«Usos do primitivo africano na cena de ‘Orpheu’: uma incorporação de Fernando Pessoa», in Pedro Serra, coord., Modernismo & Primitivismo, Coimbra, CLP | Universidade de Coimbra, 2006, pp. 61-100.

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USOS DO “PRIMITIVO” AFRICANO NA CENA DE ORPHEU Uma incorporação de Fernando Pessoa PEDRO SERRA O negro sempre usa as últimas modas. O canibal, se estivesse aqui, sempre pediria (teria) os últimos pratos.1 Fernando Pessoa

Data de 1934 – como é sabido o ano da publicação de Mensagem –, em Portugal, um parco esboço mais ou menos manifesto de integração da arte dita “primitiva” dentro de um quadro de referência e reflexão propriamente estético. Refiro-me, muito concretamente, ao volume intitulado Arte Indígena Portuguesa, co-organizado por Diogo de Macedo e Luís de Montalvor2. A responsabilidade da capa do livro foi entregue a Almada Negreiros, que a resolveu com uma proposta suficientemente indexável a um “primitivismo” de pulsão modernista [cf. imagem nº1]. Dois textos preambulares antecedem o corpus principal de material iconográfico da responsabilidade dos fotógrafos Mário Novais, San Payo e Alvão. O primeiro desses textos foi escrito por Montalvor, o segundo pelo escultor Diogo de Macedo. Vale a pena demorarmo-nos da leitura destes dois ensaios, mais breve o primeiro, com explanação de maior fôlego o segundo. Em primeiro lugar, Montalvor assevera terem procedido os organizadores do livro “como num acto puro de fé artística”,3 culminando um parágrafo inicial de ressaibo kantiano. Assim, o “amor da arte” é “desinteressado” e é um amor que “reclama a mútua solidariedade da sua admiração”.4 O interesse desinteressado pela “arte negra” acabará por objectivar-se em dois atributos das peças coligidas sob a designação: “senso plástico” e “espontaneidade criadora”, atributos que legitimam a publicitação de objectos votados a um “obscuro

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isolamento”. É então que se apresenta a seguinte demarcação do que seja “arte negra”, uma demarcação que tem dois momentos, um positivo e outro negativo. Não sendo “românica”, “renascente” ou “clássica”, ela é “livre” em relação ao “meio” e confiadamente “individual”. A declinação “primitiva” une “sinceridade”, “espontaneidade” e “simplicidade”.5 Uma declinação “primitiva” positivada, nos antípodas do “bárbaro”. Assim, “[a]rte dos negros, dos gentílicos, dos povos sem cultura, de civilização precária, pobre de canons pre-estabelecidos, isentos de uma orgânica estética, de uma filosofia de arte dominante, referida ao ambiente social e ao meio étnico em que se manifesta, ela é o que deve ser: a visão particular e ideal da vida, tal como êles a concebem, utilizando os seus próprios meios de expressão. Não pode haver nela identidade com outras na representação do Belo”. 6 Esta “pureza” estética seria sem “temporalidade”, isto é, sem a pressão dos “renovos do futuro”. Uma espécie de juvenilia que, muito embora, deverá perfazer a destruição desse “[exílio] em si mesmo” para poder verdadeiramente nascer, coisa reservada a uma posteridade que, e só ela, poderá eventualmente testemunhar o “nascimento da futura Vénus equatorial”. O amadurecimento culminaria em algo como um “Botticelli indígen[a], operári[o] futur[o] de uma nova Beleza”.7 Montalvor ressalva, ainda, o “barbarismo linguístico” da designação de “arte negra”, e talvez não passe mesmo de apenas isso, isto é, da tradução tardia para a indigenia portuguesa de um influxo primitivista que francamente determinou outros Modernismos, mas certamente não o Modernismo português: o primitivismo, se aqui circunscrevermos esta complexa noção à multímoda negociação estética dos Modernismos com as artes africana, ameríndia ou oceânica8. Num sentido forte, o primitivismo relaciona-se, no discurso da Modernidade e na cultura do Modernismo, com a problemática da Origem, seja da história, da cultura ou da consciência individual. Nele e por ele se joga, também, a ponderação do futuro da sociedade. A importância da representação simbólica do primitivo, neste sentido, é

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dupla, ou duplamente ontológica: ora distingue o civilizado, aquele que é produto de uma História a que não ascendeu o primitivo da Natureza; ora representa o Civilizado que aspira a recuperar a naturalidade e o Mito perdidos. O primitivo reveste muitas formas, contradições e deslocamentos significativos. Configura um complexo nocional que deve incluir tópicas como a da Criança, do Louco, do Estranho, da Máquina, das Tradições Populares, entre outras formas simbólicas de uma Origem a que se regressasse – ou que compulsivamente retorna – como forma de resistir ao desencantamento do mundo racionalizado. Qualquer destas extensões do tropo primitivista, assinale-se, poderia mediar uma releitura da cena de Orpheu, seja Pessoa ou notoriamente Almada. Ora, Carl Enstein será, sim, epígrafe do ensaio de Diogo de Macedo, nomeadamente de um lugar do influente Negerplastik. Mas é-o, precisamente, post festum, isto é, não pode já obviar a espectacularização da pulsão primivista modernista. O facto, de resto já apontado – recordo, muito concretamente, a “falta de familiaridade dos modernistas portugueses com o discurso primitivista”9 –, não pede tanto a mediação da “arte” na negociação do discurso modernista português com os discursos simbólicos das então colónias do Império. A sistematização do juízo de uma produção “estética” africana deve-se, justamente, a figuras como Diogo de Macedo nos volumes, também encetados em 1934, d’ O Mundo Português. Pois bem, o escultor Diogo de Macedo, como dizia, coloca sob os auspícios de uma epígrafe de Einstein a colacção do material fotográfico reunido n’A Arte Indígena Portuguesa: “Carl Einstein, um culto e respeitável erudito em coisas de arte, afirmou que ‘l’art africain possède des qualités plastiques, ornamentales et picturales justifiant pour lui un rang auprès des arts universels’. Só por si, esta afirmativa saída da pena de tão sábia competência justifica a publicação do presente volume, visto nós, em Portugal, ainda o não termos reconhecido claramente, apesar-de possuirmos magníficas colecções, mas às quais não pudemos dar a sua devida importância, organizando-as em ordenado Museu, para

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que os incrédulos abdiquem do seu negativismo doentio”.10 Mais do que objecto de uma reflexão aturada, Negerplastik é citado como auctoritas, como “sábia competência”; o que, assim, difere o tempo demandado pela citação: mais do que sincronizar, citar a “sábia competência” dessincroniza o hic et nunc do gesto citacional. Efectivamente, Macedo perfaz novo episódio de um tópico cultural autóctone que remonta, pelo menos, ao Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, já nesses idos um tópico marcado pelo horizonte imperial da nação11. O “nós” que é Portugal precisa de avançar na consciência daquilo que, paradoxalmente, já é. Falta “reconhecimento”, falta objectivar a realidade de uma “arte indígena portuguesa”. Falta museu como faltara cancioneiro. O tempo “português” ressente-se, assim, de uma conhecida afasia cronológica; e é este (im)possível up-todate que o objecto bibliográfico organizado por Macedo e Montalvor visa perfazer. E especificamente nos idos de 1934 e anos subsequentes, esta complexa negociação cultural do “tempo português” é mediada por um outro tempo-espaço, o tempo-espaço colonial. Que não é exactamente outro conquanto a indigenia, neste caso a indigenia artística, é precisamente portuguesa; o que, registe-se, foi a par da produção de uma simbólica africanista apostada numa outridade radical. Nestes idos a ontologia subsume a história; a complexidade sobrevém porque o corpo transcendental português tem de moldar-se aos ventos da história, que sopram no sentido de outras conhecidas potências coloniais. Efectivamente, o cronótopo a que nos reportamos é aquele em que, adaptando conhecidos dizeres poéticos, o homem era homenzíssimo, a mulher mulherzíssima, o branco branquíssimo e o preto pretíssimo. O hic et nunc pode ser dado, por exemplo, por umas “primeiras leituras” – umas Primeiras leituras para uso das escolas indígenas dos primeiros anos da década de 30 – em que os factos corporais auto-evidentes são ditos por evidências como “Há homens brancos, e há homens pretos. A fêmea do homem é a mulher. O homem branco sabe muito. O preto precisa aprender para também saber”.12 Entretanto, para os sujeitos

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puramente imanentes e marcados em absoluto pela determinação racial, a aprendizagem da “esperteza e alegria”, muito rente a esse corpo que é como um facto, objectiva-se numa única mobilização física: “Os braços são para trabalhar”.13 As 108 peças escultóricas fotografadas que integam a Arte Indígena Portuguesa pertenciam a diferentes coleccionadores “privados”: Armindo Monteiro, João de Castro Osório, Luís Teixeira, Julião Quintinha, António de Melo, Bernardo Marques e Diogo de Macedo. Pertencem, ainda, à Sociedade de Geografia de Lisboa. As peças - mulheres indígenas, manipanços [cf. imagem nº2], vasos decorativos, animais, tronos de régulos, máscaras[cf. imagem nº3], bancos de sobas, ídolos, feitiços, cabeças, bustos[cf. imagem nº4], muquixes – são, entretanto, oriundas das Ilhas Bijagós, Moxico, Lunda, Luanda, S. Salvador, Cuango, Cusugo, Cabo Delgado, Lourenço Marques, Sofala e de Benim. Enfim, este desforço arquivístico integra o amplo progama propagandístico do Estado Novo, (re)inventando o “nós” como Império Colonial. É este, aliás, o desígnio explicitamente assumido pelos organizadores do volume, que “[p]restaram, por êste modo, um alto serviço à propaganda das manifestações e possibilidades da arte indígena portuguesa, em nada inferior à das outras colónias, cujo significado artístico constitue uma valorosa afirmação dos povos que, sob a égide da soberania lusitana, formam o vasto e rico património do Império Colonial Português”.14 Objecto que performatiza o “império de papel” português, jogado num contínuo delirante de legitimação autoreferencial. Momento típico de ideologia do estético: um “acto puro de fé artística” não é tão puro que cancele o interesse, no caso o de colocar a cultura, latamente considerada, ao serviço da soberania do Estado metropolitano. Um objecto como A Arte Indígena Portuguesa é também o que faz a diferença entre as partes somadas e um todo holístico: “Portugal pode ser apenas uma nação que possui colónias ou pode ser um Império. Este será a realidade espiritual de que as colónias sejam a

