Uso militar do carste esloveno

June 16, 2017 | Autor: L. Travassos | Categoria: Geography, Espeleologia, Geografia Cultural
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Carste 2009 – III Encontro Brasileiro de Estudos do Carste

Carste 2009 – III Encontro Brasileiro de Estudos do Carste 2 - O USO MILITAR DO CARSTE E DAS CAVERNAS

Espeleologia Histórica / Apresentação Painel O uso militar do carste e das cavernas eslovenas KRANJC, A.1 & TRAVASSOS, L.E.P.2 1- Karst Research Institute ZRC SAZU, Titov trg 2, 6230 - Postojna, Slovenia, [email protected] 2 - Doutorando em Carstologia pela Univerza v Novi Gorici (Eslovênia) e Doutorando em Geografia, PUC Minas, Belo Horizonte, MG.

1 - INTRODUÇÃO A Eslovênia foi uma das repúblicas da antiga Iugoslávia. Possui cerca de 20.273 km2 e pouco mais de 2.000.000 habitantes. Sua diversidade geográfica é capaz de superar países muito maiores em área. Assim, seu território pode ser dividido entre a região dos Alpes Julianos (42,1%), a dos Alpes Dináricos (28,1%), da Planície da Panônia (21,2%) e a do Mediterrâneo (8,6%). No país, a região do Planalto de Kras é muito conhecida por possuir uma diversidade geográfica e histórica expressivas. Para espeleólogos e carstólogos, o país pode ser considerado como um verdadeiro “paraíso” repleto de poljes, dolinas, sumidouros, ressurgências e cerca de 8.900 cavernas exploradas e cadastradas, entre as quais cerca de 25 abertas ao turismo, com algum tipo de infra-estrutura. Sendo assim, a região, também palco de conflitos mundiais e regionais, apresenta inúmeros registros do uso militar do carste e das cavernas.

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Ao longo da História, as sociedades humanas travaram combates regionais ou mundiais, muitas vezes em regiões ricas em rochas carbonáticas. Sendo assim, os acidentes geográficos e as peculiaridades desse tipo de relevo começaram a ser utilizados para fins militares diversos e em épocas distintas. Para se ter uma idéia da importância do terreno para alguns países, o ensino da Geografia nas universidades recebe especial atenção, chegando a transformar-se em uma sub-disciplina chamada de Geografia militar. Por todo o mundo são conhecidas cavernas fortificadas, que foram utilizadas para fins militares desde a pré-história a épocas recentes. Dessa forma, o uso militar possui também o significado de defesa devido às próprias características naturais do ambiente, que geralmente, necessita de modificações para assegurar a efetiva defesa de uma posição. Em épocas mais recentes, os exemplos identificáveis desse tipo de uso tornam-se mais comuns. Em sua maioria, são cavernas naturais inalteradas ou cavernas que, de uma forma ou de outra, foram fortificadas, remodeladas, camufladas e utilizadas como esconderijos ou abrigos. Em muitos casos, foram também utilizadas como posições defensivas contra ataques e perseguições. 3 - O USO MILITAR DO CARSTE E DAS CAVERNAS NA HISTÓRIA ESLOVENA Na História Eslovena, os exemplos antigos mais conhecidos são as cavernas que foram utilizadas como abrigos contra as invasões turcas. Ainda hoje é possível identificar os traços desse tipo de uso do subterrâneo como muralhas, torres de vigília e buracos nas paredes para uso dos armamentos. Entretanto, a História mostra também outra importante característica do carste para os exércitos: o próprio terreno, difícil de ser vencido pelas tropas desde a Antiguidade. Tal tipo de paisagem é certamente uma das razões que levaram as fronteiras romanas na Itália (Regio X Venetia et Histria) a passar pelo planalto cárstico 85

