Uso da Força para Proteção de Nacional no Estrangeiro

June 4, 2017 | Autor: Jose Pina-Delgado | Categoria: International Security, Use of force in international law and international relations
Share Embed


Descrição do Produto

Uso da Força para Proteção de Nacional no Estrangeiro José Pina Delgado Juiz do Tribunal Constitucional de Cabo Verde Professor Graduado do Departamento de Direito e de Estudos Internacionais Instituto Superior de Ciências Jurídicas & Sociais I. A possibilidade de Estados usarem a força para protegerem os seus nacionais em perigo no estrangeiro foi uma realidade até ao primeiro quartel do século XX, quando ainda se permitia que a invocação de um direito geral de autoproteção do Estado amparasse o uso da força em situações muito diversas que iam da proteção de pessoas até, por exemplo, a cobrança de dívidas ou a proteção de outros interesses no estrangeiro. II. O uso da força para proteção no estrangeiro corresponde às situações em que um Estado utiliza meios armados para proteger os seus nacionais ou pessoas equiparadas em ocorrências nas quais estejam a ser privadas arbitrariamente da sua vida, da sua integridade pessoal ou da sua liberdade no estrangeiro. Esta figura do Direito Internacional da Segurança tem sido tratada como uma das exceções ao princípio da proibição do uso da força, por vezes como uma das manifestações do direito à legítima defesa reconhecido pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas, outras como figura decorrente da prática internacional. Naturalmente, a sua relação com o sistema internacional de controlo do uso da força não deixa de ser tensa no sentido de que a sua materialização implica a afetação da soberania de um determinado Estado. III. Para contornar essa dificuldade, alguns sustentam que a referida figura é uma manifestação evidente do direito à legítima defesa, tendo em conta que o Estado é composto por um elemento espacial (o território), por um elemento institucional (as suas instituições de governação), e também por um elemento pessoal (a população). Assim sendo, sempre que um integrante do corpo político (nacional ou equiparado) é colocado em situação passiva de ataque estará presente o pressuposto básico que permite a invocação da legítima defesa na esfera internacional: o ataque armado. Aplicar-se-á, neste caso, o regime previsto pelo referido pelo artigo 51 da Carta em termos de requisitos, obrigando a reação a ser imediata, necessária e proporcional ao objetivo de proteger esse elemento do Estado.

IV. Não obstante, esta fundamentação não é consensual, preferindo-se, muitas vezes justificá-la a partir de uma base iminentemente costumeira, de acordo com a qual se consolidou a prática internacional a partir de um conjunto de precedentes que permitiria deduzir a existência da norma permissiva e as condições da sua invocação. Elas dependem de uma certa interpretação não consensual do artigo 2 (4) da Carta que assenta, primeiro, na rejeição da natureza imperativa geral da proibição do uso da força, o que permite legitimar a criação de regimes costumeiros especiais, e, segundo, na interpretação de que a parte final desse preceito, ou seja, o segmento “quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas”, tem uma relevância de qualificar a proibição, fazendo-a incidir somente sobre as situações de uso da força que atinjam a integridade territorial ou a independência política de um Estado ou que sejam incompatíveis com os objetivos das Nações Unidas. Como uma intervenção cirúrgica, apesar de invadir um território, não atenta contra a sua integridade, como não há alteração de regime e como a proteção de direitos também se encontra entre os objetivos das Nações Unidas, esse tipo de intervenção não seria contrária à Carta, permitindo a criação de uma norma costumeira permissiva assente na prática internacional relevante. 4.1. Um caso importante foi o resgate de tripulantes da embarcação de bandeira estadunidense Mayaguez em situação de detenção, aparentemente ilícita, no Camboja. Todavia, o mais simbólico e perfeito destes precedentes acabou por ser o célebre Raide sobre Entebbe protagonizado por comandos israelitas objetivando libertar cidadãos do país hebraico e judeus de outras nacionalidades retidos por operacionais da extrema esquerda alemã e por membros da Frente Popular para a Libertação da Palestina no aeroporto da capital do Uganda, com a conivência do ditador deste país africano, Idi Amin Dada. A operação não deixou de ser criticada por alguns Estados, mas também explicitamente defendida por outros e, de modo sintomático, não chegou a ser condenada pelo Conselho de Segurança porque vários Estados não compareceram à reunião ou marcaram presença e abstiveram-se. Desde aquele período, de forma quase imediata, vários Estados têm incorrido em prática similar em casos de tomadas de reféns ou de repatriamento de nacionais, em situações de grave turbulência no estrangeiro, especialmente guerras civis, nalguns casos com a operação a estender-se para beneficiar nacionais de países terceiros a seu pedido. Finalmente, durante este período, é de se registar a tentativa fracassa de resgate dos reféns na situação que envolveu a Embaixada dos Estados Unidos e Teerão, Irão.