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corporização. A par da extensão territorial, o Império resulta, sobretudo, da existência de uma mentalidade particular. Funda-se esta, essencialmente, na certeza que a nação possue do valor das obras que já realizou, na vontade de a prosseguir ininterruptamente, na convicção que pode prossegui-la, vencendo todas as dificuldades”.15 Por outras palavras, é a cultura precisamente que visa emancipar a determinação territorial do Império por uma sua fundamentação transcendental: a Nação-Império será uma “realidade espiritual” que se suplementa no “valor das obras que já realizou”, reforçando-se o corpo com o que aprioristicamente é considerado parte dessa “realidade espiritual”. O fundo tautológico mais não faz do que devolver-nos o processo de repetição sobre que assenta o programa de propaganda ideológica estado-novista, tendo esse programa um momento fundamental na Exposição do Mundo Colonial Português de 193416, imediatamente após o Acto Colonial. Se Diogo Macedo é “pioneiro” de um interesse mais ou menos continuado pela “arte negra” – podemos, todavia, registrar algum antecedente mais propriamente criativo em Amadeo de Souza-Cardoso17 –, é também bom exemplo da sobredeterminação “racista” desse mesmo interesse. Aquele modo de ser de uma “arte indígena portuguesa” que antes de ser já o era, pode observar-se num comentário de Macedo que lemos no ensaio intitulado “Um Problema Nacional na Arte de Benim”, dez anos depois da Exposição do Mundo Colonial. No quadro de um claro preconceito e menosprezo racista, a valoração dos bustos de Benim passa pela consideração de uma Origem despoletada pelo/no passado colonial português áureo quinhentista: “Ora naquele tempo, no tempo em que as duas civilizações [isto é, europeia e africana] tomaram contacto e a indumentária daquelas figuras apresenta, só os portugueses podiam ter sido os transmissores e os mestres daquela arte, em lugares onde nenhuns outros europeus tinham chegado, e durante muito tempo tiveram único domínio. Logo aquela arte é, ainda que importada de além, mas composta com usos e saberes nossos, portuguesa”18.

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Neste sentido, sendo plenamente visível o nexo entre a portugalidade das colónias e a missão civilizadora portuguesa, o importante a reter é o facto de Macedo criar um dispositivo de leitura da arte africana enquanto “arte de excepção”. Por outras palavras, não se desvincula de uma quadro hermenêutico marcado pelo etnocentrismo europeu. Quando em 1944 recorda o interesse passado pela “arte dos negros”, fá-lo remetendo o interesse pelas manifestações artísticas africanas para o domínio do entusiasmo: “De uns entusiasmos que cultivei pela Arte dos Negros, deslumbrado pela sua misteriosa e orgânica fantasia, sem olhar às deficiências primitivas da técnica, anatomia, crueldade expressionista e terríveis constituições anímicas, ficou-me no espírito uma das tais cismas, dando por esgotadas em abundantes freimas, as sensações directas e sempre plásticas que tanta diversidade de estéticas me comunicaram”19. ‘Entusiasmo’ e ‘deslumbramento’ deflectem bastante o que de verdadeiramente “primitivista” pudesse haver no interesse pela arte dita “primitiva”. Falta aqui a pulsão prospectiva que anima o primitivismo Modernista. O primitivo que se foi redefinido e disseminando nos finais do século XIX nos escritos antropológicos, psicológicos e, por por outro lado, do darwinismo social – de um Spencer ou um Haeckel, por exemplo – determinaria a temática primitivista dos inícios do século XX. O primitivismo dado pela linguagem da ciência percorre a discursividade modernista, transcendendo e subsumindo diferentes ismos do período. Em grande medida, a legitimação estética da nova arte – da arte do novo – processa-se através da experiência da ‘arte primitiva’: recordemos a estética primitivista do já mencionado Carl Einstein, o cubismo ‘primitivista’ de Apollinaire e Picasso, o primitivismo vorticista, o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, et alii. O livro organizado por Macedo e Montalvor é antes, reitere-se, sintomático da apropriação propagandística que o nacionalismo imperialista do Estado Novo fez das culturas coloniais, a um tempo manifestações que legitimavam a história do colonialismo português e a

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necessária continuação dessa história. O “primitivo” não é aquele Outro política e esteticamente significativo das apropriações primitivistas modernistas fortes. Objectos como o livro Arte Indígena Portuguesa devolvem-nos, assim, um delírio imperial determinado por um discurso racial que subsume toda a cultura “nacional”, e que tem de resto uma jurisprudência sustentada em alicerces racistas. Efectivamente, como é sabido, também ao nível do discurso jurídico se pode observar a determinação racista do primitivo. Documento importante, o decreto nº 12533 de 23 de Outubro de 1926 sobre o “Estatuto Político Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique” estabelecia que: “[m]antemos para êles uma ordem jurídica própria do estado das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior, da sua existência”.20 A uma arte de excepção, uma indigenia como estado de excepção. Lembremos que o tropo primitivista, no sentido forte, articula uma crítica da civilização, crítica mediada por uma estética que se revolta, propondo-se “mestiça”, contra a sua versão cátara, sem dúvida um programa obstruído pelos ditames acima referenciados. Também este primitivismo, globalmente configurado como pré-história do presente em que começa o futuro, um presente re-encantado por uma “arte-todas-asartes” cosmopolita, reverberara uma década antes no fulgurante programa de Orpheu: “Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é aquela em que todos os países, mais materialmente do que nunca, e pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a América, a África e a Oceânia são a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu – mesmo aquele cais de Alcântara – para ter ali toda a terra em comprimido. E se chamo a isto europeu, e não americano, por exemplo, é que é a Europa e não a América, a fons et origo deste tipo civilizacional, a região civilizada que dá o tipo e a direcção a todo o mundo. Por isso a verdadeira arte moderna tem de ser maximamente

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desnacionalizada – acumular dentro de si todas as partes do mundo. Só assim será tipicamente moderna. Que a nossa arte seja uma onde a dolência e o misticismo asiático, o primitivismo africano, o cosmopolitismo das Américas, o exotismo ultra da Oceânia e o maquinismo decadente da Europa se fundam, se cruzem, se interseccionem. E, feita esta fusão espontaneamente, resultará uma artetodas-as-artes, uma inspiração espontaneamente complexa...”21. A estética órfica, na sua magreza, faz equivaler o primitivo ao tecnológico avançado, sendo de resto a tópica da Máquina uma forma do primitivismo modernista, com modulação autóctone destacada no avatar do Futurismo. Mas a verdade é que a pulsão manifestante – neste particular comprometendo a inflamação do verbo que manifesta – não se materializou numa praxis estética permeável ao relativismo cultural que a letra do texto pareceria prometer. Aqui, os usos do ‘primitivo’ denunciam já a sobredeterminação racista a que venho fazendo referência. A primitividade pode ser utilizada, assim, para representar globalmente a beligerância vanguardista em regime depreciado. O tempo do Ultimatum é ‘africano’ conquanto seja tempo de Pigmeus: “Falando a respeito do Ultimatum, disse Álvaro de Campos certa vez a mim: ‘Essa guerra é a guerra dos pigmeus menores contra os pigmeus maiores’. O nosso tempo mostrará (isto foi dito em janeiro de 1918) quais são os maiores e quais são os menores, mas de um ou de outro modo são todos pigmeus’”22. O eco débil da simbólica antropológico-etnográfica – lembremos uma Feira Mundial de Saint Louis, em 1904, que tanto moveu T. S. Eliot23 – que neste passo se convoca capitaliza dois discursos fortes: o da antropologia oitocentista e colonial cujo evolucionismo lê o mundo como progresso do primitivo ao civilizado; o da vanguarda estética que, naquilo que tem de relativismo cultural – aprendido de resto em sede antropológica –, permite rever a narrativa imperialista. É neste particular que se joga o caso português.

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Para Pessoa, neste como noutros aspectos numa clara situação pós-finissecular, “África” não revela fascínio. “África” é, antes, e nos antípodas do primitivismo modernista, o tropo do desencantamento e secularização do mundo. Figura da absoluta depreciação da vida moderna, é uso também anotado por Almada Negreiros, agora naquela conhecida modulação étnica de um Portugal como “o país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus!”24. Eis, enfim, uma possível versão, por Fernando Pessoa, do weberiano mundo desencantado pelo racionalismo: “Hoje tudo tem o como e o porquê científico e exacto. Explorar a África seria aventureiro, mas não é já tenebroso e estranho; procurar o Pólo seria arriscado, mas já não é. O Mistério morreu na vida: quem vai explorar a África ou o Pólo não leva em si o pavor do que virá a encontrar, porque sabe que só encontrá cousas cientificamente conhecidas ou cientificamente cognoscíveis”25. Aventura subsumida pela exploração, sendo que África é o objecto absoluto, isto é, o objecto absolutamente disponível para todas as codificações e recodificações, objecto nem político nem estético, antes nulo plenamente objectivado. Disponibilidade para recordar um mundo de objectos teológicos, para sempre perdido: “Se ao menos tivesse uma religião qualquer! / Por exemplo, aquele manipanso / Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. / Era feiíssimo, era grotesco, / Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê”26. É precisamente o “trazer de África” – o espólio de objectos ressemantizados como objectos etnográficos, com um exemplo bem conhecido na Expedição de Dakar-Djibuti de 1931 – o que relativiza uma religiosidade primitiva, também ela produto do contingente como ia propondo, por exemplo, nos primeiros anos do novecentos, um Émile Durkheim. Entretanto, especificações como o fragmentário neopaganismo ortodoxo de Alberto Caeiro – o paganismo por ele ensinado e que por ele se quer redivivo – implicam a tentativa de recuperação de um totemismo que um sujeito civilizado primitivo encarnasse – sujeito justamente dito

