Usos de Gramsci e a tradução do marxismo na América Latina uma investigação sobre as revistas Presença e Pasado y Presente

May 28, 2017 | Autor: Camila Góes | Categoria: Argentina, Gramsci, Brasil
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA

Usos de Gramsci e a tradução do marxismo na América Latina uma investigação sobre as revistas Presença e Pasado y Presente Camila Góes | Prof. Dr. Alvaro Bianchi (orient.) [email protected]

Atividade editorial como atividade política A primeira tentativa orgânica de inserção do pensamento de Gramsci no âmbito da América Latina ocorre na Argentina, no interior do Partido Comunista Argentino (PCA) (Aricó, 1985, p.27). Esse esforço pode ser localizado já nos anos 1950 com as edições Latauro das Cartas desde la cárcel e dos Cuadernos de la cárcel, que promoveram a primeira difusão continental da obra do marxista italiano, e também com o periódico comunista Cuadernos de Cultura, que subsistiu até o momento em que a desagregação do peronismo levou o PCA à ilegalidade. Os grupos que permaneceram ligados a Gramsci reuniram-se em torno da revista Pasado y Presente, fundada no ano de 1963 (Aricó, 1982, p.13). O projeto inicial contava com a presença, em Córdoba, de Oscar del Barco, Samuel Kieczkovsky, Héctor Schmucler e José Aricó. O nome do grupo foi escolhido simultaneamente por Aricó e Juan Carlos Portantiero, que acompanhava o grupo em Buenos Aires (id., [1986] 2014, p.21). Extraído do título de algumas notas de Gramsci nos Quaderni, deixava desde o início explícita a sua principal fonte de inspiração teórica e política. Ao longo dos anos 1960, os argentinos gramscianos aprenderam a língua italiana, leram a obra de Gramsci e traduziram e publicaram um abundante material interpretativo que chegou a eles a partir da Itália – há traduções de Luporini, Della Volpe e Coletti no primeiro número da revista, de abril-junho de 1963, por exemplo, e de Togliatti e Banfi na revista noº 2-3, de julho-dezembro do mesmo ano. Este movimento de ideias acompanhou a observação de uma série de fenômenos que, segundo Aricó, se encontravam anteriormente “fora de lugar” na esquerda argentina: a questão dos intelectuais, da cultura, da relação entre Estado, nação e sociedade e do papel do partido dentro de um bloco de forças populares (ibid., p.35). Inicialmente, a revista contou com apoio do PCA, mas a primeira edição não foi bem recebida e o grupo foi expulso do partido. Os intelectuais vinculados à revista gramsciana se viam em um contexto intelectual marcado pela ausência de uma tradição que não estivesse associada, por um lado, às vertentes nacional-populares e, por outro, ao discurso marxista-leninista. A Pasado y Presente seguia, assim, um roteiro sem manuais, caracterizado pela própria experiência prática e pela conjuntura política, marcado inicialmente pelas tensões desenvolvidas em meio ao partido comunista, mas também em polêmica com as vertentes nacional-populares que tinham no peronismo sua expressão mais acabada.

