Urdiduras poéticas de Enrico Testa e Patrizia Cavalli. In: \"Arte e pensamento: operações historiográficas\" / Maria Bernardete Ramos Flores, Maria de Fátima Fontes Piazza, Patricia Peterle (organizadoras). — São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2016.

May 26, 2017 | Autor: Patricia Peterle | Categoria: Cultural History, Comparative Literature, Italian Literature, Enrico Testa, Patrizia Cavalli
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ARTE E PENSAMENTO: OPERAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS

Organizadoras Maria Bernardete Ramos Flores Maria de Fátima Fontes Piazza Patricia Peterle

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© 2016 Rafael Copetti Editor ltda. Nesta edição respeitou-se o estabelecido no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado pelo Brasil em 2009. Conselho editorial Andrea Santurbano |UFSC|; Andréia Guerini |UFSC|; Annateresa Fabris |ECA/USP|; Aurora Bernardini |USP|; Dirce Waltrick do Amarante |UFSC|; Flávia Tronca |ARTISTA PLÁSTICA|; Giorgio De Marchis |UNIVERSITÀ DEGLI STUDI ROMA TRE|; Lucia Sá |UNIVERSITY OF MANCHESTER|; Luciene Lehmkuhl |UFPB|; Mamede Mustafa Jarouche |USP|; Marcos Tognon |UNICAMP|; Maria Lucia de Barros Camargo |UFSC|; Mariarosaria Fabris |USP|; Paulo Knauss |UFF|; Pedro Heliodoro Tavares |USP|; Rita Marnoto |UNIVERSIDADE DE COIMBRA|; Sanda Bagno | UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI PADOVA |; Tania Regina de Luca |UNESP/ASSIS| Editor Rafael Zamperetti Copetti Coordenador editorial Ricardo Franzin Assistente editorial Vitor Livramento Capa, projeto gráfico e diagramação SGuerra Design Preparação dos originais Ricardo Franzin Revisão de provas Luciano Pereira Alves Imagem da capa: Ismael Nery, Nu com paisagem urbana. Aguada e guache sobre papel, 19,3x12,6cm.

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Sumário

Apresentação Maria Bernadete Ramos Flores, Maria de Fátima Fontes Piazza, Patricia Peterle 1 História (e) Arte: experiência estética (e) acontecimento M. Bernardete R. Flores, Grégori Czizeweski, Marcos Luã Freitas, Thays Tonin 5 A historicidade do artístico e a condição artefactual Celso R. Braida

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O que a arte sabe. Mundos em comum e inespecifidade na arte contemporânea Florencia Garramuño

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Nominação, historicidade e modernidade literária em Machado de Assis Raquel Campos

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Arte e Pensamento César Donizetti Pereira Leite

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Operações 1 Literatura e pintura: crítica, fragmento, deslocamento Hermetes Reis de Araújo

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Félix Peyrallo Carbajal e o artista peregrino de Rubén Darío Ricardo Machado

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Anatole France e a vida intelectual brasileira e argentina em 1909 Joachin de Melo Azevedo Neto

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Wilson Tibério: trajetória e modernidade de um artista afro-brasileiro Francielly Rocha Dossin

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Operações 2 Sonoros corpos gráficos Mário César Coelho

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O decadentismo em revista: revistas culturais, artes visuais e a modernidade brasileira. Cecília de Sousa Reibnitz, Clarice Caldini Lemos, Cristiane Garcia Teixeira, Maria de Fátima Fontes Piazza 212 Circularidade da arte gráfica latino-americana: das páginas dos livros aos periódicos Maria de Fátima Fontes Piazza

236

Entre a crônica e o retrato: o corpo, o visual e o sonoro na construção do moderno Marcelo Téo

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Corpos impressos: técnicas e visualidades na imprensa ilustrada Luciene Lehmkuhl, Túlio Henrique Pereira

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Operações 3 História e arte: decifrando códigos para desmontar a Esfinge Rafael Rosa Hagemeyer

