Usos políticos das memórias da Segunda Guerra Mundial pelo governo Putin: o culto aos veteranos e a reabilitação do período stalinista

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[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO   Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2       SÉCULO  XX]   ISSN  [2236-­‐4846]  

Usos políticos das memórias da Segunda Guerra Mundial pelo governo Putin: o culto aos veteranos e a reabilitação do período stalinista. Icles Rodrigues* Em 18 de fevereiro de 2015,o site do jornal The Moscow Times publicou uma matéria noticiando que o governo russo passaria a financiar projetos de filmes de caráter patriótico. Dentro de uma lista de dez temas, estavam incluídos “Crimeia na história da Rússia”, “O golpe de agosto de 1991: mitos e realidades” e “A guerra Russo-Japonesa de 1905: vitória que terminou em derrota”, segundo a publicação do Fundo de Cinema estatal. Os filmes receberiam um milhão de rublos (cerca de dezesseis mil dólares) em financiamento, tendo o ano anterior gerado sete filmes financiados pelo Estado, ainda segundo a notícia do jornal (MOSCOW TIMES, 2015b). Em um primeiro momento, poderíamos associar tal decisão à polêmica levantada pelo filme russo concorrente ao Oscar de Melhor filme estrangeiro de 2015 e vencedor do Globo de Ouro, Leviatã, que carrega uma forte crítica social a aspectos da Rússia contemporânea, como a evidente corrupção política, o alcoolismo, entre outros. O filme, financiado pelo Ministério da Cultura, foi duramente criticado pelo próprio Ministro da Cultura Vladimir Medinsky, que afirmou não estar interessado *

Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestrando em na mesma instituição, cujas pesquisas são fomentadas pelo CNPq e orientadas pelo Prof. Dr. Márcio Roberto Voigt. 1 Segundo Denis Roland, “Memória e história são, a priori, duas percepções do passado muito claramente diferenciadas. A memória é uma vivência em evolução constante e, visto que depende do grupo em que se constitui, é plural. A história, tradicionalmente, é definida como uma reconstrução científica; tende a delimitar um saber constitutivo e durável.” (ROLLAND, 2015, p. 13). Dito isto, é importante citar que em discursos oficiais de autoridades, notícias oriundas de diferentes veículos de  imprensa e mesmo manifestações populares, história e memória costumam ser tomadas como 1  

em continuar financiando filmes que partem do princípio de que a Rússia não seja um bom país. O mesmo ministro que, em 2014, baniu o filme Prikazanozabyt (nomeado em inglês como Ordered to forget, ou em português “Ordenado a esquecer”), que representa a deportação em massa de chechenos por ordens de Stalin. O banimento se deu pelo fato de que, segundo o ministério, não haveria provas suficientes que pudessem comprovar a veracidade dos eventos históricos representados (DOLGOV, 2014a). Contudo, a decisão de financiar filmes de cunho patriótico está atrelada a um panorama muito mais amplo que vem ganhando força nos últimos anos e atingiu seu ápice com a anexação da Criméia, antigo território russo cedido à Ucrânia, de volta à Rússia e as disputas por zonas de influência entre a zona do Euro, liderada pela Alemanha, e a Rússia de Vladimir Putin, tendo também como componente fundamental para a compreensão do panorama as tensões entre a Rússia e a OTAN. Especialmente após a chegada à presidência por parte de Vladimir Putin, as memórias a respeito do passado soviético e sua relação com a Rússia contemporânea – especialmente a Segunda Guerra Mundial, ou “Grande Guerra Patriótica”, como é conhecida na Rússia – vêm sendo ressignificadas. Nesse contexto, surgem periodicamente pesquisas atestando impressões mais positivas em relação ao período stalinista (BIGG, 2003; ST. PETERSBURG TIMES, 2005; TITOVA, 2010; ASSOCIATED PRESS, 2013; MOSCOW TIMES, 2015a). Na imprensa, são facilmente encontradas notícias a respeito das intenções de determinados grupos de renomear em definitivo as cidades de São Petersburgo e Volgogrado para Leningrado e Stalingrado respectivamente, com o apoio do Presidente Putin (TÉTRAULTFARBER, 2014; MOSCOW TIMES, 2014). Passeatas demonstrando simpatia ao passado comunista e, simultaneamente, apoiando Putin quanto à anexação da Criméia e seu apoio aos separatistas de Donbass como uma suposta defesa dos interesses russos diante do “Ocidente” (REUTERS, 2014), o desenvolvimento de um pedido de reparações financeiras à Alemanha pela invasão alemã durante a Segunda Guerra Mundial em território soviético (SPINELLA, 2015), entre tantos outros, compõem uma extensa lista de exemplos que endossam a afirmação que fazemos neste trabalho.

