Usos da metáfora na retórica de Vieira

June 4, 2017 | Autor: Luís Ribeiro | Categoria: Retórica, Padre Antonio Vieira, João Adolfo Hansen
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE JORNALISMO E EDITORAÇÃO






Usos da metáfora na retórica de Vieira







Luís Guilherme Marques Ribeiro
nº USP: 8544335
Trabalho apresentado para a disciplina Cultura e Literatura Brasileira (2014)
Prof. Jean Pierre Chauvin






Usos da metáfora na retórica de Vieira

Introdução
O objetivo do presente trabalho é demonstrar a mobilização de preceptivas retóricas engendrada por Padre Antônio Vieira em seus sermões através da análise de metáforas da parte VI de seu Sermão da Sexagésima. São feitas, primeiramente, considerações sobre a presença da tradição retórica, sobretudo aristotélica, nos sermões de Vieira, e em seguida um breve estudo de caso se detém em alguns exemplos de como esses recursos são incorporados.

A metáfora na Retórica de Aristóteles
O estudo sobre a obra de Antônio Vieira não pode deixar de levar em conta os princípios filosóficos e religiosos predominantes no seu tempo. Todos os grandes oradores seiscentistas da Companhia de Jesus haviam frequentado a escola dos Antigos, e é portanto ingênuo querer entender a obras desses autores sem considerar os preceitos clássicos e a tradição da instituição retórica. Vieira seguiu as preceptivas retóricas do século XVII, que lançam raízes nas tradições da Escolástica e da Antiguidade. De acordo com Hansen (1999), "seu pressuposto é aristotelicamente ortodoxo" na medida em que ajusta o discurso ao tipo de situação e público e escreve seus sermões de acordo com os conceitos peripatéticos de "elegância retórica".
Segundo Aristóteles (1979), a metáfora é mais bem compreendida se portar uma relação de antítese ou gerar imagens realçantes, e seu efeito pode ser comparado ao do entimema. O conjunto dos aspectos elocutivos articulados por Vieira equivale, segundo Carvalho (2007), à "metáfora conceituosa" de Aristóteles, ou seja, corresponde à "noção aristotélica do conceito, que será retomada pela poesia seiscentista — por isso muitas vezes chamada de conceptista — na ideia de elocução arguta e agudeza".
Evidencia-se em toda a obra oratória de Vieira um uso frequente de contrastes, oposições, contraposições de imagens e conceitos, considerados pela tradição crítica romântico-positivista como autênticas características barrocas. Considerando a "intensidade dramática" das imagens de Vieira, Hansen (1999) afirma que elas decorrem de "contrastes e oposições de significado" que teriam como objetivo trazer "o objeto para frente dos olhos, como se o Padre o pintasse para a audiência". Tais recursos abrem precedentes para que a crítica literária refira o estilo de Vieira como "imaginação plástica", "tom polemístico", "sabor cultista" etc. Todavia, não levam em conta a influência dos preceitos transmitidos pelos usos e ensinamentos das artes retóricas. Em sua Ars Rhetorica, Aristóteles cita exemplos, extraídos da obra de Isócrates, de construções de imagens para referir-se a eventos passados. Após cada exemplo, assevera: "isto é, pois, uma metáfora, e 'dispõe o objeto diante dos olhos'" (ARISTÓTELES, 1979).
É também Aristóteles quem diz que "uma aprendizagem fácil é, por natureza, agradável a todos" (ibid.), princípio adotado por Vieira, que busca o equilíbrio entre conceitos graves e conceitos simples, prefigurando os destinatários discretos e os vulgares. O engenho retórico e a agudeza dos seus estilos não podem, portanto, ser confundidos com meras figuras de linguagem e afetações gongóricas. Reitera Hansen (1999): "o que se entende hoje por 'barroco' não se confunde com a ornamentação no sentido de 'acessório de estilo' que o termo passou a ter a partir do século XVIII neoclássico".

