Utilização da série harmônica e da série sub-harmônica como recurso pedagógico em aulas de percepção musical e solfejo

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Publicado nos Anais do SIMCAM 12, 2016, UFRGS

Utilização da série harmônica e da série sub-harmônica como recurso pedagógico em aulas de percepção musical e solfejo

Ricardo Dourado Freire - UnB [email protected] Resumo: O estudo da série harmônica faz parte dos conteúdos das principais aulas de teoria da música e de harmonia. A utilização da série sub-harmônica foi proposta por Hugo Riemann em Harmony Simplified, como fundamentação de uma estrutura funcional da harmonia. No entanto, este conteúdo apresenta pouca atenção dentro das aulas de solfejo. A proposta deste artigo é apresentar os aspectos teóricos das séries harmônica e sub-harmônica e vinculá-los a atividades pedagógicas na prática do solfejo visando o aprimoramento da afinação e também da percepção musical. A análise dos elementos teóricos propõe a utilização de notas de referência para guiar a entoação de arpejos maiores e menores dentro de um contexto que valorize o processo cognitivo durante a aprendizagem. Palavras-chave: Solfejo, Série Harmônica, Série Sub-harmônica, Percepção Musical, Perfo

Abstract: Studies about the harmonic series are essential part of the required content in music theory and also in harmony classes. Riemann was the pioneer to present the use of the subharmonic series to study harmony, but he was strongly criticized by researchers. Otherwise, the study of the harmonic and subharmonic series is not a vital part of solfege and ear training classes. This article aims to present some theoretical aspects of the harmonic and subharmonic series and link them to practical activities in solfege, regarding ear training and intonation. The use of the harmonic and subharmonic series can offer the reference sounds that will guide singing and intonation of major and minor chords. Keywords: Music Theory, Solmization, Harmonic Series, Subharmonic Series, Music Perception

Os estudos clássicos sobre acústica e grande parte dos estudos sobre teoria musical apresentam com destaque as possibilidades de uso da série harmônica. As proporções entre os intervalos que constituem a série harmônica estão presentes desde os estudos musicais atribuídos a Pitágoras, Ptolomeu e Zarlino. Os estudos percussores na área da psicologia da música de Seashore (1938) e Révész (2001) também abordam a questão das vibrações, dos harmônicos e da série harmônica na percepção musical. O conceito de série sub-harmônica, ou série harmônica invertida, foi abordado por Hugo Riemman (1849-1919) a partir de uma experiência pessoal, em 1875, de percepção de uma série harmônica no sentido descendente cujas considerações criaram muitas controvérsias entre físicos e musicólogos (Rehding, 2003). Riemann (1896) organizou uma proposta de abordagem da harmonia baseado no conceito de dualismo harmônico. Seu livro apresenta o estudo dos acordes a partir de suas funções tonais, sendo que as funções harmônicas são marcadas por simetrias intervalares como a função de acorde dominante, que fica a um intervalo de 5ª justa

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superior da tônica; e a função de subdominante também fica a um intervalo de 5ª justa em relação a tônica, mas desta fez no sentido descendente. As relações simétricas entre intervalos são consequentes da análise que Riemann faz do papel da série harmônica na estruturação dos acordes maiores e da série sub-harmônica na organização dos acordes menores. Riemann classifica a estrutura dos acordes de acordo com sua relação com a série harmônica e denomina os acordes maiores como acordes de harmonia superior ou overclang. Seguindo os princípios do dualismo, os acordes menores são denominados acordes de harmonia inferior ou underclang. (Taddei, 2012) Neste artigo, os princípios de organização da série harmônica e da série subharmônica são aplicados na criação de um referencial teórico para fundamentar a elaboração de material pedagógico para aulas de solfejo e percepção musical. Não será feita uma discussão a respeito dos aspectos acústicos da série sub-harmônica pois o foco será na sua utilização prática. Série harmônica e série sub-harmônica A série harmônica existe a partir das múltiplas vibrações que existem concomitantemente a uma frequência original. Desta maneira, a partir de uma frequência = f, a série harmônica segue a progressão 2f, 3f, 4f, 5f até xf. Desta maneira, a partir da frequência 110Hz, é possível identificar frequências e notas que compõe a série harmônica da nota Lá1 (Fig. 1).