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Bang Bang de Andrea Tonacci: o gesto como começo da história Ana Lucia Vilela

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Cenas urbanas em cinema: mexendo com o imaginário nacional de Portugal e com o regional do Rio Grande do Sul Alexandra Lis Alvim, Luana Loria

335

O montar e o desmontar de corpos. O corpo erótico e o corpo fragmentado Daniela Queiroz Campos

355

Vênus transformada em documento: os objetos nos espaços museais Sabrina Fernandes Melo, Gloria Alejandra Guarnizo Luna

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Autores

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Urdiduras poéticas de Enrico Testa e Patrizia Cavalli Patricia Peterle

A literatura começa quando [...] o livro não é mais o espaço onde a palavra adquire a figura (figuras de estilo, de retórica e de linguagem), mas o lugar onde os livros são retomados e consumidos: lugar sem lugar, pois abriga todos os livros passados neste impossível “volume”, que vem colocar seu murmúrio entre tantos outros — após todos os outros, antes de todos os outros. (Michel Foucault, “A linguagem ao infinito”)

A

idade moderna, por uma série de necessidades e desejos complexos de afirmações, divisões dos espaços e toda uma força de sistematizar e organizar o homem e tudo a ele relacionado, deixou como herança a construção de certas imagens que já há tempos vêm sendo discutidas. A noção da centralidade do Eu, como ego cogito, e a de Pátria são apenas dois pontos, certamente fulcrais, que merecem ser pensados quando se trata de “Modernidade, Arte e Pensamento”, título do projeto de pesquisa do grupo de estudiosos do labharte, coordenado pela professora Maria Bernardete Ramos Flores. Ambos já foram tratados em inúmeros estudos em diferentes campos, da filosofia à história, da literatura às artes plásticas e pictóricas; não cabe aqui — e também não seria possível — repercorrer esses diferentes caminhos. De todo modo, a construção desses universais, aos quais outros poderiam ser somados, está intrinsecamente relacionada a um outro aspecto para se pensar o “homem em movimento”, o da linguagem. É nesse sentido que seguem as palavras de Foucault ao afirmar que: A arte da linguagem era uma maneira de ‘fazer signo’ — ao mesmo tempo de significar alguma coisa e de dispor, em torno dessa coisa, signos: uma arte, pois, de nomear e, depois, por uma reduplicação ao mesmo tempo demonstrativa e decorativa, de captar esse nome, de encerrá-lo e encobri-lo por sua 118

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vez com outros nomes, que eram sua presença adiada, seu signo segundo, sua figura, seu aparato retórico.1 Toda uma forma de conhecimento se dava por meio da ação de nomear e pelo “colecionismo de nomes”, a articulação se dava, desse modo, mais pela semelhança do que pela diferença — muitas vezes descartada ou considerada menor. A linguagem vinha concebida e usada, portanto, como um instrumento, “só se podia conhecer as coisas do mundo passando por ela”,2 por sua especificidade e exatidão (“linguagem-quadro”). As problemáticas e questionamentos que ganham intensidade em alguns escritos, como os de Mallarmé, Leopardi e Nietzsche, desequilibram esse aparente confortável estatuto; os silêncios da página em branco, a incompletude e a fragmentação da escritura impõem por si sós indagações, espaços vazios. A relação signo-significado, palavra-representação não se mostra mais capaz de dar conta, mostra-se como um limite da amplitude do ver e do sentir que tende para além das aparências de um certo imediatismo e de certas convenções.3 A linguagem se fragmenta, fraturas são abertas, o ato de escrever implode em si mesmo, assumindo, nessa implosão, suas multiplicidades e seus vazios. Vazios que podem ser inícios, já que o desconhecimento e a dúvida oferecem a possibilidade de um interrogar-se que perpassa, justamente, pelo que escapa e é inapreensível. A obra de arte, penso mais especificamente na literatura, é uma forma do pensar, com todos os inúmeros buracos negros que num determinado texto podem existir. Não se trata de dar uma forma a uma matéria, como já dizia Deleuze, é um modo de se aproximar do informe, do inacabado, de uma experiência muitas vezes não compreendida, mas que nos toca profundamente. É, enfim, um complexo processo que atravessa o “vivível e o vivido”,4 um embate entre o dentro e o fora: a literatura como agenciamento; um processo em que limiares, fragilidades, precariedades, limites, ausências fazem parte do próprio ato da escrita e da relação vida e escritura — aspectos fundamentais da produção artística e ensaística do século da barbárie que continuam a indagar, com outras trilhas, a Michel Foucault, “O ser da linguagem”, in As palavras e as coisas, p. 60. Michel Foucault, “A linguagem tornada objeto”, in op. cit., p. 409. 3 “No momento em que a linguagem, como palavra disseminada, se torna objeto de conhecimento, eis que reaparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela não pode ter nem sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer senão a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor do seu ser”. Idem, p. 416. 4 Gilles Deleuze, “A literatura e a vida”, in Crítica e clínica, p. 10. 1 2

