\"Uso do conhecimento, incerteza e interacção no trabalho clínico dos veterinários\", in Telmo H. Caria (2005), Saber profissional (pp.197-232). Coimbra: Almedina

Share Embed


Descrição do Produto

Capítulo 6 Uso do conhecimento, incerteza e interacção no trabalho clínico dos veterinários

Telmo H. Caria Este capítulo trata do trabalho clínico dos médicos veterinários. Trata-se da análise de uma actividade que está no centro da discussão sobre as formas sociais de profissionalismo, dado referir-se a um grupo e a um contexto de trabalho, que, historicamente, emergem como uma especialização da medicina, uma das ocupações mais utilizadas pela sociologia como idealtipo do profissionalismo. Esta análise é desenvolvida a partir de três tópicos, a saber, por ordem de apresentação: como é que os veterinários recontextualizam o conhecimento abstracto adquirido nos seus cursos universitários? Como é que os veterinários entendem e lidam com a incerteza no trabalho clínico? Como é que a interacção com clientes medeia o uso do conhecimento? 6.1. Problemática e hipóteses No primeiro e segundo capítulos deste livro, clarificámos que o nosso entendimento sobre o trabalho técnico-intelectual não o reduzia a uma lógica técnico-instrumental. Na argumentação desenvolvida, tanto teórica como empírica, referimos que: (1) na acção profissional estavam inscritos valores e orientações morais que faziam com que os contextos de interacção com “o outro” (decisor ou cliente) não pudessem ser desvalorizados ou inibidos; (2) os conhecimentos mobilizados estavam longe de serem uma mera aplicação da ciência adquirida na educação formal, obrigando a operações sócio-cognitivas de recontextualização profissional do conhecimento; (3) a autonomia em contexto de trabalho implicava o desenvolvimento de uma reflexividade profissional própria, que soubesse lidar com a incerteza no/do uso do conhecimento, isto é, o conhecimento pericial do profissional-técnico sobre regras e recursos implica que a interpretação e explicação do real não pressuponha que este é sempre estável e que os resultados da intervenção serão sempre os esperados e os certos. No que se refere à recontextualização do conhecimento, argumentámos, baseados principalmente em Basil Bernstein (1990) e Donald Shon (1998), que a reflexividade profissional não se traduz num mero exercício de aplicação do conhecimento produzido nos campos científicos e universitários. A reflexividade profissional exige operações de tradução do conhecimento abstracto e científico, produzido institucionalmente, associadas à 1

espistemologia prática do profissional que tem que lidar, de modo autónomo e não determinado pela hierarquia académica, com as exigências de contextos de interacção heterogéneos. Argumentámos, ainda, no que se refere à autonomia profissional e à interacção social profissional-leigo, que o uso do conhecimento abstracto nas nossas sociedades tem uma historicidade própria que implica uma pluralidade de identificações e culturas profissionais que não excluem a racionalidade técnico-instrumental como realidade actual e que podem, ainda, assumir várias formas de uso do conhecimento, designadamente a referida por Giddens (com Beck e Lash, 1994) de (1) relação social de conhecimento pós-tradicional, na qual a ciência assume formas e usos dogmáticos e desenvolve crenças míticas sobre as suas virtualidades sociais, implicando os leigos em relações de confiança-fé. Existirão, ainda, outras formas de uso do conhecimento, as que detalhamos no capítulo 1: (2) as formas de uso estritamente instrumental, que desvalorizam os contextos e as condições em que o conhecimento e ciência são utilizados, dado pressupor-se que estes são gerais e neutrais; (3) as formas de uso do conhecimento e da ciência, embrionárias, abertas à reflexividade social dos leigos e à decisão política em interacção com os não profissionais, envolvendo relações de co-responsabilização e/ou de aprendizagem mútua (confiança-partilha, v. Caria, 2002a: 824-826). Poderemos afirmar, por um lado, que existem, em termos hipotéticos, três formas de uso do conhecimento (três tipos de relação social com o conhecimento), a saber1: a forma póstradicional (FPT), a forma moderna-intrumental (FMI) e a forma moderna-reflexiva (FMR). Estes formatos de uso do conhecimento são considerados por nós como equivalentes ou aproximados às formas de uso da cultura que encontrámos na investigação etnográfica com professores e a que nos referimos no capítulo 2. Por outro lado, poderemos ainda afirmar que estes três formatos podem ter, em termos hipotéticos, relações significativas com as formas de actualização destas relações sociais na interacção entre profissionais e leigos. São estes dois tipos de hipóteses que procuraremos documentar e esclarecer no ponto 6.3. deste capítulo.

1

Não referimos uma eventual "forma tradicional", porque esta tende a não usar a ciência como recurso simbólico.

2

6.2. Metodologia e amostra inquirida 6.2.1. uma investigação como processo educativo O conteúdo deste capítulo tem por base os dados recolhidos em entrevistas semi-estruturadas, os quais consubstanciam os resultados de um dos estudos do projecto de investigação Reprofor2. Será importante destacar o facto dos entrevistadores seleccionados para a realização deste estudo terem características bem particulares: tratava-se de alunos finalistas de um Curso de Medicina Veterinária que frequentavam uma disciplina de Sociologia e Deontologia da Medicina Veterinária. No modo como esta disciplina estava organizada era possível aos alunos, que desejassem, realizarem e analisarem entrevistas a futuros colegas de profissão, sendo para isso convidados a elaborarem um guião de entrevista que fosse ao encontro dos objectivos do programa da disciplina. O guião não era por nós fornecido à partida, apenas indicávamos os temas que considerávamos necessários e que resultavam directamente dos conhecimentos que eram leccionados. Em consequência, por um lado, os alunos sentiam-se convidados a darem contribuições originais (pelo conhecimento que já tinham sobre o meio profissional) para encontrar “boas perguntas” que servissem cada um dos temas em estudo. Por outro lado, este modo de organizar os guiões fez com que estes não fossem completamente iguais de ano para ano lectivo e de aluno para aluno. No entanto, os guiões de entrevista utilizados tiveram sempre questões comuns e algumas exactamente iguais em três aspectos: (1) dificuldades de formação sentidas no início da profissão - problema teórico relativo à recontextualização profissional da ciência; (2) dúvidas e dilemas na formulação de diagnósticos e terapias – problema teórico relativo à incerteza no uso do conhecimento/ciência; (3) modalidades de interacção com a heterogeneidade de clientes – problema da contextualização da reflexividade profissional com não profissionais. Mas os propósitos educativos não estiveram só do nosso lado, como responsáveis pela disciplina do curso. Estiveram também do lado dos veterinários entrevistados porque, para além de serem voluntários, eram convidados a falar, a relatar e a apreciar situações-problema do seu quotidiano para pessoas que viriam a ser profissionais como eles. O relato que a maioria dos alunos nos fez do ambiente da entrevista leva-nos a crer que os entrevistados 2

Em anexo VII.2 poderão são identificados os 18 entrevistados.

3

sentiam-se implicitamente convocados a “ensinar” aos mais novos o que tinham aprendido no terreno da profissão. Desta forma, os veterinários mais velhos acabavam por estar a antecipar a educação não formal dos seus pares mais novos, embora através de uma relação que era mediada pela Universidade e que portanto seleccionava, implicitamente, o universo da informação mobilizável para o escrito (relativo ao relatório realizado pelos alunos para a disciplina) às interrogações e respostas consideradas legítimas do exercício da profissão. Em conclusão, este enquadramento legitimador e educativo decorrente das condições de entrevista leva-nos a considerar que: (1) o conhecimento mobilizado para as entrevistas está centrado nos processos de recontextualização profissional do conhecimento abstracto e científico transmitido pela Universidade (e não tanto nos processos de transferência e explicitação de saberes tácitos aprendidos pela experiência colectiva inter-contextual3) (2) e em consequência são explicitadas identificações e culturas profissionais na medicina veterinária, dado estarmos em presença de discursos que resultam de relações sociais entre pares da mesma profissão. 6.2.2. trajectórias e contextos de trabalho clínico Para as finalidades deste livro, utilizamos como dados o conteúdo de dezoito entrevistas com médicos veterinários, todos com pelo menos três anos de experiência profissional clínica. O anexo VI.2

resume a informação disponível relativa às trajectórias profissionais dos

inquiridos. Verificámos que: (1) a amostra seleccionada é equilibrada, porque, nas variáveis sexo e antiguidade na profissão, as duas categorias consideradas para cada variável têm frequências de 45% a 55%; (2) a frequência de inquiridos do sexo feminino apresenta uma maior concentração junto dos mais novos na profissão, junto daqueles que trabalham no sector clínico dos pequenos animais e junto dos profissionais que trabalham em meios sociais urbanos no litoral do país, enquanto que nos inquiridos do sexo masculino ocorre o inverso; (3) a frequência de inquiridos mais novos na profissão apresenta uma maior concentração junto daqueles que têm uma menor diversidade de sectores em que trabalham e junto daqueles que trabalham no sector clínico dos pequenos animais, enquanto que nos inquiridos mais velhos na profissão ocorre o inverso. Estas tendências são coerentes com o processo histórico de desenvolvimento desta profissão 3

Como mostrámos noutro trabalho, a reflexividade profissional desenvolve-se em dois movimentos mais ou menos articulados: a recontextualização do conhecimento abstracto na interacção social; a transferência dos saberes experienciais entre vários contextos de acção. v. Caria, 2003a.

