Urraca I : poder regio feminino e genero na cronistica do sec XII, uma proposta de pesquisa

May 24, 2017 | Autor: Luísa Prudente | Categoria: Gender Studies, Medieval History, Feudalism and Lordship, Medieval Chronicles, Urraca I
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Urraca I (1109-1126): gênero e poder régio feminino na cronística do século
XII, uma proposta de pesquisa



Luísa Tollendal Prudente[1]





Propõe-se investigar, em pesquisa doutoral a ser desenvolvida
proximamente, a maneira como o poder régio conferido a Urraca I (1109-1126)
foi entendido nos discursos das crônicas latinas do século XII. Devido às
articulações propagandísticas dos relatos cronísticos medievais, e da sua
capacidade, enquanto narrativa do passado memorável, de disseminar modelos,
conceitos, idéias e argumentos políticos; as crônicas que abordam o reinado
de Urraca constituem importantes fontes para analisar as concepções
mobilizadas em torno do exercício feminino do poder régio.

A investigação partirá do estudo de duas crônicas coetâneas ao reinado
de Urraca I: a História Compostelana, produzida no entorno do bispo de
Santiago de Compostela; e a I Crónica Anónima de Sahagún, proveniente da
abadia de Sahagún. Partiremos de uma perspectiva de gênero, no seu sentido
de "forma primária de dar significado às relações de poder" (SCOTT, 1995,
p.86), para abordar a problemática do exercício do poder régio por Urraca.
Procuramos entender como diretrizes de gênero são operadas na criação e
manipulação de discursos sobre o poder. A investigação focará no contexto
sócio-político do reino de Castela, e abarcará o período em que vivera a
rainha e no qual foram produzidas as duas crônicas às quais nos referimos,
ou seja, entre as décadas finais do século XI e iniciais do século XII.

Urraca I sucedeu Afonso VI no trono castelhano-leonês, e reinou por 17
anos. Foi a primeira rainha regente de Castela. O pouco que se sabe acerca
do seu reinado e das condições em que exerceu o poder é diretamente
proporcional à disseminação das caracterizações construídas a seu respeito
na historiografia e na literatura medieval e moderna. Representações
múltiplas, que adquiriram conotações lendárias e obedeceram a objetivos de
diferentes envergaduras. Mitos políticos tantas vezes repetidos sem filtros
pela historiografia contemporânea.

Urraca I era filha legítima e primogênita de Afonso VI e de sua
segunda esposa, Constança da Borgonha. Casou-se em primeiras núpcias em
1093, com Raimundo da Borgonha, seu primo pelo lado materno e sobrinho do
abade Hugo de Cluny. O seu irmão, Enrique da Borgonha, por volta da mesma
ocasião, casara-se com Dona Teresa, irmã ilegítima de Urraca. Raimundo e
Enrique haviam chegado à Península em 1087, juntamente com a expedição do
duque Eudes da Borgonha. Depois de seus casamentos, como resultado das
transações matrimoniais, receberam, respectivamente, os governos dos
condados da Galícia e de Portugal. Raimundo viria a falecer, e, uma vez
viúva, Urraca exerceu, como condessa da Galícia, a função de governante
dessa região. Ao falecer Afonso VI, Urraca, legítima primogênita, era a sua
principal herdeira em linha direta. Cabia-lhe o trono de Castela e Leão,
uma vez que o direito consuetudinário castelhano não excluía a sucessão
feminina na falta de herdeiros varões (GOMES, 2011, p. 6; MONTENEGRO, 2010,
p. 370-373). Mas não se considerava que pudesse reinar sozinha, sem tutela
masculina, ainda que o governo do território lhe pertencesse por direito.
De forma que, pouco tempo após sua entronização, Urraca casou-se em
segundas núpcias com Afonso I de Aragão, o Batalhador. Aliança que, no
entanto, fracassaria. Nas crônicas medievais é famoso o mote da
incompatibilidade entre os esposos, mas o período de guerras que opôs
Aragão a Castela, e Afonso I a Urraca I, provavelmente se deveu mais a uma
disputa jurisdicional pelos territórios do que a um suposto desentendimento
conjugal irreconciliável. O conflito envolveu, em momentos distintos,
variados setores da aristocracia castelhana, leonesa, aragonesa, galega e
portuguesa, e também da elite clerical do reino e dos habitantes das
cidades, muitas vezes sublevados (GARCIA, 2007, p.2; GORDO MOLINA, 2008,
p.12).