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recente produção do xxi. Nesse sentido, é interessante pensar na resposta dada pelo poeta italiano Enrico Testa numa recente entrevista, ao ser questionado sobre sua própria produção poética: Sempre senti bem distantes da minha ideia de escritura dois êxitos que, pelo menos no passado, eram muito frequentes. Um é a poesia vista como jogo verbal, artifício de enigmas ou reedição de práticas de vanguarda já esgotadas. O outro é a poesia concebida como forma de pronúncia “absoluta”, que quer, a todo custo, ver na obscuridade o seu valor.5 Resposta que também fala de suas escolhas pessoais, como leitor, e profissionais, como professor titular de História da Língua Italiana na Università di Genova. Nascido em Gênova, a aspereza da pedra e a “doçura enigmática” do mar são ainda outras duas de suas marcas. O livro de estreia, Le faticose attese (1988), é um sintoma que legitima tal resposta, que ao longo dos anos foi sendo amadurecida. A respeito dessa primeira coletânea, é importante assinalar que o prefácio é de Giorgio Caproni, um dos maiores poetas italianos da segunda metade do século, que põe a nu a esterilidade dos jogos verbais e coloca a poesia em lugares pouco antes frequentados, como bares, leiterias, enfim, coisas simples que compõem o complexo mosaico da humana vida cotidiana. O caminho percorrido por Enrico Testa desde o final da década de 80 conta ainda com In controtempo (1994), La sostituzione (2001), Pasqua di neve (2008) e Ablativo (2013) — os últimos dois já possuem tradução no Brasil pela Rafael Copetti Editor. Novas descobertas, viagens físicas e interiores, amadurecimento dos sentimentos juvenis, perdas de pessoas caras, recordações individuais e coletivas, deslocamentos do “próprio eu no eu”: são todos elementos que compõem os fios da trama poética de Enrico Testa. Pensar a poesia como deslocamento, em alguns casos como estranhamento, faz parte do percurso trilhado nos cinco livros. De um lado, a língua cumprindo o papel da comunicação pragmática, necessária à sobrevivência do dia a dia, e, de outro, a mesma língua que, fazendo rodopios e dando voltas em si mesma (sem cair na esterilidade do jogo poético pelo jogo poético), reescreve e recombina as mesmas palavras. Poesia é pensamento, é um espaço de confluência de vários tempos e de diferentes imagens, mesmo aquelas incompletas. O pensamento é inseparável das redes de linguagem e a poesia também consiste na crítica que a 5

Patricia Peterle, “Poesia aporética de Enrico Testa”, p. 6.