4

na última década em Portugal, a saber: uma progressiva, embora lenta, feminização acompanhada por uma concentração

da procura de serviços

veterinários clínicos nos

pequenos animais domésticos e de companhia, típica dos meios urbanos. Este novo tipo de procura social da veterinária médica (contrariamente ao que existia por tradição, no meio rural e relativa a grandes animais e a explorações pecuárias) tende a ser muito mais escolarizada e a conter uma maior heterogeneidade social e animal. Factos que admitimos poderão ter um efeito relevante nas formas de uso do conhecimento e da ciência, atrás formuladas. 6.3. O contexto de trabalho clínico em veterinária 6.3.1. Da insegurança inicial à recontextualização profissional do conhecimento Colocar questões sobre a incerteza clínica a veterinários com experiência profissional quando os seus interlocutores são finalistas do seu próprio curso, teve uma consequência muito evidente: a incerteza clínica, enquanto questionamento do conhecimento aplicável, é rapidamente confundida com a insegurança psicológica de principiante. Aliás, quando iniciámos há 8 anos atrás o trabalho pedagógico com alunos finalistas de veterinária ficou desde logo para nós muito claro que para estes a noção de "incerteza", no seu futuro trabalho a curto prazo, era confundida com insegurança pessoal no desempenho do papel. A minha primeira consulta foi uma vacina. Estava muito, muito nervosa. A minha voz tremia muito. Mas não correu mal. Consegui dar a vacina ao animal. No início é principalmente uma questão de auto-confiança de principiante e mais que tudo na conversação com os clientes, nem tanto na parte veterinária. Tive algumas dificuldades óbvias no início da carreira, mas mais que tudo na maneira de abordar o cliente. (…)- O à-vontade, o à-vontade nas consultas mudou muito; e é isso que nos dá auto-confiança.. [Entrevista nº6] É um bocado angustiante a primeira consulta. Lembro-me que foi um cãozito, por acaso. Já não me lembro do que é que ele tinha. Mas sei que na altura não fazia a mínima ideia, realmente, do que é que se poderia passar com ele. E foi mesmo assim por tentativa e erro. Não foi nada de especial mas foi complicado. E estava super nervosa. (…) Parece que sais da Universidade e não sabes nada. E pensas, afinal o que andámos nós ali a fazer? Porque não sabemos? [Entrevista nº8] Lembro-me que a minha dificuldade foi em assumir a responsabilidade perante a situação. Já tinha visto aquele caso montes de vezes e aquelas situações. Quando estava com o orientador, eu pensava: "outra vez uma vaca com a mesma coisa!"; nem ligávamos. Pensava que quando fosse eu, já sabia o que fazer. E depois na altura é completamente diferente. Nós temos a responsabilidade e temos que saber se estamos ou não preparados para a situação. (…) No início, lembro-me perfeitamente, de pensar: “E se me chamam para fazer alguma coisa que eu não sei, que não sei fazer". Agora estou à vontade, chamam-me para o que chamarem, não estou a pensar “se calhar vão-me chamar para uma coisa que eu não sei fazer". Agora sinto confiança para todas as situações. (…) Já não há medo!. [Entrevista nº7]

Apesar desta relativa sobreposição de sentidos, algumas entrevistas foram particularmente clarificadoras quanto aos vários aspectos que estarão em causa no início da carreira. (…) incertezas no início da profissão… Incertezas não era bem, não lhe chamaria assim. Havia naturalmente algumas, porque, é claro, que quando se acaba um curso não se tem uma prática objectiva e por isso temos sempre algumas dúvidas que a pouco e pouco vão sendo dissipadas (…) eu chamar-lhe-ia alguma insegurança,

5

não incerteza. Reconheço e lembro-me de alguma insegurança no momento de decidir qual era eventualmente o diagnóstico ou qual era o diagnóstico certo. Insegurança portanto, porque as incertezas não me parece que me tivessem assolado muito no início. [Entrevista nº4] O medo é uma das incertezas grandes. É o medo de uma pessoa fazer mal ou não fazer tão bem nos actos clínicos... isso não devido ao facto de uma pessoa não saber o que está a fazer mas há falta de pratica e há falta de à-vontade com que qualquer profissional se depara quando começa a vida prática. E o outro grande problema, que faz com que haja incerteza na nossa atitude inicial, é sentirmos uma certa falta de confiança por parte do cliente… pensando que ele está a achar que somos somos muito novinhos e que se calhar não sabemos o que estamos a fazer . São estes os três grandes factores que geram a incerteza: o medo de falhar, a necessidade de haver uma relação do conhecimento prático com o conhecimento teórico e falta de confiança com que muitas vezes uma pessoa se depara. [Entrevista nº1]

O modo como cada iniciante se vê e se posiciona no desempenho do papel, em especial na interacção com os clientes e com os animais, não parece que lhe dê muito "espaço" para pensar os processos de recontextualização do conhecimento, de um modo independente dos factores relacionais em presença. No entanto, quando os alunos entrevistadores pediam para comparar as diferenças entre o início da carreira e o momento actual e quando questionavam o facto do desempenho profissional poder ser apenas uma questão de auto-confiança, as respostas foram claras: Não é só auto-confiança. É também aquela sensação de que a formação prática que temos, quando estamos a estudar, falha um bocado. Aquela prática não é a que nos aparece todos os dias. Fomos aprendendo, mais ou menos, mas há algo em falha. Ficamos com a sensação que saímos da Universidade mas… e agora, perguntas-te, o que é que eu faço?. [Entrevista nº8] (…) à medida que se vai avançando na carreira, as incertezas básicas, digamos assim, desaparecem. Não saber quando se devia repetir uma vacina e com que periodicidade se devia fazer uma desparasitação, são coisas corriqueiras e básicas que surgiam como dúvidas do início. Essas incertezas desapareceram, mas entretanto surgem outras que tem que ver com situações muito complicadas. [Entrevista nº18] No início comecei a ganhar experiência com os animais, indo para clínicas antes mesmo de estar com o curso terminado. Ia a clínicas como estagiária no fundo. E havia imensas dúvidas, quer dizer, olhava para um RX, não conseguia interpretar um RX. Não sabia segurar um animal, não sabia fazer limpeza dos ouvidos de um animal. E tudo isso se vai adquirindo. E à medida que os anos passam é claro, que se chega a um ponto que é dado, já conseguimos fazer isto de olhos fechados. [Entrevista nº16] As incertezas de início de carreira incidiam em coisas muito simples e muito básicas, e mesmo aquelas incertezas de como nos comportarmos frente a um proprietário, ou aquelas coisas quase ilógicas de acharmos que estamos a ver avaliadas por sermos muito inexperientes. Agora não, as incertezas são um bocadinho mais profundas, já vamos chegar mais ao cerne da questão: ao diagnóstico em si. [Entrevista nº13] Claro que as incertezas são menores hoje em dia porque no início da carreira há falta de experiência e estamos pouco sensibilizados na forma de nos aproximarmos do animal e sabermos aquilo que devemos procurar perante os sintomas que são apresentados. Por outro lado a maneira como nos apresentamos ao animal e a maneira como fazemos a colheita dos sintomas é muito mais fácil do que no início da carreira. [Entrevista nº17]

As respostas dos inquiridos mais experientes indicam-nos que, a pouco e pouco, as questões do uso do conhecimento científico em contexto de trabalho clínico tornam-se cada vez mais prementes à medida que a carreira se vai desenvolvendo. A procura de um diagnóstico válido e de uma terapia fiável emergem como as questões centrais, ainda que as dimensões