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“poeta”, pois é a ele que um já mencionado Eliot de facto reconhecia essa capacidade sensível. Uma potencialidade que assimila o poeta pagão a um engenheiro que tivesse nascido no sertão africano: “Parecendo assim que não somos mais que degenerados filhos da civilização cristã, indiferentes por doença e por fastio, não o somos. Um destino misterioso nos deslocou. Como engenheiros que houvéssemos nascido nos sertões africanos, trazemos em nós capacidades que não podemos realizar, o esboço de um destino que não poderemos cumprir”27. “África” nomeia o nulo matricial de um impoder. Como podemos observar, tudo isto pressupõe um discurso etnográfico reificado, de resto devolvido em imagem pelo próprio heterónimo. Mais adiante insistirei sobre a fábula da “Criança Eterna” que salta para fora de uma representação crística depreciada: “E até com um trapo à roda da cintura / Como os pretos nas ilustrações”28, a que voltarei mais adiante [cf. imagem nº 5]. Reificação que é, ainda, por exemplo, o estereótipo da dança e da música [cf. imagem nº 6] como próprio do nativo, o que também nos é dado por um verso como “Tango de pretos, fosses tu ao menos minuete!”29. Sobrelevo do legado modernista português em que o cliché africanista se concretiza apenas dois ou três poemas pessoanos. Fundamentalmente, no meu ensaio reduzo a matéria da primitividade na cena de Orpheu a este episódio exemplar: está o Tio Fernando, e estão os sobrinhos, a Mimi e o Luís Miguel. O Tio é o mago, e na casa do Estoril, com certas palavras que diz, os brinquedos dos pequenos ganham vida: “Cavalos e soldados e bonecas, / Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam, / E palhaços que tocam em rebecas...”30. As palavras do Tio são como as “das melhores das fadas”, e todos, Tio, Sobrinhos e brinquedos viventes, todos existem. Esta cena é doméstica, não está na História. Cena descronologizada, mas também com uma data, a da indústria dos brinquedos. Que se animem é de sempre, e próximo de nós fizeram cortejo vivo Woody e Buzz Lightyear. Histórias de brinquedos, mas também brinquedos com uma história. A datação que nos importa aqui é

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a dada precisamente pela referência a “pretos” que são brinquedos, nuns idos em que podemos fazer a arqueologia já de alguma “revolta” consciente da bonecada31. Eis, enfim, o que me parece ser exemplum cabal das transações entre discurso estético e gramática colonialista pessoana. Na referida sede doméstica, a pequenada familiar insta o Tio Fernando a que lhes diga, em voz alta, um poema, “O Soba de Bicá”. Quem recorda o poema é Manuela Nogueira, Mimi, a sobrinha. Adianto que desse Outro nomeado “soba de Bicá” vê-se a pele como trajo, isto é, ‘coisa nenhuma’ – chame-se-lhe ‘pele’, ‘trajo’ ou, por ambos nomes, ‘gajo’. O que se repete é a tópica da nudez do corpo negro, visibilidade da invisibilidade, que é o modo hegemónico de exibição do corpo negro no cronótopo a que nos reportamos [cf. imagens nº 7]. Registe-se que nesta cena, pensada em função do colonial, se desloca o “furor femeeiro do português”32. Neste ponto evidenciar-se-ia o descaso por uma modulação forte do patriarcalismo imperialista, conquanto determinado por uma pulsão erótica conquistador/escrava.33 A nudez trajada do soba é também ela “coisa nenhuma” na dessexualização do corpo parodiado. O soba de Bicá, maravilhoso gajo, usava um admirável trajo - que era feito de pele e coisa nenhuma. Um dia o soba, coitado, sentou-se por descuido em cima de uma brasa. Em vez de gritar: “Ai as minhas calças uhhh!...” Gritou ele, esquecendo o trajo: “Ai... minha fisionomia contrária”.34 Tio e Sobrinhos configuram uma cena em que o colonial e o Modernismo circulam sem maiores sobressaltos. Aqui, a ontologia

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negativa não é exactamente a do “nenhum” ou “nenhuns” que modula a crise da consciência. Isto é, derroga-se um soba como “coisa nenhuma”, figura do mais absoluto impoder35, e também absoluta despossessão. Podemos ler a “fisionomia contrária” como tropo de um tempo colonial ‘envergonhado’ e incapaz de tapar as ‘vergonhas’, ainda o tempo do Ultimatum: “E tu, Portugal-centavos, resto da Monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais na África”36. Reitere-se: o tropo africanista, em Pessoa, não articula uma pulsão primitiva que decorresse de um obsessão africana, ao jeito de outros modernistas. O tropo africanista, enquanto cifra da reverberação do arquivo primitivista, cumpre, não obstante, uma função. Veremos em que consiste essencialmente essa função. É sobejamente conhecida a ausência de cor local africana na obra pessoana, ainda que o dar por falta dela suponha que, por alguma razão, tivesse que estar presente África. Jennings, por exemplo, formula “[haver] uma frustrante falta de qualquer referência ao meio ambiente na obra sul-africana de Fernando Pessoa”37. Em termos muito equivalentes, também Severino constatou, referindo-se especificamente a Cape Town, que “[j]amais em seus versos ou nos escritos em prosa apareceria qualquer referência directa à cidade que o abrigara durante nove anos”38. A “primitividade” que observaremos na obra do Tio Fernando é a que se cifra como exotização absoluta do africano, articulação de um discurso colonial que, plenamente operativo no texto pessoano, circula por uma obra em que outras modulações “primitivas” são observáveis. Falarei, então, de um discurso cultural que ainda não colocou entre aspas o “primitivo”, para referir um processo que Marianna Torgovnick – no livro Gone Primitive. Savage Intellects, Modern Lives – cifra com esse possível tipográfico: “Along with the process that led to decolonization, the adjustment in thinking put the word primitive in disfavor in the decades after World War II – made it go into quotation marks”39. O processo é, sem dúvida, bem mais complexo do que uma marcação

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tipográfica pode objectivar, pois se o “primitivismo” é obsessão e cliché moderno e modernista, é também cliché e obsessão pós-moderna e pósmodernista. O riso infantil e doméstico convocado pela cena protagonizada por Tio e Sobrinhos é uma possível (enésima) revisão do objecto modernista. É, neste sentido, o mínimo pós-modernista que também aqui se interpela. Não abuso do “post”, suficientemente alertado em McClinock40, Hall41 ou Appiah42; ao invés, faço do ensaio sobre “O Soba de Bicá” uma sua alegorização. No mesmo gesto, proponho uma “incorporção” – no sentido estudado por Miguel Vale de Almeida43 – de Fernando Pessoa, muito dado a sublimações. Concedendo a um mínimo material, o que me interessa é a objectivação (im)possível do acto de inscrever o poema “O Soba de Bicá”, no ano de 1998, numa edição como a de O Melhor do Mundo São as Crianças. E que tudo isto seja mediado pelo riso infantil e doméstico, que entretanto será tropo da insufiência “estética” tanto d’ “O Soba de Bicá” como do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos. E não é por acaso que pretendo visibilizar as determinações contextuais de ambos os textos pela pequenada que ri quando o Tio Fernando diz um poema. Nada há mais contextual que o riso. Enfim, memória ridente do “clássico contemporâneo” por excelência, Fernando Pessoa. Um Fernando Pessoa retornado pelo ridículo: a bagatela risível é, por ventura, o objecto melhor situado para reler Fernando Pessoa. Seja, pois, e desde já devo advertir que o poema que elejo para pivotar o meu ensaio dispensa os fundamentos da filologia, dispensa um fundamento na filologia. Faço dele objecto sendo consciente do mínimo que o certifica: as sinapses e as inscrições neuronais de Manuela Nogueira, Mimi, a sobrinha de Fernando Pessoa. Os neurónios de Manuela Nogueira foram o suporte biótico do poema, o transportador vivo do texto. Manuela Nogueira testemunha ter ouvido dizer o poema, de viva voz, a Fernando Pessoa ele próprio. Era mesmo ele quem dizia o poema aos sobrinhos, era diante dele mesmo que os sobrinhos se riam. Esse riso infantil, sincronizado com a vocação “universalista”

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portuguesa, supõe também uma temporalidade dessincronizada. Se pede a convocação de uma “arte cosmopolita no tempo e no espaço”, é atravessado também por uma temporalidade linear que vai depositando “fósseis vivos”: o soba justamente. O “nacionalismo” projectivo pessoano nunca foi tão “universalista” que excedesse este entre-dois. Ora, o riso infantil não é muito diferente daquele que temos amplamente representado na literatura colonial coeva, que fez da derrisão do “assimilado” um dos loci comunes mais repetidos. Eis o retrato possível de um outro soba, sob o signo do grotesco que move a pulsão ridente, da autoria de Alexandre Malheiro [cf., também, as imagens nº 8 e 9]: “A indumentária em que nos aparece Caculo-Cusso era tudo quanto há de mais pitoresco e... ridículo: Vestia um antigo casaco cintado, côr de pinhão, em grande uniforme, de major de infantaria, sem charlateiras ou dragonas, com bandoleira branca, a tiracolo. Da cintura, presa com um cordel encarnado, pendia-lhe uma velha espada de copos amarelos”44. A infância de Mimi e Luís Miguel é o poder ter (l)ido a África com a Mariazinha que por lá andou. Aí o “preto”, sobredeterminado pela fisicidade, assusta. A pequenada é constantemente colocada perante uma diferença baseada na diferença corporal. A “carapinha”, a “língua de prêto”, os “dentes”. Muito didácticas, neste sentido, algumas das aventuras de Mariazinha em África, com sucessivas edições e sequelas a partir de 1925. Relevo dois episódios, um do capítulo “A festa dos Mancanhas”; outro, do capítulo “O zoológico de Mariazinha”. O primeiro implicando o corpo, o segundo os trapos que o envolvem. Vejamos. Mariazinha prepara-se para ler e estudar quando é repentinamente interrompida: “Qual não foi, porém, o terror de Mariazinha ao ver que todos aquêles selvagens entravam no jardim e se dirigiam, aos guinchos, para o caramanchão onde ela se encontrava! O que parecia ser o Chefe, por estar mais bem vestido e ter mais colares ao pescoço, mais penas na cabeça, começou a subir a escada, seguido pelos outros... Sem pinga de sangue, Mariazinha queria gritar e não podia;