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linguagem faz a si mesma, proporcionando outras aberturas. A poesia, com todas as suas possibilidades de verdades, não vista mais por uma única perspectiva ou em busca d’A Verdade, é uma das forças motrizes do pensamento, a partir do momento em que proporciona a percepção de pontos escuros, se reinventa como linguagem ou linguagens, mesmo no silêncio. Voz e silêncio, escritura e pausa. A sua inscrição na realidade é um corte muito mais profundo do que o de um gozo por um verso perfeito ou por uma bela rima. Como aponta Marcos Siscar logo no final da primeira página de Poesia e crise: “[...] a poesia tem papel ativo na constituição de nossa relação com a linguagem e, sem dúvida alguma, de nossa relação com a realidade”.6. Realidade que não pode ser mais abraçada na sua totalidade, herança perdida no mundo das hiper-realidades. Há sim a possibilidade de “tocar o real”, para lembrar as palavras de Alain Badiou, por meio dos inúmeros semblantes e avatares que a todo instante são criados e “legitimados”. Nesse espaço de deslocamento, do “entre”, há um ranger na/da linguagem que é percebido e colhido por Enrico Testa, um limiar estreito que se abre para experimentações (o cotidiano na poesia e a poesia do cotidiano), inseridas na tensão gerada pelo contato com o outro.7 Uma partilha, um familiar que se faz estranho; uma relação que vai além daquela dualista e imediata — autor-leitor —, que tem, justamente, na língua o terceiro elemento (ou a “terceira figura”) dessa imbricada trama de memória e esquecimento. Há, assim, pelo menos, duas diferentes exposições: 1) contato com a língua de uma tradição; 2) experiência da língua escutada — com rumores e atritos — pelas ruas. Nas palavras de Testa: “Um tecido de vozes que, entrelaçadas na mesma urdidura da existência, procuram um sentido e alojam uma memória [...]”.8 De fato, para esse poeta, para além de um “absolutismo”, ou pleno positivismo, e de uma visão negativa, a linguagem possui um papel fundamental nas ligações com o outro. É nesse espaço, muitas vezes atemporal, que a poesia opera, se faz potência inoperando. A esse propósito, é interessante recuperar uma consideração de Alain Badiou, em um ciclo de conferências realizado na Argentina, em junho de 2004, do qual derivou o volume Justicia, filosofía y literatura. No final desse pequeno livro leem-se as seguintes considerações sobre a literatura:

Marcos Siscar, Poesia e crise, p. 9. Patricia Paterle, “Outra via: ‘vivo all’ablativo’ — percursos na poesia de Enrico Testa”, in No limiar da palavra: percursos pela poesia italiana, pp. 69-85. 8 Patricia Peterle, op. cit., 2014, p. 7. 6 7

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En el fondo la literatura es aquello que organiza los esquemas del sujeto, y ahí radica su fuerza. La literatura no es interesante como psicología, por el contrario, es interesante porque indica puntos de obscuridad, puntos de enigma, y los plantea libremente al pensamiento […] Es la posibilidad que tiene la literatura de dar una forma al enigma, porque la dificultad de un enigma reside precisamente en el hecho de presentarlo, es decir, otra manera de pensar la operación táctica de la literatura.9 Rumor, ruído de coisas que se deslocam. A palavra poética é rumorosa; ela é por si só deslocada, arrancada às vezes violentamente, passando a ter outras vestes e roupagens. A palavra é levada ao seu próprio limite, mas ela paira, sobrevoa, e se movimenta num terreno móvel, fluído, cuja marca é a da plasticidade. “[...] diante da eminência da morte, ela prossegue em uma pressa extrema, mas também recomeça, narra para si mesma, descobre o relato do relato e essa articulação que poderia não terminar nunca”.10 Na coletânea Páscoa de neve (2016, data da tradução brasileira), em mais de um fragmento a origem é colocada à prova e o resultado é uma desilusão ou a constatação de que o retorno não é possível: “Tudo isso me dá o sentido e a consciência de não poder nunca mais voltar para casa”.11 Tal constatação, longe de tons nostálgicos ou de timbres de certo humanismo pedante, por sua vez, não está distante de uma pergunta colocada algumas página antes: “quem mensurou o nosso tempo?”.12 O enigma está presente na poesia de Testa que, por meio da escritura, partilha as suas inquietações com o leitor. Inquietações expressas numa língua, o italiano, trabalhada e regurgitada, na sua simplicidade e complexidade — como já havia sublinhado Giorgio Caproni, no prefácio de Le faticose attese — que parece ser, de alguma maneira, contaminada ou pelo menos inebriada pelos muitos espaços percorridos, paisagens da América do Sul e da Europa e de Portugal aos Balcãs. Não é um mero acaso que a palavra desaparecimento (sparizione) seja a última do primeiro livro, Le faticose attese, e que nele a primeira seção tenha como título Le lame del sogno (As lâminas dos sonhos), do mesmo modo que, no último, Ablativo (2014, referência à data da tradução brasileira), o título da coletânea já seja por si só emblemático e também aqui a primeira parte se abra sob o signo de nel sogno