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dinárico do Mar Adriático aos Alpes Julianos. As fronteiras eram bem guarnecidas pelos conhecidos “bloqueios alpinos” (Claustra Alpium Iuliarum). Devido ao terreno montanhoso e às feições cársticas, não houve necessidade de se construir muros, torres e fortalezas ao longo de toda a linha e sim, apenas em alguns pontos de fácil acesso. Ainda na Antigüidade Clássica, uma batalha que, posteriormente, foi de grande importância mundial, foi decisivamente influenciada pelo burja (ou bora, forte vento NE que ocorre no Planalto de Kras). A batalha ocorreu em 394, próximo a Vipava e Ajdovščina, na Ad Frigidum (água fria) como os romanos chamavam o Rio Vipava. O Imperador Teodósio derrotou seu oponente, o contra-Cesar Eugenius, mudando o curso da história. Durante os combates, um intenso burja soprou e somou forças às tropas de Teodósio, aumentando a velocidade das flechas, enquanto as dos adversários (que atiravam contra o vento) paravam, retornavam e até mesmo caiam sobre eles. É importante destacar que tais ventos existem somente nesta região, partindo da parte superior do planalto de Kras em direção à seções inferiores da região e seus poljes. Além disso, a escolha dos locais para criação de cavalos em Lipica e Prestranek, sobre o carste, ostenta um caráter militar: em um planalto cárstico, cavalos fortes eram necessários, principalmente, para desempenhar funções militares.

que, ainda assim, encontrava dificuldades. As dolinas (em particular as que possuíam paredes abruptas) limitavam o movimento das tropas, quase em linha reta, devido ao alinhamento geológico. Defensivamente, o terreno cárstico pode apresentar inúmeras vantagens para proteção, como pequenas dolinas e vales cegos, bem como blocos rochosos, que oferecem alguma proteção individual ou até mesmo coletiva. Entretanto, as desvantagens são igualmente importantes: acredita-se que fragmentos de rocha causados por explosões tenham matado e ferido mais soldados do que os próprios projéteis. Durante a Primeira Grande Guerra, quando o combate corpo a corpo ainda era muito comum, buscavam-se todos os tipos de interação com as feições já existentes no terreno. Cavernas e dolinas podiam ser adaptadas para se transformarem em abrigos, armazéns, paióis e até mesmo hospitais de campanha (Fig. 1 a-b). A

4 - A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL Durante a Primeira Guerra Mundial, a frente de combate de Soča ou de Isonzo passava pelo Planalto de Kras. Por esse motivo, as peculiaridades da superfície cárstica eram muito mais acentuadas e o subterrâneo adquiria, cada vez mais, importância. As depressões no terreno ora eram favoráveis ao combate, ora tornavam-se obstáculos naturais. Em qualquer um dos casos, o terreno rochoso irregular era o maior obstáculo à locomoção. Mesmo pequenas rochas aflorantes tornavam-se um empecilho. Em maior quantidade, somente a superfície de rochas expostas era facilmente transposta pela infantaria 86

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Carste 2009 – III Encontro Brasileiro de Estudos do Carste 5 - O PERÍODO ENTRE AS GUERRAS

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Figura 1 – A) Um posto de comando em uma caverna durante a I Guerra Mundial (Fonte: Gherlizza e Radacich, 2005). B) Caverna restaurada que foi utilizada na Frente de Isonzo (Vale do Soča), em Kobarid, Eslovênia (Foto: Luiz E.P. Travassos, 2009).

Especialmente em relação ao suprimento de água na região durante os combates, foi necessária a construção de um aqueduto. A maioria das casas e cisternas construídas sobre o carste foi destruída e, por isso, a água teve que ser trazida de outras regiões para suprir as necessidades dos exércitos. Essa foi a primeira construção do tipo sobre o Planalto de Kras e, por muitos anos após a guerra, também serviu para o uso civil. Durante essa Grande Guerra e na Frente de Soča (Isonzo), as cavernas provaram ser muito úteis. Apenas poucos metros abaixo da superfície, as rochas já proporcionavam boa proteção contra granadas de artilharia. Nelas estabeleciam-se baterias de canhões, pontos de observação, pontos de metralhadoras, depósitos de munição, etc. Algumas cavernas eram completamente adaptadas para servirem como um genuíno quartel. Tais cavidades possuíam iluminação elétrica e obras para circulação de ar. Para esse fim, eram empregados tanto condutos naturais como artificiais. Os projetistas, muitos deles acadêmicos e estudiosos do subterrâneo, utilizavam-se também de conhecimentos de meteorologia e microclima de cavernas.