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queria pôr-se de pé e não tinha fôrça nas pernas...”45 Depois do susto de morte, sobrevém a festa dos amigáveis Mancanhas [cf. imagem nº 10]. A ordem é restabelecida pela autoridade patriarcal do Pai da menina, que contenta os “selvagens” com garrafas de mata-bicho. No outro episódio, depois de baptizar macacos – tradução lúdica e infantil da mission civilisatrice portuguesa, a pequena protagonista delicia-se a “assimilar” símios e outros animais46 – e dar asilo a uma garça real, um papagaio cinzento, periquitos verdes, uma saninha, um cabritinho, um fritambá e uma chipamzefa, um dia Mariazinha decide passear com o fiel Lanhano. É então que uma nova experiência, uma nova lição africana, é representada. Lanhano apropria-se grotesca e impropriamente da indumentária “branca”. Vale a pena reler toda a sequência, pejada de exografias da “língua de preto”: “Lanhano, todo satisfeito, foi logo preparar-se e, daí a pouco, apareceu, todo elegante, com um fato branco muito bem engomado. Mariazinha, porém, desatou a rir logo que o viu: – Onde demónio fôste tu desencantar êsse chapéu? Lanhano, muito contente, respondeu: – Sinhora deitar lixo... Lanhano apanhar... Chapéu bonito dimais! Mariazinha ria às gargalhadas. A Mãi deitara fora o seu velho chapéu de palha encarnada, todo roto e desbotado, e Lanhano, o prêto mais janota de Bolama, pusera-o, triunfante, sôbre a espessa carapinha! E o pior é que estava felicíssimo, julgando-se uma estampa, um figurino! – Bonito, minina, bonito dimais! – repetiu na sua língua de trapos”.47 Algumas reflexões, neste sentido, sobre o corpo racial como corpo fisicamente marcado. Esta sobredeterminação da corporalidade devolve-nos o tópico da “proximidade” da natureza do indígena. Algo que, retomo por momentos o início do ensaio, é notório no modo de pensar os escultores africanos para um Diogo de Macedo. Assim, dirá que “[e]stes escultores sempre foram mais objectivos e visuais do que fantasistas e evocadores de espiritualizadas místicas. A sua inspiração, limita-se à variada fauna que os seus olhos apercebem. São moderados de imaginação, simplistas de técnica, muito próximos da natureza que os

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deslumbra, e se princípios de arte tivessem, aproximar-se-iam da arte civilizada, que quanto mais simples e sintética – o que bem difícil é de realizar – mais poética se torna, mais emociona as almas e mais vibrátil consegue ser à nossa sensibilidade”.48 Objectivismo, sensismo e deslumbramento pelo “natural” sublinham, e uma vez mais, um hiato intransponível entre barbaridade e civilização. Subjazem aqui conteúdos de carácter antropológico. Dentro dos estudos antropométricos, que como sabemos marcam a antropologia colonial portuguesa, gostaria de destacar documentos como o de Alfredo Ataíde sobre os “Tempos de reacção de indígenas das colónias portuguesas”, publicado em 1933. O texto tem um interesse suplementar pois o estudo sobre os indígenas – agrupados por regiões/tribos – é levado a cabo sobre os “indivíduos que vieram à Primeira Exposição Colonial Portuguesa, como representantes dos indígenas das nossas províncias ultramarinas”49. Os “tempos de reacção” aludidos dizem respeito a estímulos auditivos. O estudo coloca num extremo os “boschimanos” de Angola e, no outro, tribos de Mozambique – “landins”, “bachopes” e “bitongos” – e da Guiné – “mandingas”, “manjacas”, “jeruás” e “bijagós”. Ora, os “boschimanos” manifestam um tempo de reacção inferior porque, no âmago, são “[amantes] da liberdade”50, isto é, vivem “no estado selvagem”. Por seu turno, os bijagós são mais lentos porque “vivem cobertor pela sombra das Missões”51. Enfim, os “boschimanos” da Exposição Colonial “apresentam-se tímidos e sobretudo desconfiados. O seu olhar não cessava de vaguear por todos os lados numa incerteza receosa; e era tal o hábito contraído, que nem o ambiente sossegado e acolhedor de que estavam rodeados na Exposição o conseguiu desvanecer ao fim de três meses”52. Entretanto, também de Alfredo Ataíde remeto para o estudo “Ergografia nos indígenas das colónias”. O propósito, neste caso, é o de distinguir a capacidade de resistencia ao trabalho por parte do indígena. Mais concretamente, resistencia à fadiga. Nos caboverdeanos, por

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ejemplo, a quase “ausencia” de cansaço corrobora a imagem tópica de um povo “indolente”53 [cf. imagem nº11]. Uma das conclusões do estudo de Ataíde formula que o hábito do trabalho tem como consequência a resistência à fadiga. Assim explica, de resto, os resultados referentes aos indígenas da Missão de Caconda. Como conclusão, enfim, formula: “êste mesmo facto leva-nos a concluir, que talvez o nível mais elevado de civilização, provàvelmente graças à disciplina, melhora a capacidade de trabalho dos indígenas”54. Nélia Dias, num ensaio titulado “O Corpo e a Visibilidade da Diferença”, aborda o modo como estes estudos de antropometría produziam a natureza. Analisando, entre outros, estudos do antropólogo francês Paul Broca, centra-se na craniografia [cf. imagem nº12]. Relevo, considerando-os especialmente significativos para o meu argumento, o seguinte passo de Broca e o respectivo comentário de Nélia Dias: “‘A craniografia tem um duplo objectivo. Serve, por um lado, para obter figuras que se intercalam num texto, de modo a tornar ao mesmo tempo as descrições mais curtas e mais claras; por outro lado, serve para traçar desenhos de grande exactidão e rigor, sobre os quais se praticam construções e medições que seriam ora impossíveis, ora muito difíceis de praticar directamente sobre o crânio’. Obter uma reprodução automática da curva do perfil craniano e facial através do craniógrafo era atribuir aos instrumentos uma exactidão maior do que as dimensões sensoriais; além disso, a presenta humana, e, especialmente a do antropólogo, estava reduzida, porque eram os instrumentos que ‘trabalhavam’, mecanicamente como se fossem dotados de autonomia”55. Como nos diz Nélia Dias, implica-se na craniografia uma questão “epistemológica” determinante: a da objectividade. Na citação de Broca comentada, do meu ponto de vista, podemos ainda extrair um outro aspecto. Refiro-me ao carácter “retórico” da própria imagem craniográfica: uma imagem que permite reduzir e tornar auto-evidentes as descrições craniais. É neste ponto que, e um pouco mais adiante no seu ensaio, Nélia Dias explicita o modo como, na segunda metade do

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século XIX, se assimila antropologia e arte. O objecto antropológico é, em si mesmo, um objecto artístico: “Convém sublinhar que, na segunda metade do século XIX, a antropologia, tal como a arte, estavam confrontadas com questões semelhantes relativas ao problema da construção de representações realistas”56. Podemos encontrar aqui elementos úteis para uma leitura da figura dos “pretos nas ilustrações” do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos. Em primeiro lugar, considero que o sintagma é suficientemente abrangente de modo a implicar imagens como as que podemos encontrar em postais ilustrados, em gravuras ou em representações propriamente antropológicas. O “preto” ilustrado é tanto o crânio desenhado de um ensaio como o de Barros e Cunha “Crâneo de um Soba Quioco da Região do Saurimo, Lunda” [cf. imagem nº 13]; aquele jovem africano de um postal ilustrado; ou, enfim, as estampas do soba e da filha do soba [cf. imagens nº14 e 15], desenhadas ad hoc para o Álbum Comemorativo da Primeira Exposição Colonial Portuguesa. Ora bem, gostaria ainda de cotejar os termos do “Soba de Bicá” aos implicados de um outro poema pessoano, este um poema “maior”, o “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos. Em primeiro lugar, Caeiro, sensacionista “ortodoxo” e texto “unificador” do fragmentário programa neopagão, interpela o tropo “primitivista” enquanto heterónimo que propõe um desforço insano de “desaprendizagem” da medição simbólica do real. Um “desaprender” que, ao mesmo tempo, recuperaria um dictum poético ajustado ao real. O sensacionismo, enquanto negação do pensamento, projecta uma reversão a uma mediação estética do mundo. Programa “primitivista” na medida em que opõe a criatividade poética – o que no poema em causa se chamará “sonho” – a uma ontologia burguesa. Efectivamente, a família teológica é assimilada a uma domesticidade burguesa, como já foi apontado: “tanto a Santíssima Trindade como Nossa Senhora (e indirectamente também S. José, apesar de ser nomeado de passagem) [limitam-se] a deixar-se ir vivendo, pela eternidade fora, no cinzento e sufocante tédio típico da família