Urraca reinou em meio às guerras, fez e desfez alianças com Afonso I;
com Enrique da Borgonha e sua meia-irmã Dona Teresa; com os condes de Lara
e outras casas nobiliárquicas; e com os pontífices de várias cidades,
dentre os quais Diego II Gelmírez, bispo de Santiago de Compostela, que
encomendou a Historia Compostelana. O casamento culminou num divórcio, por
alegação de incesto (Afonso I, tal como Raimundo da Borgonha, era primo de
Urraca). A partir desse momento, Urraca reinou sozinha como rainha regente,
e não mais a partir de uma posição conjugada ao papel de rainha consorte.
Envolvera-se também em disputas contra seu filho e sucessor - o futuro
Afonso VII, primeiro rei castelhano da dinastia de Borgonha (assim como o
seu primo, Afonso Henriques de Portugal). Ao fim, ela terminaria apoiando o
partido do filho. Pode-se identificar em Urraca uma forma diferente de
governo por ter se tratado de uma mulher? A resposta a essa pergunta não
está clara, embora alguns acreditem que seu reinado, em termos práticos, em
nada se distinguira de um reinado masculino. A sua apreciação pela
cronística medieval – e mesmo por tradições historiográficas posteriores
que se utilizaram acriticamente dela -tendeu a frisar a suposta
instabilidade política, como se derivada de uma natural inaptidão feminina
para o governo. (GARCIA, 2007, p.11; GORDO MOLINA, 2013, p.178).

Urraca I foi objeto de variadas abordagens. Já no século XII, relatos
cronísticos contemporâneos do seu reinado a retratara, e transmitiram
concepções sobre o exercício feminino do poder monárquico, fosse para
denegri-lo abertamente ou, de alguma forma, reconhecer-lhe uma possível
legitimidade. As avaliações se faziam segundo as idéias sobre a "natureza"
feminina e a sua aptidão para o poder. Segundo as circunstâncias de cada
relato, Urraca foi transformada em estereótipo e serviu para exemplificar o
exercício do poder por uma mulher. Concepções em que o gênero acoplado à
figura reinante adquiriu crucial importância para a legitimação ou
condenação de um governo.

Dentre os relatos escritos no século XII, dois - coetâneos da rainha –
se destacam. Foram produzidos e disseminados a partir de dois centros
eclesiásticos, dois polos urbanos concorrentes de peregrinação religiosa, e
aliados a diferentes ramos nobiliárquicos, com os quais seus membros
frequentemente se ligavam por laços de parentesco. Um deles se relacionava
com as aristocracias do sul da França, galegas e portuguesas; se aliou e se
inimizou de Urraca e defendeu o partido de Afonso VII. O outro era um
centro monástico influente e longevo, local de adoração das relíquias de
santos populares locais, aliado de ramos da aristocracia leonesa e
castelhana, anteriormente agraciado pelas benesses de Afonso VI. Trata-se
da diocese de Santiago de Compostela, e da cidade e monastério de Sahagún.
Um terceiro centro marcou o reinado de Urraca, mas não se conhecem relatos
cronísticos contemporâneos dela e produzidos a partir desse local. Mas, no
século XIII, foi como seu canônigo que Lucas de Tuy redigiu o Chronicon
Mundi, a pedido da rainha Berengária. Nas crônicas baixo-medievais foi
associado à rainha Urraca como cenário da sua cobiça e do seu desrespeito
pelos bens sagrados da igreja. Trata-se do mosteiro de São Isidoro de Leão,
cabeça do infantazgo régio. Estudos recentes apontam a incongruência entre
os vultosos benefícios dados por Urraca (com o intuito de que sua memória
fosse perpetuada) e a fama dilapidadora que lhe foi atribuída e operada em
associação com esse mosteiro (MARTIN, 2008).

As crônicas, produzidas a partir dos dois primeiros centros
religiosos, e que integrarão o corpus documental da pesquisa, são a
Historia Compostelana e as Crónicas Anónimas de Sahagún. Divergem na
valorização que fazem da rainha e da sua forma de conduzir os assuntos de
governo. A Historia Compostelana a retratou de maneira muito negativa, com
vistas a, além de glorificar Diego Gelmírez e manchar a capacidade
governativa da rainha (utilizando-se, para isso, da sua condição de mulher)
(CHAMOSO RAMOS,2013, p.19). Inicia-se a trajetória desqualificadora de
Urraca I – que se avolumará nas crônicas do século seguinte – em que as
bases da negação de sua capacidade de governo derivam de máximas misóginas
que se sedimentavam no discurso eclesiástico ligado às reformas do século
XII. O paradigma de Jezabel, com o qual se evocará a figura da rainha,
encontra ali a sua primeira utilização (PASCUA ECHEGARAY, 2014, p.133).