Harmônico

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

16

Hertz

110

220

330

440

550

660

770

880

990

1100

1210

1320

1430

1540

1650

1760

Fig. 1- Série Harmônica a partir da nota Lá1= 110Hz

No Brasil, são utilizados os termos série harmônica e série harmônica invertida, para ilustrar que ambas as séries apresentam a mesma sequência de intervalos, sendo que na série harmônica os intervalos são ascendentes, enquanto na série harmônica invertida, os intervalos são descendentes. A denominação série sub-harmônica é comum na língua inglesa pela utilização do termo subharmonic series. Na língua inglesa, os harmônicos também são identificados como overtones (tons superiores) e os subharmônicos como undertones (tons inferiores), mas estes termos são pouco utilizados na

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literatura especializada no Brasil. A escolha do uso do termo série sub-harmônica reforça o vínculo com os princípios estruturais de Riemann e sua abordagem na identificação de funções intervalares descendentes pela utilização do prefixo sub, da mesma maneira que Riemann utiliza termos como subdominante ou subtônica. A série sub-harmônica parte normalmente de uma frequência aguda, sendo que as divisões do valor da frequência original permitem a identificação das notas que compõe a série sub-harmônica. A partir de uma frequência aguda = f, a série subharmônica é estabelecida a partir da identificação das notas que seguem a progressão f/2, f/3, f/4, f/5 até f/x. Desta maneira, a partir da frequência 1760Hz, é possível identificar frequências e notas que compõe a série sub-harmônica da nota (Fig. 2).

Sub-

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

1760

880

586,6

440

352

293,3

251,4

220

195,5 176

160

146,6

135,3 125,7 117,3

16

harmônico Hertz

110

5

Fig. 2- Série Sub-harmônica a partir da nota Lá = 1760Hz

A série sub-harmônica apresenta a mesma sequência e estrutura intervalar da série harmônica, no entanto, as notas agudas servem de referência para a organização do espectro harmônico e as notas seguem no sentido descendente. Pode-se observar que existe uma relação entre os parciais da série harmônica e os parciais da série subharmônica. Observa-se que o 2º harmônico da nota Lá2 será a nota Lá3, da mesma maneira que o 2º sub-harmônico da nota Lá3 será a nota Lá2. Da mesma maneira, é possível encontrar uma relação fixa entre harmônicos e sub-harmônicos das notas Ré3 e Lá4, Lá2 e Lá4, Fá2 e Lá4 , Ré2 e Lá4 , Si1 e Lá4 , Lá1 e Lá4 . Conclui-se que o mesmo princípio que organiza a série harmônica é utilizado na série sub-harmônica, mas cada série possui uma nota referencial diferente, a série harmônica foca nas notas referenciais graves enquanto a série sub-harmônica foca nas notas referenciais agudas. (Figura 3)

Publicado nos Anais do SIMCAM 12, 2016, UFRGS Série Sub-harmônica



SubHarmônico



SubHarmônico



SubHarmônico



SubHarmônico



SubHarmônico



SubHarmônico



Série Harmônica















Harmônico

Harmônico

Harmônico

Harmônico

Harmônico

Harmônico

Harmônico

SubHarmônico

Figura 3 – Notas correspondentes entre a série sub-harmônica e série harmônica A principal controvérsia sobre as possibilidades práticas da série sub-harmônica reflete a questão central da própria existência da série harmônica enquanto fenômeno físico. Desde as publicações de Riemann, o tema gerou discussões nas quais físicos refutavam sua existência real enquanto musicólogos valorizavam a existência funcional. Neste artigo, o aspecto conceitual, demonstrado na simetria das relações entre harmônicos, cria um vínculo entre sons graves e sons agudos que podem auxiliar tanto na afinação de acordes maiores quanto na afinação de acordes menores.

Afinação dos Acordes A realização de um acorde, com três ou mais notas exige que exista uma nota de referência para permitir a afinação de cada uma das notas do acorde. Barbour (1984) apresenta os princípios da afinação justa elaborada inicialmente por Ptolomeu, no qual todas as notas de uma escala estão relacionadas com as notas da série harmônica. A compreensão do uso da série harmônica e da série sub-harmônica podem auxiliar no processo de identificação de frequências e estruturação da afinação dos acordes de acordo com o sistema justo. Quando são produzidos acordes maiores, a fundamental, geralmente um som grave, funciona como o som de referência para a afinação das demais notas do acorde. As notas que compõem a tríade fazem parte da série harmônica da tônica do acorde. Desta maneira, a série harmônica, serve como princípio para formação da tríade maior, do acorde maior com 7ª menor, do acorde maior com 7ª menor e 9ª Maior, e do acorde com 7a menor e 11ª aumentada. (Fig. 4)