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burguesa”57. A reversão do “Cristo na cruz” na figura do “deus-menino” tematiza, assim, uma primitivização da pulsão criativa. A ‘criatividade’ primitivista insufla um modelo de gesto criador tributário da “espontaneidade”, do “instinto” e da “intuição”, atributos que se reconhecem naquela criatividade. Neste sentido, o primitivismo objectiva o desiderato de ruptura com a sociedade burguesa do progresso racional. O Modernismo capitaliza a figura do Primitivo como o oposto do Burguês. Simplicidade, liberdade de pensamento e de imaginação são os atributos que, como sujeito exterior ao círculo da ciência e da civilização, se considera caracterizam o primitivo. A pulsão primitivista é entendida como o esforço paradoxal de produzir a novidade regressando ao arcaico, a um passado sem tempo onde se situasse a infância do indivíduo e a infância da humanidade. Tudo isto, enfim, é apontado pelo dedo que aponta da “Criança Nova”, conquanto se distinga que, em relação ao “primitivo”, ela culmina um processo civilizatório póstumo. Na consignação tipográfica do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos – texto que grande parte das leituras históricas do poema postulam de difícil “encaixe” no corpus de Alberto Caeiro58 – lemos dois poemas dados por um mesmo tropo: o do “sonho como uma fotografia”. Sonho e fotografia não devolvem um mesmo registo imagético; a fotografia é depreciação; o sonho, o depreciado que se não supõe que seja. A fotografia é uma imagem que chega criada por uma insciência, justamente a derrogação da ciência divina da criação, potência de que se duvida. A fotografia não é visão fundante, não pode estar pelo belo, algo que só a letra impressa poderá fazer: “Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos, / Eles lá terão a sua beleza, se forem belos. / Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir”59. A fotografia, está, sim, pela repetição do mesmo. Essa mesmidade é também a do “trapo à roda da cintura / Como os pretos nas ilustrações”60. Nada distingue, entretanto, dizer-se de algo ser belo ou não: seja sonho ou fotografia. A identidade de sonho e fotografia reside no

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cancelamento da produção de diferença. Outro nome dessa indistinção é o poema, este “VIII poema”, onde só um excesso de estética permitiria distinguir o “Cristo eternamente da cruz” do “Menino Jesus verdadeiro”. O equívoco, por outro lado ainda, é o possível por uma impressão que doasse a beleza porque “Tem que ser assim por força”61. Aporias de uma textualidade poética exausta, e que tanto determina a possibilidade do sublime poético, como a sua dessublimação. Ora, não se é “por força” da mesma maneira, não o é o “trapo” num Cristo branco ou o “trapo” dos “pretos nas ilustrações”. O “preto nas ilustrações” ocuparia, indistintamente, o lugar do “Cristo eternamente da cruz” e o lugar do “Menino Jesus verdadeiro”? O “preto nas ilustrações” é tanto como o Cristo falsificado como a falsificação do Cristo. Não é o original infantil, quer dizer: mimetiza mas não pode negar o mimético: um pouco como o Lanhano de Mariazinha em África, é sempre cópia. O “preto nas ilustrações” não pode ver, e eventualmente o ver que se imagine devolver ao ser visto é ainda um ser visto. Há, assim, trapos e trapos, como noutro lugar da opus pessoana se pode ler, figurando a discriminação entre génios (verdadeiros e falsos): “Irrompem na civilização com a novidade de não pertencer a ela, fazendo a mesma vista que um negro na Escandinávia. Sua própria negrura é uma marca branca. A verdadeira novidade que permanece é a que tomou todos os fios da tradição e os teceu de novo num modelo que a tradição não podia tecer. As ideias essenciais do génio são tão velhas como a base do gênio que é a existência da humanidade. Cada homem de génio pega essa velha vestimenta gasta até ao fio”62. Trapos e trapos, que é como diz tropos e tropos: “negro” pode muito bem estar pelo idêntico a si próprio, mas não pelo que se diferencia. Se os trapos no “branco” é “vestimenta gasta” – isto é, uma História, uma Tradição – ainda redimível no Novo; os trapos no “negro” são mais da ordem da pele, isto é, de uma existência biológica, de uma negrura sem História: “A coisa essencial a respeito do bárbaro é ser absolutamente moderno; pertence

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inteiramente à sua época porque a raça que é a sua, não teve época civilizacional antes. Não tem antepassados além dos biológicos”63. A injunção do “il faut être absolument moderne” precisa de um “ser absolutamente moderno” jogado nestes termos. Duas maneiras de viver o imperativo da abstracção formal. Na modulação pessoana do “modernismo português”, o pouco “primitivismo africanista” que a obra nos devolve é a medida de um colonialismo cujo processo não pressupõe grande diferença entre uma fase menos consciente e outra mais “politizada”. Disto mesmo penso ser sintoma a possibilidade de o próprio Pessoa dizer, nas injunções messiânicas a que foi caro, o seguinte: “Para o destino que presumo será o de Portugal, as colónias não são precisas. A perda delas, porém, também não é precisa para esse destino”64. E também não anda longe a possibilidade de um dizer cego: “Não hostilizamos raça nenhuma, de nenhuma cor”65. A exemplaridade de uma proposta como a de um “primitivismo” na cena de Orpheu reside na cifra invariavelmente naturalizada do “primitivo” que nessa cena se encontre. Que de um “negro na Escandinávia” se diga que a “negrura é uma marca branca” significa que se é branco por default e que se é negro por marcação, ou, como foi consabidamente lugar comum, por pintura. Temos, aliás, na memória infantil um caso em que deveras personae “negras” o são pelas tintas, cumprindo-se ainda o “negro”, nesse episódio sul-africano da infância do Tio Fernando, em outros putativos atributos. As palavras são, uma vez mais, de Manuela Nogueira, sobrinha do poeta: “Uma vez, em Durban, os pais foram jantar fora e os empregados ficaram na cozinha a falar à volta da mesa. O Fernando lembrou-se de mascarar os irmãos com lençóis brancos e pintou-lhes a cara de negro, deixando uma rodela branca à volta dos olhos. Seriam fanstasmas. Depois subiram a um escadote e espreitaram para a cozinha por uma janela envidraçada no cimo da porta – a bandeira. O Fernando, numa corrida, desligou o quadro eléctrico e para chamar a atenção tocaram campainhas. Os empregados negros deviam julgar que se tratava

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de almas de outro mundo e fugiram, não tornando a aparecer essa noite”66. O jovem Pessoa terá emudecido perante o resultado, que muito altera a economia doméstica – patrões ausentes e serviçais desaparecidos. Eis uma vez mais a memória infantil, também mediada pelo riso: “A Teca contava isto sempre a rir, lembrava-se de que se tinham deitado e fingiram dormir. O Fernando, muito quieto, parecia que perdera a fala. Depois, saíram os quatro das suas camas a rir, e tiveram que contar a razão do desaparecimento dos empregados. O Pai João foi, no dia seguinte, ao bairro onde viviam os criados, mostrar os lençóis, o giz de cores e as campainhas, para os convencer a voltar ao serviço”67. Credulidade subalterna, infantilismo ou espírito supersticioso concorrem no rememorado; e na voz de um pater familias dir-se-ia assim: “Os pretos em África têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus mas são indispensáveis como auxiliares destes”.68 Mas, regressemos a Alberto Caeiro e ao “Soba de Bicá”. Tãopouco homologáveis são, de resto, as ignorâncias de si mesmo, seja em branco, seja em negro. Caeiro seria bem a encarnação dessa ignorância de si mesmo branca; o “negro nas ilustrações” é ignorante de si mesmo, mas num sentido diferente, segundo creio modulação paródica do primeiro. Um Caeiro certamente subscreveria um “trajo” que fosse feito de “pele e coisa nenhuma”, conquanto o sensacionismo de que é mestre é a nudez do “pensamento das sensações”. O soba de Bicá, diríamos, representa esse sensível imediado por uma roupa qualquer, pensamento e tecelagem dele no tempo. No soba de Bicá, calças e pele indistinguemse: ele é existência pura, o tal “bárbaro” privado de “antepassados além dos biológicos” que líamos mais acima. Mas, insisto, o regime é outro: o puro existente que é o soba de Bicá é da ordem dos“negros das ilustrações” e do “negro na Escandinávia”: repetição do idêntico. O branco Caeiro, por seu turno, porque não marcado como branco, é o idêntico na diferença. Se no negro a ignorância de si próprio é uma metafísica – daí o sempre ser possível ao Pai João convencê-lo a “voltar

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ao serviço” – a ignorância de si próprio de Caeiro é o querer situar-se aquém de uma metafísica. Aquele sujeito pré-lapsário demandado em Alberto Caeiro, cuja regressão acontece no momento derradeiro e póstumo de todo o processo civilizatório, teria como atributo uma pura “objectividade” sentiente. Pressuporia, como argumenta Óscar Lopes, uma “tábula rasa cognitiva” e, também – aspecto que me importa aqui destacar –, uma “tábula rasa moral”.69 Entretanto, no “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos, o Cristo “negro” cifra precisamente o lugar tópico de uma religião reificada, que pressupõe o a priori de um “negro” reificado: que é apenas fotografia ou ilustração. Quero crer que noutros lugares poéticos o “negro” cumpre idêntica função. É o caso do Primeiro Fausto onde lemos: “A qualquer modo todo escuridão / Eu sou supremo. Sou o Cristo negro. / O que não crê, nem ama – o que só sabe / O Mistério tornado carne. // Há um orgulho atroz que me diz / Que Sou Deus inconscenciando-me / Para humano; [...] / Seja eu o destruidor! Seja eu Deus ira”70; “Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro, / Pregado na cruz ígnea de mim mesmo. / Sou o saber que ignora, / Sou a insónia da dor e do pensar”71; “– Me toma a gorja, com horror de negro, / O pensamento da hora inevitável, / E a verdade da morte me confrange”72. Enfim, O gajo é “maravilhoso” porque, não falando, é como se falasse, magia que só pode oficiar o Tio Fernando que é como as fadas que animam os brinquedos. Não diz uma coisa, diria duas: ou “Ai as minhas calças uhhh!” ou “Ai... minha fisionomia contrária”. O soba só fala por interposta voz, que o faz falar. Explicito, entretanto, as reflexões já encetadas sobre o “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos. A fábula de uma reversão de Jesus Cristo “homem” na figura da “Criança Eterna” tematiza, reitero, uma primitivização da pulsão criativa, isto é, uma sua infantilização. O céu em que tudo é falso é o mundo reificado, um mundo que “falta à verdade”. Neste mundo depreciado há tempo transformativo, mas encerrado num eterno retorno do mesmo. Assim, a criança está “sempre