Alain Badiou, Justicia, filosofía y literatura, p. 71. Michel Foucault, Ditos e Escritos iii. Estética: Literatura e pintura, música e cinema, p. 48. 11 Enrico Testa, Páscoa de neve, p. 51. 12 Idem, p. 35. 9

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(no sonho). A problemática trazida em um dos poemas dessa última coletânea, dedicado a um outro importante poeta do cenário italiano do século xx, Edoardo Sanguineti, coloca frente a frente duas gerações e tem como alvo, nos versos finais, a própria poesia: [...] os versos, se privados de toda a soberba e reduzidos quase que a padecidas palpitações do pathos, servem ainda. Pouco, mas servem mesmo se para quem e para o quê, eu não sei13 Versos que, de algum modo, retomam a fala da entrevista citada anteriormente. A ausência de um ponto final, na partilha com o leitor — Testa leitor de Sanguineti; Testa e seus prováveis leitores — pode indicar uma continuação desse contato no espaço em branco da página. Aqui há uma certeza, a de que os versos ainda servem, o que, por sua vez, permanece no plano do indecidível, do devir. O princípio de não contradição identificado em outros poemas, aqui, se realiza pela certeza, ainda que pouca, indicada pela escolha do verbo “servir” e pela dúvida expressa no último verso, enfatizada pelo “eu não sei”. O Eu que na escritura de Enrico Testa é um “eu” sempre mais esgarçado, sem temor de expor sua precariedade e seu não saber, aponta para uma espécie de “vazio” entreaberto, cujas portas assinalam o espaço limítrofe: “o sujeito constitui-se como imediatamente contemporâneo da escritura, efetuando-se e afetando-se por ela: é o caso do narrador proustiano, que só existe escrevendo, a despeito da referência a uma pseudo-lembrança”.14 O fato lembrado (ou a ser lembrado) não é o único alvo, ou o ponto de chegada principal, não se trata de uma reconstituição; o que importa é também o agora, ou seja, como se dá esse processo e o que ele implica, as “sutilezas fundamentais”. Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente, e muito mais radicalmente, levar a reconhecer de que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser entendido Enrico Testa, Ablativo, p. 65. Esses versos podem ainda lembrar e dialogar com “I versi” de Vittorio Sereni, publicado em Gli strumenti umani. 14 Roland Barthes, “Escrever, verbo transitivo?”, in Rumor da língua, p. 23. 13

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como uma distração, mas como um trabalho — do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é fazer o nosso corpo trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa memória e consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalotada das frases.15 O leitor, portanto, tem uma parte ativa, ele é atravessado por uma série de elementos que mexem, perpassam, cortam seu corpo, que não é imune. A leitura faz ranger, pode desestabilizar bases já existentes. Esse leitor apresenta-se despojado de unidade, ele amontoa linguagens, restos de linguagens, ruínas. Para Barthes, a leitura é o espaço onde a estrutura se descontrola, se desmorona, é a “hemorragia permanente”, aquilo que escapa. Nesse sentido, pensar o texto significa pensar um lugar — o texto — habitado por vazios, enigmas, cesuras, vozes. Assim, ler é costurar, é pensar as complexidades e seus pontos escuros; é, ainda, se deparar com uma tessitura, alinhavar e propor uma possível continuação dessa “costura”, que pode se desfazer e refazer. Assim, como coloca Barthes, esse espaço deve ser percorrido e não penetrado. Há várias, inúmeras, formas de se percorrer, de propor um traçado, normalmente perfilado por um ritmo, compasso, que para mais em algumas notas do que em outras, e é assim que vai se delineando uma singularidade, uma leitura. Por isso, [...] a escritura propõe sentido sem parar, mas é sempre para evaporá-lo: ela procede a uma isenção sistemática do sentido. Por isso mesmo, a literatura (seria melhor passar a dizer a escritura), recusando designar ao texto (e ao mundo como texto) um ‘segredo’, isto é, um sentido último, libera uma atividade a que se poderia chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois a recusa de deter o sentido é finalmente recusar Deus e suas hipóstases, a razão, a ciência, a lei.16