Harmônicos Acorde

4º, 5º, 6º Perfeito Maior

4º, 5º, 6º, 7º Maior com 7m

4º, 5º, 6º, 7º, 9º

4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 11º

Maior com 7m e

Maior com 7m, 9M e

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11 Aum

Figura 4 – Afinação de acordes Maiores de acordo com uma nota de referência grave

A formação de um acorde menor não encontra parâmetros ou meios de justificativa para sua presença dentro do contexto da série harmônica. No entanto, ao analisarmos a formação de acordes a partir dos parâmetros da série sub-harmônica é possível identificar a formação de um acorde menor a partir dos sub-harmônicos 4, 5, 6, a formação de um acorde meio diminuto com os sub-harmônicos 4, 5, 6 e 7, e outros acordes que não estão presentes na série harmônica direta.(Fig. 5)

SubHarmônicos

4º, 5º, 6º

4º, 5º, 6º, 7º

4º, 5º, 6º, 7º, 9º

4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 11º

Acorde

Perfeito menor

menor com 5dim e 7m

Maior com 7m e 9M

Maior com 5Aum, 7M, 9M e 11 Aum

Figura 5 – Afinação de acordes menores de acordo com uma nota de referência aguda

Analisando os acordes da fig. 5 é possível identificar que a nota aguda é um harmônico comum a todas as notas de cada um dos acordes, ao mesmo tempo, as notas dos acordes correspondem a sub-harmônicos da nota aguda. O processo de afinação entre instrumentos depende de uma frequência de referência para que as demais notas possam ajustar o espectro harmônico das frequências comuns. No contexto maior, a tônica do acorde funciona como uma excelente referência para afinação, principalmente quando apresenta a série harmônica a partir do registro grave. No contexto menor, a nota de referência para formação de acordes passa a ser o 5º grau da escala, pois a partir do 5º grau é possível construir um acorde menor tendo como referência a série subharmônica. Neste caso, a nota de referência deve ser apresentada no registro agudo para fortalecer a percepção da escala sub-harmônica.

Ferramentas para o contexto de aprendizagem O desenvolvimento de uma consciência dos intervalos e da relação entre os intervalos em um contexto maior ou em um contexto menor pressupõe a existência de

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parâmetros claros para este desenvolvimento. Helmholtz (1885) quando escreveu “On the sensations of tone as a physiological basis for the theory of music” propôs que a percepção auditiva deva ser o principal guia para a performance e para a aprendizagem musical. As aulas de solfejo podem, tendo Helmholtz como inspiração, utilizar a compreensão dos princípios acústicos presentes na teoria musical tendo como referência para o processo perceptivo. O desafio pedagógico torna-se a adaptação dos princípios das séries harmônica e sub-harmônica de acordo com os limites da voz cantada de alunos de solfejo. Cada exercício necessita adaptar as oitavas e a construção melódica para que seja possível a execução musical sem modificar as estruturas essenciais da série harmônica e sub-harmônica. O processo de aprendizagem necessita estabelecer paradigmas auditivos a partir dos quais a razão e a intuição poderão ser desenvolvidas. Neste caso a razão é o conhecimento teórico das relações entre os intervalos e a intuição refere-se à capacidade do ouvido humano identificar, conscientemente ou inconscientemente, as frequências da séries harmônica e sub-harmônica presentes em um som de referência. Nesta situação, faz-se necessário a presença de uma nota de referência que sirva de paradigma auditivo na construção dos intervalos musicais. A afinação será realizada a partir da identificação dos intervalos e observação dos intervalos puros provenientes do encaixe entre nota pedal e nota da série harmônica. Para estimular a afinação temperada, o 7º e 11º graus podem ser entoados em uma afinação mais baixa, para valorizar o intervalo puro e sem batimentos. O 13º harmônico apresenta caráter ambíguo, pois a afinação justa fica entre a 13ª menor (alta) e a 13ª Maior (baixa), e neste caso os exercícios podem mostrar ambas as possibilidades. A série harmônica servirá de referência no contexto de uma tonalidade ou acorde maior, quando utiliza-se a tônica do acorde como pedal grave para afinação das notas do acorde. (Fig. 6)

Fig. 6 – Exercício para cantar e afinar a série harmônica A série sub-harmônica pode ser utilizada no contexto de uma tonalidade ou acorde menor. A nota de referência que permite a formação do acorde é o quinto grau em