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Acredita-se que o sucesso do uso de cavernas durante a I Guerra Mundial, tanto na linha de frente como na retaguarda, teve um impacto profundo e positivo sobre os militares e estrategistas. Em 1930, a situação política mundial novamente forçou os países europeus a se prepararem para uma próxima guerra. A fronteira entre a Itália e a, então, Iugoslávia passava sobre o terreno cárstico do porto adriático de Rijeka em direção norte ao vale do Sava nos Alpes. Ambos os países prepararam uma linha de defesa ao longo da fronteira. Com as experiências adquiridas durante a Primeira Guerra Mundial, tentaram se utilizar das vantagens fornecidas tanto pela superficie cárstica quanto pelo subterrâneo. Com o objetivo de proteger a fronteira leste italiana na época de Mussolini, os italianos iniciaram a construção do Vallo Alpino (conhecido como Alpine Wall ou Muralha Alpina), um sistema de defesa com fortificações, quartéis subterrâneos, depósitos de suprimentos e armamentos, posições fortificadas e até aeroportos (Figura 2). Em contrapartida, acredita-se que a Linha de Rupnik foi o equivalente iugoslavo da Muralha Alpina (Marković, 1996). Os trabalhos de fortificação foram iniciados no ano de 1937. Não se sabe ao certo se também utilizaram-se de fortificações ou cavernas no carste assim como os italianos, mas é possível afirmar que interessavam-se muito pelo assunto. Desde cedo, o exército iugoslavo passou a se inteirar das ações e estudos da Sociedade Eslovena de Pesquisas Espeleológicas. O Exército Iugoslavo prestou especial atenção à disponibilidade hídrica e ordenou que se fizesse um mapeamento dos fluxos subterrâneos da região de Notranjska e na área de recarga do rio Ljubljana. Baseados em estudos prévios de fluxo subterrâneo, perfuraram alguns poços experimentais, mas não obtiveram sucesso.

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material de propaganda, hospitais de campanha, postos de comando, etc. Por causa do crescente uso das cavernas pelos partisans, os alemães passaram a se preocupar ainda mais com a repressão dos movimentos guerrilheiros. As cavernas tornaram-se, então, muito mais importantes por serem excelentes esconderijos dos partisans. O chamado instrumento de terror de Hitler, a Waffen-SS, chegou a oficializar a criação de um batalhão especializado em carste, em 1942. Este braço armado das SS recebeu a designação de 24thSS Karstjägerbataillon (ou o Batalhão de Caçadores do Carste). 7 - O PERÍODO PÓS GUERRA

Figura 2 – Remanescentes da Muralha Alpina na colina Sv. Primož, Pivka (AEntrada para o sistema subterrâneo das fortificações; B- O interior das fortificações; C- Bunker do fotofone; D- Típico domo de observação; E- Bunker destruído; F- posição de artilharia destruída - Fotos: Luiz E.P.Travassos, 2008)

6 - A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Como não podia ser diferente, o carste e as cavernas continuaram a ser utilizados durante a Segunda Guerra Mundial. Desta vez, o cenário foi mais violento. Combates ferozes foram travados nestas áreas e a violência contra civis foi comum. Os partisans, por utilizarem técnicas de guerrilha contra os alemães, apresentaram um uso mais criativo e variado das cavernas sendo abordados em estórias, lendas, anedotas e pela literatura científica ou acadêmica. O uso das cavernas em táticas de guerrilha é bem conhecido, mesmo antes deste período continuando inclusive, após a Segunda Guerra Mundial. Uma das maiores vantagens dos guerrilheiros (neste caso, os partisans) era a familiaridade com o terreno cárstico, o que propiciou que no meio subterrâneo fossem instalados gráficas de