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séri[a]”, tendo que “de vez em quando tornar[-se] outra vez homem” e, ainda, “estar sempre a morrer”. O que define esta depreciação é que as imagens são sempre as mesmas. A cruz que “eternamente” “serve de modelo às outras” é bem a ur-imagem deste universo de imagens gastas. O tempo que o eterno retorno do mesmo produz é um tempo depreciado. Consome a possibilidade de se produzirem corpos diferentes. É aqui que temos a ideia da família católica “estéril”: a criança não teve nem pai nem mãe. Maternidade e paternidade – enquanto ideologemas – são objectos desse social reificado. A família burguesa é emblema da mediocracia democrática. De um Jesus Cristo que quer ser outro – não ser sempre sério, estar sempre a morrer, etc. – sabemos algumas coisas. Diferenciar-se do que até aí foi supõe “descida”, “tornar-se outra vez menino” e “fugir” (“tinha fugido”). Os dois versos onde conflui este processo de ser outro são os seguintes: “Depois fugiu para o sol / E desceu pelo primeiro raio que apanhou”.73 O lugar originário vazio – Deus dorme, a pomba voa – da “Criança Eterna” é ocupado por um auto-engendramento. O processo de reversão é auto-determinado pelo fiat criativo da própria “Criança Eterna”. Que cria, então? Por milagres, i. silencia a fuga; ii. autoengendra-se “eternamente humano e menino”; iii. e cria um modelo de Cristo “eternamente na cruz”. Note-se, pois, que há “um dia”, um momento singular, em que não se rompe propriamente o eterno retorno do mesmo. A criança subtrai-se à cruz auto-criando-se “humano e menino”, mas o “Cristo eternamente na cruz” é por ela também produzido. A paráfrase que acabo de levar a cabo não é um fim em si mesmo. Pretendo argumentar que o que o poema nos propõe é que a “Criança Eterna” re-cria o “mundo falso” – aqui reduzido ao modelo de um “Cristo eternamente na cruz” – de modo a auto-criar-se “Menino Jesus verdadeiro”. A re-criação é feita à imagem do Pai para ocultar ao Pai a auto-criação. O Pai nunca saberá que o Filho “fugiu”, e não o saberá porque o Filho o engana com um fetiche, um substituto perfeito,

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uma cópia perfeita do Filho verdadeiro. Note-se que a fábula despoleta duas cruzes em uma: para o Pai é a verdadeira – e é-o porque é repetida pelas cópias que a têm como modelo; para o Filho, essa mesma cruz é falsa – sendo que as cópias são-no de uma cópia. A fábula, retomo o argumento inicial, jogada nestes termos, tematiza a pulsão criativa; acrescentemos, a pulsão criativa do próprio Alberto Caeiro, mestre da ortodoxia sensacionista, cuja nova poesia prosada supõe, tal como o processo criativo da “Criança Eterna”, a falsidade da poesia dos poetas e a falsidade da metafísica dos filósofos. Ora, o que o mythos do poema introduz ainda, em ambos os casos, é a necessidade de uma deriva negativa paradoxalmente afirmativa. A verdade do Filho necessita da verdade do Pai; ao Filho pede-se a repetição de um processo de negação que o subtrai à falsidade do céu. Ambos, “Criança Eterna” e Alberto Caeiro, “cansa[m-se] de dizer mal de Deus”, performance que abre o possível da “visão” de uma pura existência das coisas: uma coisaapenas-vista é uma coisa-apenas-vista; e, claro, a visão-da-coisa-apenas é a visão-da-coisa-apenas. O problema reside, enfim, no facto de qualquer destas tautologias negar aquilo mesmo que afirma. Eis dois conhecidos casos deste modo tautológico para que tende o dictum de Caeiro: as “pedras são só pedras”, as “flores são apenas flores”74. A primeira ocorrência de “pedras” e “flores” e a segunda ocorrência de “pedras” e “flores”, afirmando a identidade entre ambas as ocorrências, nega também essa identidade para que possa haver afirmação. Se a minha leitura é correcta, esta “fissura” no constructo ontológico caeiriano – a sua inevitável subsunção a uma metafísica – é fulcral para a releitura do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos. Vejamos. A operação criativa da “Criança Eterna” distingue dois planos: i. o do mundo/céu de imagens absolutamente determinadas, i.e., mesmerizadas; ii. um modo novo de ver o mundo que se substancia, nos antípodas de i., na eternidade de uma diferenciação, tanto do sujeitocriança como do objecto-natureza. A precedência ontológica desta visão nova é uma necessidade, de outro modo a “Criança Eterna” mais não

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teria que instaurado a repetição do modo criativo de Deus-Pai. A “Criança Eterna”, recordo, cria a partir da rasura do par paternidade/maternidade; na verdade, cria essa rasura como a priori necessário ao gesto de re-invenção do Pai (o tal pai mesmerizado pelo fetiche do filho). Tudo isto tem implicações para a leitura da imagem de um Cristo “com um trapo à roda da cintura / como os pretos nas ilustrações”. Isto porque permite objectivar a determinação racial dos “pretos” como atributo cuja repetição mesmerizante infinita é produzida por uma criatividade que, não obstante, funda uma “ontologia da diferença”. É aqui que se materializa a implicação inalienável entre sensacionismo – enquanto programa estético avançado – e gramática da ideologia colonial. Um negro na Escandinávia, já vimos, “[s]ua própria negrura é uma marca branca”. O negro é sempre a estampa, a ilustração. A sobredeterminação racista – “um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo” – que objectiva o estampado é tão absoluta que o radicaliza como outro que não fosse também ego. Penso que estas reflexões permitem suplementar, e mesmo rever, o processo de diferença e negação implicado no sensacionismo, notoriamente em Caeiro, tal como é lido no importante e recente estudo de José Gil. Registo, em primeiro lugar, que José Gil não contempla no conjunto de outros territorializados a figura do “preto”. Reside aqui o meu interesse inicial por um poema tão explícito na implicação do arquivo colonial como é “O Soba de Bicá” que, todavia, me permite fazer a arqueologia da matéria num texto central do mestre do sensacionismo como é o “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos; e me permite, ainda, inquirir esse arquivo já nos idos do Fausto, do programa órfico, do Ultimatum e, enfim, nos implícitos poéticoideológicos da nação-império de Mensagem. Concluo precisamente o meu ensaio com esta última inquirição. Das reflexões de Gil sobre outros “negados” como a Ceifeira, o Esteves ou o Vasques, interessa-me sobrelevar, fundamentalmente, a

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possibilidade de serem “espelhamento”, na sua condição territorializada, da des-territorialização dos heterónimos (Gil inclui o ortónimo, o que aceito apenas provisoriamente). Sendo que, acrescente-se, o mais desterritorializado, ainda segundo Gil, é o “mestre” Caeiro. A deriva do múltiplo tem em Caeiro o seu lugar máximo. Assim, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Pessoa-ortónimo ocupariam um lugar “intermédio”, isto é, desassossegado ou trágico. São diferença e negação, articulam uma ontologia da diferença e uma metafísica da negação. Eis uma descrição possível, em palavras de José Gil: “Eu sou virtualmente múltiplo: o pólo territorializado-territorializante é uma parte virtual – e, em parte, actual, espelhando-se então no Outro pólo, Ceifeira, Esteves ou patrão Vasques” 75. Ora estes outros, porque são espelhantes, são também egos. São o fora reificado que estrutura o “em mim” “a partir do qual se desenvolva todo o movimento do desassossego-devir”76. Têm, pois, uma função, a de ser “ícones-referentes”. Pois bem, como se esperará, o meu argumento e o meu ensaio visam colocar a seguinte questão: pode o “preto nas ilustrações” ou “O Soba de Bicá” ser também, como essas figuras, falha necessária? A resposta, segundo creio, na sua dificuldade intrínseca, não é unívoca. Dizia há pouco que o “preto nas ilustrações” é uma outridade absoluta, não egótica porque racialmente marcada. Por conseguinte, substanciaria uma exterioridade mais iconizada do que a Ceifeira, o Esteves e os Vasques. O “preto” é, assim, mais do que estas figuras, uma realidade (des)encontrada. E, todavia, as consequências de aceitarmos este grau tão absoluto de exterioridade é o de – situação logicamente contemplada pelo próprio Gil, mas não pensada por não pensar o ícone do “preto” – enquistar o processo de diferenciação/negação “esgotando-o”77. Para não se “esgotar” o devir-diferença necessita do devir-negação, isto é, necessita de um movimento de territorialização-des-territorialização. Que acontece quando o ícone-referente não permite o momento especular como é o caso do “preto”? O que se verifica é que o devir-diferenciação se liberta