Nessa mesma página, o discurso continua: “ao ler, nós também imprimimos certa postura ao texto, e é por isso que ele é vivo; mas essa postura, que é nossa invenção, só é possível porque há entre os elementos do texto uma relação regulada, uma proporção: tentei analisar essa proporção, descrever a disposição topológica que dá à leitura do texto clássico, ao mesmo tempo, o seu traçado e a sua liberdade.”. Idem, p. 29. 16 Roland Barthes, “A morte do autor”, in op. cit., p. 63. Ainda num outro trecho, na página 62, é colocado: “Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura”. 15

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Roupagens e vestes, camadas de panos, tecidos — o texto é uma tessitura — que se entrelaçam, relatos, articulações que se entrecruzam, dobras e mais dobras. Se o texto é considerado uma trama, ele escapa à linearidade, a uma lógica simples, baseada na dedução, justamente por possuir costuras, dobras, que mostram e escondem elementos.17 Nesse sentido, “[...] o menor elemento do labirinto é a dobra, não o ponto, que nunca é uma parte, mas uma simples extremidade da linha”.18 até quando, Antonio, me pergunto, até quando poderemos ainda arar a terra tenra dos deuses... Mas, para proteger os nossos filhos dos escorregões da ânsia, não podemos mais confiar na pobre póstuma beleza da vênus dos trapos de Rivoli que, com indiferença, nos dá as costas19 O poema acima, mesmo sendo um bloco único de nove versos, pode ser dividido em dois momentos: até o verso 3 tem-se o primeiro, marcado pela anáfora (até quando) e o segundo inicia no verso 4, com uma conjunção adversativa: Mas. Após colocar em evidência e partilhar certa apreensão, por meio de Vênus, uma das figuras mais representadas na história da arte, é expressa certa inquietação: “que, com indiferença, nos dá as costas”.

Walter Benjamin, em um dos fragmentos de Rua de mão única, “Atenção: Degraus!”, afirma: “O trabalho em uma boa prosa tem três degraus: um musical, em que ela é composta, um arquiteônico, em que ela é construída, e, enfim, um têxtil, em que ela é tecida”. 18 Gilles Deleuze, A dobra: Leibniz e o Barroco, p. 18. 19 Enrico Testa, op. cit., 2014, p. 31. 17

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A imagem da grande beleza, da primavera e da fertilidade, figurada por Botticelli, em O nascimento de Vênus, com linhas delicadas e angelicais, essa espécie de ninfa, com seus cabelos ondulantes e uma gestualidade expressiva, que surge de dentro de uma concha, torna-se um ponto sensível. A Vênus de Botticelli opera a partir de traços partilhados, evoca outras imagens de Vênus, oferece novos elementos, sobrevive e faz perviver. Um pathosformel, como pontuou Aby Warburg, para quem as imagens pertencem a uma realidade histórica e estão inseridas num processo de transmissão da cultura:20 as inúmeras Vênus que ao longo dos séculos foram se sobrepondo e formando concreções.

Giorgio Agamben, “Aby Warburg e la scienza senza nome”, pp. 51-66. Depois republicado no volume La potenza del pensiero, pp. 127-151. 20

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Figura 2 — Vênus de Milo, Museu do Louvre.