 

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Não é de hoje que a Segunda Guerra Mundial mostra-se um evento desencadeador de disputas pela memória, tensões políticas e discussões de caráter econômico, como demonstram diversos estudos (FERRO, 2009; BARTOV, GROSSMANN, NOLAN, 2005; BIESS, MOELLER, 2010; HOBSBAWM, 2013, p.364-379). Há quem afirme que, setenta anos depois, o mundo permanece lutando a Segunda Guerra Mundial, como opina Ishaan Tharoor, colunista de relações exteriores do The Washington Post (THAROOR, 2015). Ainda que sua afirmação seja exagerada, as disputas que incentivam a assertiva de Tharoor estão estampadas pelos jornais ao redor do mundo, e fazem parte de conjunturas que, longe de ser recentes, se arrastam por décadas. Eventos históricos de tamanha magnitude não apenas permanecem na lembrança de gerações como se tornam material de legitimação de políticas do presente; diplomacia, marcos comemorativos, identidades regionais e nacionais, tensões étnicas e economia são alguns dos diversos aspectos de uma sociedade que estão vulneráveis aos usos políticos da história e da memória. 1 Elizabeth Jelin ao argumentar sobre o papel cada vez mais destacado da Memória no mundo contemporâneo, afirma que os processos do medo do esquecimento e a presença constante do passado são simultâneos, ainda que haja clara tensão entre eles. No mundo ocidental, o movimento memorialista e os discursos sobre a memória foram estimulados pelos debates sobre a Segunda Guerra Mundial e o extermínio nazista, intensificados desde o começo dos anos oitenta (JELIN, 2002, p. 10).

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Segundo Denis Roland, “Memória e história são, a priori, duas percepções do passado muito claramente diferenciadas. A memória é uma vivência em evolução constante e, visto que depende do grupo em que se constitui, é plural. A história, tradicionalmente, é definida como uma reconstrução científica; tende a delimitar um saber constitutivo e durável.” (ROLLAND, 2015, p. 13). Dito isto, é importante citar que em discursos oficiais de autoridades, notícias oriundas de diferentes veículos de imprensa e mesmo manifestações populares, história e memória costumam ser tomadas como sinônimos, fazendo com que a definição entre usos políticos da história e usos políticos da memória costumem ser diferenciados apenas por estudiosos com conhecimentos adequados.

 

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Não obstante, o aniversário de setenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, aliado a tensões como as anteriormente citadas, torna-se o momento ideal para a observação do desvelar de tais conflitos. O objetivo desse artigo é analisar o papel do Kremlin no que concerne ao uso de histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente a partir do momento em que Vladimir Putin tornou-se presidente, tendo como fontes principais pronunciamentos oficiais, discursos em eventos e falas públicas de Putin, reproduzidas pela imprensa. Contextualizaremos brevemente sua relação com o tema a partir de seu primeiro mandato levantando algumas notícias significativas relacionadas à atuação do Kremlin dentro do tema, culminando na maior parada militar em comemoração à vitória na Segunda Guerra Mundial da história da Rússia, ocorrida em nove de maio de 2015. Dessa forma, pretendemos apresentar alguns dos temas mais presentes em discursos de Putin, trazendo por vezes artigos da imprensa local e notícias referentes a pesquisas de opinião pública que corroboram ou rechaçam os posicionamentos do Kremlin, de modo a tentar ter um vislumbre da recepção das atitudes do governo russo referentes à apropriação da história e da memória. Nascido em sete de outubro de 1952, sete anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, Vladimir Vladimirovitch Putin tornou-se o segundo Presidente da Rússia em sete de maio de 2000, dois dias antes da Parada do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial. Analistas diversos afirmam que, desde o início de seu primeiro mandato, Putin e seus aliados intencionaram desenvolver um novo culto à personalidade do líder, construindo a imagem de um protetor da Rússia diante das ameaças internas e, principalmente, externas (CASSIDAY, JOHNSON, 2010; MIJSSEN, 2010; WOOD, 2011). Mais do que isso, tentam criar uma identificação pública entre Putin e o feriado do nove de maio, assim como a vitória na Guerra. Tais esforços propagandísticos entram em consonância com as tentativas de estabelecimento de uma identidade russa que concilie o presente do país com um passado soviético, cujas memórias precisam ser selecionadas com muito cuidado diante tanto da opinião pública russa quanto das possíveis repercussões internacionais. Quanto ao conceito de propaganda, tomaremos de empréstimo a definição do historiador Karel C. Berkhoff, que a aplica em seus estudos sobre propaganda  

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soviética na Segunda Guerra Mundial. Para Berkhoff, propaganda pode ser definida como “uma tentativa deliberada e sistemática de moldar percepções, estados mentais e, acima de tudo, comportamento, para se atingir uma resposta que promove as intensões do propagandista” (BERKHOFF, 2012). Diante disso, buscaremos fazer uma leitura de nossas fontes a contrapelo, buscando compreender os significados e intenções de certas falas e atitudes políticas e socioculturais relacionadas à Segunda Guerra para além do que o Kremlin verbaliza como sendo suas “reais” intenções. Os principais assuntos presentes nos pronunciamentos públicos de Vladimir Putin e de membros de seu governo que se relacionam de alguma maneira com as memórias da Segunda Guerra Mundial (e, como algumas notícias que analisaremos mostram, têm crescente respaldo popular) tendem a passar pelos seguintes temas, que aqui analisaremos: os veteranos da Guerra (incluindo aí os mortos no conflito), as lições que a Guerra pode trazer ao povo russo, a imagem de Stalin – entre o líder implacável que levou o país à vitória e o tirano responsável por crimes de guerra e atitudes moralmente questionáveis – e sua crescente reabilitação aos olhos da população russa, culminando em monumentos ao passado soviético surgidos nos últimos anos. O culto aos veteranos e o louvor aos mortos Há muito a historiografia reconhece o papel fundamental da União Soviética na vitória dos Aliados contra a Alemanha de Hitler. Nenhum outro país teve tantas baixas no conflito, entre militares e civis: as estimativas costumam variar entre 20 milhões (WINTER, 1995, SAKAIDA, 2004) e 27 milhões de mortos (NOLAN, 2010; HASTINGS, 2012). Lisa Karpova, colunista do jornal pró-Kremlin Pravda (que foi o jornal oficial do regime soviético e porta-voz principal do Partido Comunista até o fim da URSS, agora sendo de propriedade do Partido Comunista da Federação Russa  