6

relacionais continuem a coexistir. (…) as incertezas eram muitas e foram quase todos os dias mas para isso a melhor maneira de as ultrapassar era fazer o tratamento do animal, em casa estudar o caso e depois ir lá um ou dois dias depois ver se o animal estava melhor ou pior. Muitas vezes era com os erros, que ia cometendo, que ia aprendendo. [Entrevista nº2] Lembro-me de uma vez, logo no início. Entrou um animal que tinha sido atropelado e o maior problema naquele animal era não conseguir pô-lo a soro. Para mim o soro era vital para o animal e não conseguia desenvolver mais nada. O meu factor de incerteza era o que é que tinha que fazer a seguir. Se não o conseguisse meter o soro… e será que ia resolver se lhe desse antes o soro subcutâneo. Para mim o soro era o mais importante, porque estava em choque e eu tinha que fazer aquela coisa. Depois aprendi que mais vale ter calma e que há mais coisas para pensar, que são tão ou mais importantes, para conseguir arranjar outras alternativas. Se calhar, agora, a minha incerteza deixou de ser se tenho ou não de pôr a soro, para ser a parte mais final do tratamento: se calhar a coisa mais complicadas agora é saber quando é que devemos parar com o tratamento ou devemos optar por outro ou, se calhar, ter prioridades diferentes. [Entrevista nº13] [Comparando o início com o que se passa hoje posso dizer que ] Muda a maneira de estar, a maneira de ser, a maneira de encarar os clientes. A gente também vai conhecendo melhor os clientes, vamos conhecendo melhor certos problemas, certas doenças e ficamos mais à vontade. Não há nada como a experiência! [Entrevista nº11]

Mais especificamente, no que se refere à avaliação que fazem da educação formal que tiveram, os inquirido põem em evidência o contínuo vai-vem entre a prática e os livros. [o balanço que se pode fazer da formação inicial que tivemos] depende muito de como a aproveitamos. Para mim, ajudou-me. Não vou dizer que foram os conhecimentos que eu tive que fizeram com que eu conseguisse encarar determinadas situações. Agora, o que é lógico é que temos muita informação. Há aquelas coisas que ficam, aquelas coisas básicas que nos martelam tantas vezes que acabam por entrar, mas o que aprendes é aonde vais buscar e que essa informação existe. Há como que um ecozinho cá dentro que diz, quando aparece algo que te diz, “eu sei que havia uma coisa mais específica”, e então tu vais procurar e ver realmente aqueles sintomas que têm a ver com aquela patologia. Tu sabes que tens onde procurar e aprendes o sítio onde tens de procurar. E tens a formação base: a fisiologia, a citologia, aquilo que parece que não serve no início e que é a base de tudo. Com aquilo conseguimos ler os livros e desenvolver raciocínios em muitas direcções. [Entrevista nº13] (…) sempre estudar, sempre ir ver. Nós não saímos de lá [Universidade] a saber tudo. Damos uma consulta ou estamos em qualquer acto e o que não sabemos na altura temos que ir consultar livros. Principalmente aprendemos a consultar livros e a saber onde as coisas estão e é mais fácil depois. [Entrevista nº8] O curso, basicamente, não nos ensina a ser Veterinários. Dá-te as bases, ou melhor, diz-te como é que tu deves estudar para tu praticares a tua profissão. (…) Ensina-te a estudar [e isso permite que te informes]. Eu se tenho um determinado caso, em que tenho dúvidas, informo-me em livros, revistas, com colegas com mais experiência. Depois de ler tudo isto vou tentar aplicar o que vem lá, por exemplo determinados tipos de meios de diagnóstico que posso fazer para me ajudar. [Entrevista nº14) A nossa formação académica dá-nos só as bases para a gente ter os conhecimentos científicos, saber explicar as situações, saber porque é que ocorrem, saber porque é que aquele sintoma apareceu. Depois esse conhecimento que é transmitido na faculdade é consolidado ao longo do tempo com a actividade no campo, no dia-a-dia, com a aplicação de determinadas terapêuticas, vendo se resultam ou não... Tem que se estudar, porque quando aparecem os casos clínicos um indivíduo faz um tratamento que nos parece correcto. Mas depois temos de procurar não ficar por aí, saber se realmente esse tratamento foi o correcto e se faltou alguma coisa, o que podes melhorar nas tuas atitudes perante outros casos. Assim, tens que estar sempre a estudar, a arranjar novos conhecimentos, actualização, novas terapêuticas que vão surgindo diariamente. [Entrevista nº18]

Nas várias respostas relativas às comparações entre o início da carreira e o hoje ou relativas à avaliação que fazem sobre a educação formal que tiveram, os inquiridos destacam operações cognitivas e comportamentos que dão conta dos processos de recontextualização do

7

conhecimento científico. Há um livro muito abrangente que é o manual de […] e eu na altura, como não tinha hipótese de levar todos os livros no carro, levava sempre pelo menos este manual […] e depois de um caso clínico ia sempre ver ao livro se tinha feito bem; pelo menos se os tratamentos os tinha feito bem ou não.[Entrevista nº2) Quando saímos da faculdade acho que temos muito pouca prática; pouca prática de conclusão de diagnósticos. Temos uma boa bagagem de elementos teóricos (…) mas é tanta matéria que é natural que a informação não esteja completamente definida. E eu acho que esse foi o problema maior quando comecei a trabalhar. Era necessário abstrair de todo aquele potencial de informação que tínhamos adquirido nas outras coisas todas e focar só na clinica, […] e agora só vamos trabalhar com uma ou duas coisas. No início resolvia os casos mas ao mesmo tempo ia fazendo revisões sobre a matéria: fazia restrições, voltava a estudar, voltava a programar, voltava a fazer os mesmos resumos. Procurava ficar a perceber o que era mais importante e o que era secundário, conforme os casos me iam surgindo.. [Entrevista nº4) Hoje, mudou principalmente a maneira de abordar os casos. Ou seja, no inicio nós temos uma tendência um pouco atabalhoada de fazer o diagnóstico ou de procurar os indícios clínicos da doença. Não sabemos muito bem, apesar de nos terem ensinado, não sabemos muito bem qual a importância a dar a cada sinal. Com o tempo aprende-se a determinar o que é realmente importante e o que não é. E para além disso, o que mudou foi também, claro, a própria auto-estima, a facilidade de comunicação com os clientes e a facilidade de obter informação dos clientes e a não duvidar dos nossos próprios diagnósticos; coisa que no início temos sempre um pouco tendência a fazer e a ter que recorrer a colegas mais velhos e com mais experiência a perguntar, se fosse aquele caso com eles, se eles fariam o mesmo que nós fizemos, etc. [Entrevista nº10] Quando a gente tem falta de experiência e aparece um caso mais complicado, quase nunca se consegue no início (se não se teve uma situação daquelas) ver todo o quadro global; todo o tipo de diagnósticos possíveis. Então vai-se para aquele que nos parece mais evidente (…) Aplica-se um tratamento restrito e acaba, se calhar, por não se atingir o objectivo terapêutico, pois não se tratou o que de facto o animal tinha. [Entrevista nº18]

Em conclusão, à medida que o processo de profissionalização se desenvolve, através da experiência no terreno, o médico veterinário deixa de estar centrado apenas nas questões comportamentais e relacionais para passar a preocupar-se cada vez mais com as operações e usos que dará ao conhecimento científico. Assim, a incerteza no trabalho clínico começa por ser uma questão de insegurança para encontrar um "bom interagir" e para se conseguir lembrar, no momento certo e oportuno, da informação básica e elementar que se pode aplicar às solicitações que vão sendo apresentadas. Trata-se de um saber-estar implícito e intuitivo, apto a ligar com o contexto da consulta médica nos seus próprios termos, e que está ainda numa situação de reacção face ao que acontece, sem que o veterinário tome iniciativas próprias. É uma nova aprendizagem, completamente exterior à universitária, que procura o sentido contextual da profissionalidade clínica. Só quando este saber-estar deixa de ser tão premente4, e a insegurança pessoal está mais controlada, é que se começa, verdadeiramente, a desenvolver o saber-pensar profissional, isto é, começa-se a entender o sentido estratégico (terapias) e o sentido explicativo (diagnósticos) do conhecimento científico utilizado, sem que este seja apenas uma questão de deter mais