Já as Crónicas Anónimas de Sahagún, partidárias de Afonso VI e opostas
a Afonso I e à influência aragonesa no reino castelhano-leonês, ao
relatarem os eventos ligados ao monastério de Sahagún, trazem uma
valorização diferente daquela perpetuada a partir da Historia Compostelana.
Ali, Urraca é apresentada sob um ponto de vista "relativamente favorável".
Embora assuma o segundo plano em face do protagonismo masculino que permeia
a crônica (GARCIA,2007, p.3-5), a legitimidade do seu direito ao trono não
é questionada, e Urraca é tratada por "natural reina e señora." (Crónicas
Anónimas de Sahagún. PUYOL Y ALONSO (ed.), 1920, p.48)

No que tange à categoria "gênero", começou-se recentemente a empregá-
la como categoria de análise histórica nos trabalhos que abordam o governo
de Urraca I, mas de maneira ainda limitada. Não falta até quem negue a sua
importância como categoria útil para abordar a questão do poder feminino na
Idade Média (GARCIA,2006, p.11). No nosso entendimento, erroneamente. Os
que assim fazem, partem de compreensões equivocadas do significado do termo
quando aplicado aos estudos históricos e, em particular, aos estudos
medievais.

O que se observou no caso dos trabalhos sobre a rainha Urraca é que a
maioria das abordagens se encaixa no que chamamos hoje de História das
Mulheres, e aquelas que se propõem a trabalhar com a categoria "gênero"
tendem a utilizá-la como sinônimo de "mulher" ou, exclusivamente, de
"feminilidade". Em um artigo hoje célebre, Joan Scott defendeu a
historicidade da categoria gênero. Nas décadas de 60 e 70 do século XX, o
termo foi cunhado pelas feministas estadounidenses com o objetivo de
"enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no
sexo". Em um primeiro momento, "gênero" foi utilizado como análogo a
"mulher", "tomada no seu sentido singular, distintivo e essencial", de
forma que pudesse ser utilizado para se referir às mulheres sem recorrer ao
determinismo biológico implícito em "sexo" ou "diferença sexual". Isso
ocorria no momento em que se fazia a crítica às determinações biológicas
dos papéis sexuais. A utilização do termo "gênero" foi proposta por aqueles
que pretendiam uma transformação dos paradigmas disciplinares, que
consideravam que a História das Mulheres pudesse não apenas trazer à luz
novos temas, como também levar a um "reexame crítico das premissas e dos
critérios do trabalho científico existente". Isso dependia da maneira como
o gênero podia ser articulado como uma categoria de análise, de forma que
foi muitas vezes empregado analogamente às categorias de classe e raça.
Segundo Scott, ainda que esses três termos - "classe", "raça" e "gênero" -
utilizados simultaneamente possam sugerir entre si uma paridade, o seu
estatuto não é equivalente. Ao passo que a "classe" tem suas bases na
complexa teoria de Marx, a "raça" e o "gênero" nunca foram objeto de
semelhante categorização (SCOTT, 1995, p.72-73).

A partir dos anos 80, frente às críticas sofridas pela História das
Mulheres e do Gênero, os estudos feministas burilariam "suas abordagens,
conceitos e categorias" (LIMA, 2010, p.13). A reação principal da história
não feminista havia sido a aceitação e o reconhecimento da história das
mulheres, mas com "o seu confinamento ou relegação a um domínio separado",
como se fosse distinta e separada da história dos homens, não lhes dissesse
respeito e nem pudesse contribuir para o entendimento da grande História, a
história política, econômica ou social, que não "diz respeito ao sexo e à
família" (SCOTT, 1995, p.74)

É a discussão do gênero como categoria analítica que Joan Scott se
propôs a fazer. Ela destaca como, a partir da incorporação do termo nos
estudos acadêmicos, a sua utilização mais simples é como um sinônimo de
"mulher". Embora essa utilização possa se referir "vagamente a certos
conceitos analíticos" e vise o "reconhecimento político" dos estudos em
questão, Scott destaca a substituição, em livros e artigos, do termo
"mulher" pelo de "gênero", como forma de transmitir "erudição e seriedade"
a trabalhos acadêmicos através da conotação mais neutra que "gênero"
evocava. Não se afirmaria nenhum posicionamento frente à desigualdade e o
poder, e não se favoreceria a saída feminina da invisibilidade. Ao passo
que "história das mulheres" deixa marcada a posição política de compreender
as mulheres como sujeitos históricos, a designação "gênero" as incluiria
docilmente sem as nomear. Porém,