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por completo do mínimo des-territorializado e que tem de servir de apoio no ícone territorializado. Isto equivaleria a que a “ontologia da diferença” se purificasse ainda mais do que aquilo que já é. No “preto” a “Criança Eterna” encontrará uma dessubjectivação inesgotável que garante a sua pureza ontológica mais absoluta. Será assim? Aceitado os termos de Gil, o “corpo-sem-órgãos” seria, deste modo, “destruído”: “Não os destruir [i.e., não destruir a Ceifeira, o Esteves, o Vasques], sob pena de se destruir a si mesmo. Mais: é sempre necessário levar consigo, no devir, um pouco de estrato de significância, um pouco de estrato de subjectivação e também de organismo”78. Perante este quadro, duas possibilidades muito inquietantes se colocam: ou em Alberto Caeiro, ao contrário do que José Gil propõe no seu livro, a negação antecede a diferenciação; ou a dessubjectivação do “preto” não é tão absoluta. Desenvolverei, precisamente, ambas as hipóteses, pois penso que tanto o “VIII Poema” como “O Soba de Bicá” as tornam possíveis. Contudo, antecipo já que em ambos casos temos a subsunção do projecto estético sensacionista a uma “significância” (no sentido de Gil), mais concretamente a uma moral – por muito que Pessoa objectasse a uma determinação moral da arte, claro está –, a uma exclusão moral e uma moralidade da exclusão: o sensacionismo é uma estética branca. Este resultado é certamente trivial, mas trata-se de uma trivialidade argumentada: ensaio a mostragem de como funciona, e como é funcional, uma tal banalidade no projecto Modernista pessoano. Vejamos, pois. Dizia mais acima que a “Criança Eterna” se autoengendra, isto é, se inventa múltiplo. A lição do deus que faltava, entretanto, é também essa produção do múltiplo numa “visão” especial. Ora, o cristo reificado que inventa como contraponto metafísico da “ontologia da diferença” não é um Cristo “preto”. O que se desloca metonimicamente entre esse fetiche crístico e o “preto” das ilustrações são os “trapos”. Digamos que o “preto” é arrastado para a cena representada absolutamente subsumido pelos mediadores: trapos, ilustração. A comparação não compara organismos, não compara

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sujeitos. O festiche crístico é assimilado a um outro fetiche que, já o disse noutro lugar, visibiliza e invizibiliza o corpo “preto”: os trapos. Assim, e onde quero chegar, “pretos” no sintagma “como os pretos nas ilustrações” não nomeia um corpo orgânico, nomeia um atributo que marca o indivíduo e o subsume. Por outras palavras, um atributo que o nega como indivíduo. Creio que se evidencia bem o paradoxo que aqui sobressai: Alberto Caeiro não “visiona” o “preto” em função do seu modo de ver sensacionista. A “ontologia da diferença” não funciona com o “preto”. A “especularidade” necessária ao devir-diferença é, por defeito, by default, e uma vez mais, branca, de um branco não marcado: o cristo adulto que fica na cruz é branco. Anterior à deriva ontológica da diferença, e resistindo-lhe cegamente, há um conteúdo metafísico: a discriminação branco/preto. Por seu turno, o caso do “Soba de Bicá”, à luz do que tenho estado a argumentar, assume uns contornos importantes. Quero crer que, ao contrário do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos, este poema infantil põe a circular, precisamente, o “espelhamento” (uso o termo no sentido que lhe concede Gil) de um sujeito branco num sujeito negro. Recordemos, assim, a magia do sujeito do poema que faz falar o “soba”. Prestemos atenção, aliás, para os possíveis enunciados: em vez de “As minhas calças uuhh...” terá dito “Ai... minha fisionomia contrária”. Esta “fisionomia contrária”, diria, tanto referencia a visibilidade/invisibilidade do “trajo” (grotesco) como pode objectivar a consciência de um sujeito que se sabe subsumido por uma marcação física: por uma fisionomia contrária, justamente. Ora, quem fala aqui? O falante animado ou o ventríloquo? Seja como for, para activar o grotesco – que move o riso, recordemos – o poema tem que subjectivar o “soba”. Dirse-ia que alguém voltou a ir à caixa dos milagres; talvez para fazer a derrisão da caixa dos milagres. Permita-se-me este modo mais obscuro, que pretende significar que teríamos no “Soba de Bicá” uma paródia do sensacionismo: um “preto” que se inventasse outro, ou que fosse espelho

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(e consciência infeliz, lembremos o “coitado”) do poeta sensacionista. Sabemos, enfim, que a pequenada se ria do poema. Regressemos, para concluir, a 1934, ano da publicação de Mensagem, e cuja releitura poderá ser produtivo levar a cabo em função do cliché africanista. Os dois modos de nudez a que me venho referindo – a do branco Caeiro e a do “soba”/“preto nas ilustrações” – têm consequências para a ponderação de um Pessoa de quem, noutro contexto, Óscar Lopes afirmou revelar uma “atitude fundamentalmente não colonialista”79. Percorrendo as notas e fragmentos avulsos sobre o problema “nacional (ou Império)” não é difícil encontrar o porquê dessa atitude e sobretudo o que ela manifesta. O pensamento do império, em Pessoa, é consequente com uma cisão intransponível entre o “civilizado” e o “primitivo ou selvagem”. Na leitura que proponho no meu ensaio, o “primitivo ou selvagem” é um outro não civilizável, notoriamente o “selvagem” africano: “Recordemo-nos sempre que o fim de colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que lá está, mas sim levar para esses territórios elementos de civilização. O fim não é altruísta, mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da sua própria civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não é, de modo algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse país. A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, que de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização”80. Este imperialismo que “coloniza territórios desertos ou de raças incivilizáveis”81 é o imperialismo de expansão, coimplicado de resto no tal imperialismo cultural que necessita de uma “base material para se poder expandir”82. O famigerado imperialismo de poetas e de gramáticos83, revisto pela base de sustentação racista, pode chegar a dizer-se, por uma lógica interna perversa, não ser nem uma “brutalidade” nem um “humanitarismo”: “Queremos impôr uma língua, que não uma força; não

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hostilizamos raça nenhuma, de nenhuma cor, como em geral não temos hostilizado, porque podemos ter sido por vezes bárbaros, como todos os imperiais de conquista, mas nem fomos mais, senão menos, que outros, nem nos pode ser contado como defeito que excluíssemos os de outra cor da nossa casa ou da nossa mesa”84. Nos deves e haveres do preconceito, não se faz cômputo do racismo (como de resto o não faria, por exemplo, um Jorge Dias, para quem o povo português não é racista): excepcionalidade que é prerrogativa de nação com destino. Neste sentido, a inflação de um futuro por cumprir, um futuro sempre em excesso, acaba por legitimar o passado “material” da nação-império85. Enfim, há que completar a citação que Óscar Lopes faz da resposta pessoana ao inquérito de Augusto da Costa em 1934, e sublinho precisamente o facto de Óscar Lopes truncar o trecho citado: “Para o destino que presumo que será o de Portugal, as colónias não são precisas. A perda delas, porém, também não é precisa para esse destino. E, por certo, sem colónias, ficaria Portugal diminuído ante o mundo e perante si mesmo, material como moralmente. As colónias, portanto, não sendo uma necessidade, são contudo uma vantagem”86. Lugar glosado ad nauseam, não deixa de ser significativo que tal glosa se tenha subsumido num resumo que nos devolvesse um Tio Fernando “indiferente” às colónias. Completando a citação, torna-se ponderosa a equivalência entre a que pode ser considerada “uma atitude fundamentalmente não colonialista”, no dizer de Óscar Lopes, e essa mesma atitude como atitude fundamentalmente colonialista. Não há grande diferença entre aquela última fórmula de uma desvantajosa “diminuição” moral e material e a retórica de grandeza territorial da propaganda do Estado Novo. Por outras palavras ainda, a “atitude fundamentalmente não colonialista” de Fernando Pessoa é insignificante de um ponto de vista político. E cabe, penso, perguntarmo-nos o que significa verdadeiramente a ausência de “necessidade” das colónias para o destino “presumido” por Pessoa. Não havendo necessidade, há vantagens. Enfim: há um vínculo inextricável, uma interdependência inalienável,

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entre a projecção de uma identidade nacional/universal emancipada do domínio da necessidade e a determinação material – as tais “vantagens” – dessa identidade a emancipar. Aquela utopia e esta realidade tropeçam sempre: é este tropeço o que nos devolve o “estorvo” das colónias – são também desassossego – para Fernando Pessoa. A objectivação absoluta do ‘outro’ africano que temos no poema “O Soba de Bicá” – objectivação anotada precisamente na imagem dos “pretos como nas ilustrações” do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos – é concomitante com a circulação reificada do indígena tanto na ‘vida’ como no espaço da espectacularização cultural. Recordo, neste sentido, as palavras de Henrique Galvão a respeito da representação etnográfica colonial na Exposição Colonial de 1934, acolhida pelo Porto no Palácio de Cristal e jardins adjacentes: “Cada Colónia – explica Galvão – enviou os seus nativos, que foram alojados em aldeias ou habitações típicas, continuando na Exposição a sua vida, usos e costumes coloniais”.87 Um Império Colonial espectacularizado, cujo efeito de verdade passa não apenas pela lilliputização do vasto território colonial, como necessita desta presença física dos nativos [cf. imagem nº 16]. Visitar a exposição mediando a visita com o objecto vivo significaria “experimentar” o próprio Império, seria como “ter estado lá”. Experiência simbólica que transmuta o ‘pequeno’ em ‘grande’, muito ao jeito do conhecido e engenhoso mapa encimado pela legenda “Portugal Não é um País Pequeno”. A negação, bem vistas as coisas, repete a afirmação que pretende negar. Objecto grotesco, visto ser jogado no entre-dois do pequeno/grande, é bem um objecto ridículo. Movendo um riso incómodo, um riso difícil, como diria Foucault. Que continue, hoje, a produzir vontade de rir é o que a minha leitura não consegue completamente explicar, e que só uma “teoria cum riso” poderia redimir. In Modernismo & Primitivismo (Coimbra, CLP/Universidade de Coimbra, 2006, pp. 61100. Ed.: Pedro Serra.