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Como era de se esperar, com o término da Segunda Guerra Mundial, os líderes políticos mundiais anunciaram que não haveria novamente outras guerras de iguais proporções. Entretanto, inúmeros outros conflitos surgiriam e, novamente, as cavernas seriam utilizadas por guerrilhas ou por exércitos regulares tanto na Eslovênia como em outras partes do chamado “Leste Europeu”. No Pós-Guerra, a Guerra Fria favoreceu a utilização do subterrâneo para proteção contra possíveis ataques nucleares, a maior ameaça do período. Nos Bálcãs, para Lucić (2007), muitos abismos da Bósnia e Herzegovina, que haviam sido utilizados durante a Segunda Guerra Mundial, tiveram seu uso intensificado no final e após a guerra. Na região do Popovo polje, pelo menos 12 abismos foram identificados pelo autor como locais utilizados como sepulturas individuais ou coletivas. Na Eslovênia, até 2005, as pesquisas realizadas forneceram o registro de 410 sepulturas coletivas em cavernas e a provável existência de mais ouras 160 que ainda precisam ser localizadas. Ou seja, após a guerra, sem nenhum procedimento legítimo, cerca de 10.000 pessoas foram julgadas e assassinadas (Ferenc, 2005). Outro exemplo clássico foi o uso dos sistemas subterrâneos por guerrilheiros no Vietnã, desde a guerra contra os franceses. Suas atividades no subterrâneo e suas técnicas de guerrilha eram similares àquelas adotadas pelos partisans iugoslavos. 91

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No norte da África, na Argélia (embora com bem menos áreas cársticas do que os exemplos anteriores) os membros da Frente de Libertação Nacional (FNL) também utilizaram as cavernas em seus combates (Buis, 1972).

WILLIAMSON, G., 2004: The SS: Hitler’s instrument of terror: the full story from street fighters to the Waffen-SS. 256 pp., Segwick and. Jackson, London.

8 - CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho apresentou, brevemente, alguns casos de uso militar da paisagem cárstica e das cavernas. Outros inúmeros exemplos de uso histórico poderiam ter sido citados, mas não seria possível relacioná-los aqui. Buscou-se enfatizar o uso militar em território esloveno ao longo da história sem o objetivo de esgotar um tema tão rico em poucas páginas Com o trabalho buscou-se evidenciar o quão vasto são os campos combinados da carstologia, da espelologia histórica e da arqueologia. Objetivou-se confirmar que o carste, por suas características naturais específicas (e.g.: topografia peculiar, cavernas, etc.) proporciona condições estratégicas privilegiadas tanto na defesa quanto no ataque, em especial aos combatentes locais ou àqueles que buscam se especializar. 9 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUIS, GEORGES, 1972: La Grotte. 381 pp., Le Livre de poche, Paris. FERENC, M., 2005: Prikrito in očem zakrito. Prikrita grobišča 60 let po koncu druge svetovne vojne. – p. 124, Celje. GHERLIZZA, F. & M. RADACICH, 2005: Grotte della Grande Guerra. 352 pp., CAT Gruppo Grotte, Trieste. LUČIĆ, I., 2007: Shafts of life and shafts of death in Dinaric Karst, Popovo Polje case (Bosnia & Herzegovina). Acta Carsologica 36/2, 321-330, Postojna. MARKOVIĆ, Z., 1996: Rupnikova linija. Enciklopedija Slovenije, 10, 331, Mladinska knjiga, Ljubljana.

Como citar esse trabalho KRANJC, A.; TRAVASSOS, L.E.P. O uso militar do carste e das cavernas eslovenas. In: CARSTE 2009, 3, 2009. Livro de Resumos...São Carlos: Redespeleo Brasil/UFSCar, 2009, p. 84-93.

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