A obra de arte não é uma janela do mundo. É uma abertura, é uma f e n d a, um espaço a partir do qual é possível olhar, se deslocar; sendo nesse movimento que se desencadeiam pensamentos sobre o homem, o mundo, as coisas e tudo o que está ao seu redor. Enfim, pensamentos que, segundo Jorge Coli, podem gerar outros pensamentos, comentários, discussões, debates.21 Um ponto sensível, um detalhe — para lembrar o Warburg, citado por Carlo Ginzburg numa epígrafe — que desarticula um saber prévio, tendo em vista que o bom Deus encontra-se nos detalhes. A Vênus evocada nos versos de Enrico Testa é um exemplo dessa desarticulação, ou melhor dizendo, de uma cesura, que recupera e, ao mesmo tempo, (re)elabora essa imagem tão importante e presente na cultura ocidental. É como se a perfeição da Vênus emblematizada nas esculturas de Antonio Canova, basta pensar em Le tre Grazie, que representam respectivamente castidade, beleza e amor, fosse dessacralizada, ou ainda profanada, ao longo do século xx. Os trapos, os restos, os resíduos, que ajudam a compor a “instalação poética” em Ablativo, talvez não estejam muito distantes das ruínas encontradas anos antes 21

Jorge Coli, “Arte e pensamento”, pp. 209-210. 127

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nas páginas de Le faticose attese, onde um outro Antonio é imerso num movimento perfilado pelo ziguezaguear e pelas trocas: Antonio arquiteto das ruínas ziguezagueando pelas ruas desenha com gestos doces e amargos trocas geometrias trilhos de obscuras ferrovias22 A ideia da ruína e do ziguezaguear pelas ruas impõe um outro tempo, tempos no tempo, o da contemporaneidade (para Debray, não se é nunca completamente contemporâneo ao presente), ruínas talvez de uma Vênus cuja existência só é possível diante de sinais que marcaram o século xx, o estilhaço, o corte, o fragmento. A deusa trazida nos versos de Ablativo, pelas letras pretas que mancham a página em branco, está despojada das letras maiúsculas, que poderiam dar-lhe uma aura mais ou menos “sacra”. De Vênus para vênus, uma troca que não é casual, na qual gestos doces e amargos estão copresentes. É por meio dessas indicações que se pode, agora, adentrar um pouco mais nos versos de Testa, quando o poeta cita literalmente um dos trabalhos mais importantes de Michelangelo Pistoletto, intitulado Venere degli stracci (1967-1968). Seguindo a longa tradição da figuração de Vênus na história da arte, Pistoletto tem como referência para a sua obra a do escultor dinamarquês Bertel Thorvaldsen, expoente do neoclassicismo, Vênus com a maçã, que segue os trilhos das demais imagens até aqui citadas.

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Enrico Testa, Le faticose attese, p. 34.

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Figura 3 — Vênus com a maçã (1813-1816), de Bertel Thorvaldsen, Thorvaldsens Museum.

A brancura, símbolo de pureza, a delicadeza, a sensualidade, os dóceis movimentos do corpo e dos drapeados dessas imagens são relidos por Michele Pistoletto na sua Vênus, que não deixa de ser uma imagem alegórica do século xx. Como pensar todos esses elementos que dominaram a cultura clássica, o Renascimento, e que chegam até nós, que é partilhado e que sobrevive? A resposta de Pistoletto é inquietante, como são igualmente inquietantes os versos em que Testa pensa na proteção dos filhos e na indiferença da deusa — uma constatação.

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Patricia Peterle

Figura 4 — Michele Pistoletto, Venere degli stracci (1967).