8

informação ou de mera aplicação5. Então põe-se mãos à obra para "rever a matéria": não só relembrá-la, como já se ia fazendo, mas principalmente reorganizá-la para necessidades de uso que já não são estritamente académicas. O conhecimento adquirido em contexto universitário é reorientado e selecccionado para o contexto da consulta médica, sempre filtrado pelo domínio que entretanto já se conseguiu sobre a interacção social na consulta médica. Só neste momento é que os dois contextos de aprendizagem são postos em diálogo bilateral e, portanto, só então poderemos dizer que estamos em presença de processos de recontextualização profissional do conhecimento. Inicialmente as principais incertezas eram se algum dia conseguiria chegar lá; se conseguiria resolver os casos. Neste momento, as incertezas que possa ter, são incertezas que tentam determinar quais são os nossos limites e até que ponto é que eu consigo fazer algo mais, que não se faça ou que se faça pouco na nossa profissão. [Entrevista nº15] (…) é obvio que há uma coisa que fazia e que agora não faço. Eu antigamente era capaz de estar dez minutos na conversa com eles, antes de ver qualquer coisa lá na vaca (…) Actualmente incluo muito mais essa conversa durante o exame clínico: estou a fazer o exame clínico e pergunto-lhe, então e isto, então e aquilo e então mais aquilo e mais aquele outro. Ou seja, para não perder muito tempo e para enquadrar tudo junto, enquanto faço exame clínico vou-lhe perguntando, então não come há quantos dias, então e o que é que come e o que é que não come, está a dar leite ou não está, baixou a produção ou não baixou ....; enquanto estás a ver a febre, estás a ver os movimentos respiratórios; enquanto vês tudo, as mucosas e essa coisa toda, pões a vaca de patas para o ar e vais-lhe perguntando mais isto, mais aquilo. E assim é muito mais fácil. [Entrevista nº2]6

Mas as procuras e as interrogações relativas ao uso do conhecimento podem ser de vários tipos, nem sempre extensivas de igual modo a todos os veterinários. É esta heterogeneidade dentro da profissão, relativa a identificações e culturas variadas, que procuraremos dar conta a seguir nas próximas secções. 6.3.2.Formatos de recontextualização profissional do conhecimento No início deste capítulo colocámos algumas hipóteses sobre as formas de uso do conhecimento. Este olhar para os usos do conhecimento implica que existirão modalidades diferenciadas de recontextualização profissional do mesmo. Assim, poderemos interrogar-nos sobre o que acorre, de acordo com os nossos inquiridos, depois de se atingir um certo nível de auto-confiança na profissão. Depois de deixarem de ser principiantes no trabalho clínico veterinário, do pânico e da ansiedade terem desaparecido, como é que se caracterizaria o quotidiano dos médicos veterinários? (…) reforça-se a autoconfiança ao longo do tempo. Mas a clínica é um pouco rotineira, depois. Os casos no dia4

No capítulo 4, Fernando Pereira designa este saber-estar como sentido contextual-relacional do uso do conhecimento. 5 Sobre os conceitos de sentidos contextual, técnico-estratégico e interpretativo-justificativo, aplicados em geral aos grupos profissionais, v. Caria, 2003a: 2004; 2005. 6 No capítulo 4, Fernando Pereira identificar o mesmo tipo de saber profissional junto dos engenheiros agrários.

9

a-dia repetem-se muitas vezes e nós começamos a conseguir dominá-los totalmente, embora haja sempre um ou outro que exija maior estudo. Agora as situações de pânico já são pouco frequentes [Entrevista nº9] Eu, hoje, normalmente já parto com a segurança e com a certeza que conseguirei resolver os casos e para as dificuldades que possam aparecer tenho, entretanto, outra postura. Quer dizer, já não fico tão nervoso e já não penso que poderei pôr a carreira em jogo por ter de corrigir uma ou outra anomalia. [Entrevista nº4]

Rotinas e certezas são algumas das respostas que os inquiridos nos dão. Estes discursos levam-nos a pensar que, para uma parte dos veterinários, quando a insegurança desaparece, ela implica o fim da incerteza na prática clínica. Mas verificámos que há outros, pelo contrário, que continuam a falar-nos da incerteza em novos termos. Assim, importa clarificar os diferentes princípios discursivos em que se baseiam as identificações profissionais dos veterinários experientes quando estão em condições de centrar a sua reflexividade profissional na recontextualização do conhecimento. Vejamos, em primeiro lugar, os que consideram que a incerteza clínica tende a desaparecer com a segurança profissional. (…) todos nós possuímos uma capacidade maior ou menor para ser clínicos, ou para ser outra coisa qualquer. Há uma intuição primária quando se faz diagnósticos clínicos; é uma intuição que cada um de nós possui sempre assente na capacidade e na informação que nós adquirimos não só na faculdade como também na prática recorrente (…). A minha primeira impressão normalmente é a mais certa e se eu rebuscar muito em torno de informação, se calhar vou ter cada vez mais dúvidas e posso optar por um diagnóstico que não é o mais correcto. Em toda esta minha prática clínica eu tenho dito que a minha intuição, o primeiro olhar sobre o animal, mesmo sem ter grandes observações acaba por ser aquele que me conduz ao diagnóstico mais correcto (…) posso pedir pareceres, posso pedir a opinião de imensas pessoas, mas o meu primeiro diagnóstico é sempre aquele que me dá mais força e normalmente é aquele que está mais certo. [Entrevista nº4] Eu acho que há pessoas que nascem já com olho clínico. Há coisas que passam despercebidas, mas há alguém que tem este chamado "olho clínico", ou vocação ou orientação, que nasce consigo, e que é natural nas pessoas. Acho que isso está presente no início e que nunca morre e é isso que nos resolve as incertezas (…) as pessoas talvez possam relaxar mais um bocado e deixar-se levar pela rotina de trabalho; aquilo a que estão habituados a fazer. E afinal, não é, porque há qualquer coisa que é diferente e a pessoa, na altura não notou, relaxou um bocado mas o seu olho clínico, se o tiver, fá-la despertar e não cometer o erro. [Entrevista nº8] Mas uma coisa que eu digo e que ouvi de um professor nosso, por quem tenho muita consideração, “é melhor o maior erro com convicção do que a maior certeza sem ela”. Ou seja, eu posso muitas vezes não ter a certeza do que estou a fazer mas é preferível eu no momento agir e fazer o que julgo que está certo, mesmo que mais tarde venha a saber que aquilo está mal, do que, ter a certeza daquilo que havia de fazer, e não ter coragem para o fazer (…). No entanto, como em tudo na vida é preciso muita humildade, não ser arrogante. Mas eu julgo que na nossa profissão é preciso ser humilde connosco próprios e cuidar da forma como mostramos essas fraquezas. Chamar-lhe-ia não tanto assim incertezas, porque muitas vezes nós sabemos o que havemos de fazer mas fraquejamos e temos dúvidas. Acaba por não ser propriamente uma incerteza (…) é sempre necessário optar e agir. Julgo que é preciso guiar-nos pelos nossos instintos e ter coragem. [Entrevista nº1]

Vocação, instinto natural e coragem, são três princípios de organização do discurso que caracterizariam o bom e experiente profissional. Características que lhe dariam certezas, ou pelo menos fortes convicções, para enfrentar as situações-problema mais difíceis e urgentes, mesmo quando pelos hábitos e rotinas se possa estar menos atento aos pormenores. Assim, a habilidade profissional, designada no jargão da profissão como "olho clínico", é apenas função da personalidade de cada um. Para estes veterinários

10

a incerteza no uso do

conhecimento, em função do caso e do contexto social e físico em que se insere o animal, tende a tornar-se irrelevante para entender o quotidiano do dia-a-dia profissional, desde que se tenha o olho clínico suficientemente apurado. Inversamente, a lógica do raciocínio pode levar-nos a pensar que para estes a incerteza clínica é apanágio dos que não têm suficiente instinto e auto-confiança profissionais. Vejamos, de seguida, os discursos dos inquiridos nos quais a incerteza se mantém para todo o sempre, mesmo quando há já uma grande segurança profissional. As incertezas nunca são ultrapassadas porque há doenças e medicamentos novos. Ficamos com dúvidas, se não teríamos uma resposta mais rápida se tivéssemos aplicado outro tratamento. Às vezes fazemos os mesmos tratamentos e uma vaca não reage. Cada animal é um animal, cada organismo é um organismo, pelo que não podemos dizer que para tratar uma mamite por […] se faz sempre de certa maneira. Nem todas as vacas reagem da mesma maneira ao medicamento. [Entrevista nº12] No diagnóstico, e principalmente no diagnóstico, os meus motivos mais frequentes de incerteza são uma difícil anamnese. Quer dizer, o facto de eu não ter informação por parte dos proprietários dos animais faz com que eu não consiga definir um diagnóstico como queria. […] É raro o dia, em que se faça várias consultas, que não apareça pelo menos um cliente que nos diga só que o cão está a vomitar, ou o cão tem diarreia, ou o cão hoje não comeu; e não nos consiga dizer mais nada. Às vezes nem diz se vomita, ou se tem diarreia; não diz nada, só diz que acha que o cão está triste e não come e a partir daí temos que tentar chegar a um diagnóstico. É claro que se ultrapassada esta fase , já depois de termos feito o exame clínico e de termos conseguido recolher alguma coisa da parte do proprietário, passamos à fase dos diagnósticos diferenciais. Aí voltam as incertezas, porque existem muitas causas para um ou dois sintomas. E nós, às vezes, também nos questionamos se realmente não haverá outro diagnóstico, alguma coisa que nos esteja a falhar e que nós não estamos a pensar. Acaba por ser o conhecimento que nos faz ter muitas incertezas. O facto de estarmos alertados para muitas possibilidades. [Entrevista nº13] […] nós sentimos sempre que por muito pouco que a gente saiba, sabemos sempre mais que o cliente e que ele, à partida, vai confiar naquilo que nós fizermos. Agora aquilo que eu acho importante é, independentemente de nós por vezes termos alguma dúvida, que tentemos chegar a uma conclusão relativamente correcta no início e logo a seguir comprovar esse diagnóstico, estudando e seguindo o animal de perto. Nem que se tenha que falar com o dono, telefonar e perguntar como é que o animal evoluiu para, se for necessário, alterar a medicação ou fazer novos exames. [Entrevista nº10] […] hoje em dia já me passou a ambição do conhecimento clínico ou está muito atenuado face ao exercício algo rotineiro da minha clínica. Mas, incertezas existem sempre. Às vezes deparo-me com situações que, à partida, faço-lhes um diagnostico e no minuto seguinte estou-me a interrogar se não devia ter pensado noutra hipótese (…)[Entrevista nº3] Outra causa da incerteza clínica, às vezes, é a própria maneira de ser das pessoas que têm incerteza em tudo. (…) O grande problema da Veterinária é a falta de especializações e de investigação, que nos permita ter uma base mais ampla de conhecimentos. (…) Hoje, contrariamente ao que pensava que me pudesse acontecer, tenho mais incertezas do que quando comecei. Tinha uma certa ilusão de que com o conhecimento que possuía tudo se resolvia. Mas não, como dizia, falta muita investigação especializada. [Entrevista nº15]