Assim como na Argentina, é a partir dos anos 1950 que ocorre o primeiro momento da expansão de Gramsci no Brasil, em meio a um tímido processo de abertura. A referência ao marxista sardo, entretanto, permanece restrita aos jornais e revistas do Partido Comunista Italiano (PCI) que chegavam ao Brasil ao longo dos anos 1960. É nesse contexto que as primeiras edições da obra gramsciana são lançadas, esgotando-se com lentidão e dificuldade. O declínio da ditadura e a crise da chamada “velha esquerda”, não por coincidência, estiveram na raiz do grande crescimento da influência gramsciana, quando em meios da década de 1970 se deu no Brasil um fluxo de publicações de e sobre Gramsci. A partir do começo dos anos 1980, os primeiros estudos brasileiros dedicados propriamente ao pensamento do marxista sardo começam a ser publicados. É em meio a este contexto que se dá a formação da revista Presença. Inicialmente, o centro produtor da revista localizava-se na cidade de São Paulo, sob coordenação editorial de Marco Aurélio Nogueira e com o auxílio de Milton Lahuerta, que em 1985 passa assumir a editoria. Além de aglutinar variados intelectuais, um grupo de artistas também se vinculou à revista, dentre os quais Jaime Prades, Zé Carratü e Laerte Coutinho. Em 1986, a Presença se transfere ao Rio de Janeiro, passando à editoria de Maria Alice Rezende de Carvalho. Nesse novo período, além de Rezende de Carvalho, Maria Lucia Werneck Vianna e Luiz Werneck Vianna também assumiriam um papel central. No sentido de esclarecer os “traços não clássicos” da história brasileira, diversos autores da revista Presença recorreram à noção gramsciana de revolução passiva, dentre os quais se ressaltam Carlos Nelson Coutinho, Vianna e Nogueira. Em um esforço análogo ao da revista Pasado y Presente, a Presença nos oferece um material interessante para pensar a relação entre intelectuais e política em tempos de crise. No primeiro número da revista, lançado em novembro de 1983, Vianna explicitava esta questão. Para o autor, a luta pelo socialismo deveria passar também pela luta das ideias – “não há como se organizar a concepção de mundo do movimento operário sem os intelectuais e sem uma forma superior de elaboração para o problema da cultura” (Vianna, 1983, p.145). Desta forma, Vianna articulava um pedido de renovação à esquerda brasileira tomada em sua totalidade e ao Partido Comunista Brasileiro em especial. Este pedido de renovação estava intimamente ligado ao contexto de redemocratização pelo qual passava o país e o debate com a esquerda brasileira passava necessariamente pelos dilemas impostos pela renovação democrática. O artigo de Coutinho, “A Democracia como Valor Universal” (1979), havia produzido um impacto de grandes

proporções e a Presença testemunhou seus efeitos. Assim como na revista argentina, havia entre os gramscianos brasileiros um entusiasmo com a produção do comunismo italiano e, no Brasil, em especial, com o chamado “eurocomunismo”.

Tradução como atividade criativa Identificam-se duas questões importantes e que são compartilhadas, em certa medida, nas trajetórias das revistas Pasado y Presente e Presença. Uma delas diz respeito não só à recepção das ideias de Gramsci, mas ao próprio papel que o comunismo italiano, ou o que seria chamado “eurocomunismo”, cumpriu em ambas as iniciativas. Outro elemento para o qual chamamos a atenção é que, em meio a contextos de transição e crise, os dois coletivos editoriais se viram em confronto com o seu passado – os partidos comunistas – e com o seu futuro – buscando apresentar saídas e respostas para os dilemas que a democratização impunha ao pensamento de esquerda. A partir da ideia de tradução do marxismo, buscamos investigar como os dois grupos intelectuais se apropriaram destas grandes concepções gerais e produziram análises voltadas às particularidades do ambiente cultural e político específico do qual participavam. Partimos do pressuposto que a tradução pressupõe uma linguagem que necessita ser traduzida a uma realidade cultural e específica mediante um esforço que exclui toda possibilidade de aplicação ou perfeição. Propõe-se, nesta pesquisa, investigar uma linguagem – o marxismo – traduzido às realidades específicas da Argentina e do Brasil a partir da hipótese de que, contra a ideia de “aplicação”, tenha havido a produção de algo novo.

Referências Bibliográficas Aricó, J. Marx e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ____. Geografia de Gramsci na América Latina. In: Coutinho, Nogueira (org.). Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ____. América Latina: el destino se llama democracia. In: Crespo, H. (org.). José Aricó: entrevistas 19741991. Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, [1986] 2014. Coutinho, C. N. A democracia como valor universal. In: Silveira et al. Encontros com a Civilização Brasileira, v.9. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Vianna, L.W. Problemas de política e de organização dos intelectuais. Presença – revista de política e cultura, n.1, nov.1983

Jaime Prades. Sem título,1989; Sem título,1989; Sem título,1989 Colaborou para a revista Presença.

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