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e tendo uma tiragem muito inferior às médias do passado) ressalta quase todos os anos em seus textos sobre o Dia da Vitória os enormes sacrifícios que o país precisou enfrentar durante os quatro anos da “Grande Guerra Patriótica”, como em sua coluna sobre a comemoração em 2015: Nove em cada dez soldados alemães mortos na guerra foram mortos pelo Exército Vermelho. Apenas 11 divisões da Wehrmacht enfrentaram os Aliados no ocidente, enquanto 229 divisões nazistas lutavam contra o Exército Vermelho no leste. Quando o desembarque na Normandia ocorreu, a vitória muito maior do Exército Vermelho na Operação Bagration veio, quando a última grande concentração dos exércitos de Hitler foi aniquilada na Bielorrússia. A bandeira soviética foi hasteada em cima do Reichstag em Berlim por soldados soviéticos. Mais de 27 milhões de cidadãos Soviéticos foram mortos durante a Grande Guerra Patriótica (KARPOVA, 2015).

Desde a véspera da eleição de Putin ao seu primeiro mandato, o atual Presidente atende às parcelas da população que demandam um maior respeito aos veteranos e à memória da Grande Guerra Patriótica, e seus esforços foram crescentes para tal fim. Já em nove de março do ano 2000, enquanto Presidente em exercício, Putin jurou “proteger todos os soldados” que fizeram parte da Segunda Guerra Mundial “não importa onde eles vivam”. Na ocasião, Putin se referia aos seus apelos ao governo da Letônia pela libertação de um veterano russo encarcerado por crimes contra a humanidade, segundo matéria do jornal The Moscow Times de 2000. A mesma matéria ainda levantava, a partir da opinião de analistas, que a fala de Putin (naquele momento em campanha) contradizia sua fala na semana anterior onde afirmava sua intenção de “excluir medidas populistas” de sua campanha (TRACY, BELTON, 2000). Já no início de seu mandato, assinou um decreto garantindo aos veteranos uma remuneração especial de montante fixo (WOOD, 2011, p. 184). Nas paradas do Dia da Vitória, os veteranos ganham crescente destaque e ovação todos os anos. No verão de 2000, Putin colocou as paradas militares e os uniformes dos soldados em tais eventos como prioridades, criando um comitê especial destinado a planejar os eventos associados aos 60° aniversário da vitória, em nove de maio de 2005. Elizabeth A. Wood, professora do M.I.T., afirma que o desejo de Putin em dar  

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destaque para as comemorações dos 60 anos se deviam não apenas ao número arredondado que, costumeiramente, chama para si maior destaque, mas também por conta da terrível humilhação do 50° aniversário do Dia D na Normandia em junho de 1994, quando o Presidente Boris Yeltsin e os russos não foram sequer convidados a participar. No ano seguinte (1995) Yeltsin fez esforços especiais para convidar o Presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e o Presidente da França François Mitterand para a parada do nove de maio, mas Yeltsin cedeu ao pedido de Clinton de que a parada não tivesse equipamentos militares por conta da sensibilidade dos americanos quanto à questão da aprovação à Guerra da Chechênia (WOOD, 2011, 191).

Em 2002, o Parlamento russo decidiu resgatar o antigo Dia do Exército e Marinha Soviéticos, comemorado no dia 23 de fevereiro e em vigor entre 1936 e 1990, tendo posteriormente se tornado um dia de trabalho. Ao resgatá-lo, o Parlamento resolveu renomear o mesmo como “Dia do defensor da Pátria” e dedica-lo a todos os soldados que defendem ou defenderam a Rússia. O dia tornou-se uma espécie de contrapartida masculina ao oito de maio, feriado dedicado ao Dia da Mulher, algo que o próprio nome do feriado dá margem de compreensão. Деньзащитника Отечества é traduzido para inglês como Defender of the Fatherland Day. É importante notar que Fatherland difere de Motherland (Родина), tendo a primeira palavra uma conotação masculina (traduzida para português apenas como Pátria), enquanto Родина (translitera-se rodina), tem uma conotação feminina (Motherland seria melhor traduzida como Mãe-Pátria). Durante as comemorações do feriado no momento de seu resgate em 2002, Putin deixou flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, em Moscou, e teve discussões com figuras como o chefe do concílio de veteranos, Vladimir Govorov, o líder do Partido Comunista da Rússia, Gennady Zyuganov e o porta-voz do Soviete da Federação (Câmara Alta do Legislativo russo), Sergey Mironov. Entre os assuntos levantados, estava o precário estado do Exército Russo: "[...] os melhores oficiais têm  

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que deixar o cargo por conta dos parcos salários", afirmava Zyuganov (YUGOV, 2002). Na parada de 2005, Putin encerrou seu discurso glorificando uma vez mais os veteranos da Guerra. É interessante notar que Putin deixa bem clara a separação entre a Segunda Guerra Mundial e a Grande Guerra Patriótica, especialmente pelo fato do então Presidente dos Estados Unidos George W. Bush estar presente na cerimônia: Nossos avôs e pais deram suas vidas pela honra e liberdade da nação. Estavam unidos e defenderam sua Pátria. E hoje eu humildemente me curvo diante dos veteranos da Grande Guerra Patriótica. Eu os desejo uma vida longa e feliz. Saúdem os vitoriosos soldados da Grande Guerra Patriótica e da Segunda Guerra Mundial. Eu os congratulo no feliz dia de sua vitória! Vida longa à Rússia! (PUTIN, 2005).