Construções metafóricas no Sermão da Sexagésima
O Sermão da Sexagésima de Padre Antônio Vieira foi pregado na Capela Real de Lisboa em março de 1655. É uma obra literária e religiosa que encerra uma teoria da arte de pregar inspirada, de acordo com a teoria literária tradicional, em "moldes conceptistas", desenvolvendo uma crítica ao "gênero gongórico" e "cultista" das prédicas dos seus contemporâneos padres dominicanos. (MOISÉS, 1968)
Vieira lança mão de uma metáfora para explicar qual a causa do pouco fruto da palavra de Deus: olhos, espelhos e luz corresponderiam, respectivamente, ao ouvinte, ao pregador e a Deus. Conclui que a culpa é dos pregadores, e passa a analisar cinco circunstâncias da pregação: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz. A parte VI do sermão é a que se debruça sobre a matéria, e é sobre ela (e sobre suas figuras, metáforas e alegorias) que nos deteremos doravante.
A primeira metáfora vem após a afirmação de que os oradores da época "tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos" para um só sermão: "quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias" (VIEIRA, 1985). "Levantar caça" é expressão que se refere à prática de assustar o animal que está sendo caçado, obrigando-o a expor-se ao caçador. Em seguida, duas metáforas são elaboradas em sequência para elucidar a mesma assertiva:
Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? (ibid.)
Sobre a primeira, um comentário de Eugênio Gomes, na edição de 1985, observa: "Metáfora de sabor cultista". Fica evidente qual o quadro de referência teórica em que o organizador se situa, consoante a tradição crítica neoclássica, romântica e positivista.
O primeiro parágrafo termina com o seguinte período: "O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria" (VIEIRA, 1985). Nota-se que, ao se referir à "cor" do sermão, Vieira transfere para o campo semântico das sensações visuais um conceito que é a princípio abstrato, "dispondo o objeto diante dos olhos", como prescreve Aristóteles.
Após um parágrafo todo dedicado à repetição enfática do que "há-de" ser feito em uma boa pregação, Vieira enuncia que o sermão pode ter uma variedade de discursos, desde que comecem, continuem e terminem em uma só matéria. Em seguida, pergunta: "Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede" (ibid.). Articula-se, então, uma engenhosa comparação entre o sermão e uma árvore: uma árvore tem raízes (fortes e sólidas, fundadas no Evangelho), tem tronco (um só assunto tratando uma só matéria), tem ramos (estendidos, são diversos discursos), tem folhas (vestindo os discursos, ornando-os de palavras), tem varas (rigorosas, são a repreensão dos vícios), tem flores (formosas, são as sentenças) e tem frutos (proveitosos, são o fim a que se ordena o sermão). Nenhuma parte pode existir fora do conjunto: se tudo são troncos, é só madeira; se tudo são ramos, são só maravalhas; se tudo são só folhas, são só versas; se tudo são varas, é só feixe; se tudo são flores, é só ramalhete; e não pode tudo ser fruto, porque não há frutos sem árvore. "Mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen." (ibid.)
No excerto referido acima, Vieira visualiza um conceito mental através de uma formulação alegórica, "aparecendo para a audiência como o correlato sensível do inteligível do conceito" (HANSEN, 1999). É uma "metáfora continuada", de premeditado efeito pictórico ("dispõe o objeto diante dos olhos") que tem a capacidade de fazer o público discreto "fruir o artifício" engendrado na elaboração das imagens e, não obstante, causar no vulgar o "deslumbre do efeito". (ibid.)
No que se refere à agudeza (como a define Hansen (2000): "metáfora resultante da faculdade intelectual do engenho, que a produz como belo eficaz ou efeito inesperado de maravilha que espanta, agrada e persuade") de Vieira na metáfora da árvore, podem ser consideradas duas instâncias: a "duração" e o "intervalo semântico".
Sobre a duração, nota-se a presença da técnica da "disseminação e coleta", sobre a qual comenta Hansen (1999): "quando termina a anatomia de um determinado conceito, Vieira funde todos os outros que foram obtidos durante o processo em novas metáforas". A complexidade de tão extensa alegoria causa estranhamento ao leitor contemporâneo, e talvez pareça contradizer os preceitos de simplicidade e clareza que Vieira defendia com tanto afinco. Entretanto, no século XVII a duração era apreciada, pois acreditava-se que "as aproximações agudas de conceitos divididos e subdivididos e o próprio evento do discurso longo, complicado e acumulado, eram acontecimento da Presença da luz divina no mundo". (ibid)
Por outro lado, é perceptível a brevidade do "intervalo semântico entre a noção abstrata ou conceito e a metáfora que a representa exteriormente" (HANSEN, 2000), ou seja, a relativa facilidade para associar o visualmente sensível ao intelectualmente abstrato, sem a necessidade de um repertório excepcional ou grande empenho intelectivo. Ao contrário, o intuito da alegoria é adaptar o conceito para o mais vulgar dos públicos, uma vez que "a transferência de sentido que ocorre entre os termos converge para a consecução do fim persuasivo do discurso retórico" (CARVALHO, 2007). Por esse aspecto, Vieira se afasta da agudeza artificiosa e se aproxima do gênero popular.

Conclusão
Procuramos minuciar alguns aspectos da obra de Vieira sob a perspectiva da crítica cultural, levando em conta na análise a ampla apropriação que é declaradamente feita dos "preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos" (VIEIRA, 1985) na produção de seus sermões.
A forma de mesclar estilos e a capacidade de articular as diversas ferramentas retóricas (sobretudo metáforas e alegorias), adaptando-as aos seus diversos públicos e diversos propósitos, fez com que a crítica formulasse teorias sobre a "personalidade complexa" de Vieira e infindas discussões sobre a "coexistência de cultismo e conceptismo" em seu sermonário. Ao usar o "xadrez de palavras" que ele próprio censura, se valendo de ricos artifícios para dizer que sermão é "arte sem arte", é natural que o acusem de estar contradizendo a si mesmo. Mas para Hansen (1999) não é isso: "Pode parecer contradição, mas é decoro. Iluminado da luz natural, o juízo de Vieira é sempre discreto; por isso, não é contrário à agudeza, mas a seu uso indecoroso".

Bibliografia
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Introdução Goffredo Telles Júnior. Tradução Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 1979.
CARVALHO, Maria do Socorro Fernandes de. Poesia de agudeza em Portugal. São Paulo: EDUSP, 2007.
HANSEN, João Adolfo. Retórica da agudeza. Revista do Departamento de Letras Clássicas da USP, São Paulo, n. 4, p. 317-342, jun. 2000
HANSEN, João Adolfo. Vieira e a Agudeza. In: Furtado, Joaci Pereira. (Org.). Antônio Vieira. O Imperador do Púlpito. 1 ed. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros - USP, 1999, p. 25-38.
MOISÉS, Massaud. A Língua Portuguesa através dos textos. 1 ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1968, p.141
VIEIRA, Antônio. Sermões. In: Eugênio Gomes, org. 8 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1985, p. 136-9.



Anexo
"VI
Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há-de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos géneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há-de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há-de colher senão vento? O Baptista convertia muitos em Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto; e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há-de ser de uma só cor, há-de ter um só objecto, um só assunto, uma só matéria.
Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.
Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, S. João Crisóstomo, de S. Basílio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosíssimas orações de S. Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermão e homilias, uma coisa é expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo António de Pádua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco."
VIEIRA, Antônio. Sermões. IN: Eugênio Gomes, org. 8 ed. Rio de Janeiro, Agir, 1985, p. 136-9.

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