À diferença das outras imagens mencionadas, nas quais o rosto e os olhos de Vênus podiam estar cara a cara com o observador, nessa última, como bem recuperado e enfatizado no poema, isso não é mais possível, do mesmo modo que, agora, não se pode também dar uma volta ao redor para ver a escultura como um todo. Não por ela ser constituída de uma única metade, mas porque a parte frontal está encoberta; uma composição que impede a perspectiva inteira e total. Um diálogo aberto com as outras tantas Vênus que podem ser encontradas no decorrer da história, de Giorgione, a Tiziano, a Goya e a Manet, mas também as de Salvador Dalí, com suas gavetas, e a restaurada de Man Ray.23 A figura da Vênus é ainda central, contudo, agora, ela divide o espaço, numa instalação, com restos de roupas, trapos, que parecem, no seu movimento, querer atravessar (ou tentar atravessar). Nessa instalação, composição de diferentes linguagens, não há uma dicotomia, a brancura se mescla ao variado leque de cores fortes dos trapos. Como apontou o crítico de arte German Celant, em texto de 23 de novembro de 1967, dois meses Salvador Dalí, Vênus de Milo com gavetas (1936), bronze, Rotterdam, Museu Boymans-van Beuningen; Man Ray, Vênus restaurada (1936), mármore e corda, Turim, Galleria In Fauno. 23

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Arte e pensamento: operações historiográficas

depois da exposição “Arte Povera IM Spazio”, em Gênova, Pistoletto, desde meados da década de 60, se coloca o problema da linguagem. O que se chamou a partir de então de “Arte povera” (“Arte pobre”) é um movimento que nasce em aberta polêmica com as formas mais tradicionais da arte, da qual recusa técnicas e suportes, e recorre a materiais “pobres” (terra, madeira, ferro, trapos, plásticos, resíduos industriais), evocando, na sua corrosão, estruturas de uma linguagem contemporânea. Com efeito, a escultura da instalação de Pistoletto, que à primeira vista pode parecer de material nobre, o mármore clássico das esculturas, mesclado à pilha de trapos, restos de nossa sociedade, na verdade é um simulacro feito de um molde de uma reprodução livre da Vênus de Thorvaldsen — que por sua vez já era um simulacro do antigo. Uma Vênus mais “pobre” que dialoga com todas as outras que a precederam. Testa e Pistoletto se aproximam ao pensarem problemáticas essenciais, o estilhaçamento de valores perenes, a rima e as estruturas tradicionais do fazer poético, para o primeiro, e a brancura, a suavidade e a pureza do mármore, para o segundo. Um embate entre a vida nua (brulla, para usar um termo dantesco) e o ideal de belo, o cotidiano e o eterno, o plano do aqui e o de lá, inatingível. Planos de clivagem, dobras, que colocam em movimento a poesia de Testa e a instalação de Pistoletto. Nesse sentido, “A dobra é a potência como condição da variação [...]”.24 Nessa linha de leitura, as reflexões se aproximam mais da noção grega de aisthesis, ou seja, a faculdade do sentir. Um sentir-se deslocado no mundo, que pressupõe um outro tipo de relação com a arte, não apenas caracterizado pelo gozo ou contemplação, mas, sobretudo, por um duro e árduo embate. Problemáticas e tensões que também se fazem presentes nos versos de um longo poema de Patrizia Cavalli (natural de Todi, província de Perugia, 1947). Le mie poesie non cambieranno il mondo é o primeiro livro de Patrizia Cavalli, cujo título foi sugerido pela amiga Elsa Morante, autora de Il mondo salvato dai ragazzini e altri poemi (1968) e La storia (1974), relação que não pode ser desprezada. Depois dessa experiência, outros vieram: Il cielo (1981), L’io singolare proprio mio (1992), Sempre aperto teatro (1999), Pigre divinità e pigra sorte (2006) e sua última coletânea, Datura, de 2013. Transitando pela tradição literária e métrica da poesia, a escritura de Patrizia Cavalli se dá no espaço aberto por ocasiões que permitem desmontá-la e remontá-la. “Hendecassílabos e companheiros, infelizmente, me veem por si sós. Digo infelizmente porque às vezes me entendia essa pulsação natural pelos versos 24

Gilles Deleuze, op. cit., 1991, p. 37. 131

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