E, como citado anteriormente, todos os anos os veteranos da Guerra recebem ovações e reconhecimento público. Os espaços de memória para os mesmos e o caráter pedagógico das discussões que os envolvem, contudo, não permanecem apenas no âmbito das cerimônias públicas. Recentemente, Putin resolveu renovar uma prática comum durante décadas de regime soviético, conhecida como “Lições da Memória” (urokpamiati), que consiste na visita de veteranos da Segunda Guerra Mundial a escolas, objetivando encontros onde as memórias dos veteranos são compartilhadas com os estudantes e há espaço de contrição coletiva pelos mortos na Guerra. Em 2008 foi anunciado que tal prática ocorreria em todas as escolas de Moscou no dia sete de maio, enquanto em 2010 os Ministros da Educação tanto da Ucrânia quanto da Rússia anunciaram um acordo entre os países para o compartilhamento de tais eventos. Para Elizabeth Wood, estas lições têm como função “olhar para a guerra como um momento de vitória moral”, ensinando não apenas o orgulho pela nação, mas também “respeito aos mais velhos, empatia pelo sofrimento de outros, subordinação de necessidades e interesses individuais por um bem maior, medo diante da anarquia e desunião” (WOOD, 2001, p. 178). Esta retórica de disposição ao sacrifício por um bem maior e o aprendizado com os veteranos é algo que o Vladimir Putin não deixa de ressaltar quando pensa ser oportuno. No dia 20 de fevereiro de 2015, em seu discurso na cerimônia de entrega de  

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medalhas comemorativas de 70 anos da vitória na Grande Guerra Patriótica (e três dias antes do feriado do Dia dos defensores da Pátria), Putin encontrou uma oportunidade ideal de tocar neste assunto: Muitos de vocês estão engajados em trabalho educacional e patriótico ativo junto da população mais jovem. É muito importante que os jovens tenham a chance de aprender a verdade sobre a Grande Guerra Patriótica e ouvi-la direto de vocês, as pessoas que tomaram parte daqueles eventos. Com sua ajuda, eles podem entender a total profundidade e extensão dos eventos daqueles tempos e julga-los corretamente, tirar as devidas conclusões, para que nunca mais as ideias monstruosas do Nazismo entrem nas cabeças das pessoas (PUTIN, 2015a).

Nos últimos anos as atitudes do governo em relação às condições materiais dos veteranos, tanto os que residem na Rússia quanto os que residem em outros países do antigo bloco soviético, têm sido também mais expressivas. No fim de 2014 o governo russo aprovou o pagamento de uma ajuda financeira aos veteranos residentes nos países bálticos outrora parte da URSS (Letônia, Lituânia e Estônia) de cerca de $1.000 rublos (cerca de $18 a $ 20 dólares) a ser iniciado em janeiro de 2015, seguindo um decreto do Presidente Putin para o melhoramento das condições materiais dos veteranos residentes nesses estados. Para os governos dos mesmos, a medida é uma tentativa de aumentar a simpatia das populações de etnia e língua russa presentes nesses países para com Moscou, no contexto de anexação da Criméia (MOSCOW TIMES, 2014b). Para o governo russo, os Estados do Báltico tratam os veteranos não como defensores, mas como ocupadores, por conta da presença soviética nestes países após o fim da guerra (DOLGOV, 2014b). Putin fez questão de fazer referência à valorização russa em detrimento a outros Estados no discurso do Dia da Vitória de 2015 quando este afirmou aos veteranos “onde quer que eles vivam hoje”, que “na Rússia nós valorizamos muito sua força moral, coragem e dedicação à irmandade na linha de frente” (PUTIN, 2015b).  

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A situação é ainda pior na Ucrânia. O chefe da organização de veteranos de Kiev, Nikolay Martynov, afirmou que 85% dos veteranos residentes na Ucrânia vivem na pobreza. Martynov ressaltou a revolta causada aos veteranos pelos cortes de pensões, a transferência do feriado do Dia dos defensores da Pátria para o dia 14 de outubro (dia do Exército Insurgente que lutou tanto contra os alemães quanto contra russos e é acusado de colaboracionismo para com os nazistas) e a proibição de quaisquer símbolos soviéticos, colocados na mesma categoria dos símbolos nazistas (TASS, 2015a). O cuidado para com a reverência as mortos é constante, até mesmo consonante para com os veteranos vivos. No discurso do Dia da Vitória de 2015, Putin sublinhou: Nós prestamos homenagem a todos aqueles que lutaram até o fim por cada rua, cada casa e cada fronteira da nossa Pátria-Mãe. Nós nos curvamos àqueles que pereceram em várias batalhas perto de Moscou e Stalingrado, em Kursk, Bulge e no Dnieper. Nós nos curvamos àqueles que morreram de fome e frio na inconquistada Leningrado, àqueles que foram torturados até a morte em campos de concentração, em cativeiro e diante de ocupação. Nós nos curvamos em memória de filhos, filhas, pais, mães, avôs, maridos, esposas, irmãos, irmãs, camaradas-em-armas, parentes e amigos – todos aqueles que nunca voltaram da guerra, aqueles que não estão mais entre nós (PUTIN, 2015b).