Os discursos parecem ser bem claros quanto à sequência das operações cognitivas que se seguem ao ganho de auto-confiança: obter informação fidedigna e pormenorizada do cliente sobre o animal; realizar diagnósticos diferenciais face à complexidade das patologias e estar atento à singularidade de cada animal nas reacções às terapias. Mas para além disto, há dois aspectos que concorrem para o efeito desejado: saber se existe conhecimento científico

11

disponível para o caso e, principalmente, ter uma atitude de procura e de investigação clínica continuada. A ideia central parece ser a de que a educação formal científico-técnica em veterinária não chega para o desempenho profissional experiente, porque a complexidade do trabalho clínico faz com que o conhecimento científico esteja aquém do necessário. Face a este desfasamento a "maneira de ser" do médico veterinário conta, porque uma atitude de investigação clínica (serão os que têm incerteza em tudo?) pode ser determinante para não se cair na rotina do banal, do típico e do já conhecido. Para mim a rotina não me mata o “olho clínico”, porque quando estou a entrar em rotina, eu preciso de quebrála. E para a quebrar eu tenho de inovar qualquer coisa. E para inovar o que é que podemos fazer numa consulta? É pesquisar um bocadinho mais e não nos deixarmos cair na rotina em determinadas coisas (…) Uma pessoa que gosta do que faz tem necessidade de quebrar a rotina e de estar mais atenta. Porque se nós temos a rotina de ver não sei quantos animais por dia com uma determinada sintomatologia também temos alguma probabilidade de encontrar casos não rotineiros. Então o nosso “olho clínico” aí vai funcionar, porque estamos à procura exactamente do que é diferente nestes animais. [Entrevista nº13] Às vezes nós trabalhamos todos os dias, vemos animais todos os dias, e ganhamos certos vícios em certas terapêuticas. E muitas vezes também nos falta tempo para estudar, para lermos artigos novos. E eu falo por mim, não quero cair no erro de daqui por cinco anos estar a trabalhar exactamente da mesma maneira que estou a trabalhar agora, como muitos que conheço fazem. Mas tenho a sensação que pode acontecer isso, mesmo que não queira. [Entrevista nº6]

Portanto, ter e persistir numa atitude de investigação clínica (uma outra forma de falar do “olho clínico”) é algo que parece nem sempre acontecer, especialmente se se conota a incerteza clínica com uma questão de erro ou falha e se tende a imputar ao cliente a quase exclusiva responsabilidade da situação. Os extractos discursivos que se seguem põem em evidência o modo como se entende a continuação das incertezas: dizem que elas diminuem, remetendo-as para a falta de meios, para as falhas dos clientes e para os vícios provocados pelas rotinas de procedimento clínico, e não tanto para a complexidade do acto clínico face ao conhecimento científico produzido. A incerteza... muitas vezes não tem a ver com a incerteza clínica. Tem a ver com a falta de oportunidade de fazermos os testes que devíamos; tem a ver com a própria pessoa que não está disposta a fazer os exames que são necessários, seja a nível sanguíneo, endoscopias ou ecografias, seja o que for. Portanto, às vezes não é uma questão de incerteza clínica, é uma questão de não podermos ir até ao fim num diagnóstico duma doença. A incerteza fica muitas vezes por não ser feito o diagnóstico. Haver suspeitas e diagnósticos prováveis mas não se seguir até ao fim. Fora isto, não vejo realmente outras razões para ter incertezas. [Entrevista nº16] Existem vários diagnósticos diferenciais que por falta de meios, ou porque o cliente não os quer pagar, pode levar-te a essa incerteza. Da mesma forma pode levar a uma incerteza na medicação. [Entrevista nº14] Não, eu acho que as incertezas de hoje não são semelhantes às incertezas do início da carreira. Mas a aprendizagem do Médico Veterinário é progressiva porque estamos sempre a ter novas experiências, novas situações. (…) Ou seja, durante uma carreira há coisas que eram incertezas que depois passam a ser completamente banais. (…)Mas vão aparecendo sempre novas situações que a gente nunca tinha visto e tem que encará-las como situações novas. Portanto, não acho que as incertezas se mantenham. Nós vamos aprendendo e

12

habituamo-nos a elas de tal modo que é como se elas já não existissem. [Entrevista nº18] Nós deparamo-nos com algumas situações típicas, que nos levam sempre a suspeitar. Quando nos aparecem aquelas evidências, levam-nos sempre a suspeitar de um determinado diagnóstico. Se calhar, muitas vezes, se a gente fosse mais além, éramos capazes de encontrar outro, outras evidências que nos levasse a outro tipo de diagnóstico. Portanto, os principais sintomas podem-nos levar ao erro. [Entrevista nº11] […] como eu estava a dizer no princípio, a clínica é um pouco rotineira. Muitas vezes nós estamos na secretária, enquanto o dono está a falar, e já fizemos o diagnóstico. Caímos na tentação de nem nos levantarmos da secretária para olhar para o animal e às vezes podemos cair em erro (…) a pessoa começa a deixar de lado alguns dos procedimentos essenciais que devia ter. [Entrevista nº9]

Em conclusão, entendemos que os processos de recontextualização do conhecimento estão implicados, de modo desigual, na forma como os médicos veterinários entendem a incerteza no trabalho clínico. Detectámos três princípios discursivos diferenciados, a saber: (1) os que quase estabelecem uma equivalência entre incerteza clínica e insegurança profissional, e que admitem a certeza e a previsibilidade como parte da sua actividade profissional (recontextualização incerteza/insegurança); (2) os que afirmam a tendencial diminuição da incerteza ao longo da carreira e que a conotam com erros e falhas de vários tipos, dando a entender a quase inevitabilidade da sua acorrência. (recontextualização incerteza/erro (3) os que afirmam a manutenção da incerteza clínica e a associam à complexidade do acto clínico, podendo ser atenuada com uma atitude adequada de investigação clínica (recontextualização incerteza/investigação). Poderemos perguntar por fim: dentro destes diferentes entendimentos da incerteza clínica, quais as consequências que deles se retiram para a interacção com o cliente? [Mostrar a incerteza] varia, principalmente com aqueles clientes que fazem tudo e que julgam que é tudo fácil, e que já fizeram um bocadinho de tudo. Esses não confiam muito no nosso trabalho. Estes quando nos chamam sabem que nos tiveram de chamar. Mas quando nos chamam a taxa de sucesso dos nossos casos já é baixa, porque eles como tentam fazer tudo, muitas vezes fazem asneiras ou muitas vezes já é tarde. Então eu julgo que é diferente a interpretação da falta de certeza porque, neste caso, não convém mostrar as nossas dúvidas. Mas, por exemplo, um cliente humilde, simples, tem muito mais confiança e transmite-nos essa confiança […] o acto que nós pretendemos fazer parece que se torna mais simples e mais óbvio. Aqui a dúvida, quando há, já não é problema. Digo-lhe mesmo que colocá-la é completamente escusado. [Entrevista nº1] Nunca senti que ninguém me chamasse com uma certa preocupação que não lhes resolvesse a situação. Chamam-me muitas vezes mesmo. Eles tentam tratar e não conseguem, e quando me chamam é porque sabem que eu vou resolver a situação e por isso as certezas têm que ser evidentes para eles. [Entrevista nº7] (…) é um bocado complicado estar a dizer às pessoas que não se percebe um caso. Ou seja, muitas das vezes tem que ser "peito para a frente e fé em Deus" porque normalmente é assim que a coisa corre bem. De contrário, se a gente vai para ali um bocado indecisos, a mostrar dúvidas, se as coisas correm bem as pessoas dizem que foi obra do acaso, se a coisa corre mal é porque o doutor não sabia o que fazia. De modo que um indivíduo tem que entrar com uma certa confiança, a mostrar que sabe, senão corre o risco do seu trabalho ser posto em causa. [Entrevista nº2]