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relação a tônica. Nesta situação, o pedal agudo oferece a possibilidade de formação do acorde menor da tonalidade. Foi elaborado um exercício de solfejo específico, a partir de uma nota pedal aguda, para treinamento da entoação e afinação (Fig. 7)

Fig. 7 – Exercício para cantar e afinar a série sub-harmônica

A combinação da série harmônica ascendente com a série sub-harmônica descendente também oferece possibilidade para o desenvolvimento da percepção das notas que compõem o material musical do contexto tonal maior e menor. (Fig. 8)

Fig. 8 – Exercício para cantar e afinar a combinação entre série harmônica e sub-harmônica

O treinamento de exercícios baseados nas séries harmônica e sub-harmônica pode ser realizado a partir de várias notas de referência. Minha experiência pessoal na Universidade de Brasília me estimulou a organizar exercícios práticos para a preparação e sensibilização da afinação dos estudantes de solfejo e percepção musical. A partir da realização de exercícios vocais com a série harmônica na preparação de um exercício em tonalidade maior, fica muito bem estabelecido o contexto harmônico Maior. A preparação de um contexto menor pode ser sensibilizada pela utilização de exercícios baseados na série sub-harmônica No entanto, faz-se necessário realizar pesquisas quantitativas experimentais que possam demonstrar estatisticamente a validade deste procedimento na aprendizagem de estudantes de solfejo. Conclusão Esta pesquisa inicial fez uma análise de possibilidades de uso da série harmônica e sub-harmônica como subsídios para a elaboração de material didático em aulas de solfejo. A partir da proposta de exercícios e de uma abordagem que privilegie a relação entre os intervalos harmônicos será possível fazer uma análise do desenvolvimento dos estudantes para verificar a validade desta abordagem. Uma futura pesquisa quantitativa de caráter longitudinal permitirá a verificação de parâmetros que favorecem ou não favorecem o desenvolvimento musical. A identificação de elementos práticos relacionados ao processo de afinação permite uma nova perspectiva no uso da série harmônica e da série sub-harmônica no contexto das aulas de solfejo. A partir das notas de referência é possível o desenvolvimento de atividades práticas que permitam a identificação das notas, dos intervalos e dos acordes dentro da estrutura das séries harmônica e sub-harmônica.

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A convergência entre teoria musical, acústica, e performance pode ser explorado nas características de afinação de determinados repertórios do período medieval, renascentista e barroco que exploram sistemas de afinação específicos. Nas práticas musicais é possível tocar a série harmônica a partir de um pedal grave, que pode ser realizada com dois instrumentos, favorecendo a colaboração entre estudantes de música. Outra possibilidade, é a prática com uma nota pedal em um afinador eletrônico que pode criar um contexto com diversos tipos de onda sonora: senoidal, triangular, quadrada ou dente de serra. A utilização de uma nota pedal aguda permite a exploração da série sub-harmônica na qual os intervalos estão relacionados com a nota aguda e também podem ser executados com instrumentistas ou aplicativos eletrônicos. Um conceito teórico, muitas vezes, apresenta dificuldade para ser aplicado na prática. Nesta proposta, a contextualização do solfejo dentro das séries harmônica e subharmônica permite a descoberta das relações que existem entre as notas de referência e as notas das séries. Neste contexto, a cognição musical torna-se uma ferramenta para o estudo da performance, na qual a compreensão do objeto musical e o desenvolvimento de habilidades musicais podem colaborar no processo de aprendizagem tanto do solfejo quanto de um instrumento musical.

Referências Barbour, J. Murray. (2004). Tuning and Temperament: A Historical Survey. New York: Dover. Helmholtz, Hermann von. (1885). On the sensations of tone as a physiological basis for the theory of music. Segunda edição inglesa, traduzida por Alexander J. Ellis. London: Longmans, Green, and Co. Révész, Geza (2001). Introduction to the Psychology of Music. New York: Dover. Roederer, Juan. G. (2008). The Physics and Psychophysics of Music: An Introduction. Heidelberg: Springer-Verlag. Riemann, Hugo (1896). Harmony simplified: The theory of the tonal functions of chords. Terceira edição. London: Augener. Rehding, Alexander (2003). Hugo Riemann and the Birth of Modern Musical Thought. Cambridge: Cambridge University Press. Taddei, Rita de Cássia (2012).

A teoria de Hugo Riemann: além da harmonia

simplificada ou funções tonais dos acordes. In: Anais do II Simpom 2012 Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Música da UNIRIO. Seashore, Carl E. Psychology of Music (1938). New York, London: McGraw-Hill.

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