Outra atitude recente por parte das autoridades é a sutil – e aparentemente ainda em construção – tomada de protagonismo das marchas do chamado “Regimento imortal”. O Regimento imortal é uma campanha iniciada em 2012 na cidade siberiana de Tomsk por jornalistas do canal TV-2, entre eles Sergey Lapenkov, atual membro do Concílio do movimento inter-regional, histórico e patriótico do Regimento imortal. O movimento consiste em marchas – no ano de 2013 em 120 cidades e no de 2014 em 500 cidades em sete países – de todos aqueles cujos parentes lutaram ou morreram na Grande Guerra Patriótica, portando retratos destes. Sendo considerado um movimento espontâneo, o crescimento da marcha chamou a atenção de Moscou, e na marcha presente nessa cidade em 2015 no Dia da Vitória, Putin tomou a dianteira, marchando com um retrato de seu pai, sobrevivente do cerco de Leningrado quando a marcha passou pela Praça Vermelha.

 

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Para Putin, “O valor da iniciativa [do Regimento imortal] é o fato de que não nasceu em escritórios ou em um corpo administrativo, mas no coração do nosso povo” (TASS, 2015b). Seria uma demonstração de respeito para com as gerações anteriores. Enquanto o porta-voz presidencial Dmitry Peskov afirma ser a autoria da marcha irrelevante, Alexander Golts, editor do jornal online Yezhednevny Zhurnal, afirma ser a marcha fruto de jornalistas de um canal de televisão fechado por demonstrar “excesso de livre pensamento”. Para Golts, a originalidade da marcha e sua iniciativa ser oriunda de uma região distante dos centros burocráticos centrais, ajuda a afastar toda a “bobagem propagandística” perpetrada pelo Kremlin (GOLTS, 2015). Estende-se, então, o cabo de guerra entre os críticos ao Kremlin e seus apoiadores no tocante à questão dos veteranos. Para citar apenas dois exemplos aqui de indivíduos anteriormente citados e de lados opostos da contenda, temos do lado dos críticos Alexander Golts, que afirma: Eles [os membros do governo Putin] não podiam se importar menos com os nonagenários que lutaram para salvar a Pátria-Mãe. Vladimir Putin tem apenas dois objetivos em mente com essas celebrações do 70° aniversário. A primeira, e mais importante, é ele ter esperado, por pelo menos um dia, se tornar o líder mais importante do planeta. [...] O segundo objetivo de Putin era convencer o cidadão russo comum a equalizar a quase guerra santa contra o fascismo [a Grande Guerra Patriótica] como a leviandade de seu regime na Ucrânia (GOLTS, 2015).

Do outro lado, beirando o fanatismo, a colunista do Pravda, Lisa Karpova, escreveu no seu texto sobre o Dia da Vitória de 2015, intitulado “Vergonha eterna à ‘América’, Alemanha e Europa”: A União Soviética libertou o mundo do nazismo. O mundo tem uma grande dívida para com essa vitória. Obrigado, pais e mães, por sua vitória. Eu me curvo a seus pés. Eu os abraço e beijo um por um. Vocês são tão belos, especiais e preciosos. Ninguém pode diminuir

 

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o orgulho que eu sinto pela Rússia hoje. A Rússia é um farol da liberdade; um país acolhedor, paciente e generoso. Um país bravo. Um país indulgente. A Rússia é mágica. A Rússia é uma terra de fantasia onde sonhos são construídos em realidade física, palpável e visível. A Rússia é bela. A melhor do mundo! (KARPOVA, 2015).

No entanto, ainda que as interpretações da adulação aos veteranos sejam divergentes, há concordância geral no valor de sua luta e na justiça das homenagens em seu nome. Muito longe de alcançar consenso, no entanto, é a crescente reabilitação de Stalin e de elementos do passado soviético dentro da Rússia. A reabilitação do passado soviético Partes do passado soviético aos poucos ganham aceitação e respaldo popular na Rússia de hoje. Entre eles, temos a imagem de Josef Stalin. Tanto as pesquisas de opinião demonstrando admiração pelo período em que Stalin governou a União Soviética – e pela figura de Stalin em si – quanto certas atitudes governamentais demonstram um panorama complexo, que suscita diferentes respostas. Em 2005, políticos da cidade de Oryol solicitaram ao Kremlin a reabilitação da imagem de Stalin, solicitando estátuas do antigo líder e mesmo ruas com seu nome. Curiosamente, a mesma cidade passou uma resolução em 1993 colocando o dia 11 de setembro como um dia de respeito às vítimas de repressão política da região. Na mesma cidade, em 1943, cerca de 150 prisioneiros políticos foram executados por ordem de Stalin, como lembra a notícia publicada no St. Petersburg Times (THE ST. PETERSBURG TIMES, 2005). Uma pesquisa realizada no ano 2013 constatou que 42% dos russos enxergam Stalin como a figura histórica mais influente do país. Um dos autores do relatório, o sociólogo Lev Gudkov, afirma que em 1989 – pico da liberalização no período soviético e dos esforços de Mikhail Gorbachev em criticar o passado stalinista – apenas 12% dos russos descreviam Stalin como uma de suas figuras históricas mais proeminentes. Para Gudkov, a Rússia de Putin "precisa de símbolos de autoridade e força nacional, por mais controversos que eles sejam, para validar a nova ordem política autoritária”. E continua: "Stalin, um líder despótico responsável por carnificinas em massa, mas ainda identificado com a vitória na guerra e unidade nacional, se encaixa na necessidade por símbolos que reforcem a ideologia política   12  