Fé e certeza são as expressões mais típicas para descrever o modo de lidar com os clientes, de

13

forma a garantir uma autoridade quase carismática, especialmente entre aqueles veterinários que entendem a incerteza como uma questão de insegurança. Bem contrastante com esta orientação são aqueles que falam da

honestidade gerar confiança, desde que se saiba

apresentar a incerteza em moldes profissionais. Neste segundo caso, trata-se daqueles veterinários que entendem que a incerteza está relacionada com a complexidade do acto clínico e que por isso é necessário uma atitude investigativa. Eu explico tudo, as causas todas, tudo o que pode ser, os diferentes diagnósticos que podem ser feitos e quando não sei digo mesmo que não sei. Não vale a pena andar a inventar e a enganar ninguém. Acho que desta forma é meio caminho andado para ganhar a confiança do cliente porque se começamos a inventar a pessoa percebe. Se se está seguro daquilo que se está a dizer as pessoas também percebem. É preferível a gente falar daquilo que tem segurança e assumir a incerteza que temos noutras situações. Normalmente reagem muito bem. [Entrevista nº5] Eu acho que, pelas experiências que eu tenho, desde que nós sejamos honestos, o facto de nós dizermos “eu não sei muito bem o que é que o seu animal tem" e explicarmos exactamente, não nos diminui. Até agora a receptividade tem sido muito boa. [Entrevista nº6] Geralmente, o que se costuma fazer para ter a participação do proprietário e para lhe dar a noção da minha situação naquela patologia, é expor as incertezas que existem. É quase do género: “ele está com diarreia, mas ele tem esta idade, por isso pode ser "isto, isto e isto", ele come ossos, por isso pode ser "aquilo, aquilo e aquilo"; ele mudou de alimentação … Quer dizer: mostrar que tens incertezas, mas que essas incertezas são fundadas de uma forma técnica. Acho que quando mostramos incertezas, segundo a minha forma de ver é que, se eu mostro incertezas, tenho sempre que mostrar que as minhas incertezas são as de alguém que tem conhecimentos científicos, porque as outras incertezas o cliente também as tem. […] Ter sempre a consciência de que não estamos a enganar ninguém. Estamos a fazer aquilo que nos compete e temos que fazer sempre o melhor, principalmente para o animal e, claro, para o proprietário. [Entrevista nº13]

Para além deste contraste, os restantes inquiridos oscilam: não tomam posição e fazem depender, a relação da incerteza clínica com a interacção social, da heterogeneidade dos clientes. Assim, põem em evidência o facto de considerarem que, afinal, a relação com o cliente no plano das trocas de informação e saberes pode ser irrelevante para um acto clínico bem resolvido. É relativo, pois depende do proprietário. Existem proprietários compreensivos, com uma certa cultura, e já sabem fazer alguns tratamentos. Assim, é preferível uma pessoa ser honesta, porque se não sabemos e se começamos o trabalho enterramo-nos cada vez mais e ficamos muito queimados. Existem outros proprietários que são tão estúpidos que uma pessoa bem pode dizer que é uma coisa completamente diferente que eles aceitam. Existem outros que se mostram mais agressivos e até mal educados, pelo que temos de lidar conforme as situações. [Entrevista nº12] Depende do proprietário. Há proprietários que podem aceitar este tipo de afirmações, mas há outros que reagem mal. Quer dizer, depende da forma como é transmitida esta incerteza. Quando nós olhámos para um animal e dizemos isto deve ser este quadro, pode ser este, pode ser aquele. Eu nunca vou dizer, que não tenho solução para cada uma destas hipóteses. Eu tento sempre dizer, posso usar este meio de diagnóstico para conseguir chegar a este diagnóstico; ou posso utilizar outros meios de análise, seja o que for. Há uma incerteza, mas não uma incerteza do diagnóstico, há uma incerteza dos possíveis diagnósticos que podem ser. Tento transmitir uma ideia se... se fizermos outros exames, outras análises vamos chegar a um diagnóstico definitivo de certeza. [Entrevista nº16]

Como conclusão complementar desta secção, poderemos colocar as seguintes hipóteses: (1)

14

"a recontextualização incerteza/insegurança" tende a considerar que as interrogações sobre os diagnósticos e terapias a aplicar são para esquecer ou ocultar perante o cliente, porque elas, ao confundirem-se com a insegurança profissional, podem facilmente ser entendidas por este como sinónimo de incompetência profissional; (2) a recontextualização incerteza/erro" tende a considerar como pouco relevante a interacção com o cliente, pois todo o problema estará no défice de conhecimentos, de meios e de técnicas aplicadas; daí que opte por uma atitude defensiva (que fica na expectativa face ao tipo de cliente), porque se parte do pressuposto que o cliente quer certezas, mesmo quando sabe que elas não existem, e que por isso desconfiará sempre da explicitação de dúvidas; (3) a "recontextualização incerteza/investigação” tende a considerar que é no factor relacional que poderá estar parte da superação da incerteza clínica, dada a complexidade do acto clínico poder ser parcialmente superada pela educação do cliente, com o fim de estimular uma partilha de saberes em que o cliente é em parte coresponsável pelos resultados obtidos. O Quadro 6.1. resume estas conclusões, identificando o modo como se distribuem os inquiridos nas duas dimensões de recontextualização profissional do conhecimento que analisámos. Os dados indicam que as hipóteses enunciadas parecem ter alguma pertinência empírica face à amostra que inquirimos, a saber: (1) 75% da “recontextualização incerteza/insegurança" manifesta “incerteza ocultada” e nenhuma “incerteza partilhada; (2) quase 80% da “recontextualização incerteza/erro" manifesta “incerteza defendida” e nenhuma “incerteza partilhada"; (3) 60% da “recontextualização incerteza/investigação" manifesta “incerteza partilhada” e nenhuma “incerteza ocultada. Mostra-nos, ainda, que existem situações sociais de transição entre as formas de recontextualização, designadamente: entre a “recontextualização incerteza/insegurança" e a “recontextualização incerteza/erro" temos três casos (1+2, em cinzento claro); entre a “recontextualização incerteza/erro" e a “recontextualização incerteza/investigação" temos dois casos (em cinzento escuro). Quadro 6.1.- Incerteza/ recontextualização * Incerteza/ interacção Incerteza/interacção Incerteza/recontextualização incerteza-insegurança

ocultada

Total

3

defendida 1

partilhada 0

4

75.0%

25.0%

.0%

100.0%

2

7

0

9

22.2%

77.8%

.0%

100.0%

0

2

3

5

.0%

40.0%

60.0%

100.0%

incerteza-erro

incerteza-investigação

15

Total

5

10

3

18

27.8%

55.6%

16.7%

100.0%

Nas conclusões retomaremos este quadro agregando por defeito as situações de transição. Assim, os três casos (1+2) indicados em primeiro lugar serão contabilizados como “recontextualização incerteza/insegurança" e os dois casos indicados em segundo lugar serão contabilizados como “recontextualização incerteza/erro". 6.3.3. Institucionalização da interacção com clientes Mas será que as diferentes modalidades de identificação profissional apenas podem ser descritas com base em relação sociais de conhecimento, de cunho fortemente estrutural? Será que as diferentes formas de uso do conhecimento não terão também relações próximas com diferentes formas de institucionalização da interacção profissional-cliente? Iremos nesta secção responder à primeira pergunta e deixaremos a resposta à segunda pergunta para as conclusões finais. A importância que todos os inquiridos davam à aprendizagem do sentido contextual do trabalho clínico na consulta médica e o facto da expressão “educação do cliente” ser recorrente no discurso da profissão, fizeram-nos crer que poderíamos colocar a hipótese da existência de formatos na interacção com o cliente (formas de institucionalização) que actualizariam, em contexto, as recontextualizações e identificações profissionais identificadas. Assim, nos guiões de entrevista utilizados começaram a ser colocadas questões específicas sobre a relação com os clientes, relativas a expectativas e tipificações de interacção social e a interpretações do desempenho recíproco de papeis sociais. Os limites deste texto não nos permitem, como fizemos para os processos de recontextualização do conhecimento, entrar num grande detalhe sobre a interacção profissional-cliente. Assim, a informação disponível sobre as tipificações dos clientes (que dão conta da sua heterogeneidade social) e as idealizações de papeis (que dão conta das interacções preferenciais existentes) não serão referidas. Iremos apenas mencionar, de modo resumido, os discursos que abordam as expectativas mútuas, interpretadas na versão dos veterinários: o que pensam, os veterinários, que os clientes esperam deles? O que os veterinários esperam dos clientes? Uma parte dos inquiridos reduz as expectativas do cliente face ao veterinário quase só a