... esse é apenas um aspecto. O termo "gênero", além de um
substituto para o termo mulheres, é também utilizado para
sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é
necessariamente informação sobre os homens, que um implica o
estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo
das mulheres faz parte do mundo dos homens, que ele é criado
nesse e por esse mundo masculino. (...) Seu uso rejeita
explicitamente explicações biológicas (...). Em vez disso, o
termo "gênero" torna-se uma forma de indicar "construções
culturais" – a criação totalmente social de idéias sobre os
papéis adequados aos homens e às mulheres (SCOTT,1995, p.75).



O gênero atua com ou sobre um corpo sexuado. A atenção é deslocada para as
construções culturais, sociais e históricas sofridas pelas características
biológicas. Ressalta-se o carácter duplo (ou múltiplo) do gênero, e o
caráter relacional entre seus polos feminino ou masculino. É "o gênero como
uma noção, um saber sobre as diferenças sexuais, que pressupõe que a
assimetria e a hierarquia entre homem e mulher, masculino e feminino,
masculinidades e feminilidades, são elementos dialógicos (relacionais),
plurais, e discursivamente situados num dado tempo, lugar e sociedade"
(LIMA, 2007, p.142). Scott problematizou "a aparência de uma continuidade
eterna das experiências e representações sociais sobre as relações de
gênero. Ressaltou também a necessidade de se perceber as conexões entre o
gênero e a dinâmica de sustentação das instituições e da organização
social, e ao processo através do qual os significados culturais são
construídos. Ela nos apresenta, assim, uma definição de "gênero" formada
por duas proposições afirmativas: que é um "elemento constitutivo de
relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos" e,
principalmente, "uma forma primária de dar significado às relações de
poder" (melhor dizendo, "um campo primário no interior do qual, ou por meio
do qual, o poder é articulado" - apoia-se principalmente na teoria de
Foucault). Assim, "na medida em que essas referências estabelecem
distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial aos recursos
materiais e simbólicos), o gênero torna-se implicado na concepção e na
construção do próprio poder" (SCOTT, 1995, p.86-88).

Como entender a correlação entre as diretrizes de gênero atribuídas a
Urraca I nas fontes do século XII, e o processo histórico das elites do
norte da Península Ibérica, em especial aquelas que atuavam no espaço do
caminho de Santiago de Compostela? Encontramos na obra de Pierre Bourdieu
reflexões que nos pareceram pertinentes para começar a pensar essas
questões. Bourdieu concebeu e empregou o conceito de "sistema de
estratégias de reprodução", desenvolvido como alternativa à noção de
"regra". Ao se interessar pela lógica das trocas matrimoniais e das
práticas sucessórias em sociedades culturalmente afastadas, foi levado a
questionar os postulados da tese estruturalista clássica de Claude Lévy-
Strauss. Para Bourdieu, toda sociedade se fundamentaria na relação entre
dois princípios dinâmicos, expressos nas estruturas objetivas (mais
especificamente na distribuição do capital e nos seus mecanismos de
reprodução) e nas subjetivas, nas disposições à reprodução. Seria na
interação entre esses princípios que se definiria "os diferentes modos de
reprodução, e em particular as estratégias de reprodução que as
caracterizam"[2] (BOURDIEU,1994, p.3-5. Traduções livres).

As estratégias sucessórias visam à transmissão do patrimônio de uma
geração à outra, seguindo o limite das possibilidades ofertadas pelo
costume e pelo direito. As estratégias educativas tendem a produzir os
agentes sociais dignos e capazes de receberem a herança do grupo e de
aumentá-la, ou transmiti-la de volta. As de investimento econômico visam a
perpetuação ou o aumento dos diferentes tipos de capital. Inclui-se nessa
categoria as estratégias de investimento social, que estariam orientadas em
direção à "instauração ou manutenção de relações sociais diretamente
utilizáveis ou mobilizáveis a curto ou a longo prazo, isto é em direção à
sua transformação em obrigações duráveis, subjetivamente percebidas (...)
ou institucionalmente garantidas (...), então em capital social e em
capital simbólico, que é operada pela alquimia da troca (...) e por um
trabalho especifico de manutenção das relações." (BOURDIEU, 1994, p.3-6.
Tradução livre) Um tipo particular seria o das estratégias matrimoniais. O
casamento resultaria não da obediência a uma regra estrita, mas de uma
estratégia posta em prática a partir dos princípios "profundamente
interiorizados" de uma determinada tradição e das soluções que possibilita,
de forma a obter sucesso na perpetuação do patrimônio familiar. Assim, ao
invés do tratamento clássico dado pela antropologia estrutural ao estudo
dos sistemas matrimoniais, tratando cada casamento como uma "unidade
autônoma", cada intercâmbio deveria ser entendido como "um momento dentro
de uma série de trocas materiais e simbólicas" (BOURDIEU,1972, p.1107.
Tradução livre).