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atual" (THE ASSOCIATED PRESS, 2013). A mesma notícia ainda aponta o uso de livros didáticos em escolas financiados pelo governo que abordam Stalin a partir de uma perspectiva positiva e a manutenção da letra original do hino soviético na então reconstruída estação de metrô de Kurskaya, com um trecho elogioso ao ditador. Em 2010, um manual didático chamado Uma história da Rússia, 1900-1945 foi aprovado para ser a base de um livro didático a ser usado no país em 2011. Nele, constava um trecho afirmando que, ao condenar milhões de pessoas à prisão e à morte, Stalin agiu de forma “inteiramente racional”. O manual foi produzido pela principal editora de livros didáticos da Rússia, chamada Prosvesheenije, financiada parcialmente pelo Estado e que, durante o período soviético, possuía o monopólio do material didático das escolas do país. Tal material não poderia ser publicado se não tivesse o aval do Kremlin (STEWART, 2010). Ainda no campo da educação, recentemente os livros dos autores britânicos Antony Beevor e John Keegan foram oficialmente banidos das escolas da cidade de Ecaterimburgo, com a desculpa de promover estereótipos criados pelo Terceiro Reich, como o suposto mito de que soldados soviéticos cometeram incontáveis estupros no caminho até Berlim e na capital alemã em si (THE GUARDIAN, 2015). Beevor, o único dos dois historiadores ainda vivo, dissertou a respeito no The Guardian: O que me deprime mais é que, uma vez mais, nós estamos diante de um governo tentando impor sua própria versão da história. Eu me oponho fundamentalmente a todas essas tentativas de ditar uma verdade, não importa se é a negação do Holocausto ou do genocídio armênio, ou a "vitória sagrada" de maio de 1945. Quando Serguei Shoigu era ministro para situações de emergência em 2009, ele tentou por em prática uma lei para criminalizar qualquer um que criticasse o Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial. [...] Shoigu, que agora é ministro da defesa e amplamente apontado como sucessor de Vladimir Putin, conseguiu que a lei fosse aprovada pela Duma com penas de até cinco anos de prisão. Então,

 

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de acordo com a Rússia, eu sou tecnicamente um criminoso [...] (BEEVOR, 2015).

Pouco importa se, no livro que mais foca nos estupros em massa cometidos pelo Exército Vermelho, Berlim 1945, Beevor afirme que “é preciso ser extremamente cauteloso com qualquer generalização relativa à conduta dos indivíduos. Extremos de sofrimento e mesmo de degradação humana podem trazer à luz o melhor e o pior da natureza humana”. O autor continua: Muitos soldados soviéticos, em especial nas formações da frente de batalha, diversamente dos que vinham atrás, comportaram-se frequentemente com grande gentileza frente aos civis alemães. Num mundo de crueldade e horror, onde toda concepção de humanidade fora quase destruída pela ideologia, alguns poucos atos de gentileza e sacrifício pessoal, em geral inesperados, iluminam uma história que, de outro modo, seria quase insuportável (BEEVOR, 2011, p.35).

Para o Kremlin, a mitificação do Exército Vermelho como infalível e estandarte de moralidade não pode ser sabotada por uma visão realista de tais eventos. Trata-se de uma verdade histórica difícil de assimilar e, do ponto de vista propagandístico, totalmente contraproducente. Com relação à estação de Kurskaya, situada em Moscou, a polêmica envolve sua reabertura. A estação passou por alguns anos de reforma e, em 2009, quando esta foi reaberta, foi notado que o Hino Soviético, presente no friso abaixo do teto da estação, continha um trecho da letra original, criada em 1944. Grafado desde a abertura da estação em 1950, o trecho em questão louvava a atuação de Stalin como líder da Rússia, mas este foi substituído por uma versão posterior em 1977, que trocava a figura de Stalin por Vladimir Lenin, dentro do contexto do processo de desestalinização iniciado durante o governo de Nikita Khruschev. O trecho original, então ressuscitado após a reforma do metrô, diz: “Nós fomos criados por Stalin; ele inspirou a nossa fé nas pessoas, nosso trabalho e obras” (RT, 2009). Em 2015, outra pesquisa revelou que 45% dos cidadãos russos acreditam que os sacrifícios do povo Soviético sob o regime de Stalin foram justificados, enquanto dois anos antes a porcentagem de adesão a esta perspectiva era de apenas 25%; mais ainda, 39% dos entrevistados descrevem seus sentimentos em relação a Stalin como "admiração" ou "simpatia" (HOFFMANN, 2015).  

