiu diversas imagens, que guiaram as políticas públicas e o modo de relação da população fora das favelas nesses territórios. Com a entrada do tráfico, especialmente o de cocaína, no Rio de Janeiro, a sociabilidade dentro das favelas é modificada, configurando-se o que Machado da Silva denomina como “sociabilidade violenta”. A sociabilidade violenta é composta por ações que se:

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“(...) desenvolvem monocordicamente como tentativas de controle de um ambiente que só oferece resistência física à manipulação do agente. O que “une” essas condutas em um complexo organizado de relações sociais é justamente o reconhecimento da resistência material representada pela força de que podem dispor os demais agentes, produzido pela reiteração de demonstrações factuais, e não por acordo, negociação, contrato ou outra referência comum compartilhada” (MACHADO DA SILVA, 2000).

A possibilidade da ação violenta, tão presente no cotidiano desses territórios, modifica o modo pelo qual sua população residente se relaciona com o território, seus vizinhos e até mesmo fora de suas casas, muitas vezes engrossando as opiniões que têm a favela como um símbolo negativo na cidade. O apoio recebido pelas forças policiais na Operação do Alemão não vieram somente da população que reside fora das favelas. Os moradores, como mostrado na reportagem do dia 26 de novembro de 2010, onde se lê: “População aplaude a passagem da tropa”, também dão seu apoio. A idéia de “fala do crime”, formulada por Caldeira (2000), engloba todas as narrativas em que a tônica seja crime e/ou medo, sejam elas conversas, narrativas, piadas, debates, etc. Nesse contexto, o discurso midiático mantém um papel fundamental, ao ponto que é este que informa, algumas vezes exclusivamente, aos indivíduos casos de violência experimentados por parte da população. Minha hipótese é de que a repetição dos casos de violência e a ampla cobertura, especialmente no caso da “tomada do Alemão”, produz um clima de tensão e perigo permanente e iminente, mas esse é um tema para um trabalho futuro. Esses sentimentos se espalham não se restringindo apenas ao território alvo da intervenção estatal. Deste modo, a “fala do crime” alimenta um ciclo onde o medo e a insegurança são trabalhados e reproduzidos, e a violência, ao passo que combatida, é também ampliada (CALDEIRA, 2000). As matérias selecionadas para esse estudo podem ser entendidas como um discurso que se configura como “fala do crime”. Além disso, o mesmo pode ser analisado à luz das teorias sobre os modelos de policiamento que foram exploradas. O modelo de policiamento profissional se choca com as idéias de policiamento comunitário por partirem de fomentos diferentes. Ao passo que o foco do policiamento profissional é o combate ao crime, o policiamento comunitário se propõe a ser um serviço à população, respondendo às suas demandas e focando-se na prevenção ao crime. Esses ideais moldam as estruturas de cada modelo. Por focar-se no crime já ocorrido, o policiamento profissional exige de seu efetivo que adote uma postura guerreira, com condicionamento físico e táticas de combate,

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necessários para as operações que envolvem armamento bélico pesado e veículos blindados. Partindo da premissa de que esse modelo não é eficiente (MOORE, 2006), surgiu a necessidade de se pensar um novo modelo de policiamento que se preocupasse com a prevenção do crime e que mantivesse uma maior afinidade com a população. O policiamento para resolução de problemas, o de proximidade e o comunitário, propõe uma nova dinâmica para a segurança pública, dando maior participação à população local. Cada policiamento guarda suas próprias especificidades, mas propõe da mesma maneira a aproximação entre polícia e comunidade. As UPPs em sua concepção guardam elementos do policiamento comunitário, e se qualificam como tal18, pretendendo levar a “paz” para os territórios onde o tráfico se instalou. Quando contrapostos os discursos com relação à implantação da primeira UPP e os eventos ocorridos no Complexo do Alemão, fica clara a permanente tensão entre os modelos de policiamento. Além disso, em uma correlação, as idéias de “paz” e “guerra” são trabalhadas, em um processo simbólico que choca imagens, palavras e signos conflitantes na confecção do discurso. Talvez a matéria mais representativa desse aspecto seja a veiculada no dia 18 de dezembro de 2008, onde o treinamento dos policiais destinados ao policiamento comunitário é ilustrado com a fotografia de um treino de tiro (página 47). Nessa matéria, policiamento comunitário e profissional se sobrepõem dando a tônica de todo o discurso estudado. Todos os recursos informativos (textos, imagens, infográficos) se combinam e formam um arranjo de significados em cada matéria, que no seu conjunto informam muito mais do que a mera noticia. Por meio do choque entre textos, reportagens e imagens distintas podemos flagrar os mecanismos pelos quais o jornal construiu seu discurso e assim enxergar os caminhos, opções e posições que escolheu. As delimitações utilizadas para criar a reportagem final são meios de organizar a realidade e lhe dar sentido. Nesse sentido, mais do que apenas informar, o discurso midiático do jornal O Globo, no período estudado, guia seus leitores para uma interpretação da realidade. No que toca estritamente às questões analisadas nesse trabalho, podemos perceber a grande midiatização dos eventos violentos que ocorreram no Rio de Janeiro e as operações realizadas no Complexo do Alemão e da Penha. Além de cobrir os fatos simplesmente, o jornal se utiliza de outros meios para agregar valores ao discurso, como na discussão sobre terrorismo e os inúmeros infográficos que se assemelham aos que são utilizados quando a temática são as guerras e outros eventos extremos, como no exemplo abaixo: 18

Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20

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(Fonte: O Globo. 2/06/2009. Caderno Especial, p. 6-7).

Ao fim e ao cabo, a presença das características de cada modelo de policiamento no discurso estudado revela a indefinição da escolha de um modelo a ser adotado. É certo que o modelo profissional de policiamento permanece arraigado na cultura policial, inviabilizando algumas medidas com o intuito de modificar essa lógica19. Até mesmo ao analisar a definição de UPP utilizada no site oficial, não fica clara a escolha de um modelo de policiamento20. O que se nota de forma contundente é a valorização de eventos violentos e a criação de um cenário de guerra, utilizando para isso símbolos e idéias que fazem interface com características de outras guerras, sendo a Segunda Guerra Mundial um dos exemplos mais

19 20

Ver revisão bibliográfica, a partir da página 15. Fonte: http://upprj.com/wp/?page_id=20

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utilizados na cobertura dos eventos no Complexo do Alemão. A falta de cobertura no caso da inauguração da primeira UPP, sediada no morro Santa Marta, também revela a escolha do jornal. De certa forma, a relativa “paz” experimentada nesse evento não é interessante, apesar do apoio visto em pequenos discursos tímidos em algumas partes do jornal21. Essa falta de interesse na inauguração da UPP no morro Santa Marta pode ser vista pelo espaço que noticias sobre os uniformes dos policiais militares e questões referentes a alimentação dos mesmos ganharam. Essas temáticas foram amplamente trabalhadas, se configurando como a temática sobre segurança pública nesse período. Ambas as lógicas se fazem presentes em praticamente todo o discurso estudado. Policiamento comunitário e profissional, “paz” e “guerra”, convivem dentro do mesmo discurso. Em reportagens em que a temática é somente o policiamento comunitário, por exemplo, símbolos do policiamento profissional (forte hierarquia, ideais guerreiros, armamento pesado, etc.) são veiculados conjuntamente. De certa forma, essa interação é mais visível quando o tema é policiamento comunitário, que sempre é acompanhado de alguma reportagem e/ou imagem que liga as características do policiamento profissional à matéria. Quando ao contrário, não se percebe a tentativa de inserir símbolos do policiamento comunitário, na maior parte do discurso. Assim, percebe-se que a lógica e os símbolos do policiamento profissional estão muito presentes e são valorizados dentro do discurso do jornal estudado. Apesar de um certo “entusiasmo” da opinião pública com relação às UPPs, as mesmas, em seu início, não receberam a atenção da mídia, ocupando lugares sem destaque dentro do jornal. O estudo do discurso midiático com relação à segurança pública pode auxiliar na discussão das políticas como um todo. Como dito, o discurso orienta a leitura do mundo, e um jornal de grande circulação atinge um grande número de pessoas, que de certa forma serão atingidas por essa lógica de ordenamento da realidade. A convivência dos símbolos dos dois tipos de policiamento revela que ideais e características tradicionais do policiamento ainda estão muito arraigados e permanecem como grandes estruturadores da realidade quando os assuntos são violência, polícia, crime e segurança pública.

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Ver página 45.

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