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NOTAS Pessoa, 1973, p. 24. Cf. Macedo/Montalvor, 1934. 3 Ibidem, p. [3] 4 Ibidem. 5 Ibidem, p. 4. 6 Ibidem, pp. [3-4]. 7 Ibidem, p. 4. 8 Eis uma síntese possível desta noção de “primitivismo”: “Primitivism describes a Western event and does not imply any direct dialogue between the West and the ‘Others’. In the context of modern art, it refers to the attraction to groups of people who were outside Western society, as seen through the distorting lens of Western constructions of the ‘primitive’ in the later part of the nineteenth century” (Rhodes, 1994, p. 8). 9 Medeiros, 2001, p. 512, n. 11. 10 Op. cit., p. [15]. 11 “Todos estes feitos e outros muitos d’outras sustancias nam sam divulgados como foram, se jente d’outra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si, que nam querem confesar que nenh us feitos sam maiores que os que cada u faz e faria, se o nisso metessem” (Resende, 1990, p. 10). 12 Jaime J. de Sousa e J. N. Oliveira Martins (professores primários), Primeiras leituras para uso das escolas indígenas, Aprovado oficialmente por Despacho da Inspecção da Instrução da Colónia de Moçambique de 27-8-1931, [S.l. : s.n.], [Porto: -- Tip. Sequeira Lda.], [1932], p. 31. 13 Ibidem. 14 Montalvor, p. [6]. 15 Monteiro, s.d., p. 56. 16 O Musée des Colonies da Exposição Colonial de Paris de 1931 reverbera também esta tensão entre o “nacional” e o “colonial”: “The Musée des Colonies provides a case study of the discourses contesting the representation of France as a nation between the wars. The conflict between France as an integrated unity of métropole and colonies versus France as a loose association of provinces and colonies percolated through the debates over nationalism in the Third Republic. The contradictions within the museum’s program reveal disparities within French national identity and its colonial policies and practices, which could not be resolved in a single building” (Morton, 1998, p. 375, col. I). 17 José Augusto-França refere a inspiração “negra” de “Tête d’Étude” via Mondigliani: “Entretanto, um encontro de amizade com Mondigliani (com que expôs em 1911) deu a Amadeo uma indicação de caminho original, num estilo graficamente precioso, algo heráldico, onde ecoavam cenografias dos ballets russos e lembranças do “Jugenstil” de Munique, em paisagens exóticas. A mesma estilização manifestou-se em 1912 num álbum de “Dessins”, que o prefaciador francês achava elegantes, misteriosos, exóticos e simbolistas, e 1 2

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que L. Vauxcelles, crítico de acatada autoridade, apreciava como coisas “maravilhosas” e “prodigiosas”, nos seus requintes bizantinos e algo decadentes. O artista comprazia-se aristocraticamente, ou snobemente, nessa prática: data de então uma cópia manuscrita e ilustrada da Légande de Saint Julien l’ Hospitalier de Flaubert, realizada no mesmo gosto. Mas já uma das estampas do álbum, um “Tête d’Étude”, inspirada nas máscaras negras que o cubismo descobrira esteticamente, anuncia outra posição, arredada do “sentimento e da psicologia romanesca” e atenta à “notável evolução” da arte desses anos”. França, 1991, p. 29. 18 Macedo, 1944, p. 6. 19 Macedo, 1944, p. 1. 20 Apud Martinho, 2000, p. 22. 21 “[O que quer Orpheu?]”, Pessoa, 1985, pp. 407-408. 22 “[Sobre o Ultimatum]”, c. 1919, Pessoa, 1985, p. 161. 23 Cf. Bush, 1995, passim. 24 Almada, pp. 16-17. 25 “[A arte moderna é arte de sonho]”, c. 1913, Pessoa, 1985, p. 296. 26 Do poema “Esta velha angústia”, Pessoa, 1986, p. 389. 27 “[O paganismo de Caeiro]”, c. 1917, Pessoa, 1985, p. 114. 28 Do “VIII Poema” do Guardador de Rebanhos. 29 “Ultimatum”, s.d., Pessoa, 1985, p. 513. 30 Do poema “A Fada das Crianças”, in Pessoa, 1998, p. 25. 31 Refiro-me ao conto “Os bonecos de Nini” de Alves Redol, publicado em 1932. Cf. Silva, 1993, p. 131. 32 Freyre, 1933, p. 78. 33 Recorde-se Freyre: “o intercurso sexual entre o conquistador europeu e a mulher índia […] verificou-se – o que depois se tornaria extensivo às relações do señor com as escravas negras – em circunstâncias desfavoráveis à mulher [… Portanto,] o furor femeeiro do portugués se terá ejercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes no gozo” (ibidem, p. 78). 34 Pessoa, 1998, p. 20. 35 Eis uma síntese possível: “Educar, instruir sim... mas o quanto bastasse, esta a fórmula de se apropriarem das gentes e dos bens. Era necessário que o indígena não só fosse, mas se visse e sentisse “nada”. Deste modo o caminho para dominar e perpetuar esse domínio se encontrava salvaguardado. Falando a língua do colonizado, trajando como ele, vivendo como ele, mas tudo e sempre grotescamente, porque de uma cópia se tratava. Por mais que fizesse, o indígena não podia ser, este o seu handicap. Era preciso que ele o soubesse, para que não aspirasse, para que não se rebelasse. Era fundamental torná-lo consciente de que o lugar que lhe tinha sido (pre)destinado, não lhe era estranho, não lhe tinha sido imputado pelos brancos, mas sim pela própria natureza. Era afinal torná-los resignados, tarefa para a qual a igreja católica sempre foi exímia, e que no presente caso não defraudou” (Vera Cruz, 1994, pp. 140-141). 36 “Ultimatum”, s.d., Pessoa, 1985, p. 510. 37 Jennings, 1984, p. 15. 38 Severino, 1983, p. 42. 39 Torgovnick, 1990, pp. 19-20. 40 McClinock, 2000.

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Hall, 2000. Appiah, 2000. 43 Cf. Vale de Almeida, 1996. 44 Malheiro, p. 129. 45 Castro, c. 1940, p. 53. 46 Cf. Rego, 1958, p. 192: Eis uma definição possível deste processo de assimilação: “o processo pelo qual o povo colonizador procura elevar até si, por todos os meios ao seu alcance, os indivíduos ou indígenas colonizados. Com efeito, povo pode significar já qualquer agregado social ou político. Não há exemplo, na história da colonização portuguesa, de o esforço colonizador se ter dirigido a qualquer povo ou nação. Pelo contrário, o objecto directo do esforço colonizador português foi sempre o particular, o indivíduo”. Esta tensão entre um “indivíduo” objecto de assimilação e rasura da marcação identitária grupal desse indivíduo permite configurar um programa biopolítico em que a indigenia é um estado de excepção: os indivíduos são destribalizados, mas não perfazem nunca por completo essa destribalização. Veja-se, neste sentido, como Marcelo Caetano tipificava os indígenas destribalizados: “[indígenas destribalizados] Pretos ensinados nas missões ou a viver em fazendas, fábricas ou cidades que abandonaram a vida tribal e grande parte dos usos e costumes tradicionais para adoptarem um padrão de vida em que a prática de alguns hábitos europeus se mistura com a persistência de traços característicos ainda da maneira de ser do gentio e que, por isso, embora já dissociados das tribos primitivas, não deixam de ser indígenas” (Caetano, 1954, p. 17). A determinação racial do indígena acaba por sobrepor-se aos efeitos da sua ascese cultural, justificando-se assim sempre a “desigualdade”. 47 Castro, c. 1940, p. 112. 48 Macedo, 1934, pp. [13-14]. 49 “Tempos de reacção”, p. 408. 50 “Tempos de reacção”, p. 409. 51 “Tempos de reacção”, p. 411. 52 “Tempos de reacção”, p. 410. 53 “Ergografia”, p. 413. 54 “Ergografia”, p. 416. 55 Dias, 1996, p. 33. 56 Dias, 1996, p. 35. 57 Cf. Cattaneo, 1979, p. 78. 58 Cf. Cattaneo, 1979; Tabucchi, 1984; Bréchon, 1997; Kotowicz, 1998. 59 Pessoa, 1986, pp. 235-236. 60 “Nem sequer admiramos a beleza: admiramos apenas a sua tradução. Todas as ruas têm várias raparigas não menos belas do que as do cinema. Qualquer escritório deita cá para fora, à hora do almoço, jovens tão bem-parecidos como os homens ocos do cinema” (Pessoa, 1973, p. 258) 61 Pessoa, 1986, p. 236. 62 Pessoa, 1973, p. 24. 63 Pessoa, 1973, p. 24. 64 Pessoa, 1979, p. 254. 65 Pessoa, 1979, p. 239. 66 Pessoa, 1998, p. 53. 67 Pessoa, 1998, p. 53. 41 42

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Caetano, 1954: 16. Cf. Lopes, 1990, p. 153. “Como acabo de recordar, a apologia da vista e dos sentidos à Alberto Caeiro é, muito conscientemente, irredutível a uma verbalização consciente. A aprendizagem de desaprender é, pois, rigorosamente, a de uma mística, como a mística de tantos poemas ortónimos e outros, mesmo sem qualquer alegoria de neo-platonismo rosa-cruciano, mas em que as lições mais importantes se insinuam pela negatividade, pela dupla verdade, pelo paradoxo ou pela autocontradição evidente. Caeiro foi, sim, o mestre de Ricardo Reis, de Álvaro de Campos, e do próprio Pessoa, na medida em que constitui um exercício de ascese e de teologia negativa, sobretudo expurgadora do saudosismo, do cristianismo (ou cristismo, como prefere dizer) e do republicanismo pretensamente humanitário do seu tempo” (Lopes, 1990: 156). 70 Pessoa, 1986, pp. 458-9. 71 Pessoa, 1986, p. 459. 72 Pessoa, 1986, p. 462. 73 Pessoa, 1986, p. 209. 74 Pessoa, 1986, p. 219. 75 Gil, 1999, p. 78. 76 Gil, 1999, p. 79. 77 Cf. Gil, 1999, p. 78. 78 Gil, 1999, p. 79. 79 Lopes, 1990, p. 144, n. 6. 80 Pessoa, 1978, p. 217. Eu sublinho. 81 Id., ibid., p. 221. 82 Id., ibid., p. 229. 83 Cf. García Martín, 1998. 84 Pessoa, 1978, p. 239. 85 Cf. O estudo sobre Mensagem de Santos, 1992. 86 Id., ibid., p. 254. Eu sublinho. Óscar Lopes cita apenas até “para esse destino” (cf. 1990, p. 144, n. 6). 87 Galvão, 1934, p. 19. 68 69

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