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As paradas do Dia Internacional do Trabalhador, em 1° de maio, tem atraído cada vez mais simpatizantes do passado soviético e comunistas. Na de 2014, por exemplo, a estimativa de participantes era de cerca de 100.000 pessoas, a maioria portando bandeiras russas, imagens de Vladimir Putin e material iconográfico do partido do Presidente, mas algumas portando iconografia soviética e homenagens a figuras como Vladimir Lenin. Entre os marchantes, apoio irrestrito ao governo Putin e a anexação da Crimeia. Esta teria sido a maior parada do Dia Internacional do Trabalhador desde o fim da União Soviética (REUTERS, 2014). Se tais manifestações populares – ainda que tenham participação de autoridades – puderem ser entendidas como consequência direta da reabilitação de Stalin e do passado soviético, esta se torna ainda mais digna de atenção. As autoridades de Khoroshevo, uma vila localizada a cerca de 230 quilômetros de Moscou, aprovaram em maio de 2015 a criação de um museu dedicado ao papel de Josef Stalin como chefe máximo da União Soviética durante a guerra e responsável pela industrialização do país, atendendo ao pedido da Sociedade Histórico-Militar Russa. Este órgão, criado por ordem de Vladimir Putin em dezembro de 2012, é comandado pelo Ministro da Cultura Vladimir Medinsky, e declara que entre seus objetivos estão a "educação dos cidadãos russos [...] no espírito do amor, da devoção e do serviço altruísta à Pátria-Mãe, respeito pelos defensores da Pátria, [e] às Forças Armadas da Federação Russa" (TÉTRAULT-FARBER, 2015). A mesma notícia aponta que tal abertura acontece paralelamente à transformação de Perm-36, um museu que busca homenagear as vítimas de repressão política durante o regime soviético, em um museu genérico sobre o sistema penal soviético, sem menção às vítimas da repressão, especialmente do período stalinista. E quando as atitudes reprováveis do regime soviético não são negadas, são pelo menos relativizadas dentro das possibilidades retóricas do Kremlin. Um  

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excelente exemplo disso são os comentários de Vladimir Putin com o passar dos anos em relação ao Pacto Nazi-Soviético assinado em 23 de agosto de 1939. O pacto em questão previa não apenas um acordo de não agressão entre Alemanha e União Soviética, mas também cooperação no âmbito econômico. Ambos os países – a despeito do profundo ódio de Hitler pelo Comunismo e os bolcheviques – possuíam opiniões semelhantes quanto a certos pontos do Tratado de Versalhes, entre eles, a existência da Polônia como Estado independente. Por consequência, os protocolos secretos do Pacto Molotov-Ribbentrop (como também é conhecido o pacto) previam a partilha da Polônia – e outros países – entre os dois estados, algo negado por muitos historiadores soviéticos até meados de 1990 (DAVIES, 1995, p. 780-782). Este é um dos motivos pelo qual é rejeitada por muitos a ideia de que a União Soviética só esteve envolvida com a Segunda Guerra Mundial apenas a partir de 1941. Muitos poloneses que fugiram dos invasores alemães em direção à União Soviética foram presos e executados pelos soviéticos, interessados em tomar sua parte na partilha previamente acordada, fruto da guerra iniciada. Estima-se que cerca de 180.000 poloneses se tornaram prisioneiros de guerra na URSS; os soldados foram separados dos oficiais, reservistas, policiais, entre outros, os quais totalizavam cerca de 15.000. Estes últimos foram distribuídos entre três campos de prisioneiros (Kozelsk, Starobelsk e Ostashkov), e em abril de 1940, milhares deles foram levados até a floresta de Katyn e executados (SWORD, 1995, p. 644-646). O número de mortos beira os 22.000. O Pacto Molotov-Ribbentrop é um dos elementos do passado soviético que, do ponto de vista moral, traz embaraços públicos no que concerne ao uso das memórias do período com fins propagandísticos. Contudo, o Presidente Putin não se priva de defendê-lo sempre que necessário, ainda que não o tenha feito desde sempre. Diante das comemorações dos 70 anos da invasão alemã à Polônia, em 2009, Putin (então Primeiro-Ministro, durante a Presidência de Dmitry Medvedev) afirmou que qualquer forma de acordo com o regime nazista era “inaceitável do ponto de vista moral, e não tinha chance de se concretizar” (BBC NEWS, 2009). A declaração foi compreendida em um contexto de amenização de tensões entre Rússia e Polônia como  

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uma tentativa de conciliação diante dos acordos energéticos firmados entre os países na ocasião, e veio acompanhada da condenação do Acordo de Munique de 1938, quando o Reino Unido e a França acordaram com Alemanha e Itália a anexação dos sudetos da Tchecoslováquia à Alemanha. Dessa forma, Putin tentou diluir o foco da discussão moral sobre as consequências do Pacto Molotov-Ribbentrop com as demais potências Aliadas do período e suas escolhas políticas passíveis de críticas. Contudo, recentemente Putin flexibilizou ainda mais a questão, justificando o pacto em diferentes momentos. Um dos exemplos se deu em 2014, em um encontro com historiadores em Moscou. Na ocasião, voltando a ressaltar a culpa de Reino Unido e França ao assinarem o Tratado de Munique, Putin afirmou: “Uma pesquisa séria deve mostrar que aqueles eram os métodos de política externa naquele período.” E continuou: “A União Soviética assinou um tratado de não agressão com a Alemanha. As pessoas dizem ‘Ah, isso é ruim.’ Mas o que há de ruim em a União Soviética não querer lutar? Que mal há nisso?” (PARFITT, 2014). Já no encontro com a Chanceler alemã Angela Merkel neste ano de 2015, no dia seguinte à parada do Dia da Vitória, Putin colocou o pacto como uma necessidade diante do isolamento da União Soviética quanto à possibilidade de união com as potências ocidentais de modo a criar uma coalisão antinazista (DOLGOV, 2015). A retórica de proteção não se resume aos perigos do passado; estes, inclusive, são encarados como didáticos diante de novos perigos, sejam eles reais ou fictícios, espontâneos ou reativos. Como argumenta Elizabeth Jelin, “Novos processos históricos, novas conjunturas e cenários sociais e políticos [...] não podem deixar de produzir modificações nos marcos interpretativos para a compreensão da experiência passada e para construir expectativas futuras” (JELIN, 2002, p. 13). Ou seja: se antes tínhamos uma memória negativa sobre Stalin e seu período no poder para grande parte da população russa, esse panorama vem apresentando mudanças significativas.  