16

aspectos instrumentais: rapidez, baixo custo e, principalmente, cura. Este tipo de discurso é mais enfatizado na clínica de grande animais e em meio rural, embora também haja inquiridos que são capazes de distinguir diferentes tipos de criadores. (…) esperam que resolvam todos os casos, todos sem excepção, com uma única abordagem ao animal, de preferência pelo telefone, que cobre barato e que não o chateie muito. É isso que o cliente…, é isso que eles querem! Isto numa forma de brincadeira, mas obviamente que o cliente, o que espera do veterinário, é que para além de educado ele seja extremamente competente e que lhe resolva os problemas, todos sem excepção pelo mais baixo custo possível. [Entrevista nº4] Bem, no que toca aos grandes animais e de uma forma geral — porque eu sei que a filosofia muda um bocado relativamente ao pequenos — o cliente quando nos chama deseja que sejamos o mais breves possíveis, tanto a chegar como a atender as suas necessidades. Pretendem que nós alcancemos a sua expectativa no que toca ao objectivo da chamada; ou seja, pretende que nós curemos o animal no mais curto espaço de tempo. Além disso pretende— e eu volto a referir que trabalho com animais de interesse pecuário — ele pretende, que o nosso acto clínico seja o mais barato possível. (…) Eu julgo que será principalmente isto: a expectativa do cliente perante nós, independentemente se levamos caro ou barato. É atingir a expectativa dele que é a cura do animal, ou a resolução de uma situação qualquer, ou, por exemplo, que atinjamos o melhor rendimento da exploração a nível reprodutivo e depois de preferência o mais barato possível. [Entrevista nº1] Os das vacas leiteiras são indivíduos mais conhecedores daquilo que fazem, mais conscenciosos, mais educados. Tens que ter ideias e saber explicá-las (…) tentam-se instruir porque quase todos eles têm cursos de jovens agricultores. Depois tens aquela senhora que tem dois porcos em casa, que é mais para o lado sentimental, “ai o meu porquinho”, parecido com os donos de animais de companhia da cidade. Por fim, tens aqueles indivíduos que têm uma instrução mais baixa que são os das cabras e ovelhas, os pastores, que são de trato mais difícil. Aí tens de descer ao nível deles sempre numa lógica de cura se possível. [Entrevista nº2]

Em contraste com esta orientação instrumental está outra, mais centrada na simpatia e empatia, tanto com o cliente como com o animal. Pode mesmo acontecer um interesse mais evidente em conhecer, em ser informado e em informar, factos que tendem a pressupor uma maior capacidade do veterinário para se saber adaptar ao meio social em que trabalha. Esperam primeiro que tudo que o Médico Veterinário aprecie o animal quase como eles. É muito difícil o veterinário ter uma relação com o animal como tem o próprio dono […] Ou seja, as pessoas gostam que o médico veterinário, quando atende o seu animal, lhes dedique alguma atenção, algum carinho, que seja simpático para o animal que tenha uma boa relação com o animal. Isso penso que é bastante importante (…) Existe um ou outro cliente que são realmente mais difíceis de lidar, nomeadamente aqueles que vão frequentemente à clínica sem necessidade, só para sociabilidade com o veterinário e às vezes uma pessoa tem muito trabalho e torna-se complicado gerir o tempo para fazer, digamos, "conversa de salão" e fazer o nosso trabalho; mas muitas vezes tem que ser. [Entrevista nº10] Esperam essencialmente esclarecimentos. Há muita gente que é a primeira vez que tem cães, que tem animais de estimação, e que essencialmente esperam que os esclareças, e que lhes dêem as informações todas. […] São atentos, tentam captar as informações que a gente lhe vai dando e as indicações e normalmente as coisas correm bem. Não tenho, assim nada que… algum tenha ficado descontente. Algumas vezes quando são situações, casos mais complicados, as pessoas reagem mais emotivamente e mais emocionalmente. Mas compreendem sempre a situação, desde que a gente saiba explicar como deve ser o que é, o que se passa e o que se poderá vir a passar. Acho que as pessoas estão preparadas e também acho que um dos nossos papeis é em casos complicados, muitas vezes sem resolução, nós temos que apoiar a parte emocional do cliente. [Entrevista nº11]7 .(…) o cliente não tem que se adaptar a mim, eu é que tenho de ter a noção de que não estamos em sintonia. Eu é que tenho que me adaptar a eles, custe mais ou menos, o esforço tem de ser meu, porque o cliente coitado é 7

No capítulo 4, Fernando Pereira refere um sentido contextual-prudencial do uso do conhecimento que pode também estar aqui ilustrado por este veterinário.

17

como é. Nós é que estamos a prestar um serviço e temos que o fazer da melhor maneira possível […] pelo menos há que conhecê-los e respeitá-los e isso é muito importante para as pessoas de uma determinada região saber que nós nos interessamos (…) qualquer pessoa fica satisfeita de saber que a outra pessoa conhece os costumes da região, que se interessa, que respeita, não é preciso praticar, mas o facto de respeitar e de conhecer já é muito importante e ajuda na integração, ou então ficas completamente desligado do meio em que estás. [Entrevista nº5]

A relação inversa é do mesmo tipo. O que os veterinários esperam dos clientes também se desdobra em duas orientações e princípios discursivos diferenciados: a orientação normativa, dos que valorizam o comportamento dos humildes, mais passivos, silenciosos e cumpridores, que portanto reconhecem mais facilmente o seu papel mas não deixam de tentar fugir à norma; a orientação responsabilizadora, dos que valorizam os clientes mais cooperantes e que, podendo tomar iniciativas exageradas, sabem actuar na prevenção e sabem melhor informar sobre o que se passa. O bom cliente não fala muito porque sabe responder ao que lhe é perguntado e não se põe a inventar histórias, nem esconde as coisas que fez. É humilde e simples e tem vontade de entender o que estou a fazer e porque estou a fazer. Segue escrupulosamente as indicações que lhe damos. (…) Mas é difícil mudar mentalidades e as pessoas procuram desenrrascar a situação, erram e querem curas, mas não reconhecem os seus erros e por isso escondem o que fizeram. [Entrevista nº1] Eu espero que o cliente respeite o animal, que tenha atenção às profilaxias necessárias e saiba interpretar os sinais de alarme de doença do seu animal (…) são os que cooperam, mas nestes há os que exageram, que são demasiado ansiosos e que ao primeiro problemazinho vêm logo a correr ou administram medicamentos por iniciativa própria. Devem ser cooperantes mas equilibrados, sem exageros. [Entrevista nº8] É bom que o cliente coopere, saiba dizer o que se passa e explicar os sinais que teve, mas também tem que saber o que é urgente ou não, porque há situações que podem esperar para o dia seguinte. [Entrevista nº9]

As respostas às questões colocadas, relativas a esta temática, mostraram, ainda, que a orientação responsabilizadora face aos clientes tende a considerar a necessidade de ser o veterinário a adaptar-se ao meio e ao cliente, mais do que o inverso. Isto porque desta forma entende-se que se consegue mais facilmente exigir do cliente uma conduta mais adequada às necessidade do trabalho clínico. A orientação normativa face ao cliente tende a ser mais unilateral e menos adaptativa, esperando-se que, à partida, o cliente perceba e compreenda rapidamente o que se pretende dele. Em consequência a chamada “educação do cliente”, no primeiro caso, tende a ser mais explicita, mais verbalizada e mais pensada, procurando-se a antecipação das situações, enquanto que, no segundo caso, é implícita, esperando-se que o cliente veja o que pode, ou não pode, fazer pelas consequência da sua acção junto do veterinário. A conjugação das expectativas mútuas enunciadas permite colocar algumas hipóteses sobre as formas de institucionalização da interacção profissional-cliente, a saber: (1) a forma em que existe reciprocidade de expectativas relativa a uma expectativa instrumental por parte