Depois disto, o mesmo ocorreu em muitos conflitos em África, continente que atraiu intervenções de países como a França, a Bélgica, a Grã-Bretanha e mesmo os Estados Unidos nos últimos anos. O incremento de situações de guerra civil tem tornado esta prática comum, embora muitas vezes decorra ao abrigo do consentimento do governo tido por legítimo, o mesmo acontecendo com as situações de tomada de reféns por grupos terroristas, especialmente no Magrebe Islâmico, no Sahel, no Corno de África e na Nigéria, e de pirataria na Somália. 4.2. Há, todavia, contraexemplos que também permitem claramente identificar os limites do Direito Internacional na aceitação desta figura. 4.2.1 A impossibilidade de as forças de resgate intervirem em disputas internas pelo poder entre o governo e fações beligerantes foi o resultado das situações que envolveram o Zaire, nomeadamente a operação belga em Stanleyville de 1964 e galobelga na província de Shaba em 1978. 4.2.2. Mais fortemente ainda retira-se a consequência de esta figura não poder ser usada como pretexto para intervenções hegemónicas ou geopolíticas se se analisarem as reações internacionais a argumentos utilizados pelos Estados Unidos para invadir a República Dominicana (1965), de Granada (1983) ou do Panamá (1989), ainda mais porque

em

tais

casos

gera-se

automática

desobediência

ao

requisito

da

proporcionalidade. 4.2.3. Muito menos permite que parte do território seja anexado ou que sequer seceder como resultado da operação de proteção de nacionais, o que se deriva da reação às recentes intervenções militares da Rússia na Geórgia, em 2008, e, mais recentemente, em 2014, na Crimeia, que, parcialmente, foram justificadas com o argumento de terem o propósito de protegerem nacionais russos em risco naqueles territórios por ação das autoridades de Tbilissi e Kiev, respetivamente. Todavia, o argumento foi objetivamente rejeitado e condenado por Estados terceiros e pela Assembleia Geral das Nações Unidas, atendendo a que, primeiro, muitos vínculos de nacionalidade eram fictícios, no sentido de que resultaram da distribuição de passaportes russos a pessoas com outra nacionalidade de origem sem que se pudesse considerá-la predominante perante a do país de residência e de uma analogia entre nacionalidade e língua em que os falantes de russo eram assimilados a cidadãos russos; segundo, porque, particularmente no caso da Crimeia, os factos não correspondiam a uma situação de violação ou ameaça de violação iminente de direitos básicos; e, sobretudo porque não se considerou que os desfechos das duas intervenções, a emancipação de facto da Ossétia do Sul e da

Abequazia e a anexação da Crimeia pela Rússia pudessem ser justificados como efeitos possíveis de tal tipo de intervenção. 4.3. As condições de invocação dessa base de legitimação que resultam da prática relevante são os pressupostos de situação de risco efetivo de privação arbitrária da vida, da integridade pessoal ou da liberdade de nacionais genuínos ou equiparados (na verdade, pessoas que possam adquirir a nacionalidade do Estado e que não tenham a do Estado objeto da intervenção) de um Estado em território estrangeiro e de autoria, cumplicidade ou incapacidade do Estado territorial de garantir a proteção desses bens jurídicos. Estando presentes tais elementos, o Estado de nacionalidade, depois de tentar resolver pacificamente o diferendo gerado à luz das obrigações decorrentes dos artigos 2 (3) e 33 da Carta, pode empreender uma intervenção cirúrgica com o objetivo estrito de resgatar os seus nacionais e repatriá-los, respeitando, na operação, o princípio da proporcionalidade, isto é, cuidando para que o mínimo de danos seja causado ao Estado territorial. Não pode, jamais, abranger a anexação de território, a promoção da sua independência ou ainda medidas que ultrapassem os limites do necessário para proceder à evacuação das pessoas ou resultar de vínculo de nacionalidade que tenha sido criado artificialmente pelo Estado que promove a intervenção. V – Apesar da semelhança, especialmente por ambas serem motivadas por finalidades humanitárias, e de já terem sido objeto de tratamento não-autónomo, há uma diferença de base entre a figura apresentada nesta entrada e as intervenções humanitárias unilaterais, que correspondem ao uso da força militar para proteger pessoas em situação de violação massiva de direitos pelo seu próprio Estado. Ela radica precisamente na ausência de vínculo de nacionalidade que marca as intervenções humanitárias unilaterais e o pressuposto da nacionalidade, elemento essencial do instituto do uso da força para proteger nacional em risco no estrangeiro. VI – No direito interno dos Estados, a possibilidade aberta pelo Direito Internacional de utilizar-se a força para resgatar nacionais no estrangeiro pode transformar-se, nalguns casos, numa obrigação ou, pelo menos, num dever de intensidade média, considerando outros fatores. A própria Constituição da República Portuguesa abre essa possibilidade quando no artigo 273 (2), prescreve que “a defesa nacional tem por objetivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, […] a liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”, vindo a Lei de Defesa Nacional prescrever no seu artigo 2º que “a salvaguarda da vida e dos interesses dos Portugueses constitui também interesse

nacional que o Estado defende num quadro autónomo e multilateral”. Note-se que este normativo ajusta-se igualmente ao artigo 43 do Tratado da União Europeia, o qual integra, dentre as missões passíveis de serem empreendidas pela União, as “missões humanitárias e de evacuação”. Referências bibliográficas DINSTEIN, Yoram, War, Aggression and Self-Defence, 5. Ed., Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2011, pp. 217-219. FORTEAU, Mathias, “Rescuing Nationals Abroad” in: WELLER, Marc (ed.), The Oxford Handbook of the Use of Force in International Law, Oxford, Oxford University Press, 2015, pp. 947-961 FRANCK, Thomas, Recourse to Force. State Action Against Threats and Armed Attacks, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2002, pp. 77-96. RONZITTI, Natalino, Rescuing Nationals Abroad Through Military Coertion and Intervention on Grounds of Humanity, Dordrecht, Martinus Nijhoff, 1985. WALDOCK, Claude Humphrey, “The Regulation of the Use of Force by Individual States in International Law”, Recueil des Cours de l’Académie de Droit International, t. 81, v. 2, 1952, pp. 455-514, 466-467.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.