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Conclusão Desde os protestos na Ucrânia que culminaram na derrubada do ex-presidente Viktor Yanukovych e na ascensão à presidência de Petro Poroshenko, a retórica do Kremlin passou a associar o atual governo ucraniano ao fascismo, ao “Ocidente”, genericamente, aos Estados Unidos e à OTAN, dando a estes um caráter de severa ameaça contra a Rússia. Se em partes esta retórica se ancora no apoio de grupos de extrema-direita à derrubada do ex-presidente Viktor Yanukovych, por outro lado busca criar uma ligação entre o passado e o presente que justifique o medo e, consequentemente, a reação, fazendo com que o passado se torne “mais presente do que o presente”, nas palavras de Marc Ferro (FERRO, 2009, p. 191). Em diferentes discursos, Putin aponta como sintoma da ascensão do fascismo a violência de caráter étnico perpetrada pela Ucrânia contra as minorias russas dentro do país por consequência da anexação da Crimeia e dos conflitos em Donbass, fazendo questão de associá-la à perseguição dos armênios durante a Primeira Guerra Mundial e de judeus e outras etnias na Segunda Guerra. Normalmente o mesmo não se priva de provocar as potências ocidentais pelo seu suposto silêncio ao perigo do fascismo em ascensão e prender críticos ao regime e à memória da Grande Guerra Patriótica, como o caso de um jovem russo preso por criar uma petição pedindo o cancelamento da cerimônia do Dia da Vitória em 2015 (SPINELLA, 2015b). Ao apelar para a glória da vitória na guerra, as perdas humanas e o sacrifício dos sobreviventes, a propaganda do Kremlin manipula a carga afetiva da população. “O ato de lembrar pressupõe ter uma experiência passada que se ativa no presente [...]”, afirma Elizabeth Jelin. E continua: “Não se trata necessariamente de acontecimentos importantes em si mesmos, mas que cobram uma carga afetiva e um sentido especial no processo de recordar ou lembrar” (JELIN, 2002, p. 27). Logo, diante da suposta iminência do perigo, temos ações efetivas de prevenção e demonstrações de força. A reversão do sucateamento do Exército Russo cobrada por seus aliados no início de seu mandato se tornou um objetivo do governo Putin. A partir de 2008 as paradas do Dia da Vitória com equipamentos militares (de veículos a mísseis) voltaram ao cenário, sendo a parada daquele ano a mais cara da história da Rússia  

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pós-soviética até então. Quanto à vulnerabilidade militar russa em relação aos inimigos e às críticas quanto a ser a mostra de equipamento militar uma demonstração de força, Putin afirmou: Pela primeira vez em anos, equipamentos militares estarão envolvidos na parada. Isso não é uma escaramuça. Nós não ameaçamos ninguém e não temos a intenção de fazê-lo. Nós temos tudo o que precisamos. Essa é apenas uma simples demonstração de nossa crescente capacidade de defesa, o fato de que agora nós estamos aptos a proteger nossos cidadãos, nosso país e nossas riquezas, que temos em grande quantidade (FELGENHAUER, 2008).

Na parada de 2015, os olhos dos analistas internacionais se voltaram para a novidade bélica russa: o ArmataT-14, novo tanque russo, apresentado como um grande avanço tecnológico, e cujo governo russo espera produzir continuamente pelos próximos quarenta anos. Para os críticos, mais um exemplo das constantes demonstrações de força presentes nas recentes paradas do Dia da Vitória. Diante da expansão da Zona do Euro, da área de influência da OTAN, das sanções econômicas de países ocidentais e uma considerável crise econômica, a Rússia reage olhando para um passado onde o país era encarado como potência, capaz de derrotar a fúria do Exército Alemão (a Wehrmacht) e empurrar seus inimigos de volta até o coração de Berlim; um país em expansão econômica, ao invés de uma nação economicamente em retração; uma nação temida, que não se via encurralada pelas contingências internacionais. Ao lembrar esse passado, Putin os utiliza a partir de um viés didático, demonstrando como a Rússia pode superar todos os desafios, sendo eles internos ou externos, desde que o povo permaneça unido e contrito diante dos planos do Kremlin para a nação, dispostos a fazer os sacrifícios necessários para a manutenção – ou talvez possamos dizer ascensão – das glórias da Rússia.

 

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Artigos:

 

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