18

dos clientes conjugada com uma expectativa normativa por parte dos veterinários; (2) ) a forma em que existe reciprocidade de expectativas relativa a uma expectativa empática por parte dos clientes conjugada com uma expectativa responsabilizadora por parte dos veterinários; (3 e 4) as formas de menor reciprocidade (assinaladas a cinzento), quando existe uma descoincidência entre clientes e veterinários relativamente às duas reciprocidades indicadas. Estas situações de menor reciprocidade na interacção tenderão criar insatisfações no desempenho da profissão, resultantes de um quadro de expectativas desadequado sobre o qual não se encontra meio de resolução. O Quadro 6.2. mostra-nos a distribuição dos inquiridos nas quatro hipóteses de formas de institucionalização indicadas. Como seria de esperar as situações de reciprocidade ocorrem junto da maioria dos inquiridos (2/3 dos veterinários) e as situações de potencial insatisfação ocorrem igualmente nas duas formas possíveis de menor reciprocidade (em ambas representam apenas metade de um 1/3 dos veterinários). Quadro 6.2.- Expectativas do cliente por expectativas do veterinário Expectativas do veterinário Expectativas do cliente

normativa

Total

responsabilidade 6

3

9

66.7%

33.3%

100.0%

3

6

9

33.3%

66.7%

100.0%

9

9

18

50.0%

50.0%

100.0%

instrumental

empática

Total

6.4. Identificações ancoradas em conhecimento Mas será que existe alguma relação entre as formas de recontextualização profissional do conhecimento e as formas de institucionalização da interacção? Quadro 6.3.- Recontextualização profissional do conhecimento por tipos e níveis de reciprocidade

Recontextualização profissional

Tipos e níveis de reciprocidade instrumentalempáticomenor normativa responsável reciprocidade

incerteza/insegurança

Total

3

0

3

6

50.0%

.0%

50.0%

100.0%

3

3

3

9

incerteza/erro

19

33.3%

33.3%

33.3%

100.0%

0

3

0

3

.0%

100.0%

.0%

100.0%

6

6

6

18

33.3%

33.3%

33.3%

100.0%

incerteza/investigação Total

O Quadro 6.3. dá-nos uma resposta empírica plausível que nos permite afirmar que esta relação existe. Mais, a consistência dos dados permite-nos colocar a hipótese da associação entre estes dois tipos de formas sociais no exercício da medicina veterinária dar conta de diferentes modalidades de identificação e cultura profissional, a saber: •

as identificações e culturas profissionais que estão baseadas em processos de "recontextualização incerteza/insegurança" tanto estão ligadas a

processos de

reciprocidade instrumental-normativa como estão ligadas a um grande potencial de insatisfação profissional (relativa a processos de fraca reciprocidade na interacção social); estes últimos são fruto de expectativas sociais mútuas pouco ajustadas a uma sociedade modernizada, mais escolarizada e mais heterogénea; •

as identificações e culturas profissionais que estão baseadas em processos de "recontextualização incerteza/erro" não determinam nem estão associadas a formas de institucionalização da interacção social que lhes sejam específicas, havendo por isso uma igual dispersão dos inquiridos pelas possibilidades existentes; esta dispersão, para além de conter bastantes situações de potencial insatisfação profissional (menor reciprocidade), parece-nos ser consequência da heterogeneidade estrutural de Portugal, como país semiperiférico, designadamente no modo muito diferenciado de como se (des)valoriza o conhecimento (de bem de distinção da elite intelectual a força produtiva estratégica essencial à modernização social);



as identificações e culturas profissionais que estão baseadas em processos de "recontextualização incerteza/investigação” estão totalmente centradas em processos de “reciprocidade empático-responsável”, dado que os dois procedimentos têm que ocorrer simultaneamente, pois, de contrário, não seria

garantido um uso partilhado e

contextualizado do conhecimento. Face a estas hipóteses explicativas, podemos concluir que as identificações e culturas profissionais na medicina veterinária estão intimamente ligadas e ancoradas em processos de 20

uso profissional do conhecimento. Esta conclusão permite-nos retomar o quadro teórico que expusemos no início deste capítulo, afirmando que: •

a "recontextualização incerteza/insegurança" aproxima-se da forma pós-tradicional (FPT) de uso do conhecimento, porque o conhecimento é dado como certo e dependente apenas da autoridade e das garantias pessoais dadas pelo profissional, no quadro de uma interacção social que espera confiança-fé do cliente e uma adequação dos actores sociais a um sistema de papeis tendencialmente fixo e rígido;



a recontextualização incerteza/erro" aproxima-se da forma moderna-instrumental (FMI) de uso do conhecimento, porque, nada parece depender da interacção social; tudo depende do sistema de conhecimento instituído e do seu adequado uso pelo profissional, daí que o sistema de papeis sociais desenvolvido entre profissional-cliente não tenha uma relação privilegiada com nenhuma das modalidades de interacção social;



a "recontextualização incerteza/investigação" aproxima-se da forma moderna-reflexiva (FMR) de uso do conhecimento, porque a interacção social e as garantias de bom uso de um sistema de conhecimento instituído não são vistas como independentes uma da outra, cabendo ao profissional actuar de forma a intermediar as duas dimensões do uso do conhecimento, através de uma atitude investigativa em contexto clínico e de um sistema de papeis negociado e flexível face à heterogeneidade social.

Como consideração final, diríamos que a abordagem da problemática teórica da subjectividade, da identidade e do posicionamento dos actores sociais num campo de actividade profissional, por via dos usos do conhecimento, permite centrar a análise da reflexividade social no quadro de relações sociais de conhecimento, evitando as perspectivas mais subjectivistas que sobrevalorizam uma conceptualização da reflexividade como representação social de trajectórias sociais individuais, desprezando a dimensão sóciocognitiva da reflexividade como mediação e relação social identitárias das sociedades de hoje.

21

central das construções

ANEXO (só estes quadros)

Sexo * AntiguidadeProfissão Crosstabulation AntiguidadeProfissão Sexo

masculino

Count

feminino

% within Sexo Count % within Sexo Count

Total

% within Sexo

7 anos

Total 5

9

44.4%

55.6%

100.0%

6

3

9

66.7%

33.3%

100.0%

10

8

18

55.6%

44.4%

100.0%

Sexo * SectorClínico Crosstabulation

Sexo

masculino

Count

feminino

% within Sexo Count % within Sexo Count

Total

% within Sexo

Pequenos Animais 2

SectorClínico GrandesA Peq+Gran. nimais Animais 5 2

Total

masculino

Count

feminino

% within Sexo Count % within Sexo Count % within Sexo

9

22.2%

55.6%

22.2%

100.0%

5

1

3

9

55.6%

11.1%

33.3%

100.0%

7

6

5

18

38.9%

33.3%

27.8%

100.0%

Sexo * RegiãoTrabalho Crosstabulation

Sexo

Total

RegiãoTrabalho periferia ou interior urbana litoral 7 2

Total 9

77.8%

22.2%

100.0%

4

5

9

44.4%

55.6%

100.0%

11

7

18

61.1%

38.9%

100.0%

22

AntiguidadeProfissão * SectoresTrabalho Crosstabulation SectoresTrabalho 1 AntiguidadeProfiss ão

7 anos

% within AntiguidadeProfiss ão Count % within AntiguidadeProfiss ão Count

Total

% within AntiguidadeProfiss ão

2

3

Total

7

2

1

10

70.0%

20.0%

10.0%

100.0%

1

5

2

8

12.5%

62.5%

25.0%

100.0%

8

7

3

18

44.4%

38.9%

16.7%

100.0%

AntiguidadeProfissão * SectorClínico Crosstabulation

AntiguidadeProfiss ão

Pequenos Animais 6

7 anos

% within AntiguidadeProfiss ão Count % within AntiguidadeProfiss ão Count

Total

% within AntiguidadeProfiss ão

SectorClínico GrandesA Peq+Gran. nimais Animais 2 2 20.0%

20.0%

100.0%

1

4

3

8

12.5%

50.0%

37.5%

100.0%

7

6

5

18

38.9%

33.3%

27.8%

100.0%

Total

RegiãoTrabalho periferia ou interior urbana litoral 6 4

7 anos

% within AntiguidadeProfiss ão Count % within AntiguidadeProfiss ão Count % within AntiguidadeProfiss ão

23

10

60.0%

AntiguidadeProfissão * RegiãoTrabalho Crosstabulation

AntiguidadeProfiss ão

Total

Total 10

60.0%

40.0%

100.0%

5

3

8

62.5%

37.5%

100.0%

11

7

18

61.1%

38.9%

100.0%

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.