O câmbio de visão para o emprego da noção de "estratégia" ao invés de
"regra" permite que se entenda a dinâmica lógica nos casos que fogem às
normas. Bourdieu dá dois exemplos que nos interessam aqui, verificados por
ele no Béarn: a transmissão da herança e do seu estatuto de herdeiro a uma
mulher, na ausência de herdeiros homens; e o conflito existente nos
casamentos entre herdeiros primogênitos. Para Bourdieu, a "solução de
desespero" que consiste em legar a capacidade de transmissão do patrimônio
– "fundamento da continuidade da linhagem" – a uma mulher, nasceria na
necessidade de garantir de qualquer maneira a permanência desse patrimônio
na linhagem. A observação de que as estratégias matrimoniais seriam, em
cada caso, comandadas pelo valor do patrimônio material e simbólico
disponível e pelo modo de transmissão patrimonial (que define os interesses
de cada pretendente à herança ao lhes determinar diferentes direitos sobre
o patrimônio familiar a partir de critérios como sexo e ordem de
nascimento), evidencia a conexão entre as estratégias matrimoniais e as
sucessórias. As transações matrimoniais estariam justamente no âmbito
desses dois grupos de estratégias. A problemática da autoridade brotaria no
caso de um casamento entre um primogênito e uma primogênita, o qual "coloca
com a mais extrema acuidade a questão da autoridade política na família,
sobretudo quando existe uma dissimetria em favor da herdeira. Exceto no
caso onde, ao associar dois vizinhos, ele reúne as duas propriedades, esse
tipo de casamento tende a instalar os cônjuges na instabilidade entre os
dois lares, quando não se tratar da separação pura e simples de
residências" (BOURDIEU,1972, p. 1106-1107. Traduções livres).

Por fim, as estratégias de investimento simbólico consistem em ações
destinadas a aumentar ou perpetuar o "capital de reconhecimento" para
favorecer "a reprodução de esquemas de percepção e de apreciação mais
favoráveis às suas propriedades e produzindo as ações suscetíveis de serem
apreciadas favoravelmente segundo essas categorias". Nesse âmbito, as
estratégias de sociodicéia atuariam buscando "legitimar a dominação e seu
fundamento", produzindo a sua naturalização (BOURDIEU, 1972, p1119).

As estratégias mais pertinentes à análise que estamos propondo aqui
são as estratégias sucessórias, o conjunto das estratégias de investimento
social – com atenção às estratégias matrimoniais – e as estratégias de
sociodicéia e outras variantes das estratégias de investimento simbólico.
Sempre que necessário também serão levadas em conta as estratégias de
fecundidade e as estratégias educativas.



Bibliografia Geral



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Madrid: Real Academia de la Historia, 1920.

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2. Bibliografia




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________________. Le pouvoir d'une reine: l'image d'Urraque I (119-
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________________________. Urraca I de León y Teresa de Portugal:
las relaciones de fronteras y el ejercicio de la potestad femenina en
la primera mitad del siglo XII. Jurisdicción, imperium, y linaje. In:
Intus-Legere Historia, vol. 02, n. 01, 2008, p.9-23.

LIMA, Marcelo Pereira. O gênero do adultério no discurso jurídico
do governo de Afonso X (1252-1284). Niterói: UFF, 2010.

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MONTENEGRO, Julia. La crisis sucesoria en las postrimerías del
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[1] Mestre em História Medieval pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
Departamento de História. Contato: [email protected]. Orientador:
Mário Jorge da Motta Bastos.
[2]Essas categorias de estratégias, através das quais as unidades sociais
de agência (em especial familiares, em um sentido abrangente) tendem a
buscar a sua manutenção e reprodução no tecido social, seriam as
estratégias de investimento biológico (dentre as quais as profiláticas e de
fecundidade), as estratégias sucessórias; educativas; de investimento
econômico (as quais, para além de um sentido restrito, incluem as de
investimento social e matrimoniais); e as de investimento simbólico (dentre
as quais as de sociodicéia).
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